Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1087/18.5T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO INSTAURADA POR JUNTA DE FREGUESIA
RECONHECIMENTO DE CAMINHO PÚBLICO
Nº do Documento: RP202204071087/18.5T8STS.P1
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: É da competência dos tribunais judiciais a acção instaurada por uma Freguesia, representada pela respectiva Junta de Freguesia, pedindo o reconhecimento de que um determinado caminho tem a natureza de caminho público e a condenação de um particular a reconhecer e respeitar essa natureza do caminho, abstendo-se de praticar actos materiais sobre o mesmo como se o caminho lhes pertencesse.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2022:1087.18.5T8STS.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
A Freguesia ... e ..., do concelho de Santo Tirso, representada pela respectiva Junta de Freguesia, instaurou acção judicial contra AA e mulher, BB, contribuintes fiscais n.º ... e ..., residentes em ..., Santo Tirso, pedindo o seguinte: a) declarar-se que o caminho identificado na petição inicial é público; b) que, consequentemente, constitui um caminho vicinal, pertencente ao domínio público da freguesia autora; c) condenar-se os réus a reconhecer o carácter público do caminho e a sua pertença ao domínio público da autora; d) condenar-se os réus a retirar imediatamente a pedra e os esteios referidos na petição; e) condenar-se os réus a repor no estado anterior à implantação desses esteios tanto o combro onde eles foram colocados, como o murete de pedras soltas que ali existia a delimitar o campo dos réus em relação ao caminho; f) condenar-se os réus a pagar uma sanção pecuniária compulsória no montante de €50,00, por cada dia de mora no cumprimento dessas obrigações.
Para fundamentar o seu pedido alegou em súmula, que existe na freguesia um velho caminho em terra batida, ladeado por prédios rústicos de cultivo pertencentes a diversos proprietários, e claramente separado desses prédios que o marginam, nomeadamente por paredes em pedra e combros ou taludes de terra, que liga o lugar do ..., da extinta freguesia ..., onde tem o seu início, à vizinha freguesia ..., o qual desde sempre esteve aberto ao uso do público em geral, isto é, de quem quer que seja que por ele quisesse transitar, o que toda a gente faz à vista de todos e sem oposição de ninguém, com a convicção de transitar por um caminho onde todas as pessoas têm a liberdade de passar, e pertencente ao domínio público da respectiva freguesia, sem que haja memória de alguém, alguma vez, a tal se ter oposto.
Os réus foram citados e apresentaram contestação, defendendo a improcedência da acção, alegando que o caminho em causa é um mero caminho de servidão, propriedade particular, que faz parte integrante de um prédio que lhes pertence, razão pela qual lhes é lícito executar as obras e trabalhos que realizam no caminho.
Foi proferido despacho saneador, no qual se afirmou, tabelarmente, a competência do tribunal em razão da matéria.
Foi designada data para realização da audiência de julgamento.
Posteriormente essa data foi dada sem efeito e proferida decisão na qual se entendeu que a causa respeita a «matéria adstrita a relações jurídicas administrativas, da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em convergência com o plasmado no art.º 4.º/1, al. o), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais» e se julgou «a excepção de incompetência absoluta totalmente procedente e, consequentemente, declara-se o Juízo Local Cível de Santo Tirso incompetente em razão da matéria para o conhecimento da vertente acção».
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- As acções reais, nomeadamente as de reivindicação, nas quais de discute se um caminho é público ou particular, e se pede a declaração de que integra o domínio público de uma freguesia e a condenação dos réus particulares a reconhecer esse direito e a reporem o caminho na situação anterior àquela que resulta de alterações que nele introduziram - como é o caso da presente - são da competência dos Tribunais comuns;
2- Com efeito, não se trata de uma situação em que esteja em causa a intervenção do ente público, dotado dos poderes de autoridade que lhe cabem para desempenhar as tarefas de interesse público da sua competência, o que pressuporia, no que toca ao bem questionado, a prévia resolução da controvérsia sobre a sua propriedade, sendo a partir dessa definição e reconhecimento que se gerarão as relações jurídicas administrativas emergentes da intervenção do ente público dotado dos seu poderes de autoridade;
3- Por isso, a instauração da acção de reivindicação situa-se a montante de uma intervenção em que a Junta de Freguesia, obtida a declaração do seu direito, age já no exercício dos seus poderes de autoridade, gerando relações jurídicas administrativas, e, por isso, para os eventuais litígios que venham a ocorrer já serão da competência do foro administrativo e fiscal;
4- Essa é a jurisprudência consolidada do Tribunal de Conflitos - cf., nomeadamente, os acs. de 30.12.2014, 26.01.2017 e 08.03.2017, atrás citados -, cumprindo salientar também, para além da jurisprudência das Relações, que o Supremo Tribunal de Justiça jamais recusou a sua competência para apreciar os litígios relacionados com esta problemática, como se verifica, nomeadamente no assento de 19.04.1989, que definiu os pressupostos para um caminho ser qualificado como público, e as dezenas de acórdãos posteriores, que invocaram, interpretaram e aplicaram a doutrina consagrada naquele assento.
5- Daí que a presente acção não preenche os pressupostos enumerados nas diversas alíneas do art.4º do ETAF, pelo que o seu conhecimento compete aos tribunais comuns;
6- Assim, pelas razões expostas e sobretudo pelo douto suprimento de V. Exas, que se invoca, deve o recurso proceder, revogando-se o douto despacho recorrido e declarando-se a competência dos Juízos Locais Cível de Santo Tirso, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, para a presente acção, onde deverá continuar a seguir os seus termos.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se é dos tribunais administrativos ou dos tribunais judiciais a competência material para julgar a presente acção, cujo objecto é o reconhecimento por um particular da existência de um caminho público e o respeito pelo mesmo.

III. Os factos:
Para a decisão a proferir relevam os factos que constam do relatório.

IV. O mérito do recurso:
A questão submetida à decisão desta Relação consiste em determinar se a competência em razão da matéria para julgar a presente acção cabe aos tribunais administrativos ou aos judiciais.
É sabido que os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, dispondo, por isso, de uma competência residual (cf. artigos 209.º e 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, 40.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário e 64.º do Código de Processo Civil).
Para sabermos que a acção não é da competência dos tribunais judiciais necessitamos por isso de a incluir no âmbito de competência material de outra categoria de tribunais.
Uma dessas categorias previstas na Constituição da República Portuguesa é a dos tribunais administrativos, aos quais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212.º, n.º 3).
Em conformidade com essa previsão constitucional, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, estabelece no seu artigo 1.º, n.º 1, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.

Para Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., páginas 566 e 567), «estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (nº 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal». Ainda segundo estes autores «pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações (...) que possam ser reconduzidas à actividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado».
Também Vieira de Andrade, in Justiça Administrativa, 13ª edição, página 49, assinala que «o entendimento do que seja a relação jurídica administrativa deve partir do conceito constitucional, no “sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo», com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração”; relação em que “um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” e onde a Administração “é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.
Após longa e desnecessária divagação teórica sobre aspectos que nada contribuem para a decisão da questão colocada, a decisão recorrida atribui a competência em razão da matéria aos tribunais administrativos com fundamento na alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que se refere à competência para a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a «relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores».
É incontroverso que para aferir a competência material do tribunal devemos estribar-nos no pedido formulado pelo autor e nos respectivos fundamentos, ou seja, devemos determinar essa competência tendo em mente que o que vai ser julgado na acção é a concreta pretensão deduzida pelo autor e os fundamentos nos quais ela se apoia. Por isso, importa ver o modo como vem estruturada a acção, a factualidade relevante articulada na petição inicial, a pretensão jurídica apresentada.
No caso, como vimos a Freguesia autora pede que se declare que um determinado caminho é público e constitui um caminho vicinal, pertencente ao domínio público da freguesia autora, que se condenem os réus a reconhecer essa natureza do caminho e a respeitá-la, repondo o caminho no estado em que se encontrava antes da intervenção que nele realizaram.
A presente acção configura-se assim como uma acção de reconhecimento da natureza de caminho público de um determinado espaço rústico e de condenação dos réus a reconhecerem essa natureza e absterem-se de praticar actos sobre o caminho como se ele tivesse outra natureza ou lhes pertencesse.
A causa de pedir da acção é composta pelos factos jurídicos concretos que de dimana a constituição do caminho como caminho público, mais concretamente os factos que traduzem que o caminho desde sempre esteve aberto ao uso do público em geral, isto é, de quem quer que seja que por ele quisesse transitar, o que toda a gente faz à vista de todos e sem oposição de ninguém, com a convicção de transitar por um caminho onde todas as pessoas têm a liberdade de passar, e pertencente ao domínio público da respectiva freguesia, sem que haja memória de alguém, alguma vez, a tal se ter oposto.
Sendo assim, a acção tem natureza tipicamente real (artigos 1311º e 1315.º do Código Civil), já que nela se dirime uma questão que é claramente de direito privado, ou seja, se um determinado caminho é um caminho público e se os réus não podem utilizá-lo como se sobre ele tivessem um direito exclusivo de propriedade ou servidão.
Recordamos que os caminhos públicos, designadamente os vicinais, pertencem ao domínio público, devendo ser garantido o seu acesso e uso à generalidade da população e não sendo permitida a colocação por particulares de qualquer obstáculo à sua fruição, como sejam barreiras ou portões.
A diferença em relação à situação mais frequente é que por se tratar de um caminho público e não de um caminho particular, a acção é instaurada não por um particular, mas pela entidade pública à qual a lei atribui os poderes de administração dos bens integrados no domínio público e a causa de pedir não é constituída pelos actos provados de posse, mas pelos actos públicos de utilização pelo público em geral sem intenção de apropriação privada.
Contudo, a aquisição por um determinado espaço rústico afecto à passagem da generalidade das pessoas da natureza de caminho público não decorre de uma relação jurídica disciplinada por normas de direito administrativa.
Com efeito, desde o Assento 7/89, de 19 de Abril de 1989, ficou definido que «são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público», donde resulta que certos actos – o uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais – suprem a falta de afectação legal expressa e só por si conferem carácter dominial aos caminhos.
Daí que sejam inúmeras as decisões dos tribunais judiciais que se pronunciaram sobre a existência de caminhos públicos as características que o seu uso deve ter para que o caminho possua a natureza de caminho público (por todos o Acórdão de 17-06-2021, proc. n.º 2120/15.8T8GDM.P2.P1, relatado pela aqui 1.ª Adjunta, in www.dgsi.pt).
Da mesma forma, o exercício de poderes de administração do caminho integrado no domínio público por parte da Freguesia, através da instauração de uma acção para obter a condenação de terceiros a absterem-se de praticar actos exclusivos sobre o caminho ou de perturbação do seu uso público, não decorre da sua actuação enquanto entidade pública, investida no seu poder de autoridade (jus imperium), no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, na medida em que ela se apresenta na acção como faria qualquer particular na defesa dos interesses que lhe cabem ou lhe estão cometidos e não enquanto entidade dotada de jus imperium.
Diferentemente se passariam as coisas se a Freguesia estivesse a actuar ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-lei n.º 280/07, segundo o qual cabe à Administração, no exercício dos seus poderes de uso, administração, tutela, defesa e disposição, ordenar aos particulares que cessem eventuais “comportamentos abusivos, não titulados, ou, em geral, que lesem o interesse público a satisfazer pelo imóvel” – v.g. que impeçam a plena fruição do caminho público – “e reponham a situação no estado anterior” –, situação em que já haveria por parte da Administração o exercício de poderes de autoridade no exercício de um poder público enquadrado por normas de direito público.
Por isso, a decisão do mérito não passará pela necessidade de conhecer de qualquer vicissitude administrativa ou regida pelo direito administrativo, uma vez que, como se referiu, o que confere a natureza pública a um determinado caminho são apenas os actos individuais dos cidadãos que ao longo dos anos passam pelo caminho movidos de determinada convicção e intenção que apenas difere da utilização comum por não ser presidida por uma intenção de apropriação privada ou em benefício exclusivo.
De todo o modo, ainda que para julgar a acção houvesse que apreciar qualquer vicissitude administrativa, essa circunstância não afectaria a competência material do foro pois tratar-se-ia de uma questão prejudicial de direito administrativo, passível de ser apreciada nos tribunais judiciais nos termos do artigo 92.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Assim, tendo em conta os termos em que a acção foi configurada - os pedidos formulados e os respectivos fundamentos -, a acção não tem por objecto uma relação jurídica disciplinada por normas de direito administrativo e a questão a dirimir é de natureza privada e é regulada por normas de direito privado, não envolvendo a sua resolução a convocação e aplicação de regras de direito público. Logo, não é da competência dos tribunais administrativos, sendo antes, por exclusão de partes, da competência dos tribunais judiciais.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, declarando o tribunal judicial competente em razão da matéria para julgar a acção.
Custas do recurso pelos recorridos, os quais vão condenados a pagar à recorrente, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 7 de Abril de 2022.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 678)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]