Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
326/14.6T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESMAIO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP20171009326/14.6T8PNF.P1
Data do Acordão: 10/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL(2013)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL), LIVRO DE REGISTOS N.º262, FLS.73-76)
Área Temática: .
Sumário: Não tendo a seguradora alegado e provado que o desmaio do sinistrado foi a consequência de uma doença de que ele padecia, pode-se afirmar que a perda de sentidos foi involuntária e como tal estamos perante um evento súbito, inesperado causador do acidente, de trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº326/14.6T8PNF.P1
Relatora: M. Fernanda Soares – 1495
Adjuntos: Dr. Domingos José de Morais
Dra. Paula Leal de Carvalho
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
Nos presentes autos emergentes de acidente de trabalho em que é Autor B…, patrocinado pelo MP, e Ré C… S.A., foi proferida sentença, em 08.02.2017, cuja parte decisória é a seguinte: “1) Declaro que o Autor B…, em consequência do acidente de trabalho a que se reportam os autos, lesões e sequelas dele emergente, sofreu uma desvalorização permanente para o trabalho (IPP) de 0%, não tendo direito a receber da Ré qualquer indemnização a título de IPP; 2) Condeno a Ré C… S.A. a pagar ao Autor a quantia de €1.300,81, a título de indemnizações por incapacidades temporárias absolutas de 11.04.2014 a 19.08.2014, acrescida de juros de mora, a contar sobre a quantia diária de cada uma daquelas indemnizações nos termos supra explanados, desde a data a que se reporta cada uma dessas quantias diárias, à taxa de 4% ao ano até integral e efectivo pagamento; 3) Condeno a Ré C… S.A. a pagar ao Autor a quantia de €30,00 a título de despesas de deslocações obrigatórias, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 27.10.2015 até integral pagamento. Mais se decide julgar procedente o pedido formulado pelo Instituto de Segurança Social IP e, em consequência, condenar a Ré C… S.A. a pagar-lhe a quantia de €788,64, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento”.
A Ré seguradora veio recorrer da sentença pedindo a sua revogação e substituição por acórdão que a absolva dos pedidos, concluindo do seguinte modo:
1. Não ocorreu nenhum acontecimento exterior, súbito, que produzisse directamente lesão corporal ou outra no Autor.
2. É certo que o Autor sofreu uma queda.
3. Porém, essa queda não deve considerar-se resultante de acidente de trabalho, nos termos previstos na lei, já que se ficou a dever a desmaio.
4. Sendo assim, ficou realmente provado que a queda do sinistrado não ocorreu na sequência de qualquer acidente, como acontecimento súbito, inesperado e de origem externa, mas antes devido a causas internas ou naturais, como é o desmaio.
5. Assim julgou o acórdão da Secção Social do STJ de 04.11.1998 e o acórdão da Relação do Porto de 25.11.1980.
6. Ora, se a queda do sinistrado ocorreu no tempo e no local de trabalho, ficou a dever-se ao desmaio, pelo que não é possível extrair os efeitos da presunção que assenta na existência de um acidente.
7. Ora, o Autor não logrou provar, como lhe cabia – artigo 342º, nº1 do CC – que os ferimentos se ficaram a dever ao desmaio como acidente de trabalho.
8. A sentença recorrida violou as normas do artigo 8º da Lei 98/2009 de 04.09.
O Autor veio responder pugnando pela manutenção da decisão recorrida, concluindo do seguinte modo:
1. A recorrente não põe em causa a matéria de facto provada e não provada, antes entende que a matéria de facto dada como provada a decisão deveria ter sido outra.
2. Contrariamente ao que defende a recorrente, o acidente não procede só necessariamente de uma causa externa ao trabalhador, ele pode existir quando, estando o trabalhador sujeito a risco laboral, ainda que no período e circunstâncias da sua extensão legal, sucede algo que ele não controla nem tem maneira de prever.
3. O desmaio é um acontecimento súbito e imprevisto para o sinistrado e que ele não podia controlar.
4. Os trabalhadores estão sujeitos a problemas de saúde não previstos, inesperados e porque os não podem prever, realizam as suas actividades normais, mormente o trabalho, sujeitos ao risco desse trabalho ou da sua colocação à disposição nesse trabalho.
5. Só se o trabalhador já sabe previamente que tem um problema de saúde que o faz desmaiar, é que se pode defender que não se trata de um acidente, mas de uma manifestação de uma doença que agrava o risco, e que o trabalhador deve acautelar, mais que não seja comunicando esse risco ao empregador e este à seguradora – artigo 11º, nº1 da LAT.
6. Não se provou que “esse desmaio teve como causa única e exclusiva uma doença súbita e natural que afectou o Autor e que não foi precedida ou animada por qualquer agente físico exterior à pessoa do Autor”.
7. Pelo que a sentença deve ser mantida.
Admitido o recurso cumpre decidir.
* * *
II
Matéria de facto dada como provada e a ter em conta na decisão do recurso.
1. O Autor nasceu em 22.02.1982.
2. O Autor, desde Setembro de 2013, exerce as funções de armador de ferro para a “D… UNIPESSOAL LDA”.
3. No dia 10.04.2014, cerca das 14 horas, em Espanha, o Autor caiu ao solo.
4. Na data do relatado em 3 o Autor recebia como contrapartida da actividade referida em 2 da sociedade D… UNIPESSOAL LDA, a retribuição anual de €496,50 x 14 + €124,30 x 11.
5. A sociedade D… UNIPESSOAL LDA celebrou com a Ré C… S.A. um contrato de seguro titulado pela apólice nº…/…….., mediante o qual a primeira transferiu para a segunda a sua responsabilidade por acidentes de trabalho que viesse a sofrer o Autor pela retribuição anual identificada em 4, contrato esse que se mantinha em vigor em 10.04.2014.
6. Na fase conciliatória do presente processo o Autor teve obrigatoriamente de se deslocar desde a sua residência uma vez ao GML e uma vez ao Tribunal no que despendeu a quantia de €30,00 em deslocações.
7. O Autor é beneficiário da Segurança Social Portuguesa, inscrito com o nº…………..
8. O Instituto da Segurança Social pagou ao Autor a quantia de €788,64 a título de subsídio de doença no período decorrido de 10.04.2014 a 19.08.2014.
9. A queda relatada em 3 ocorreu quando após uma manhã de trabalho na execução das funções relatadas em 2, o Autor se preparava, juntamente com os seus colegas de trabalho, para almoçar.
10. Em consequência da queda relatada em 3 e 9 o Autor sofreu fractura da mão esquerda.
11. Em consequência directa e necessária da lesão relatada em 10 resultou para o Autor incapacidade permanente e parcial de 0%.
12. A alta por cura clínica da lesão referida em 10 ocorreu em 19.08.2014.
13. Do relatado em 3, 9 e 10 resultou para o Autor ITA de 11.04.2014 até 19.08.2014.
14. A queda relatada em 3 ocorreu em consequência do Autor ter desmaiado.
15. O período de doença referido em 8 que afectou o Autor é consequência directa e necessária do relatado em 3, 9 e 10.
Não se provou
Que esse desmaio teve como causa única e exclusiva uma doença súbita e natural que afectou o Autor e que não foi precedida ou animada por qualquer agente físico exterior à pessoa do Autor.
* * *
III
Objecto do recurso.
Da existência de um acidente de trabalho.
O Tribunal a quo concluiu, em face da factualidade dada como provada, que “o evento que vitimou o Autor tratando-se de acontecimento súbito, imprevisto, incontrolável, não assente em doença natural ou patologia prévia, ocorrido no local e no tempo de trabalho é caracterizável como acidente de trabalho” (…).
Diz a apelante que a queda sofrida pelo sinistrado não deve considerar-se resultante de acidente de trabalho, nos termos previstos na lei, já que se ficou a dever a desmaio. Sendo assim, ficou realmente provado que a queda do sinistrado não ocorreu na sequência de qualquer acidente, como acontecimento súbito, inesperado e de origem externa, mas antes devido a causas internas ou naturais, como é o desmaio. Ora, se a queda do sinistrado ocorreu no tempo e no local de trabalho, ficou a dever-se ao desmaio, pelo que não é possível extrair os efeitos da presunção que assenta na existência de um acidente, sendo que o Autor não logrou provar, como lhe cabia – artigo 342º, nº1 do CC – que os ferimentos se ficaram a dever ao desmaio como acidente de trabalho. Vejamos então.
A prova da existência de um acidente de trabalho compete ao sinistrado/Autor, atento o disposto no artigo 342º, nº1 do C. Civil. E será que o Autor logrou provar ter sofrido um acidente de trabalho? É o que vamos analisar de seguida.
Nos termos do disposto no artigo 8º, nº1 da Lei nº98/2009 de 04.09, “ É acidente de trabalho, aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
A noção de acidente de trabalho, conforme é defendido pelo nosso mais alto Tribunal, (…) “reconduz-se a um acontecimento súbito, de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença” – acórdão de 13.01.2010, proferido no processo 1466/03.2 TTPRT.S1 em www.dgsi.pt. No mesmo sentido é o acórdão do STJ de 30.05.2012 onde se defende que “a qualificação como acidente de trabalho pressupõe, em regra, a ocorrência de um evento súbito, imprevisto, exterior à vítima e que lhe provoque uma lesão na saúde ou na sua integridade física e que este evento ocorra no local e tempo de trabalho”, publicado na CJ, acórdãos do STJ, ano 2012, tomo II, página 261 e seguintes.
A propósito da causa exterior refere Carlos Alegre (…) “em torno da causa exterior se levantam inúmeras dúvidas: se a origem da lesão tinha que resultar de uma acção directa sobre o corpo humano ou se bastava uma acção indirecta; se ela tinha que ser clara, visível, evidente ou se podia actuar insidiosamente, se devia ser de percepção imediata; se tinha que actuar de forma violenta, através de choque, de golpe ou de qualquer outro contacto semelhantemente violento ou se podia insinuar-se sem violência. A verdade é que, nem o acontecimento exterior directo e visível, nem a violência são, hoje, critérios indispensáveis à caracterização do acidente. A sua verificação é extremamente variável e relativa, em muitas circunstâncias. Além disso, a causa exterior da lesão tende a confundir-se com a causa do acidente de trabalho, num salto lógico, nem sempre evidente” (…) – Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ªedição, página 36.
E segundo Victor Ribeiro (…) “ Para que se desencadeie o dispositivo legal reparatório, torna-se necessário que alguma coisa aconteça no plano das coisas sensíveis. Algo que seja, enfim, uma condição ou causa próxima e dinâmica da produção do dano indemnizável” (…) “tudo que é susceptível de alterar o equilíbrio anterior; tudo quanto «viole» esse equilíbrio, quer seja uma explosão, quer seja uma emanação de gás tóxico, um golpe de frio ou calor, ou mesmo uma situação particularmente angustiante, ou de trabalho excessivo que faça, por exemplo, desencadear um ataque cardíaco ou uma perturbação mental” – Acidentes de Trabalho, reflexões e notas práticas, páginas 208/210.
Também Júlio Vieira Gomes defende que “não há que exigir sempre uma causa externa ou exterior ao corpo do trabalhador” – O Acidente de Trabalho, página 24.
No seguimento do exposto é o acórdão da Secção Social da Relação de Lisboa, de 11.10.2011 onde se defende “aceita-se, actualmente, que nem o acontecimento exterior, directo e visível, nem a violência, são critérios indispensáveis à caracterização do acidente” – CJ, ano 2011, tomo IV, página 162.
Acolhemos aqui tais ensinamentos.
Segundo a factualidade assente não existem dúvidas de que o Autor se encontrava a trabalhar no seu local de trabalho e no seu tempo de trabalho quando ocorreu a sua queda ao solo. E igualmente decorre da matéria de facto provada que o desmaio constituiu um acontecimento súbito e inesperado, o qual causou a queda do sinistrado.
Diz a apelante que a queda do sinistrado foi a consequência do desmaio e este traduz-se numa causa interna ou natural não integrando assim a noção de acidente de trabalho.
Discordamos pelas razões já referidas e ainda pelas que vamos a seguir adiantar.
O desmaio traduz-se na perda dos sentidos e, deste modo, do uso da razão.
O artigo 14º nº1, al. c) da LAT determina que “O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação”.
Carlos Alegre refere, a respeito do citado artigo – correspondente ao artigo 7º da Lei 100/97 de 13.09 – o seguinte: (…) “a privação acidental do uso da razão pode ter as mais variadas origens” (…) “seja qual for o tipo de privação do uso da razão que esteja na origem do acidente, este, ainda assim, será reparado, desde que ocorra uma das seguintes circunstâncias: 1ª que tal privação derive da própria prestação do trabalho” (…) “ou 2ª que tal privação seja independente da vontade do sinistrado; ou 3ª que a entidade patronal ou o seu representante, conhecendo o estado inadequado à prestação do trabalho da vítima, consinta essa prestação” (…) – obra citada, páginas 63/64.
Ora, não tendo a apelante alegado e provado que o desmaio do sinistrado foi a consequência de uma doença de que ele padecia, podemos afirmar que a perda de sentidos foi involuntária e como tal estamos perante um evento súbito, inesperado, causador do acidente.
Assim sendo, nenhum reparo merece a decisão recorrida ao ter concluído pela existência de um acidente de trabalho.
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Termos em que se julga a apelação improcedente e se confirma a decisão recorrida.
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Custas a cargo da apelante.
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Porto, 09.10.2017
Fernanda Soares
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho