Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | CARLOS QUERIDO | ||
Descritores: | COMPENSAÇÃO RECONVENÇÃO PRECLUSÃO DO CRÉDITO | ||
Nº do Documento: | RP2015070819412/14.8yiprt-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/08/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - A polémica doutrinária e jurisprudencial referente à via processual de realização do direito de compensação decorreu das particularidades da figura da compensação traduzidas na seguinte diferença no confronto com as outras exceções de natureza peremptória: quando o réu invoca factos relativos à prescrição, à caducidade, ao pagamento, ao perdão ou à dação em cumprimento, tais alegações respeitam necessariamente à relação jurídica invocada pelo autor, sujeita à apreciação do tribunal; quando é invocada a compensação de créditos, não se pretende a extinção do direito do autor por qualquer circunstância inerente ao mesmo ou à relação jurídica invocada na petição, mas sim com base numa outra relação jurídica entre as partes, a qual pode ser absolutamente distinta da apresentada pelo autor. II - Com a redação que conferiu ao art.º 266.º, n.º 2, c) do CPC, o legislador de 2013 tomou decisivamente posição na referida polémica, revelando-se unívoco o sentido do texto legal: sempre que o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor, deverá exercer o seu direito por via reconvencional. III - A compensação não opera ipso iure, sendo necessária a manifestação de vontade de um dos credores-devedores nesse sentido, a qual só produz efeito se o crédito for exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, peremptória ou dilatória, de direito material (artigo 847.º, n.º 1, a) do CC), pelo que o crédito invocado pela ré como fundamento da pretendida compensação não se torna pacífico pelo mero facto de ter sido objecto de declaração extrajudicial de compensação. IV - A prévia declaração extrajudicial (unilateral) de compensação do crédito invocada pela ré não permite subtrair o consequente pedido de compensação ao regime previsto no art.º 266.º, n.º 2, c) do CPC (que não prevê qualquer exceção) devendo tal pretensão ser formulada por via reconvencional. V - Os argumentos que estiveram na génese da consagração legal do princípio da preclusão reportam-se à relação jurídica trazida a debate aos autos pelo autor na petição, da qual emerge a pretensão que formula contra o réu, devendo esgotar-se na discussão todos os argumentos fatuais e jurídicos referentes a essa relação, já que a futura autoridade (ou efeito positivo) do caso julgado não pode ser posta em causa com a invocação de fundamentos omitidos pelas partes no processo onde foi proferida a decisão transitada que as passou a vincular. VI - Não se revela equacionável a possibilidade de preclusão do direito de compensação, considerando que o mesmo se suporta numa relação jurídica diversa e autónoma da que é trazida a debate nos autos pelo autor. VII - Fundando-se a pretensão de compensação da ré em relações jurídicas distintas daquela que a autora invoca na petição (defeitos noutras obras, que a autora alegadamente se recusou a eliminar), não se concebe como possa a não invocação de tais defeitos que não dizem diretamente respeito ao objecto do processo, ou a sua invocação formalmente incorreta que levou o tribunal a não admitir o articulado, inviabilizar a sua futura invocação noutra ação (que venha a intentar para realizar o seu direito que não foi objecto de qualquer discussão ou decisão de mérito). | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 19412/14.6yiprt-A.P1 Sumário do acórdão: I. A polémica doutrinária e jurisprudencial referente à via processual de realização do direito de compensação decorreu das particularidades da figura da compensação traduzidas na seguinte diferença no confronto com as outras exceções de natureza peremptória: quando o réu invoca factos relativos à prescrição, à caducidade, ao pagamento, ao perdão ou à dação em cumprimento, tais alegações respeitam necessariamente à relação jurídica invocada pelo autor, sujeita à apreciação do tribunal; quando é invocada a compensação de créditos, não se pretende a extinção do direito do autor por qualquer circunstância inerente ao mesmo ou à relação jurídica invocada na petição, mas sim com base numa outra relação jurídica entre as partes, a qual pode ser absolutamente distinta da apresentada pelo autor. II. Com a redação que conferiu ao art.º 266.º, n.º 2, c) do CPC, o legislador de 2013 tomou decisivamente posição na referida polémica, revelando-se unívoco o sentido do texto legal: sempre que o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor, deverá exercer o seu direito por via reconvencional. III. A compensação não opera ipso iure, sendo necessária a manifestação de vontade de um dos credores-devedores nesse sentido, a qual só produz efeito se o crédito for exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, peremptória ou dilatória, de direito material (artigo 847.º, n.º 1, a) do CC), pelo que o crédito invocado pela ré como fundamento da pretendida compensação não se torna pacífico pelo mero facto de ter sido objecto de declaração extrajudicial de compensação. IV. A prévia declaração extrajudicial (unilateral) de compensação do crédito invocada pela ré não permite subtrair o consequente pedido de compensação ao regime previsto no art.º 266.º, n.º 2, c) do CPC (que não prevê qualquer exceção) devendo tal pretensão ser formulada por via reconvencional. V. Os argumentos que estiveram na génese da consagração legal do princípio da preclusão reportam-se à relação jurídica trazida a debate aos autos pelo autor na petição, da qual emerge a pretensão que formula contra o réu, devendo esgotar-se na discussão todos os argumentos fatuais e jurídicos referentes a essa relação, já que a futura autoridade (ou efeito positivo) do caso julgado não pode ser posta em causa com a invocação de fundamentos omitidos pelas partes no processo onde foi proferida a decisão transitada que as passou a vincular. VI. Não se revela equacionável a possibilidade de preclusão do direito de compensação, considerando que o mesmo se suporta numa relação jurídica diversa e autónoma da que é trazida a debate nos autos pelo autor. VII. Fundando-se a pretensão de compensação da ré em relações jurídicas distintas daquela que a autora invoca na petição (defeitos noutras obras, que a autora alegadamente se recusou a eliminar), não se concebe como possa a não invocação de tais defeitos que não dizem diretamente respeito ao objecto do processo, ou a sua invocação formalmente incorreta que levou o tribunal a não admitir o articulado, inviabilizar a sua futura invocação noutra ação (que venha a intentar para realizar o seu direito que não foi objecto de qualquer discussão ou decisão de mérito). Acordam no Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório B…, S.A., apresentou junto do Balcão Nacional de Injunções, em 07.02.2014, requerimento de injunção contra C…, S.A., com vista à cobrança da quantia de € 16.874,20, referentes a “contrato de subempreitada celebrado em 16.11.2012 para realização de trabalhos de pintura na D… em Lisboa”. Citada a requerida, veio a E…, S.A.[1] apresentar oposição, na qual: não impugna a realização dos trabalhos invocados pela requerente; alega, no entanto, que a requerente “executou diversos outros trabalhos” para a requerida, “no âmbito de outras subempreitadas que não a referida no requerimento injuntivo ora sob oposição”; que tais trabalhos foram realizados com defeitos; que a requerente se recusou a eliminar os defeitos; que a requerida se viu assim forçada a proceder à eliminação dos defeitos; que despendeu com tais trabalhos a quantia de € 15.146,33; que facturou à requerente tal montante e invocou a compensação de créditos por carta registada. A requerida não deduz reconvenção e conclui o seu articulado com a formulação do seguinte pedido: «Termos em que deverá ser julgada procedente a excepção deduzida e julgado improcedente, por não provado, o pedido formulado pela Requerente, com a consequente absolvição da Requerida nos termos expostos». Distribuídos os autos na Instância Local de Matosinhos – Secção Cível – J3, comarca do Porto, em 30.01.2015 foi proferido o seguinte despacho: «Determina o art.º 266, n.º 2, c), do CPC que "A reconvenção é admissível nos seguintes casos: (...) c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.” Atento o teor do citado normativo, dúvidas não se suscitam de que a compensação não pode ser invocada a título de excepção, apenas o podendo ser em sede de reconvenção. No sentido exposto, refere José Lebre de Freitas, in "Sobre o Novo Código do Processo Civil (uma visão de fora)", disponível em www.oa.pt: "Contra a orientação jurisprudencial dominante, o legislador quis dar à dedução da compensação o tratamento processual da reconvenção: onde anteriormente se dizia que a "reconvenção é admissível (...) quando o réu se propões obter a compensação" (art. 274°-1-b), passa a dizer-se que "a reconvenção é admissível (...) quando o réu pretender o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor " (art. 265°-2-c). Nunca tendo sido questionado que o pedido de condenação no excesso constitui reconvenção, a inovação está em que, na parte em que os valores dos dois créditos coincidem, teremos uma causa de extinção das obrigações (art. 847°-1 CC) já não tratada como uma exceção peremptória. Tanto na parte em que é excepcionado, como facto extintivo de direito civil, como naquela em que funda um pedido de condenação (pelo excesso), o contracrédito só pode ser feito valer no pressuposto da sua existência e o que a lei nos vem dizer é que o reconhecimento de que existe constitui um pedido que o réu deverá dirigir contra o autor. É assim, por natureza, na parle do excesso: o pedido de condenação do autor a pagá-lo ao réu tem, como elemento material, a existência dessa parte do crédito. Mas, na outra parte, o mesmo raciocínio, aplicado à exceção, não interfere no objeto do processo, pelo que, na falta de uma norma como a agora introduzida, o reconhecimento do contracrédito só entraria a fazer parte do objeto do processo se alguma das parles pretendesse a sua inclusão no pedido ("se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude”: art. 91.º-2). É esta inclusão que se torna agora obrigatória: o réu não se poderá limitar a invocar a exceção da compensação, terá de pedir ("pretender') o reconhecimento do seu crédito. Talvez se possa falar de um ónus de reconvir, cuja observância servirá de suporte à exceção de compensação e cuja inobservância terá como efeito a rejeição desta. (...)”. Atento o exposto, conclui-se que a compensação invocada pela Ré, na medida em que não foi formulado pedido reconvencional (pedido esse inadmissível atento o formalismo a que obedece apresente acção), é inoponível à Autora.». Não se confirmou a requerida e interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões: A. O douto despacho de fls., de 30.01.2015, com a referência 344910037, determinou a inoponibilidade à Autora da compensação invocada pela Ré na sua Oposição/Contestação; B. Tal despacho foi prolatado pelo Mmº Juiz "a quo" com a fundamentação de que de acordo com o estipulado no artigo 266.º n.º 2, alínea c) do CPC, a compensação não pode ser invocada a título de excepção, apenas o podendo ser em sede de reconvenção; C. A Ré deduziu defesa por excepção, invocando compensação de créditos no valor de 15.146,33, operada, antes da propositura da injunção/acção pela Autora, nos termos do artigo 848!1 do Código Civil; D. Por comunicação de 31.10.2013, enviada à Autora, a Ré facturou aquele montante de 15.146,33 à Autora, através da factura n.º ………, emitida naquela mesma data, tendo invocado compensação de créditos entre o crédito da Autora reclamado na presente acção a título de capital, com o crédito da Ré expresso naquela factura; E. A compensação não é uma excepção de exercício necessariamente judicial, podendo ser exercida de forma extra judicial, como, de resto, o foi no caso em apreciação nos presentes autos; F. A compensação de créditos extrajudicial feita pela Ré tornou-se, pois, efectiva mediante a supra referida declaração da Ré à Autora - artigo 848º do Código Civil; G. A Ré não pretendeu, nem peticionou, o reconhecimento de um crédito nos presentes autos, fosse para obter a compensação, fosse para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excedesse o da Autora; H. A Ré não pretendeu, nem peticionou, obter a compensação de créditos no seio destes autos, uma vez que essa compensação já se tinha efectivado extrajudicialmente antes da instauração do processo injuntivo, nos termos do artigo 848.º, n.º 1 do Código Civil, I. A Ré nunca pretendeu obter o pagamento de qualquer quantia que excedesse o crédito da Autora, nem formulou tal pedido; J. O crédito da Ré ascendia a € 15.146,33, e o reclamado pela Autora na presente acção ascende ao valor global de € 17.027,20 (incluindo capital, juros de mora e taxa de justiça paga); K. Mesmo apenas em capital, o crédito reclamado pela Autora ascende a € 15.673,00, enquanto que o contra crédito da Ré se queda por € 15.146,33; L. A Ré não pretendeu, nem pretende, fazer valer na presente acção qualquer dos casos previstos na alínea c) do artigo 266.º do CPC. M. A compensação de créditos em valor que não exceda o valor peticionado pela Autora, consubstancia facto extintivo do direito da Autora, podendo, assim, ser deduzida através de defesa por excepção peremptória, como no presente caso o foi; N. O facto de ser admissível a reconvenção não afasta a possibilidade de, em alternativa, ser a compensação invoca da como excepção peremptória relativamente a créditos que - como é o caso - não excedem o da Autora; O. Ao decidir como decidiu, o despacho ora recorrido violou o disposto nos artigos 266.º, 571.º, 573.º, n.º 1 e 576.º do CPC e 848.º do Código Civil; Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-se por outro que admita a defesa por excepção de compensação extrajudicial deduzida pela Ré, só assim se fazendo JUSTIÇA! O recurso foi admitido com subida imediata, em separado, e efeito meramente devolutivo. Entretanto, foi proferida sentença nos autos, em 17.04.2015, na qual foi a ação julgada procedente e a requerida condenada a pagar à requerente a quantia de € 15.673,00, acrescida de juros de mora[2]. II. Do mérito do recurso 1. Definição do objecto do recurso O objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se é processualmente admissível a compensação invocada pela recorrente. 2. Fundamentos de facto A factualidade provada relevante é a que se encontra descrita no relatório que antecede. 3. Fundamentos de direito 3.1. A irregularidade formal do articulado da recorrente face à imposição legal da via reconvencional para a realização do direito de compensação Dispõe o n.º 1 do artigo 266.º, n.º 2 do Código de Processo Civil: «O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.». O n.º 2 do citado normativo estabelece as condições de admissibilidade da reconvenção: a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa; b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor; d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter. Na versão anterior à que lhe foi conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, previa a alínea b) do n.º 2 do artigo 274.º do Código de Processo Civil: «A reconvenção é admissível nos seguintes casos: […] b) Quando o réu se propõe obter a compensação ou tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida». O mecanismo processual de realização da compensação [uma das formas de extinção das obrigações – art.º 847.º do CC] foi objecto de grande controvérsia, quer doutrinária, quer jurisprudencial, na vigência do anterior Código de Processo Civil. Como refere Paulo Pimenta[3], quanto às exceções de natureza peremptória, extintivas, reportadas ao direito invocado pelo autor na petição [à relação jurídica sujeita à apreciação do tribunal], como a prescrição, a caducidade, o pagamento, o perdão, a dação em cumprimento e a novação, não havia motivos que justificassem hesitações relativamente à sua dedução como tal (art.º 487.º do CPC). Numa abordagem mais simplista, poderia defender-se que, revestindo a compensação natureza de exceção peremptória [por se tratar da invocação de factos que modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor – art.º 493/3 na anterior versão do CPC], nenhum obstáculo se suscitava quanto à sua invocação na contestação por via de exceção. A polémica surge, devido às particularidades da figura da compensação traduzidas na seguinte diferença: quando o réu invoca factos relativos à prescrição, caducidade, ao pagamento, ao perdão ou à dação em cumprimento, tais alegações respeitam necessariamente à relação jurídica sujeita à apreciação do tribunal; quando é invocada a compensação de créditos, o direito do autor não se extingue ou cessa por qualquer circunstância inerente ao próprio direito, ou melhor, à própria relação jurídica, mas, tão-só, porque o réu é, simultaneamente, credor do autor, crédito esse proveniente de uma outra relação jurídica havida entre ambos, e que pode ser absolutamente distinta da apresentada pelo autor. Esta distinção fundamental – o facto de a compensação se fundar na invocação de uma relação jurídica diversa daquela que o autor invoca na petição, numa nova relação jurídica trazida pelo réu para o processo – justificava para parte da doutrina e da jurisprudência que o exercício do direito de compensação se realizasse através de pedido reconvencional. Com base nas premissas enunciadas, emergiram duas correntes: uma que defendia que a compensação deveria ser sempre invocada como exceção perentória, só envolvendo pedido reconvencional nos casos em que o contracrédito de que o réu fosse titular excedesse o crédito do autor, e apenas se o réu pretendesse fazer valer o seu direito quanto à parte excedente[4]; uma outra que considerava que a compensação de créditos devia ser sempre objecto de um pedido reconvencional, já que a dedução da compensação ultrapassava a mera defesa, correspondendo a uma pretensão autónoma, pelo que deveria ser invocada em reconvenção, dado que só por este meio é permitido ao réu formular pedidos contra o autor. Refere o autor citado[5] que se afigurava mais adequada a tese que defendia a via reconvencional para fazer operar a compensação de créditos, desde logo, por ser indiscutível que esta figura, ao invés do que acontecia com as outras formas de extinção das obrigações, envolvia uma pretensão substancialmente autónoma face ao pedido do autor. No novo Código de Processo Civil (emergente da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho), o legislador tomou posição com vista a pôr fim à querela doutrinária e jurisprudencial referida, fazendo-o no sentido de impor ao réu a formulação de pedido reconvencional, sempre que este pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor [art.º 266.º, n.º 2, c) do CPC]. Invocado o direito de compensação por parte do réu por via reconvencional[6], reconhecido o mesmo judicialmente, duas possibilidades se deparam: se o valor do crédito do réu não exceder o do crédito do autor, o tribunal declara a compensação de créditos e a consequente absolvição do pedido (total ou parcial, em função da compensação operada); se o valor do crédito do réu for superior ao do crédito do autor, pode aquele obter, além da sua absolvição total do pedido (pela compensação integral dos créditos), a condenação do autor no pagamento do valor em que o seu crédito exceda o do autor. O despacho recorrido contém como única fundamentação uma longa transcrição da posição assumida por Lebre de Freitas na Revista da Ordem dos Advogados, sob o tema: «Sobre o Novo Código do Processo Civil (uma visão de fora)»[7]. No entanto, o mesmo autor alterou a sua posição e na sua obra “A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013” (3.ª edição, Almedina, pág. 132), conclui: “Pessoalmente, estou em crer que, pese embora a intenção do legislador de 2013, a melhor interpretação a fazer do regime do CPC de 2013 é a de que com ele nada mudou, permanecendo a reconvenção fundada em compensação meramente facultativa”[8]. Pensamos, com o elevado respeito devido, que em coerência não se poderá, por um lado, admitir a intenção do legislador (expressa de forma indubitável, no sentido de impor a via reconvencional para a realização do direito de compensação), e por outro, apesar dessa intenção, manifestada de forma inequívoca, defender que tudo permanece na mesma. Aderimos assim à interpretação do art.º 266.º, n.º 2, c) do CPC, suportada no sentido unívoco do texto legal: sempre que o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor, deverá exercer o seu direito por via reconvencional. Face ao teor do articulado da ora recorrente, do que ficou dito emerge a conclusão da sua irregularidade por não obedecer à imposição legal da via reconvencional para a realização do direito de compensação 3.2. A irrelevância da declaração extrajudicial de compensação Não se questiona a natureza da figura jurídica da compensação, como direito potestativo extintivo que tanto pode ser exercido por via judicial como extrajudicial. In casu, a recorrente alega que comunicou à recorrida a existência de defeitos noutras obras (que não aquela a que se reporta o pedido formulado na petição), que solicitou a eliminação dos defeitos e que, perante a inércia da recorrida procedeu ela própria à eliminação, daí decorrendo o crédito compensatório, tendo operado à compensação extrajudicial por declaração emitida em carta registada. Refere Lebre de Freitas [A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Almedina, pág. 126]: “Ultrapassado um primeiro momento em que entendi ter natureza reconvencional a compensação já feita valer extrajudicialmente, aderi resolutamente à tese da compensação-exceção”[9]. A questão que se coloca é a de saber qual a diferença em termos de economia do processo. Equacionada a questão de outra forma: a mera manifestação de vontade de um dos credores/devedores, no sentido de compensar o seu crédito basta para extinguir a sua obrigação, automaticamente, sem mais? No nosso ordenamento jurídico a compensação não opera ipso iure, ou seja, automaticamente. Para que os dois créditos se considerem reciprocamente extintos não basta que estejam reunidos os requisitos desta forma de extinção das obrigações, tornando-se ainda necessária a manifestação de vontade de um dos credores-devedores nesse sentido. No entanto, uma vez efectuada tal declaração, a mesma só produz efeito se o crédito for exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, peremptória ou dilatória, de direito material[10] (artigo 847.º, n.º 1, a) do CC). Ou seja, o crédito invocado pelo réu como fundamento da pretendida compensação não se torna pacífico pelo mero facto de ter sido objecto de declaração extrajudicial de compensação, não podendo ter-se como certo e definitivo que o crédito do autor se encontra definitivamente extinto só pelo facto de o réu invocar e demonstrar a prévia declaração extrajudicial de compensação. Na situação dos autos, num contexto de conflito entre as partes, ninguém imaginará que o crédito reclamado pela ora recorrente (ré) como fundamento da compensação que pretende ver judicialmente declarada (baseado na alegada execução defeituosa de outras obras por parte da autora) não seria objecto de impugnação, e, consequentemente, de produção de prova. Só depois de submetido ao contraditório, caso fosse aceite pela autora sem recurso à alegação de qualquer das exceções materiais previstas no artigo 847.º, n.º 1, a) do CC, é que se poderia considerar pacífico. Tudo isto serve para dizer que poderá existir alguma precipitação na afirmação de que a extinção do crédito da autora (reclamado no requerimento injuntivo) já ocorreu por mero efeito da demonstração da declaração extrajudicial de compensação feita pela ré, e que essa característica justifica um regime processual diverso, traduzido na subtração da compensação (objeto de declaração extrajudicial prévia) à via processual imperativa da reconvenção prevista no art.º 266.º, n.º 2, c) do CPC. Em suma, concluímos que a prévia declaração extrajudicial (unilateral) de compensação do crédito que a ré invoca não altera a conclusão que enunciámos no ponto anterior, integrando-se também esta situação na previsão geral (que não prevê qualquer exceção) do art.º 266.º, n.º 2, c) do CPC e que impõe a via reconvencional como únicas forma de realização da compensação: sempre que o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor. Concluímos, face ao exposto, que a ré deveria ter formulado o seu pedido de compensação por via reconvencional, apesar da invocação da declaração extrajudicial prévia. 3.3. A não preclusão do crédito invocado pela ré De forma lapidar e assertiva, declara Lebre de Freitas que a reconvenção se mantém facultativa, e que «[t]alvez se possa falar então de um ónus de reconvir, cuja inobservância não extingue o direito de crédito do réu, mas que este tem de observar se pretender obter o efeito extintivo do direito de crédito do autor»[11]. Paulo Pimenta vai mais longe, afirmando: «A reconvenção é, realmente, facultativa, no sentido de que o réu não tem obrigação ou sequer o ónus de reconvir»[12]. A propósito do fundamento de oposição à execução previsto na alínea h) do artigo 729.º do Código de Processo Civil, debate-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21 de Abril de 2015[13], a questão da preclusão do direito do titular do crédito objecto da compensação, suscitando-se a seguinte objecção: «Argumenta-se que, se fosse de atender ao momento da “declaração de compensação”, o ónus da apresentação de toda a defesa na contestação perdia força, já que o demandado poderia sempre tornar a compensação superveniente, ao emitir a declaração compensatória posteriormente ao termo da contestação ou do encerramento da discussão e julgamento; mais, estar-se-ia a sujeitar o credor (com base em sentença) à dedução tardia de excepções cuja existência pode ser duvidosa; ou seja, para se aferir se o facto extintivo/modificativo da compensação é anterior ou posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração, releva o momento em que se verificou a situação/condições de compensabilidade, releva a data da verificação dos pressupostos do direito». Conclui-se no citado aresto, com vista a contornar a objecção suscitada: «… a compensação (ou o contracrédito compensável) é fundamento de oposição à execução, porém, sendo esta baseada em sentença, só é invocável a compensação cuja “situação de compensação” (cuja data da verificação dos respectivos pressupostos) seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e, ainda assim, tem que ser/estar provada por documento». Em suma, admite-se que existindo um contracrédito susceptível de compensação, ou seja, de efeito extintivo parcial ou total do crédito exequendo, só poderá ser invocado como meio de defesa perante a execução, desde que o executado (titular desse crédito) demonstre que o mesmo não reunia os requisitos da compensação por declaração unilateral em momento anterior ao do encerramento da discussão na ação declarativa da qual emerge a sentença que constitui título executivo. No fundamento da tese subjacente à conclusão enunciada está o ónus da apresentação de toda a defesa na contestação. Com o devido respeito, permitimo-nos expressar sérias dúvidas. Convém não esquecer que a compensação não respeita à relação jurídica invocada pelo autor, mas a uma relação jurídica diversa, e nenhum pressuposto ético ou outra razão válida impõe ao réu o dever de chamar à discussão naquela ação a outra relação jurídica da qual entende emergir o seu contracrédito, podendo tão só limitar-se a impugnar a pretensão do autor, desde que convicto das razões da sua improcedência, sem prejuízo de noutra via processual poder fazer valer o direito que poderia constituir fundamento da compensação. Vejamos. Vigora no processo civil o princípio da concentração da defesa na contestação, que tem como corolário os regimes da preclusão e da eventualidade (art.º 573° do CPC de 2013). Decorre da enunciada regra que o demandado em juízo deve incluir e esgotar na contestação todos os argumentos de defesa de que disponha, ficando impedido de invocar, mais tarde, no próprio ou noutro processo, meios de defesa que tenha omitido na contestação. Como ensinava o Professor Alberto dos Reis[14], o princípio da concentração da defesa na contestação justifica-se pela “boa ordem e disciplina do processo”, não fazendo sentido que o réu “disperse a sua defesa por vários momentos ou fases da acção”, traduzindo-se muitas vezes a “liberdade das deduções” em “expedientes de má fé”, nomeadamente “a tática deplorável e cavilosa de certos litigantes que reservam para o último momento os melhores trunfos da defesa, a fim de se servirem deles quando acham que o adversário já não pode reagir eficazmente contra eles”. Pensamos, no entanto, que todos os argumentos que estiveram na génese da consagração legal do princípio da preclusão se deverão reportar à relação jurídica trazida a debate aos autos pelo autor na petição, da qual emerge a pretensão que formula contra o réu, devendo esgotar-se na discussão todos os argumentos fatuais e jurídicos referentes a essa relação, já que a futura autoridade (ou efeito positivo) do caso julgado não pode ser posta em causa com a invocação de fundamentos omitidos pelas partes no processo onde foi proferida a decisão transitada que as passou a vincular. No que respeita a outras relações jurídicas de onde possam emergir outros direitos favoráveis à parte contrária, não sendo imperativo, mas meramente facultativo o exercício do direito de reconvenção (no qual se realiza atualmente o direito de compensação, como atrás se concluiu), não vemos como possam precludir tais direitos, com base na omissão de invocação dessas relações numa ação cujo objecto, delimitado pelo autor na petição, não tem diretamente a ver com as mesmas. Conclusão que não suscitará dúvidas é a de que a não invocação do contracrédito do réu numa ação declarativa, ou a sua invocação formalmente incorreta, susceptível de justificar um despacho de inadmissibilidade processual (como ocorreu nestes autos), não poderá impedir que esse contracrédito possa ser objecto de reconhecimento judicial numa outra futura ação declarativa. Com efeito, numa perspectiva de coerência e lógica processual não se revela equacionável a possibilidade de preclusão do direito de compensação, sobretudo face à grande questão que esteve na base da polémica abordada nos pontos anteriores, alicerce da tese partilhada por quem defendia uma diferença fulcral entre esta e as outras exceções perentórias: a diversidade da relação jurídica (enquanto as outras, como a prescrição e a caducidade diziam respeito à relação jurídica invocada pelo autor na petição, esta diz respeito a outras relações jurídicas trazidas ao processo pelo réu). Ora, tratando-se de outras relações jurídicas (como é o caso dos autos), não se concebe como possa a não invocação de defeitos noutras obras, (por parte da ré), ou a sua invocação formalmente incorreta que levou o tribunal a não admitir a questão, inviabilizar a sua futura invocação noutra ação (que venha a intentar para realizar o seu direito que não foi objecto de qualquer discussão ou decisão de mérito). E somos chegados a uma outra questão formal: a do despacho de aperfeiçoamento que poderia ter evitado toda a discussão processual a que se resume o presente recurso. Quanto a nós, face à incorreção da formulação da pretensão compensatória, que não obedece ao imperativo enunciado no art.º 266.º, n.º 2, c) do Código de Processo Civil, a Mª Juíza podia ter convidado a parte a suprir tal vício formal, suprindo a irregularidade do articulado (artigo 590.º, n.º 2, b) e n.º 3 e artigo 547.º do CPC). Tendo sido proferida a decisão sobre a pretensão da autora, julgada integralmente procedente[15], não havendo nos autos notícia da sua impugnação por via de recurso, constituiria um absurdo processual a destruição de todos os atos posteriores à contestação, considerando que não precludiu a possibilidade de a recorrente fazer valer noutra sede processual o direito aqui invocado como contracrédito[16]. Acresce que o convite ao aperfeiçoamento sempre seria um ato inútil face à posição defendida pela recorrente, de que podia invocar a compensação por via de exceção. 3.4. As consequências da irregularidade processual A ora recorrente (ré) conclui o seu articulado com a formulação do seguinte pedido: «Termos em que deverá ser julgada procedente a excepção deduzida e julgado improcedente, por não provado, o pedido formulado pela Requerente, com a consequente absolvição da Requerida nos termos expostos». Como amplamente se referiu, o pedido formulado pela recorrente não obedece aos ditames imperativos do artigo 266.º, n.º 2, c) do Código de Processo Civil, que impõe a via reconvencional como única forma de realização do direito de compensação. Com tal fundamento, não foi admitido o articulado da recorrente, no que respeita ao segmento em que pretendia exercer o direito de compensação. Há que manter a decisão recorrida, face a (e apesar de) tudo o que ficou dito. 4. Dispositivo Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, em manter a decisão recorrida. Custas do recurso pela parte vencida afinal. * O presente acórdão compõe-se de dezassete páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.Porto, 8 de julho de 2015 Carlos Querido Soares de Oliveira Alberto Ruço __________ [1] No requerimento em apreço, a opoente não esclarece a sua posição nos autos. Encontra-se no entanto disponível online a informação de que ocorreu em 1 de março de 2013 o registo definitivo da fusão por incorporação na E…, S.A. (sociedade incorporante) da sociedade C…, S.A. (sociedade incorporada), com efeitos contabilísticos reportados a 1 de janeiro de 2013. [2] Tal sentença não integra o objecto do presente recurso. [3] In Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 184 a 187, numa excelente síntese que acompanharemos de perto. [4] Julgamos localizar a fonte doutrinária desta acepção, no ensinamento dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1981, pág. 121): «… a compensação deve ser deduzida como pedido reconvencional, sempre que o contra-crédito (invocado pelo réu) tenha valor superior ao débito principal e o réu pretenda a condenação do autor na diferença entre um e outro». [5] Paulo Pimenta, in Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 185. [6] Refere o autor citado (ob. cit., pág. 187): «O regime em apreço não permite ao réu qualquer tipo de opção, isto é, não se afigura possível ao réu optar entre a via reconvencional ou a mera invocação de um crédito sobre o autor por meio de exceção peremptória. Admitir essa opção seria reeditar a polémica do passado, bem assim desrespeitar o intuito legislativo.». [7] Não consta do despacho a indicação do ano de publicação e do número da revista. Trata-se de 2013: Ano 73, Volume I, Janeiro/Março de 2013. [8] Na citada Revista da Ordem dos Advogados, em sentido contrário afirmava o mesmo autor: «É esta inclusão que se torna agora obrigatória: o réu não se poderá limitar a invocar a exceção da compensação; terá de pedir (“pretender”) o reconhecimento do seu crédito. Talvez se possa falar de um ónus de reconvir, cuja observância servirá de suporte à exceção de compensação e cuja inobservância terá como efeito a rejeição desta.». O autor citado não mantém esta posição no Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, 2014, pág. 520 a 522. [9] No mesmo sentido, citando Lebre de Freitas, veja-se Paulo Pimenta, na obra anteriormente referida, pág. 187: «Não estão cobertos pela previsão do art. 266.º 2, c) os casos em que a compensação já tenha sido operada extrajudicialmente em momento anterior, pois aí o crédito do autor já está extinto quando a acção é proposta, sendo então de invocar esse facto extintivo em sede de defesa.». [10] A exceção perentória caracteriza-se por ser um meio de defesa definitivo que projeta os seus efeitos no âmbito do direito material, como é o caso da prescrição; a exceção dilatória caracteriza-se pela sua natureza transitória, como ocorre com a moratória, o direito de retenção e a exceção de não cumprimento. (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, 2011, pág. 1102). [11] “A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013” (3.ª edição, Almedina, pág. 131). [12] Obra citada, pág. 187, nota 428. [13] Proferido no processo nº 556/08.0TBPMS-A.C1 e acessível no site da DGSI. [14] Código de Processo Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 2005, pág. 44 e 45. [15] O que faz sentido, dado que a ré não impugna os trabalhos nem o valor facturado, resumindo a sua oposição à invocação de defeitos noutras obras. [16] Independentemente do seu mérito. |