Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
27/21.9T8ESP-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA PROVOCADA
CONVOLAÇÃO PROCESSUAL
PRINCÍPIO ESSENCIAL DA REALIZAÇÃO DO DIREITO E DO PRIMADO DA SUBSTÂNCIA SOBRE A MERA FORMA
Nº do Documento: RP2021121527/21.9T8ESP-A.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I. A intervenção acessória provocada pressupõe a alegação pelo réu de que, caso venha a decair na ação, lhe assiste o direito de formular contra terceiro um pedido de indemnização em ação própria, com vista ao exercício do direito de regresso.
II. Invocando a ré o direito de reembolso das quantias em que possa vir a ser condenada, face à relação de comissão que expressamente alega, existente entre a ré e a sociedade cuja intervenção pretende, verificam-se os pressupostos da intervenção acessória provocada.
III. Ainda que tivesse sido incorretamente requerida a intervenção principal provocada, sempre o tribunal poderia convolar oficiosamente o incidente para intervenção acessória provocada, considerando que foram alegados os requisitos exigidos pela norma (direito de regresso), face ao princípio essencial da realização do direito e do primado da substância sobre a mera forma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 27/21.9T8ESP-A.P1

Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Em 13.01.2021, B… intentou no Juízo de Competência Genérica de Espinho - Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra “C…, S.A.”, pedindo que seja a ré «condenada, enquanto comitente, no pagamento ao autor de uma indemnização por danos patrimoniais, no valor de €4.381,42; e ainda na mesma qualidade, no pagamento ao autor de uma indemnização por danos não patrimoniais, no valor de €5.000,00.».
Alegou o autor, em síntese, como suporte factual da sua pretensão:
1º O autor é sócio-gerente da sociedade comercial por quotas, “D…, Lda.”; a ré é fornecedora de matérias-primas à referida sociedade comercial, designadamente, de farinhas; no dia 18 de setembro de 2020, os trabalhadores da ré, que o autor não consegue identificar, tiveram uma altercação com o autor por não terem lugar para estacionar e descarregar farinha, acabando por agredir o autor com gravidade; face ao disposto no artigo 500º, do Código Civil a ré responde pela conduta ilícita dos seus trabalhadores que causaram, por via da violenta agressão, danos ao autor; “atentos aos factos expostos supra, resulta assim muito claro que, pese embora não no interesse da ré, os seus trabalhadores praticaram actos ilícitos” que causaram danos patrimoniais e não patrimoniais ao autor, pelos quais a ré deve responder.
A ré contestou, alegando em síntese: teve conhecimento da agressão que o autor invoca, lamentando-a sinceramente, repudiando veementemente a atuação dos agressores, como já transmitiu pessoalmente ao autor; desconhece, no entanto, as concretas circunstâncias dos factos, bem como as suas reais consequências; o autor labora num erro factual, pois que os indivíduos que o agrediram não são nem nunca foram trabalhadores da ré; no exercício da sua atividade comercial a ré subcontrata a empresas externas a entrega dos produtos que fabrica; no caso do autor a entrega dos produtos por ele encomendados, no dia e hora em causa, foi feita pela empresa E…, Lda., empresa esta que nada tem a ver com a ré, a não ser a relação comercial pelos serviços que lhe prestava; os indivíduos que agrediram o autor eram, portanto, funcionários desta E…, Lda., sendo um deles o seu sócio-gerente, Sr. F…; logo que a ré tomou conhecimento do sucedido reuniu de emergência com o Sr. F… e comunicou-lhe que a empresa E…, Lda. deixaria de prestar serviços à ré, com efeitos imediatos; desde essa data não mais a ré teve qualquer relação comercial com a E…, Lda ou com o Sr. F…; para que se verifique a aplicação do art.º 500º do C. Civil é necessário que exista uma relação de comissão entre o agente que provoca o dano e a entidade que o encarregou de agir; no caso em apreço não existia uma relação de comissão entre a ré e a E…, Lda. ou os seus funcionários; havia, isso sim, uma relação comercial, pela qual a E…, Lda. prestava serviços à ré, distribuindo pelos clientes as mercadorias encomendadas; a E…, Lda. não estava subordinada à ré, que não tinha poder para lhe dar ordens e instruções quanto à forma como desempenhava os serviços acordados.
Conclui a ré o seu articulado, requerendo a intervenção da sociedade E…, Lda. e do seu gerente, com os fundamentos que se transcrevem:
«27º Tal como o A. refere - e resulta do nº 3 do art. 500º do C. Civil - se a R. perder a demanda - o que só por cautela de patrocínio se concebe – poderá exigir aos reais autores do facto ilícito o reembolso dos montantes que vier a despender.
28º Podendo igualmente responsabilizar a E…, Lda, enquanto comitente dos responsáveis, no âmbito do art. 500º do C. Civil.
Assim,
29º Nos termos dos arts. 316º e seguintes do C. P. Civil, deverão ser chamados à acção a E…, Lda, pessoa colectiva nº ………, com sede na Rua …, … - 2º Esq. Tras, ….-… …, Vila Nova de Gaia, bem como o seu sócio-gerente Sr. F…, com domicílio profissional que se indica na Rua …, … - 2º Esq. Tras, ….-… …, Vila Nova de Gaia
Termos em que:
I - deve ser admitida a intervenção da E…, Lda e do Sr. F…, nos termos dos arts. 316º e ss. do C. P. Civil;
II - deve a presente acção ser julgada improcedente, por não provada, e a R. ser absolvida do pedido».
Por despacho de 2.06.2021 foi determinada a notificação do autor para, querendo, se pronunciar no prazo de dez dias, se pronunciar quanto ao pedido de intervenção principal provocada requerido pela ré
O autor respondeu, declarando nada tem a opor à admissibilidade do chamamento.
Em 17.06.2021 foi proferido o seguinte despacho:
«[…] Da intervenção principal provocada
Em sede de contestação veio a ré C…, SA requerer, ao abrigo do disposto no artigo 316.º do CPC, a intervenção principal provocada de E…, Lda e de F….
Para o efeito, alega, em síntese, que não é responsável pelo ressarcimento ao autor dos danos invocados pelo mesmo, cabendo tal responsabilidade a terceira entidade cuja intervenção nos autos reclama.
Devidamente notificado para se pronunciar, o autor declarou nada ter a opor a tal intervenção, (cfr. referência 11610304).
Cumpre apreciar e decidir:
O princípio da estabilidade da instância está consagrado no art. 260.º do Código de Processo Civil, norma que ressalva as possibilidades de modificação (subjetiva e objetiva) consignadas na lei.
No art. 262.º, al. b) do Código de Processo Civil, prevê-se a modificação da instância quanto às pessoas em virtude dos incidentes da intervenção de terceiros.
A intervenção principal provocada, consubstancia-se em regra, no chamamento ao processo, por qualquer das partes, dos terceiros interessados na intervenção, seja como seus associados, seja como associados da parte contrária.
Deste modo, o incidente de intervenção principal provocada tem em vista fazer participar numa ação pendente alguém que possa ser considerado associado de qualquer das partes, quer por integrar a mesma relação jurídica controvertida, nos termos previstos para o litisconsórcio ativo ou passivo, quer por encabeçar uma outra relação conexa com a litigada nos termos previstos para a coligação ativa ou passiva.
Assim sendo, podem ser chamados a intervir numa ação pendente todos aqueles que, logo na petição, poderiam ter assumido a posição de sujeitos processuais, procurando-se, deste modo, ainda que na pendência da ação, ampliar os sujeitos beneficiados ou vinculados pelo caso julgado que se formar, permitindo, assim, que a decisão do Tribunal declare o direito de modo definitivo, que é, no fundo, o efeito útil e normal dessa mesma decisão.
Na base deste incidente está o princípio da economia processual, pois que com ele visa-se um aproveitamento máximo da atividade processual desenvolvida, de modo a evitar a duplicação de processos e, consequentemente, afastar-se o risco de contraditórias de decisões assentes na mesma relação jurídica ou em relações de proximidade.
O âmbito da intervenção principal provocada, é regido pelo art. 316.º do CPC (Código de Processo Civil), cujo n.º 1 expressamente prevê o chamamento a juízo nos casos de preterição de litisconsórcio necessário, situação em que qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
Por sua vez, o n.º 3 do referido preceito legal prevê ainda que tal chamamento possa ser deduzido pelo réu quanto este mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsórcios voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida, ou pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
Quando suscitada pela parte passiva, a intervenção principal tem como intuito chamar a associar-se com o réu demandado como codevedor, algum ou alguns dos respetivos codevedores.
Abrange todos os casos em que a obrigação comporte pluralidade de devedores ou em que existam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, sob condição de o réu ter algum interesse atendível em os chamar a intervir, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub-rogação que lhe assista. (neste sentido, SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, 4ª Edição, página 108).
Trata-se, em suma, de um meio processual suscetível de ser implementado pelo réu com vista a fazer intervir, na posição de réus, outros sujeitos passivos da relação jurídica material controvertida que à ação serve de causa de pedir.
No caso em apreço, pretende a ré fazer intervir como parte principal, do lado passivo, o terceiro que, de acordo com o por si alegado, é o único responsável pelo pagamento da quantia peticionada pelo autor.
Atento o exposto, não se vislumbra que a ré possa ter qualquer interesse em chamar à ação, como seu associado, o alegado responsável pelo pagamento, quando alega precisamente que não tem qualquer responsabilidade no ressarcimento dos danos alegados pelo autor, e que tal incumbe em exclusivo ao indicado terceiro.
De acordo com o alegado pela ré, o terceiro cuja intervenção se pretende não é outro sujeito da relação jurídica material controvertida que à ação serve de causa de pedir, mas sim o único sujeito.
Assim sendo, nem estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário, nem o chamamento pretendido pela ré é justificado pela necessidade de fazer intervir outros litisconsortes voluntários que sejam sujeitos passivos da relação material controvertida.
Consequentemente, não é admissível o respetivo chamamento como parte principal.
Como decidiu o Acórdão da Relação do Porto de 07 de Novembro de 1996 (in www.dgsi.pt), “o incidente da intervenção principal provocada passiva supõe uma contitularidade da relação material controvertida com participação do chamado à intervenção”.
O campo de aplicação da intervenção principal requerido pela ré, está confinado às situações de litisconsórcio, o que não se verifica no caso em concreto pois, segundo a alegação da ré, esta não responde pelos danos alegados pelo autor, sendo a única e exclusiva responsável terceiros.
Pelo exposto, e sem mais considerações, indefiro a requerida a intervenção principal provocada requerida pela ré, de E…, Lda e de F….
Custas a cargo da requerente ré, nos termos do art. 527.º, do CPC, e art. 7.º, n.º 4, e Tabela II anexa, do Regulamento de Custas Processuais.».
Não se conformou a ré, e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais formula as seguintes conclusões:
A - O presente recurso é admissível, ao abrigo do disposto no art. 644º nº 1, al. a) e n.º 2 al. h), por se tratar de um incidente autónomo ao qual a decisão põe termo e sob pena de se tornar absolutamente inútil caso seja admitido apenas com o recurso da decisão final;
B - Na sua contestação a recorrente expressamente refere que pretende a intervenção dos chamados para, caso perca a acção, poder exigir deles o reembolso das quantias que venha a ser condenada a pagar;
C - Este enquadramento permite e justifica o chamamento e intervenção acessória dos chamados, ao abrigo do art. 321º do CP Civil;
D - O Tribunal não está vinculado ao enquadramento legal feito pelas partes mas apenas à aplicação da Lei às situações por eles suscitadas, tendo em conta os argumentos e factos apresentados para decisão;
E - Em caso de dúvida quanto às intenções das partes o Tribunal pode e deve suscitar os esclarecimentos que entenda pertinentes por forma a que a decisão seja adequada à situação que é colocada em Juízo;
F - Ao indeferir a requerida intervenção o douto despacho recorrido violou os arts. 5º, nº 3, 6º, e 321º, todos do CP Civil e deve ser revogada, sendo substituída por outra que defira a intervenção acessória de E…, Lda e de F….
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se na aferição dos pressupostos da requerida intervenção processual.
2. Fundamentos de facto
A factualidade relevante provada é a que consta do relatório que antecede.

3. Fundamentos de direito
Em sede de intervenção principal provocada, preceitua o artigo 316.º do Código de Processo Civil:
1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
Em sede de intervenção acessória provocada, preceitua o artigo 321.º do Código de Processo Civil:
1 - O réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.
2 - A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento.
Como referem Abrantes Geraldes e outros[1], para além dos casos de litisconsórcio necessário, o próprio réu pode promover o chamamento de terceiros para a lide, em duas situações: a primeira quando haja outros sujeitos passivos da relação material controvertida objeto dos autos, e pretenda fazer intervir em regime de litisconsórcio voluntário e a si associados os demais sujeitos, exigindo-se que o réu tenha interesse atendível na intervenção (art.º 316.º, n.º 3, alínea a)); a segunda situação em que o réu pode requerer a intervenção de terceiro tem lugar quando o autor primitivo não seja o único titular da pretensão deduzida em juízo e o réu queira que estejam nos autos os demais titulares que deverão associar-se ao autor.
Referem os mesmos autores[2], na base da intervenção acessória provocada está o seguinte quadro: o réu afirma que, caso venha a decair na ação, lhe assiste o direito de formular contra terceiro um pedido de indemnização em ação própria, que a lei designa como ação de regresso.
Na situação sub judice, o autor alega que as pessoas que o agrediram são trabalhadores por conta da ré e invoca expressamente o regime de responsabilidade pelo risco, transcrevendo o artigo 500.º do Código Civil.
Na contestação, a ré alega que as pessoas que terão agredido o autor não trabalhavam por sua conta mas sim por conta de uma empresa que contratou para efetuar os transportes – sociedade E…, Lda, requerendo a intervenção da referida sociedade e do seu sócio gerente F… (que alega ter sido um dos agressores).
Acresce que também a ré cita o mesmo artigo do Código Civil, nomeadamente o seu n.º 3, nos termos do qual «O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 497.º».
Em suma, de acordo com a posição da ré, caso o autor venha a provar em juízo a factualidade que alega (e que a ré contradiz), pretende em futura ação de regresso ser reembolsada dos valores em que venha, eventualmente, a ser condenada.
Verifica-se assim que ambas as partes invocam o regime da responsabilidade objetiva – artigo 500.º do Código Civil – o autor para fundamentar a sua pretensão de condenação da ré, alegando existir uma relação de comitente/comissário entre a ré e os agressores (alegadamente, trabalhadores por conta da ré); a ré para fundamentar o seu eventual futuro direito de regresso (caso venha a decair na ação), requerendo a intervenção provocada dos mesmos a fim da garantir o sucesso da ação de regresso.
E poderá concluir-se pela existência de contradição entre a impugnação que a ré faz da factualidade alegada pelo autor e o pedido de intervenção provocada com vista a eventual futura ação de regresso?
Cremos, salvo o devido respeito, que não.
Apesar de impugnar genericamente a factualidade alegada pelo autor, a ré invoca a relação de comissão estabelecida com a sociedade transportadora (art.º 500/1 do CC), equacionando a possibilidade de vir a ser condenada e a consequente faculdade de vir a demandar o comissário (sociedade transportadora) com vista ao reembolso do que tenha pago (art.º 500/3 do CC).
No acórdão da Relação de Coimbra, de 21.05.2019 [processo n.º 177/18.9T8OHP-A.C1], cujo sumário se transcreve parcialmente, estabelece-se a seguinte distinção:
«II - No que concerne à intervenção de terceiros, a lei faz uma distinção essencial entre intervenção principal e intervenção acessória. III - Na intervenção principal, o terceiro é chamado a ocupar na lide a posição de parte principal, ou seja a mesma posição da parte principal primitiva a que se associa, fazendo valer um direito próprio (art.º 312º do CPC), podendo apresentar articulados próprios (art.º 314º do CPC) e sendo a final condenado ou absolvido na sequência da apreciação da relação jurídica de que é titular efetuada na sentença, a qual forma quanto a ele caso julgado, resolvendo em definitivo o litígio em cuja discussão (art.º 320º do CPC). IV - Por sua vez, na intervenção acessória o terceiro é chamado a assumir na lide uma posição com estatuto de assistente (art.º 323º, nº 1 do CPC) e por isso a sua intervenção circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento (art.º 321º, nº 2 do CPC) e a sentença final não aprecia a acção de regresso mas constitui caso julgado às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, com as limitações do art.º 323, nº 3 do CPC).
V - O artigo 311º do C.P.C. vigente, que define o âmbito da intervenção principal espontânea e serve de referência à intervenção provocada, veio estabelecer que, estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32º (litisconsórcio voluntário), 33º (litisconsórcio necessário) e 34º (acções que têm de ser propostas por ambos ou contra ambos os cônjuges).
VI - A figura do incidente intervenção acessória provocada encontrava-se regulado nos artigos 330º a 333º do Código de Processo Civil revogado, hoje art.ºs 321.º a 324.º do C.P.C. vigente.
VII - Este incidente, como já dissemos, visa permitir a participação de um terceiro perante o qual o réu possui, na hipótese de procedência da ação, um direito de regresso.
VIII - Para justificar esta intervenção não basta um simples direito de indemnização contra um terceiro, tornando-se ainda necessário que exista uma relação de conexão entre o objecto da ação pendente e o da ação de regresso (cfr. art. 322º, n.º 2, in fine, do C.P.C. vigente, art.º 331º, nº 2 in fine do C.P.C. revogado). E essa conexão está assegurada sempre que o objecto da ação pendente seja prejudicial relativamente à apreciação do direito de regresso contra o terceiro (cfr. Ac. Rel. Lisboa de 8/5/2003, proc.º n.º 10688/2002-6).
IX - Com este incidente o réu obtém não só o auxílio do chamado, como também a vinculação deste à decisão, de carácter prejudicial, sobre as questões de que depende o direito de regresso (art. 332º, nº 4, hoje art.º 323º, n.º 4) – cfr. Ac.s STJ de 16.12.1987, BMJ 372/385, e de 31.3.1993, BMJ 425/473.».
No despacho recorrido parte-se do pressuposto de que a ré requereu a intervenção principal provocada.
Com todo o respeito devido, não foi essa a pretensão formulada, considerando o que a ré expressamente refere nos artigos 27.º e 28.º da sua contestação:
«27º Tal como o A. refere - e resulta do nº 3 do art. 500º do C. Civil - se a R. perder a demanda - o que só por cautela de patrocínio se concebe – poderá exigir aos reais autores do facto ilícito o reembolso dos montantes que vier a despender.
28º Podendo igualmente responsabilizar a E… Lda, enquanto comitente dos responsáveis, no âmbito do art. 500º do C. Civil.».
Em suma, a ré invoca o direito de reembolso das quantias em que possa vir a ser condenada, face à relação de comissão que expressamente alega, sendo este o fundamento da requerida intervenção provocada.
E tal intervenção só poderá ser acessória, face ao recorte da figura processual em apreço – artigo 321.º do Código de processo Civil.
E não se diga, reiterando o respeito devido, que a invocação genérica pela ré dos “arts. 316º e seguintes do C. P. Civil” afasta a conclusão enunciada.
O que conta é a expressa alegação dos pressupostos do instituto processual em apreço, e a ré invocou expressamente os requisitos enunciados no n.º 1 do artigo 321.º do CPC.
No entanto, ainda que a ré tivesse expressamente requerido a intervenção principal provocada – processualmente inviável in casu – sempre deveria o Tribunal operar a convolação, em nome do princípio essencial da realização do direito e do primado da substância sobre a mera forma.
Foi esse o entendimento no acórdão citado: «Temos para nós que a posição que mais se adapta á lei é a que entende ser possível ao tribunal convolar oficiosamente para o incidente de intervenção provocada, desde que a parte alegue os requisitos exigidos pela norma (vg. direito de regresso ou sub rogação). Porquanto com a reforma do processo civil veio claramente permitir-se a opção por soluções que privilegiam aspectos de ordem substancial, em detrimento das questões de natureza meramente formal.».
O mesmo entendimento transparece no acórdão da Relação de Lisboa, de 15.11.2007 [processo n.º 6647/2007-2], cujo sumário se transcreve na parte relevante: «Apesar de os réus terem deduzido incidente de intervenção principal provocada, ainda que imperfeitamente traduzido no texto do requerimento se o que os RR pretendem ao fim e ao cabo é a intervenção acessória do chamado empreiteiro, nada obsta a que o tribunal proceda à correcção oficiosa da forma incidental desde que o requerimento comporte os elementos fundamentais da forma incidental adequada ao caso.».
Ainda no mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 12.02.2008 [processo n.º 6533/2008-1]: «Ao abrigo do disposto nos arts. 264º, 265º-A e 664º do CPC, no caso o incidente de intervenção de terceiro ter sido indevidamente qualificado, pode o requerimento de intervenção principal provocada ser convolado oficiosamente para incidente de intervenção acessória»[3].
Em suma, alegando a ré uma relação de comissão e invocando o n.º 3 do artigo 500.º do Código Civil como fundamento legal de futura ação para reembolso das quantias nas quais venha, eventualmente, a ser condenada nesta ação, mostram-se reunidos os pressupostos do instituto processual de intervenção acessória provocada, pelo que deverá proceder o recurso, revogando-se, em consequência, o despacho recorrido.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, ao qual concedem provimento e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, admitindo a intervenção acessória provocada e determinando o prosseguimento da tramitação dos autos tendo em conta tal admissão.
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Custas pelo recorrido em proporção a fixar a final.
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Porto, 15.12.2021
Carlos Querido
João Ramos Lopes
Rui Moreira
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[1] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, Vol. I, pág. 367.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, Vol. I, pág. 373.
[3] Também no mesmo sentido decidiu a mesma Relação, em acórdão de 19.02.2013 [processo n.º 1875/11.3 TVLSB-A.L1-1]