Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16021/19.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: ACOMPANHAMENTO DE MAIORES
SUPRIMENTO DO CONSENTIMENTO
AUDIÇÃO DO VISADO
Nº do Documento: RP2020092416021/19.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, prevista no art. 139º/1 CC e art. 897º/2 CPC, representa a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, o princípio da imediação.
II - A norma do art. 897º/2 CPC de cariz imperativo veda ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever.
III - O incidente de suprimento do consentimento, previsto no art. 892º/2 CPC, integra formal e estruturalmente o processo de acompanhamento de maiores; o regime definido para o processo abrange tudo o que o integra e por isso, também em sede de incidente deve o juiz proceder à audição do requerido/beneficiário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acompanhamento de Maior-16021/19.7T8PRT.P1
*
*
SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
---
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
No presente processo especial de acompanhamento de maior em que figuram como:
- REQUERENTE: B…, casada, residente na Rua …, n.º …, 1.º Direito, ….-…, Matosinhos; e
- REQUERIDA: C…, viúva, residente na Rua …, n.º …, 1.º Direito, ….-…, Porto
formulou a requerente o seguinte pedido:
-“I) MEDIANTE O SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇÃO DA REQUERIDA, DECRETAR O ACOMPANHAMENTO DA MESMA E DEFINIR AS MEDIDAS DE ACOMPANHAMENTO ADEQUADAS;
II) DESIGNAR O NETO DESTA, D…, RESIDENTE NA RUA …, N.º …, 1.º DIREITO, ….-…, MATOSINHOS COMO SEU ACOMPANHANTE;
III) DESIGNAR A REQUERENTE E E…, AMBAS ACIMA MELHOR IDENTIFICADAS, COMO MEMBROS DO CONSELHO DE FAMÍLIA.”
Alegou para o efeito e em síntese que a requerida que é sua mãe, pela sua idade (79 anos), doença (doença de Parkinson) e circunstâncias em que se encontra (a residir com outra filha que alegadamente a pressiona a afastar da requerente e família) “não determina a sua vontade nem tem autonomia para requerer ela própria, de forma livre e consciente, o seu acompanhamento, nem a Requerente tem possibilidade de obter a sua autorização por lhe estar vedado o acesso normal e regular à sua Mãe”, pelo que entende que deveria ser suprida a autorização da requerida e determinado o seu acompanhamento.
-
Proferiu-se despacho que dispensou a publicidade inicial do processo e determinou a citação da requerida por funcionário judicial.
-
Após uma primeira tentativa de citação, por citação pessoal, através de funcionário judicial, mas sem sucesso, em 20 de agosto de 2019 a requerida acabou por ser citada por funcionário judicial (certidão de citação junta a fls. 25 no processo físico).
-
A requerida apresentou contestação.
Alegou para o efeito e em síntese, que não se encontra em estado de fragilidade, nem sequer com o pensamento comprometido, não carecendo de proteção pois encontra-se nas suas plenas faculdades e capaz de exercer os seus direitos e de cuidar dos seus bens de modo consciente e livre pelo que não se encontrando verificados os pressupostos para o suprimento da autorização, exigidos no artigo 141.º do CC deverá ser absolvida da instância.
Impugnou de forma motivada os factos da petição.
-
Proferiu-se despacho que concedeu à requerente o direito de resposta à matéria das exceções.
-
A requerente alegou para o efeito que ambas as filhas sempre a consideraram facilmente manipulável, tendo inclusivamente a filha E… referido à Requerente, através de mensagem, que “a Mãe diz o que os outros querem ouvir”.
Em outra mensagem, a irmã da Requerente, após ter levado a mãe a uma consulta no Hospital …, referiu que “o médico falou em demência”.
Foi a Requerente quem levou pela primeira vez a Requerida ao médico referido no artigo 3.º da Contestação, sendo que, nessa primeira consulta, que ocorreu por altura do Carnaval …, a Requerida não se conseguia lembrar dos nomes dos netos.
Foram receitados à Requerida diversos ansiolíticos e antidepressivos — Valium, Victan, Lorenin e Triticum — para serem tomados diariamente.
A Requerida, enquanto casada, nunca foi habituada a tomar decisões, submetendo-se sempre à sua vontade do marido, que tudo geria e dirigia. Agora viúva, a sua atitude é naturalmente a de se submeter a quem vê como o “dono da casa” onde se encontra.
A Requerida está neste momento e desde há meses impedida de receber visitas da Requerente e dos filhos desta, considerando por isso que a única forma de se poder avaliar se a situação da Requerida lhe permitiria dar autorização, livre e conscientemente, para o acompanhamento, e se se verificam os pressupostos para o seu suprimento judicial, será através da audição pessoal desta, prevista nos artigos 897.º, n.º2, e 898.º do Código de Processo Civil.
Termina por requerer a audição pessoal e direta da Requerida, a realizar no Tribunal, para efeitos de suprimento judicial da autorização.
-
Foi ordenada a realização de perícia médico legal e solicitado ao Sr. Perito que esclarecesse concretamente se em 24 julho de 2019 – data da proposição da presente ação – a requerida tinha ou não capacidade para, de forma livre e consciente, decidir da necessidade de lhe ser aplicada uma medida de acompanhamento.
-
O relatório pericial não foi objeto de reclamação.
-
A requerente veio referir que alegou na petição inicial que a requerida se afastou de si e da sua família dando a entender que estaria a ser influenciada ou pressionada pela outra filha e que tendo o exame pericial sido realizado na presença dessa filha “(…) poderá ter comprometido a liberdade da examinanda, tendo sido notório para a Requerente que a Requerida trazia indicações de respostas a dar, que não eram verdadeiras, como as de utilização de transportes públicos, realização de tarefas domésticas e autonomia em assuntos financeiros, além de que omitiu a indicação de medicamentos que toma diariamente como Lorenin e Triticum (anti-depressivo)” pelo que requer que a audição pessoal e direta da requerida seja efetuada sem a presença das filhas.
-
A requerida veio deduzir oposição, impugnando o teor das afirmações proferidas pela requerente, alegando, ainda, que o pedido de audição da requerida não tem sustentação legal nem processual.
Mais refere que a Requerida não deu o seu consentimento e, consequentemente, a Requerente não tinha, como não tem, legitimidade para instaurar a ação, independentemente do consentimento da Requerida. Constituindo a autorização do acompanhando um dos requisitos da legitimidade da Requerente (artigo 141º nº 1 do CC), a sua falta leva à ilegitimidade da parte, configurando a exceção dilatória a que alude o artigo 577º, alínea e) do CPC, a qual obsta o Tribunal ao conhecimento do mérito da causa, (artigo 576.º, n.º 2 do CPC) impossibilitando o prosseguimento da ação, sob pena de se submeter a aqui Requerida, contra a sua vontade, aos efeitos de uma decisão judicial, seja ela qual for – de procedência ou improcedência – decorrentes de um processo cuja existência não admite.
Considerou, ainda, que não se mostrando suprida a ilegitimidade da requerente impõe-se a extinção dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277.º, e) do CPC.
-
Proferiu-se o despacho e sentença com as decisões que se transcrevem:
“Cumpre, pois, decidir importando, desde já, esclarecer que nenhuma outra diligência processual cumpre realizar, sendo que os autos contém já os elementos necessários para a decisão da questão do suprimento do consentimento”.
[…]
“Resulta assim inequívoco que não estavam – como não estão atualmente – preenchidos os pressupostos para o suprimento de autorização do beneficiário, pelo que carecendo a requerente B… de legitimidade para intentar a presente ação se decide absolver a requerida C… da instância, art, 278.º, n.º 1, alínea e), conjugado com os art.s 576.º, n.º 2, 577.º, alínea e) e 578.º, aplicáveis ex vi do artigo 549.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Custas a cargo da requerente.
Valor da ação: €30.000,01”.
-
A requerente veio interpor recurso da sentença.
-
Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………
Termina por pedir que se julgue procedente o recurso e, consequentemente, se anule a sentença recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos em Primeira Instância, com realização da audição pessoal da Requerida prevista nos arts. 139.º, n.º 1, do Código Civil, e 897.º, n.º 2, do C.P.C.
-
Na resposta ao recurso a apelada C… concluiu que deve ser negado provimento ao recurso interposto e confirmada a decisão recorrida.
-
O recurso foi admitido como recurso de apelação.
-
Cumpre apreciar e decidir.
-
II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- se para efeito de apreciar e decidir do suprimento da autorização do beneficiário se mostra necessário proceder à audição da requerida, importando a omissão de tal diligência uma nulidade processual, que determina a anulação da sentença;
- se na apreciação do pedido de suprimento da autorização do beneficiário se omitiram factos essenciais para a apreciação da decisão de facto.
-
2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1. A examinanda C… padece inequivocamente de doença de Parkinson (de acordo com o ponto G20 da Classificação Internacional de Doenças, 10ª Revisão).
2. Esta perturbação tem uma etiologia complexa e multifatorial, surgiu nos últimos seis anos de vida, tem uma evolução insidiosa e é, em larga medida, tratável (no sentido remediável e de controlo sintomático, e não no sentido de cura), sendo controlada com a medicação.
3. A doença de Parkinson da examinanda caracteriza-se essencialmente por uma perturbação do movimento, com manifestações psicomotoras (diminuição da expressão de movimentos voluntários, hipomímica facial, tremor) e atingimento da marcha, com instabilidade postural.
4. Não existe evidência de défices cognitivos relevantes.
5. A examinanda encontra-se autónoma para as atividades instrumentais da vida diária (gestão do dinheiro, pagamento de contas, comprar e gestão de despensa, compromissos financeiros, bancários e tributários), admitindo-se, porém, alguns constrangimentos e necessidade de apoio em virtude da sua limitação física.
6. A examinada é parcialmente autónoma para as atividades básicas da vida diária (higiene e aprumo pessoal, alimentação, banho, uso do WC e deambulação do exterior).
7.Está perfeitamente capaz de exprimir uma vontade própria, livre e esclarecida, sobre assuntos correntes da sua vida, quer sejam patrimoniais quer sejam pessoais (capaz de testar, por exemplo).
11. À data de 24 de julho de 2019, data da propositura da presente ação, a examinanda tinha capacidade para, de forma livre e consciente, decidir da necessidade de lhe ser aplicada uma medida de acompanhamento.
-
3. O direito
- Da audição da requerida em sede de incidente de suprimento da autorização do beneficiário -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 22, insurge-se a apelante contra a decisão que indeferiu o suprimento do consentimento, por entender que a sentença deve ser anulada na medida em que se omitiu a audição da requerida, irregularidade que configura uma nulidade processual que tem como consequência a anulação da sentença.
Considera a apelada que a sentença não merece censura por se mostrar devidamente fundamentada no relatório pericial, para aferir da capacidade da requerida para prestar o consentimento.
A questão que se coloca consiste em apurar se em sede de incidente de suprimento do consentimento a audição do requerido pelo juiz constitui uma diligência obrigatória e as consequências que derivam da sua omissão.
Adiantando a resposta, entendemos que é obrigatória a audição do requerido em sede de incidente de suprimento do consentimento, pelos motivos que se passam a expor.
A Lei 49/2018 de 14 de agosto veio estabelecer o regime do acompanhamento de maiores, a qual introduziu uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, dando assim consagração àquilo que já há muito vinha sendo reclamando pela doutrina, e sobretudo pelas Convenções Internacionais (Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Convenção de Nova York -, entrada em vigor na nossa ordem jurídica nacional, juntamente com o “Protocolo Adicional”, a 3 de maio de 2008).
De entre os vários princípios que passaram a orientar o processo especial de acompanhamento de maiores destaca-se o princípio da imediação[2] na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário, o qual decorre da conjugação dos seguintes preceitos:
- Artigo 138º Código Civil sob a epígrafe “Acompanhamento”
“O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
- Artigo 139º CC, sob a epígrafe “Decisão Judicial”:
“O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.”
- Artigo 897º do Código de Processo Civil sob a epígrafe “Poderes Instrutórios”, dispõe:
“1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.
2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.
- Artigo 898º CPC sob a epígrafe “Audição pessoal”:
“1- A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.
2- As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas.
3- O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário”.
Decorre, assim, da leitura de tais preceitos legais, não só a consagração do sobredito principio da imediação na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário, como também que ele se concretiza com obrigatoriedade imposta ao juiz de, em qualquer circunstância, dever proceder de forma pessoal e direta à audição do beneficiário.
Imediação essa que terá uma dupla finalidade: por um lado, permitir ao juiz inteirar-se da real situação em que se encontra o beneficiário e, por outro, ajuizar, perante tal situação, e daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em prol daquele[3].
A jurisprudência com apoio em diferentes estudos jurídicos tem defendido o caráter obrigatório da diligência de audição do requerido/beneficiário quando está em causa a decisão sobre a aplicação de uma medida de acompanhamento.
Citam-se, entre outros, neste sentido os Ac. Rel. Coimbra 18 de maio de 2020, Proc. 771/18.8T8CNT-A.C1, Ac. Rel. Coimbra 03 de março de 2020, Proc. 858/18.7T8CNT-A.C1, Ac. Rel. Coimbra 19 de maio de 2020, Proc. 312/19.0T8CNT-A.C1, Ac. Rel. Coimbra 04 de junho de 2019, Proc. 647/18.9T8ACB.C1, Ac. Rel. Évora 10 de outubro de 2019, Proc. 1110/18.3T8ABF.E1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Em defesa de tal posição alinham-se argumentos que apelam aos elementos literal, histórico e teleológico, face à redação do art. 897º CPC.
As expressões “em qualquer caso” e “sempre” empregues pelo legislador (vg. no nº 2 do citado artº. 897º o CPC), tornam inequívoca a intenção do legislador em tornar obrigatório que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais de acompanhamento de maior seja sempre precedida da obrigatória audição do beneficiário pelo juiz.
Tal opção do legislador representa um corte com o regime que até então vigorou para os institutos da interdição e da inabilitação, em que essa audição só se tornava obrigatória se fosse deduzida contestação (cfr. nº. 2 do artº. 896º do CPC, na sua versão anterior).
Fazendo apelo ao fim e natureza do atual regime que visa tão só salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário, considera-se que a audição direta e pessoal não só permite ao juiz inteirar-se da real situação em que este se encontra mas também ajuizar, daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em seu benefício.
Nesta linha de entendimento defende-se, ainda, que a audição do requerido permite “[…]evitar que terceiros (familiares, amigos ou pessoas próximas) consigam submeter uma pessoa à medida de acompanhamento sem que ela careça de tal medida, tendo como finalidade, por exemplo, apropriar-se dos bens ou rendimentos produzidos pelos bens do pretenso sujeito carecido de acompanhamento.
Estes casos serão de verificação rara, mas a sua hipotética existência futura não pode ser excluídos e um modo de os impedir consistirá em prever que o beneficiário possa estar em contato direito com o juiz, incluindo a sós, contribuindo de modo efetivo para a decisão do caso que lhe diz respeito”[4].
Entendemos que os argumentos expostos continuam válidos para considerar que a audição do requerido/beneficiário também deve realizar-se em sede de incidente de suprimento do consentimento.
Em sede de legitimidade ativa prevê o art.º 141.º, n.º 1, CC, que o acompanhamento pode ser requerido:
- pelo próprio beneficiário;
- pelo cônjuge ou unido de facto do beneficiário ou por qualquer parente sucessível do beneficiário, desde que esteja autorizado por este;
- pelo Ministério Público, no exercício da sua função de representação dos incapazes (cfr. art.º 3.º, n.º 1, al. a), EMP).
A razão de ser da autorização do beneficiário prende-se com o facto de estar em causa interesses pessoais do beneficiário e importando salvaguardar a liberdade pessoal desse beneficiário.
A autorização do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível pode ser suprida pelo próprio tribunal ao qual é requerida a medida de acompanhamento (art.º 141.º, n.º 2, CC; art.º 892.º, n.º 2). O suprimento da autorização deve ser concedido quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe um fundamento atendível para o conceder (art.º 141.º, n.º 2, CC). Portanto, se o beneficiário não estiver em condições de dar a autorização ao seu cônjuge, unido de facto ou parente sucessível, qualquer destes pode requerer a medida de acompanhamento e requerer, ao mesmo tempo, o suprimento da autorização do beneficiário.
O incidente de suprimento do consentimento, enxertado no processo de acompanhamento de maior, não tem uma tramitação específica[5].
Contudo, integra formal e estruturalmente, o próprio processo especial de acompanhamento de maior.
A lei não faz qualquer distinção, no sentido de exigir a audição apenas na fase da decisão da medida a aplicar e por isso, onde o legislador não distingue não cumpre ao julgador fazê-lo.
Apesar de se aplicar ao processo o regime dos processos de jurisdição voluntária, não fica na livre disponibilidade do juiz a realização da diligência, que o legislador previu como sendo obrigatória.
Constituindo, como vimos, a audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, e decorrendo ela ainda de uma norma de cariz imperativo, fica vedada ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever.
O regime definido para o processo abrange tudo o que o integra, e por isso, também o concreto incidente de suprimento de autorização, o qual merece da parte do juiz uma especial atenção, já que de tal decisão depende, ou não, a promoção do processo e este processo visa salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário (art. 140º/1 CC).
Sobre o critério de julgamento refere o PROFESSOR TEIXEIRA DE SOUSA: “[…]cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. Repete-se aqui o que acima se disse sobre o controlo da concessão da autorização: também o suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização.
[…]
Trata-se de um importante controlo que o tribunal deve realizar de forma tão minuciosa quanto possível, dado que não se pode partir do princípio nem de que o autorizante está em condições de conceder a autorização, nem de que esse autorizante, estando em condições de o fazer, quis efetivamente conceder a autorização. Os poderes inquisitórios que são atribuídos ao tribunal em matéria de facto e de prova pela remissão constante o art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária podem ser aqui muito relevantes”.
A decisão do incidente com base em prova pericial, assente num interrogatório indireto realizado pelo perito, não permite ao juiz comunicar ao requerido o objetivo do processo, nem averiguar a sua situação, o conhecimento efetivo da real situação em que se encontra o beneficiário e o motivo em concreto da falta de autorização. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e direta não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma[6]), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547º), deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição.
Acresce que a não se entender assim poderia acontecer de o processo ser instaurado e terminar com a decisão do incidente de suprimento do consentimento, sem se realizar a audição do requerido pelo juiz, quando o art. 897º/2CPC refere: “[e]m qualquer caso, o juiz deve proceder sempre à audição pessoal e direta do beneficiário[…]”.
Conclui-se do exposto que a audição do requerido/beneficiário constitui uma diligência obrigatória do processo de acompanhamento de maiores e por isso, deve ser cumprida em sede de incidente de suprimento de autorização do beneficiário.
No caso concreto, verifica-se que a requerente, filha da requerida, parente sucessível, instaurou a presente ação de acompanhamento de maior sem dispor de autorização da requerida e veio requerer o suprimento de consentimento do beneficiário.
A sentença proferida indeferiu o suprimento, sem proceder à prévia audição da requerida, sendo certo que a mesma está em condições de ser ouvida pelo juiz, face ao que resulta do relatório pericial. Não está comprovado que se encontre numa situação de coma.
Contudo, apesar dos sucessivos requerimentos formulados pela requerente no sentido de se proceder à audição da requerida pelo juiz, tal pretensão não foi atendida, por se entender que a prova produzida – no caso, o exame pericial – seria suficiente para fundamentar a decisão.
O despacho recorrido conduziu à prática de uma nulidade processual, ou seja, à mencionada omissão da audição da requerida.
As nulidades processuais “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais”[7].
Atento o disposto nos art. 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como referia ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades”, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos[8].
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art. 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º CPC.
A omissão de audição pessoal da requerida não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC.
Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art. 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art. 199º CPC.
A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa“.
No sentido de interpretar o conceito ALBERTO DOS REIS tecia as seguintes considerações:“[o]s actos de processo têem uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela”[9].
Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.
Tal omissão tinha de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art. 149º/1 CPC, ou seja, a partir da data em que foi notificado o despacho.
O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art. 196 a 199º CPC.
Contudo, seguindo os ensinamentos de MANUEL DE ANDRADE[10], ALBERTO DOS REIS[11] e ANTUNES VARELA[12], porque existe a decisão recorrida que sancionou a omissão, na medida em que considerou não ser necessário qualquer outro meio de prova, o conhecimento da nulidade pode-se fazer através deste meio de recurso. É que a nulidade está coberta por uma decisão judicial que a sancionou ou confirmou, pelo que o meio próprio de a arguir, será precisamente o recurso.
Não é essa omissão que aqui está diretamente em causa, mas sim o despacho que a ela conduziu. Por se tratar de uma diligência obrigatória tal decisão não se pode manter.
No entanto, é de aplicar ao caso a regra que consta do n.º 2 do artigo 195.º do Código de Processo Civil, onde se prescreve que «Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes».
No caso, a revogação do despacho implica que seja produzido outro a determinar a audição da requerida, pelo que o único ato processual já praticado que é atingido pela presente decisão, por ser incompatível com o despacho a proferir no futuro relativo à audição da requerida é a sentença.
Procedem as conclusões de recurso sob os pontos 1 a 21.
-
- Da ampliação da decisão de facto -
Nas restantes conclusões de recurso a apelante impugna a decisão da matéria de facto, por entender que a mesma se mostra omissa a respeito de factos essenciais para a decisão do incidente.
Contudo, tal questão mostra-se prejudicada pela decisão da anterior questão, na medida em que da mesma decorre a anulação da sentença, ficando sem efeito a matéria de facto apurada (art. 608º/2, por remissão do art. 663º/2 CPC).
Fica prejudicada a apreciação das demais conclusões de recurso.
-
Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela parte vencida a final, sem prejuízo da isenção concedida pelo art. 4º/2 h) RCP (redação da Lei 49/2018 de 14 de agosto).
-
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e nessa conformidade revogar o despacho e anular a sentença proferida, devendo prosseguir os autos com marcação de data para audição da requerida pelo juiz, nos termos do art. 897º/2 CPC, seguindo-se as demais diligências de instrução necessárias e decisão do incidente.
-
Custas pela parte vencida a final, sem prejuízo da isenção concedida pelo art. 4º/2 h) RCP (redação da Lei 49/2018 de 14 de agosto).
*
*
*
Porto, 24 de setembro de 2020
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
____________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS”, O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO [em linha], Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2019, acessível na internet, pag. 44; ANA PRATA (Coord.) Código Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2019, pag.170
[3] Cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS”, O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO [em linha], Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2019, acessível na internet, pag. 44
[4] Ac. Rel. Coimbra 04 de junho de 2019, Proc. 647/18.9T8ACB.C1, acessível em www.dgsi.pt
[5] ANA LUÍSA SANTOS PINTO “O regime processual do acompanhamento de maior” JULGAR nº 41, Maio –Agosto de 2020, Coimbra, Almedina, pag. 150, nota 15
[6] Cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS”, O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO [em linha], Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2019, acessível na internet, pag. 44
[7] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 156
[8] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pag. 357
[9] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, ob. cit., pag. 486
[10] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, ob. cit., pág. 183
[11] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, ob. cit., pag.424
[12] ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, ob. cit., pág. 393