Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
856/11.1TBGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: RECUSA
DECLARAÇÃO DE EXECUTORIEDADE
NÃO REPRESENTAÇÃO DO REQUERIDO EM AUDIÊNCIA
CONDENAÇÃO NO PEDIDO
Nº do Documento: RP20110927856/11.1TBGDM.P1
Data do Acordão: 09/27/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - È apenas na fase de recurso que o Requerido pode invocar motivos de recusa da declaração de executoriedade, pedido esse que apenas pode abranger um dos motivos especificados nos artºs 34° e 35° do Regulamento(CE) nº 44/200 1 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000.
II - Ao juiz de 1ª instância não cabe a sindicância destes motivos.
III - Não é contrária à ordem pública portuguesa a decisão que condena no pedido, por força da não representação do Requerido, em audiência, através de advogado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec. 856/11.1TBGDM.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Mª das Dores Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão recorrida de 9/3/2011.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial para reconhecimento de sentença estrangeira, com o nº856/11.1TBGDM, do 2º Juízo Cível da Comarca de Gondomar.
Requerente – República Federal da Alemanha, representada pelo Presidente da Administração do Distrito Militar Sul.
Requerido – B….

Tese da Requerente
Requer confirmação da sentença estrangeira, nos termos do disposto nos artºs 31º, 38º e 39º do Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial.
O Requerido foi condenado por sentença de 2/12/2009, do Tribunal de 1ª Instância de Ulm, a pagar à Requerente a quantia de € 21.158,10, acrescida de 5% de juros, sobre a taxa de juro de base, desde 11/3/2008.
Foi ainda o Requerido condenado a pagar as custas judiciais de notificação, no valor de € 3, bem como condenado a pagar as custas e despesas processuais, no valor de € 1.407,53, acrescido de juros no valor de 5% acima da taxa de juro base, desde 14/1/2010.
Na base destas sentenças esteve o processo de condenação por prestação de serviços hospitalares no Hospital das Forças Armadas Federais em Ulm e o processo de fixação das custas e despesas do processo.

Sentença Recorrida
Por se verificarem os requisitos previstos nos artºs 41º, 53º e 54º do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, e nos termos do artº 38º do mesmo Regulamento, a Mmª Juiz “a quo” declarou a executoriedade em Portugal das decisões acima referidas.

Conclusões do Recurso de Apelação do Requerido:
I – O Recorrente não recepcionou qualquer notificação do Tribunal de 1ª Instância de Ulm quanto à marcação da audiência de julgamento, o que fez com que não tivesse comparecido na sessão de julgamento que terá ocorrido no dia 25/11/2009, pelas 17 horas.
II – De igual modo, o Recorrente não foi notificado da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância de Ulm, desconhecendo o seu conteúdo, facto que impediu que tivesse reagido contra a mesma, designadamente através do recurso para os tribunais superiores.
III – Nos termos do artº 34º nº2 do Regulamento CE nº 44/2001, a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância de Ulm não deveria ter sido reconhecida pelos tribunais portugueses, pois o Recorrente não foi notificado da data da audiência de julgamento e da sentença proferida, facto que impediu a produção de prova na audiência de 25/11/09 e o eventual recurso dessa mesma sentença.
IV – Ao não serem efectuadas as notificações acima indicadas, não foi cumprido o disposto nos artºs 4º, 5º, 10º e 19º nº1 do Regulamento CE nº 1393/2007, relativo à citação e notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-membros.
V – De acordo com o disposto no artº 26º nºs 1 e 2 do Regulamento CE nº 44/2001, verificada a não comparência do Recorrido na audiência de 25/11/2009, deveria o Juiz suspender a instância, enquanto não se verificar que foram efectuadas todas as diligências tendentes a assegurar a defesa do Recorrido, o que não sucedeu.
VI – A douta sentença recorrida violou, entre outras, as disposições dos artºs 26º nºs 1 e 2 e 34º nº2 Regulamento CE nº 44/2001, assim como os artºs 4º, 5º, 10º e 19º nº1 do Regulamento CE nº 1393/2007, devendo ser substituída por decisão que revogue a executoriedade ordenada em Portugal da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância de Ulm (Alemanha).

Por contra-alegações, o Recorrido sustenta o bem fundado da sentença em análise, pugnando pela respectiva confirmação.

Factos Provados
Encontram-se documentalmente provados os factos alegados pela Requerente, na douta petição inicial, supra resumidamente expostos.
Mais se prova que consta da decisão a confirmar o seguinte texto:
“Relativamente à injunção de pagamento emitida contra o requerido em 14/8/2008 com respeito ao pedido de pagamento, este comunicou em 22/9/2008 ao tribunal de 1ª instância de Stuttgart que nada devia ao hospital militar de Ulm. Após apresentação do processo ao tribunal de 1ª instância de Ulm, decidiu este tribunal que fosse executado o procedimento pré-contencioso. Mediante despacho datado de 3/2/2009, o tribunal de 1ª instância de Ulm comunicou ao requerido que o caso não era da sua jurisdição, mas sim do tribunal da comarca de Ulm, explicando que a requerente acabara de apresentar um pedido de reenvio. Além disso, foi comunicado ao requerido o despacho de 11/2/2009, mediante o qual ele era obrigado, no prazo de dois meses após a notificação, a nomear uma pessoa autorizada para receber notificações que vivesse no país ou que aí tivesse um escritório, se ele não designasse um mandatário judicial. Caso isto se não viesse a verificar, poderiam todas as posteriores notificações ter efeito até uma nomeação subsequente para que a peça processual pudesse ser enviada para o correio com o endereço da parte, a qual teria então efeito duas semanas após a entrega nos correios, desde que o tribunal não determinasse outro prazo. As três disposições, traduzidas em português, foram notificadas ao requerido com data de 30/6/2009, mediante carta rogatória, através das instâncias portuguesas competentes. Em 20/7/2009, o requerido apresentou a sua defesa sem a nomeação de um mandatário judicial perante o tribunal de primeira instância contra a acção apresentada, alegando como fundamento que os médicos do hospital militar tinham cometido um erro no tratamento.”
“Após ter sido remetido o processo ao tribunal de primeira instância de Ulm, a 6ª Secção Cível marcou, mediante despacho de 8/9/2009, a audiência para o dia 25/11/2009, às 17 horas. Por decisão de 14/9/2009, o despacho de 8/9/2009 foi enviado para o correio. O requerido não nomeou uma pessoa autorizada para receber notificações, nem tão pouco se fez representar por um advogado, na audiência de 25/11/2009.”
(…) “Visto que o requerido não se fez representar na audiência de 25/11/2009 por um advogado registado num tribunal alemão, foi pronunciada a sentença contra o requerido, por requerimento do representante do requerente, nos termos do § 331/1, do Código de Processo Civil.”

Fundamentos
Em função das conclusões do recurso e do despacho em crise, a única questão que o presente recurso suscita será a de saber se se encontram reunidas as condições para o reconhecimento do acórdão alemão, proferido em 1ª instância, tendo em vista os dispositivos do Regulamento44/2001 (CE) do Conselho de 22 de Dezembro de 2000.
Vejamos então.
I
A resposta é negativa, para o Recorrente, segundo quem, nos termos do artº 34º nº2 do Regulamento CE nº 44/2001, a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância de Ulm não deveria ter sido reconhecida pelos tribunais portugueses, pois o Recorrente não foi notificado da data da audiência de julgamento e da sentença proferida, facto que impediu a produção de prova na audiência de 25/11/09 e o eventual recurso dessa mesma sentença.
A alegação merece-nos uma primeira rectificação, sempre com o devido respeito – é que o Recorrente foi avisado pelo correio da data designada para a audiência de julgamento, como consta dos termos da sentença proferida (“por decisão de 14/9/2009, o despacho de 8/9/2009 foi enviado para o correio” – possibilidade de envio essa que constava de notificação anterior, efectuada através de carta rogatória, cumprida em Portugal).
É certo porém que não foi notificado da sentença proferida à revelia, e como tal proferida por via de “o requerido não ter nomeado uma pessoa autorizada para receber notificações, nem tão pouco se ter feito representar por um advogado, na audiência de 25/11/2009”. Na verdade, “foi comunicado ao requerido o despacho de 11/2/2009, mediante o qual ele era obrigado, no prazo de dois meses após a notificação, a nomear uma pessoa autorizada para receber notificações que vivesse no país ou que aí tivesse um escritório, se ele não designasse um mandatário judicial”; após a prolação e notificação do referido despacho, “em 20/7/2009, o requerido apresentou a sua defesa, sem a nomeação de um mandatário judicial, perante o tribunal de primeira instância, contra a acção apresentada”.
Quid juris?
Em primeiro lugar, constatar que a sentença proferida se houve com respeito pelo disposto no artº 41º do Regulamento – “a decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artº 53º, sem verificação dos motivos referidos nos artºs 34º e 35º. A parte contra a qual a execução é promovida não pode apresentar observações nesta fase do processo”.
É desta forma na fase de recurso que o Requerido pode invocar motivos de recusa da declaração de executoriedade – e veja-se Ac.R.L. 21/2/08 Col.I/115, dispondo por sua vez o artº 45º nº1 do Regulamento que o tribunal de recurso apenas pode revogar ou recusar a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artºs 34º e 35º.
Ora, estes motivos de revogação ou recusa reconduzem-se aos seguintes:
- se a declaração de exequibilidade em causa for manifestamente contrária à ordem pública do Estado-membro requerido;
- se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa (a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão, tendo a possibilidade de o fazer);
- se a decisão a que se reporta a declaração de exequibilidade for inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado-Membro requerido ou seja inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com idênticos pedido e causa de pedir (e desde que a decisão anterior reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido);
- terem sido desrespeitadas regras de competência, em matéria de seguros, contratos relativos a consumidores ou competências exclusivas.
II
Ora, vejamos a que fattispecie das normas referidas se pode reconduzir a impugnação dos autos, a qual, como vimos, se foca em o Recorrente não ter sido notificado da data da audiência de julgamento e da sentença proferida.
Comecemos por afastar a matéria das competências exclusivas – do artº 22º do Regulamento não ressalta uma acção com a causa de pedir integrante do petitório, na presente sentença a reconhecer.
Não se trata de matéria relativa a seguros.
Quanto ao eventual desrespeito por regras de competência relativas a contratos celebrados com consumidores – e independentemente de certas legislações, como a portuguesa, considerarem directamente o ora Recorrente, utente de hospital público, como um verdadeiro consumidor (artº 2º nºs 1 e 2 da Lei de Defesa do Consumidor) – a verdade é que o Regulamento apenas se aplica à hipótese de venda ou prestação de serviços de consumo previstos no artº 15º nº1 desse mesmo Regulamento (venda a prestações de bens móveis corpóreos; operações de crédito relativas a bens móveis corpóreos; contrato concluído por profissional que tenha actividade no Estado-Membro do domicílio do consumidor, ou para aí dirija a sua actividade) – não é esse o caso da hipótese da prestação de serviços de saúde em hospital público alemão, relativamente a um cidadão com domicílio em Portugal.
Outrossim, não existe notícia de decisões judiciais entretanto proferidas e inconciliáveis com aquela cujo reconhecimento se pretende.
Relativamente ao acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não ter sido comunicado ou notificado ao requerido revel em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, o que se passou no processo é que:
- o ora Recorrente contestou uma injunção para pagamento, contra si emitida; a contestação datou de 22/9/2008;
- relativamente a procedimentos judiciais, o mesmo Recorrente foi alvo de comunicação, concretizada por carta rogatória cumprida pelas autoridades portuguesas, relativamente à pendência de um processo pré-contencioso; para além do mais, também foi notificado de que, se não designasse mandatário judicial, deveria nomear uma pessoa autorizada a receber notificações que vivesse na República Federal da Alemanha ou aí tivesse um escritório; não o fazendo, poderiam todas as posteriores notificações ter efeito para que a peça processual fosse enviada para o correio com o endereço da parte;
- assim, o Recorrente foi notificado, para a sua morada, da data da audiência de julgamento;
- acima do mais, o Recorrente apresentou, em 20/7/2009, a sua defesa no processo judicial, sem a constituição de mandatário judicial.
Verifica-se assim que o Recorrente foi notificado, no processo alemão, da pendência do processo e pôde aí apresentar a sua defesa. Tanto basta para que se veja afastada a hipótese de não reconhecimento constante do nº2 do artº 34º do Regulamento.
Finalmente, as consequências da revelia do ali Requerido serão inconciliáveis com a ordem pública do Estado português? Referimo-nos obviamente à condenação do Requerido vistas duas condições:
- a conclusividade do pedido (a sindicância da ineptidão da petição inicial);
- o requerimento do representante do Requerente, pelo facto de o Requerido não se ter feito representar por advogado em audiência.
Não parece que tais consequências da revelia colidam, por qualquer forma, com a ordem pública do Estado português: consequências muito semelhantes, relativas à imediata condenação no pedido, constavam do disposto no artº 796º nº1 C.P.Civ. 61/67, que vigorou no nosso ordenamento jurídico até 1997; consequências não tão gravosas, mas muito semelhantes, quanto às consequências da revelia em julgamento, implicando a prova dos factos invocados pela parte contrária, constam do Código de Processo do Trabalho – artº 71º nº2; as consequências da revelia operante, em processo comum (a falta de contestação, em face de uma citação regular) são igualmente as da confissão dos factos articulados pelo Autor – artº 484º nº1 C.P.Civ.
Por outro lado, do facto de a sentença não ter sido notificada ao ora Recorrente e revel, na medida em que tal haja impossibilitado recurso da decisão proferida, junto das justiças alemãs, não parece também colidir com a ordem pública portuguesa – na verdade, a lei portuguesa estabeleceu já a impossibilidade de recurso nas acções para cobrança de dívidas pela prestação de cuidados de saúde, tal como constava do disposto no artº 1º D.-L. nº 147/83 de 5 de Abril, conjugado com o disposto no artº 800º C.P.Civ., na redacção anterior a 97.
Desta forma, em conclusão, não existe qualquer fundamento legal que, em concreto, autorize a revogação ou recusa da declaração de executoriedade e reconhecimento da sentença alemã, pese embora o inconformismo do Recorrente, que merece, como sempre, o nosso respeito.

Resumindo a fundamentação:
I – Do disposto nas disposições conjugadas dos artºs 41º e 45º nº1 do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, é apenas na fase de recurso que o Requerido pode invocar motivos de recusa da declaração de executoriedade, pedido esse que apenas pode abranger um dos motivos especificados nos artºs 34º e 35º do Regulamento; ao juiz de 1ª instância não cabe a sindicância destes motivos.
II – Não é manifestamente contrária à ordem pública portuguesa a decisão que condena no pedido, por força da não representação do Requerido, em audiência, através de advogado, nem aquela certidão de onde se não retira a notificado do Requerido do teor da sentença, por forma a possibilitar o recurso; tratando-se de acção para cobrança de dívida por prestação de cuidados de saúde, quer uma, quer outra das circunstâncias referidas foram já admissíveis no Direito português moderno.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Na improcedência do recurso de apelação, confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.

Porto, 27/IX/2011
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa