Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1450/12.5TJPRT-J.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: INCIDENTE DE REMOÇÃO DO CABEÇA-DE-CASAL
FALTA DE COMPETÊNCIA PARA O EXERCÍCIO DO CARGO
REMESSA DOS INTERESSADOS PARA OS MEIOS COMUNS
BEM PERTENCENTE À HERANÇA
RESTITUIÇÃO
DIREITO DE USO E HABITAÇÃO
COMODATO A FAVOR DO HERDEIRO RESIDENTE
Nº do Documento: RP202110071450/12.5TJPRT-J.P1
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No incidente de remoção do cabeça-de-casal, constitui ónus do requerente a alegação e prova de qualquer dos fundamentos previstos na lei (art.º 2086º, nº 1, do Código Civil), não sendo suficiente, quanto à alegação essencial, a referência a factos conclusivos.
II - A falta de prudência e zelo no exercício do cargo de cabeça-de-casal (art.º 2086, nº 1, al. b), do Código Civil), enquanto fundamento de remoção, há de revelar-se nas faltas que comete por incúria e negligência, com gravidade de tal modo significativa que justifique aquela penalização.
III - A falta de competência para o exercício do cargo (art.º 2086, nº 1, al. d), do Código Civil) manifesta-se pela incapacidade, inaptidão ou falta de qualificação da pessoa nomeada, em função do grau de exigência dos atos que o cabeça-de-casal tem, em cada herança, o dever de praticar. É necessário que dê provas da incompetência através de um exercício, mais ou menos prolongado das respetivas funções.
IV - O prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são fatores primaciais a atender na aplicação da referida pena.
V - Se numa ação declarativa comum, para a qual os interessados no inventário foram remetidos com vista à discussão do direito de propriedade de uma fração autónoma, se decidiu que o bem pertencia ao de cujus e é atualmente parte integrante do seu acervo hereditário, apesar de ali residir um dos herdeiros desde há muitos anos, mas só não se ordena a restituição dessa fração para efeito de administração pelo cabeça-de-casal, até à partilha, por ser desproporcional o prejuízo que daí adviria para aquele herdeiro versus o benefício para a sua administração pelo cabeça-de-casal, prevenindo o abuso de direito, não pode concluir-se que aquela decisão reconheceu um direito de uso e habitação ou um comodato a favor do herdeiro residente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1450/12.5TJPRT-J.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Local Cível – J 8

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
Nos autos de processo especial de inventário para partilha de bens por herança deixada por B…, em que é cabeça-de-casal C…, vieram os interessados D… E OUTROS interpor recurso de duas decisões proferidas pelo despacho de 25.1.2021, sendo uma delas relativa ao incidente de remoção da cabeça-de-casal aberto pelo referido interessado, e a outra respeitante a um suposto direito de uso e habitação relativo a uma fração autónoma designada pelas letras AX de um determinado prédio constituído em propriedade horizontal.
Tendo transitado em julgado já em junho de 2017 a sentença homologatória da partilha, as referidas questões foram suscitadas na partilha adicional que se iniciou por requerimento da cabeça-de-casal de 4.9.2020 na sequência da sentença proferida no proc. nº 17898/16.3T8PRT, da Instância Central Cível do Porto, J 7, meio comum para o qual o tribunal do inventário remetera os interessados por causa das divergências surgidas quanto à propriedade da referida fração autónoma.
A cabeça-de-casal pronunciou-se sobre o requerimento da sua remoção e do alegado direito de uso e habitação, antes e depois do respetivo aperfeiçoamento.
É o seguinte o teor daquelas duas decisões:
«(…)
Do incidente de remoção do cabeça de casal / nomeação do interessado D…o para o cargo de cabeça de casal (ponto 1º do requerimento)
O interessado D… veio requerer a remoção da cabeça de casal – C… – solicitando, ainda que, fosse este interessado nomeado para o cargo de cabeça de casal por ter vivido com o requerido nos últimos anos de vida e o seu irmão residir no Brasil, sendo o herdeiro legal que se segue na ordem prevista no art. 2080º do Código Civil (CC).
Convidado a concretizar factualidade veio o cabeça de casal fazê-lo através de requerimento com a ref.ª citius 27644788.
A cabeça de casal já se pronunciou quer sobre o requerimento inicial quer relativamente ao requerimento aperfeiçoado.
Cumpre, pois, decidir.
Os autos contêm os elementos que permitem decidir esta questão não se mostrando necessária qualquer produção da prova, como se explicitará.
Factualidade com relevo a considerar
A)
C… foi nomeada cabeça de casal por despacho de 12.9.2012 e notificada para prestar compromisso de honra a 16.10.2012, pelas 14.00 horas;
B)
No dia 16.10.2012 foi determinado que a mesma prestasse o compromisso de honra por escrito, concedendo-se prazo para apresentação desse compromisso, das declarações e relação de bens, o que veio fazer a por requerimento de 31.10.2012.
C)
A cabeça de casal não esteve presente em nenhuma das datas em que se realizaram as conferências de interessados.
D)
Em 13 de novembro de 2019 foi junta uma carta dirigida à cabeça de casal enviada para a sua morada com a menção “ não reclamada”.
E)
A cabeça de casal tem 88 anos e reside num lar situado na Rua do …., n.º …, no Porto.
F)
A cabeça de casal não deu conhecimento nos autos da alteração do seu domicílio.
Não se provaram mais nenhuns factos com relevo para a decisão do incidente e que estejam em contradição com os dados como provados, aqui se consignando que alegações como v.g. “ diversas foram as vezes que se mostrou difícil a sua citação “ ou “está completamente alheada de tudo” ou “ o certo é que não se pode olvidar que a sua idade avançada não permite à mesma um total discernimento sobre o que aqui se discute “ tem e continuam a ter carácter conclusivo, motivo pelo qual não são considerados factos suscetíveis de prova e/ou suscetíveis de serem considerados factos aceites por falta de impugnação. Por esta razão a realização de diligências probatórias – designadamente inquirição de testemunhas, declarações de parte ou depoimento de parte – revelar-se-iam inúteis. Mais se consigna que ao interessado D… foi lhe dada a oportunidade de concretizar factos já alegados e não a possibilidade de alegar novos factos onde se insere o referido no ar. 16º do requerimento com a ref.ª citius 27644788 que por esta razão não será alvo de pronúncia pelo Tribunal.
Motivação
A factualidade constante das alíneas A) a D) resultam da consulta do processo designadamente do nosso despacho com a ref.ª citius 11323417 e o auto de declarações com a ref.º citius 11368736 – no qual resulta que se determina que a cabeça de casal preste compromisso de honra por escrito e não uma notificação para comparecer em Tribunal e ainda o requerimento tempestivamente apresentado pela cabeça de casal com a ref.ª citius 41057710 bem como da consulta às atas de conferências de interessados das quais não consta a presença da cabeça de casal e finalmente a ref.ª citius 24200433, relativamente ao facto constante da alínea D).
A restante factualidade resulta da sua aceitação por parte da cabeça de casal face ao ónus de impugnação especificada que sob a mesma recaía, sendo certo que a mesma já tinha sido alegada no requerimento de oposição e não se trata de matéria concretizada na sequência do despacho de aperfeiçoamento.
Do direito
De acordo com o disposto no art. 2086 do Código Civil (CC)o cabeça de casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem:
a) se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou a doações feitas pelo falecido, ou se também dolosamente denunciou doações e encargos inexistentes;
b) Se não administrar o património hereditário com zelo e prudência;
c) se não cumpriu no inventário os deveres que a lei de processo lhe impuser.
d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.
Fundamente o interessado D… o pedido de remoção da cabeça de casal por entender que a conduta da cabeça de casal é reveladora de uma ausência de administração do património hereditário com prudência e zelo (al b) do art. 2086 do CC) e revelar incompetência para o exercício do cargo ( al d) do art. 2086 do CC)
Vejamos, então, o que se nos oferece dizer.
Escreve Lopes Cardoso[1] a este propósito que na alínea b) do art. 2086 do CC se“ prevê (…) o caso de, sendo embora competente profissionalmente, o cabeça de casal se meta em aventuras perigosas ou se desleixe no cumprimento dos deveres que lhe incumbem; na alínea d) atinge-se o caso de inexistirem no cabeça-de-casal qualidades bastantes para a administração ou para esse cumprimento.
No que concerne a previsão da alínea b) a lei não refere o que se pode entender por má administração.
Porém a má administração tem de deduzir-se de factos que inequivocamente a revelem e não da simples considerações de ordem geral.
Não alegou o interessado factualidade da qual se pudesse concluir pela existência de má administração da herança.
Com efeito a referência “a título de exemplo conferir o documento (email)” não se traduz na alegação de factos, nem foi a matéria em causa foi alvo de concretização mesmo após o nosso convite., sendo certo que os documentos não são factos mas destinam-se à prova de factos.
Anota-se a propósito da questão do pagamento das prestações de condomínio que a responsabilidade pelo seu pagamento caberá ao proprietário e que entendendo o interessado como entendia que a fração era da sua propriedade mal se compreende que a ausência de pagamento das mesmas venha agora a ser chamada à colação para destituir a cabeça de casal.
No que concerne à alegação de que a cabeça de casal não respeita a adjudicação dos bens móveis - a verificar-se - será uma situação a ser discutida em processo próprio e não consubstancia factualidade suscetível de integrar uma administração do património hereditário sem prudência nem zelo, já que após a partilha não existe património hereditário.
No contrapolo da ausência de factos provados apurou-se que a cabeça de casal não prestou compromisso de honra presencialmente nem esteve presente em nenhuma das sessões de conferência de interessados.
Quanto à prestação de compromisso apraz-nos salientar que a cabeça de casal foi admitida a prestá-lo por escrito o que veio fazê-lo tempestivamente, não tendo em momento algum sido interposto recurso e/ou arguição de qualquer nulidade, sendo certo que foram juntas também tempestivamente quer as declarações quer a relação de bens.
Da ausência da cabeça de casal nas diversas sessões das conferências de interessado e nas quais se mostrava devidamente patrocinada, não sendo a sua comparência obrigatória não se vislumbra como se poderá retirar daí factualidade suscetível de fundamentar a sua remoção do cargo de cabeça de casal.
Acrescenta-se que percorrendo o processo – a cabeça de casal devidamente representada por advogado – respondeu às notificações que lhe foram sendo feitas e aos requerimentos apresentados pelos demais interessados.
Centremos, no entanto, a nossa atenção à notificação que em 13.11.2019 foi efetuada à cabeça de casal e veio devolvida com a menção “objeto não reclamada” que resultou provada.
Essa notificação foi efetuada no seguimento de um requerimento apresentado pelo advogado que patrocina a cabeça de casal e já após a prolação da sentença de partilha afigurando-se que tal notificação – não se enquadrando nas que teriam de ser efetivamente efetuadas à parte, v.g. a sentença – deveria ter sido efetuada ao mandatário da cabeça de casal
De todo o modo a devolução desta carta ou mesmo a ausência da comunicação de alteração do domicílio por parte da cabeça de casal não contende coma administração da herança ou nem mesmo foram suscetíveis de causar qualquer perturbação processual.
Conclui-se, assim, pela inexistência de factos que permitissem concluir pela alegada má administração, pelo que não se mostra preenchida a previsão legal da alínea b) do art. 2086 do CC.
Mais se refere que inexiste qualquer comportamento processual da cabeça de casal suscetível de violar o cumprimento dos deveres processuais que lhe estavam impostos, pelo que não se mostrará preenchida a previsão legal da alínea c) do art. 2086 do CC.
Relativamente à revelação de incompetência para o exercício do cargo importa referir que é necessário averiguar se o cabeça-de-casal durante um período de tempo mais ou menos prolongado revela incompetência para o exercício efetivo, ponderando-se, ainda, a natureza dos bens, a sua grandeza e dificuldades surgidas e a forma como são superadas.
Ora também em relação a este ponto nada de concreto permite concluir, pela incompetência da cabeça-de-casal.
A propósito da idade da cabeça de casal e do seu internamento no lar sempre se dirá que tais factos não são só por si suscetíveis de revelar incompetência.
Em face do exposto julga-se o incidente improcedente e, em consequência indefere-se o pedido de nomeação do interessado D… para o cargo de cabeça de casal mantendo-se, C… no cargo.
Custas do incidente nesta parte a cargo do interessado D… fixando-se a taxa de justiça em 1 Uc.
(…)
Da pretensão deduzida pelo interessado D… “ consignar por improcedente em reconvenção o uso e habitação aqui interessado/requerido e cônjuge vitálicio) (ponto 3º do requerimento).
Com este pedido pretende o interessado que se consigne que por sentença transitada em julgado se reconheceu o direito de uso e habitação atribuído ao requerido e ao cônjuge.
Respondeu já a cabeça de casal.
Os autos contem todos os elementos que permitem decidir sobre o mérito da causa não se vislumbrando necessidade de produção de prova.
Os direitos de uso e de habitação constituem-se e extinguem-se pelos mesmos modos que o usufruto, art. 1485º CC, isto é, por contrato, testamento, ou disposição da lei, art. 1440.º do CC, com exceção de usucapião, cfr. art. 1485º e 1293º al. b) do CC.
O interessado D… não alega a existência de um qualquer contrato, testamento ou disposição legal através do qual lhe tenha sido concedido esse direito referindo, no entanto, que esse direito de uso e habitação foi atribuído por sentença.
Salvo o muito devido respeito por opinião contrária não lhe assiste qualquer razão. Senão vejamos.
O pedido deduzido pelo interessado D… e pelo seu cônjuge contendia com o reconhecimento do direito de propriedade sobre a fração AX que veio a ser julgado improcedente e não com o reconhecimento do direito de uso e habitação.
No pedido reconvencional pretendia a Herança Ilíquida e indivisa aberta por óbito de B… a condenação do interessado e do seu cônjuge a verem reconhecido que B… era, e os seus herdeiros são hoje, em comum e sem determinação de parte ou de direito, proprietários da fração designada pelas letras “AX” e a restituição da identificada fração, livre de pessoas e de bens à reconvinte.
O pedido reconvencional veio a ser julgado parcialmente procedente apenas se reconhecendo o direito de propriedade.
O pedido de restituição do imóvel foi julgado improcedente não porque não fosse reconhecido à Reconvinte um direito à restituição do espaço e que à cabeça de casal não assistisse o direito de pedir aos herdeiros a entrega dos bens que deva administrar mas por que entendeu “ que não tendo a herança qualquer razão válida e ponderosa, que possa justificar a entrega da fração (com prévio despejo dos autores) considerando que ele próprio (autor) é titular sem determinação de parte, do acervo hereditário que integra a herança, entendemos que tal entrega no contexto factual provado se traduziria numa excessiva desproporção entre o benefício visado pelo reconvinte e os óbvios prejuízos causados aos reconvindos, extravasando os limites impostos pela boa fé e pelo fim social ou económico”.
Assim em momento algum foi decido reconhecer judicialmente um direito de uso e habitação ao interessado e cônjuge.
Mais percorrendo a factualidade apurada e o enquadramento jurídico que dela é feito, designadamente pelo douto Acórdão do Tribunal do Porto sequer “en passant” é abordada e decidida a questão da constituição do direito de uso e habitação.
Não tendo sido tal questão apreciada não poderá ser considerado tal direito de uso e habitação ainda que num contexto de valor económico do imóvel cuja partilha se requer.
Improcede, pois, a pretensão do interessado D….
Custas do incidente nesta parte a cargo do interessado D… fixando-se a taxa de justiça em 1 Uc.
(…)»
Inconformados com estas duas decisões, apelaram aqueles interessados com as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Vieram os recorrentes requerer a remoção da cabeça-de-casal, a aqui recorrida C…, e a sua nomeação para o cargo nos termos das alíneas b) e d) do disposto no artigo 2086.° do Código Civil.
II. Para o efeito indicaram vários exemplos ocorridos nos mais de (nove) anos que demonstram indubitavelmente a falta de zelo e prudência da recorrida para o cargo. Apresentaram prova documental, requereram a inquirição de testemunhas, depoimento de parte da cabeça de casal, aqui recorrida e declarações de parte.
III. O Tribunal a quo entendeu não ser necessária a produção de qualquer prova e concluí peia inexistência de factos que permitam concluir pela alegada má administração.
IV. Ora, o recorrente suscitou a remoção da cabeça de casal do cargo em que foi investido, alegando diversa factualidade diversa que se enquadra na previsão das alíneas b) e d) do artigo 2080.° do Código Civil, indicando, desde logo, as respetivas provas (v.g., documentos, testemunhas, depoimento de parte da cabeça de casai e declarações de parte).
V. A recorrida, notificada para querendo, se pronunciar, pugnou pela manutenção do seu cargo, indicando, no seu requerimento, as respetivas provas.
VI. Desde logo, andou mal o Tribunal a quo a proferir decisão, de seguida, sem ter tomado em linha de conta a prova testemunhal, o depoimento de parte e as declarações de parte indicados pelos recorrentes, nem, tão pouco, a prova testemunhal arrolada pela aqui recorrida – na qual veio a julgar improcedente o incidente suscitado de remoção de cabeça de casal, mantendo-se o mesmo no cargo. Andou mal o Tribunal, na decisão da qual agora se recorre, ao não elencar de forma adequada e correta quais os factos tidos por provados e não provados.
VII. A par disso, existe factualidade alegada pelos recorrentes e que se encontra controvertida nos autos, a qual, a ser provada – atentos os meios de prova que apresentou e que não foram tidos em conta na decisão sob censura – consubstancia, inexoravelmente, uma conduta da cabeça-de-casal que se enquadra na previsão das alíneas b) e d) do artigo 2086.° do Código Civil.
VIII. Andou, também, mal o Tribunal a quo ao não considerar relevante a não receção da carta enviada por aquele Tribunal à aqui recorrida e que veio devolvida por não reclamada entendendo, salvo o devido respeito, erradamente que tal deveria ter sido enviado ao mandatário da recorrida.
IX. A verdade é que, independentemente de erro ou motivo, o certo é que a carta remetida àquela sujeita processual veio devolvida por não reclamada, independentemente de erro processual que em nada justifica ou motiva a sua devolução.
X. Andou, também, mal o Tribunal ao considerar que o facto de a recorrida estar devidamente mandatada justifica o facto de ter prestado as declarações inerentes ao cargo que ocupa, por escrito.
XI. Contudo, não se pronuncia sequer, pelas declarações requeridas e nunca prestadas.
XII. Assim como, entender que o facto da recorrida não comparecer presencialmente durante mais de 9 anos numa qualquer diligência processual não configura falta de prudência e zelo.
XIII. Andou mal o Tribunal ao não ter em consideração o facto de o recorrente saber, por terceiros, qual o seu paradeiro da recorrida uma vez que não respondia às suas solicitações de assuntos relacionados com o presente inventário.
XIV. Ora, a remoção da cabeça-de-casal constitui um incidente do processo de inventário e encontra-se subordinado às regras gerais dos incidentes – nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 3 do artigo 1339.° do Código de Processo Civil, aplicável aos presentes autos.
XV. Tal pretensão está sujeita à obrigatoriedade de apresentação de meios de prova – n.° 1 do artigo 293.° do Código de Processo Civil.
XVI. Ora, in casu, os aqui recorrentes indicaram quais os meios de prova que entendia pertinentes para a apreciação do incidente em causa.
XVII. Contudo, o Tribunal a quo, veio a proferir decisão onde julgou improcedente o incidente em causa sem ter inquirido quaisquer testemunhas arroladas ou, sequer, ter tomado o depoimento de parte à cabeça-de-casal, o que, salvo o devido respeito, não permite uma apreciação global, séria e conscienciosa relativamente a toda a factualidade que for alegada pelos recorrentes e que se mostra controvertida no seu requerimento.
XVIII. Na verdade, entendem os recorrentes, a menos que se verificasse a hipótese (excecional) dos requisitos exigidos para tal remoção se mostrassem inteiramente provados (v.g. documentos autênticos), sempre, em circunstâncias normais, e com vista a uma justa composição do litígio, deverá haver lugar, nomeadamente à inquirição das testemunhas arroladas em tal incidente, bem como ao depoimento de parte a tomar pela cabeça-de-casal, provas essas que, aliás, foram expressamente requeridas peias partes.
XIX. Assim, salvo melhor entendimento, não podem os recorrentes conformarem-se com o teor do despacho, dele recorrendo nesta parte, razão peia qual, deve o mesmo ser revogado ao abrigo do disposto na alínea c) do n.° 2 do artigo 662.° do Código de Processo Civil, devendo ser substituída por outra em que o Tribunal a quo, com o intuito de apreciar toda a factualidade alegada venha a designar data para a inquirição das várias testemunhas arroladas e para a tomada de depoimento de parte da cabeça-de- casal, bem como, proceder à eventual realização de outras diligências que entenda por necessárias e pertinentes para uma boa decisão da causa.
XX. Insurgem-se, também, os recorrentes contra o facto de o Tribunal considerar que «em momento algum foi reconhecido judicialmente um direito de uso e habitação ao interessado» aos aqui recorrentes, recorrendo, também, nesta parte.
XXI. Por despacho proferido a 26 de Outubro de 2015 a Meritíssima Juíza decidiu remeter as partes para os meios comuns para que aí fosse decidida a questão de saber a quem pertencia a propriedade daquele prédio que correspondia à Verba n.° 89° dando assim origem ao processo que com o número 17898/16.3T8PRT correu os seus termos no Juiz 7 do Instância Central Cível da Comarca do Porto, onde o aqui recorrente e esposa peticionaram que os réus – herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de B… – fossem condenados (i) a reconhecer aqueles como donos e legítimos possuidores, por usucapião, daquela fração ou (ii) fossem condenados s reconhecer aqueles como legítimos donos e possuidores da referida fração por haverem invertido o título da prova.
XXII. A herança ilíquida e indivisa de B… contestou e deduziu reconvenção peticionando:
(iii) que fosse reconhecido que B… foi e os seus herdeiros são hoje, em comum e sem determinação de parte ou de direito, proprietários do fração autónomo e
(iv) que tal prédio fosse entregue livre de pessoas e bens.
XXVIII. A ação foi julgada improcedente e o pedido reconvencional foi apenas julgado parcialmente procedente na medida em que apenas condenou os autores a reconhecer que B… era – e os seus herdeiros são hoje, em comum e sem determinação de parte ou de direito – proprietários da f ração autónoma, absolvendo os reconvindos/autores da segunda parte daquele pedido reconvencional, ou seja, a entrega do prédio livre de pessoas e bens.
XXIV. Andou mal o Tribunal ao entender que o recorrente não é titular de um direito de uso e habitação uma vez que a sentença/acórdão agora citada pelo despacho do qual se recorre é ciara ao proceder nesta parte e improceder na parte em que, em reconvenção, a recorrida peticiona a entrega do imóvel livre de pessoas e bens. De facto, o imóvel será entregue ao acervo hereditário, mas não livre de pessoas e bens. Essa foi, pois, a decisão proferida por aquele douto Tribunal e do qual o Tribunal a quo faz errada interpretação.
XXV. Mesmo sem os argumentos acima expostos, o que só academicamente se admite, acrescentam os recorrentes que, tratando-se de um comodato vitalício, cedido pelo senhor seu pai o “de cujus”, sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar/fração, enquanto continuar a ter esse uso. A necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa/morada de família objeto de um contrato de comodato, para habitação. Pelo que, continuando a servir-se do prédio/fração, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legítimo para a ocupação do prédio.
XXVI. O Tribunal a quo desconsiderou, pois, a decisão judicial como a existência do contrato de comodato que legitima o uso do prédio pelos recorrentes e, neste caso, justificar a recusa da restituição, como se decidiu na sentença/acórdão que não determinou a sua restituição, dando total improcedência ao pedido reconvencional por banda da recorrida, improcedendo o pedido de entrega do imóvel livre de pessoas e bens.
XXVII. Na verdade, o Imóvel reivindicado foi cedido aos recorrentes, para sua utilização como habitação. Nestas circunstâncias, encontra-se tipificado um contrato de comodato, tal como vem definido no artigo 1129.° do Código Civil. Com efeito, trata-se de um contrato gratuito pelo qual o Inventariado entregou/cedeu aos recorrentes o referido imóvel, para que se servissem dele, para sua habitação, sem obrigação de o restituírem. Fartando um prazo certo – como é o caso dos presentes autos – mas destinando-se a cedência do imóvel a habitação, a sua restituição tem lugar quando finde o uso a que foi destinado, sem necessidade de interpelação, como decorre do disposto no n.° l do artigo 1137.° do Código Civil.
XXVIII. Deve, pois, e no seguimento deste entendimento, continuar o referido imóvel a ser utilizado, como habitação, dos recorrentes, e da sua família, e, por isso, continua com o direito a servir-se do referido prédio, nomeadamente nos termos do disposto no artigo 1129.º do Código Civil. Não obstante o reconhecimento de que o imóvel é um bem da herança, é lícito, recusar a restituição do prédio nos termos do n.° 2 do artigo 1311.° do Código Civil.» (sic)
Pugnam assim os recorrentes pela revogação do despacho recorrido, no que concerne àquelas duas decisões.
*
A cabeça-de-casal ofereceu contra-alegações que sintetizou assim:
«I. Salvo o devido respeito que nos merecem a opinião e a ciência jurídica do Recorrente, afigura-se à Recorrida que o douto despacho de fls. deverá manter-se.
II. No que concerne ao incidente de remoção do cabeça-de-casal, entende o Recorrente que alegou factualidade não tida em consideração pela Meritíssima Juíza a quo, já que a mesma decidiu sem proceder previamente à produção de prova requerida.
III. É certo que a Meritíssima Juíza a quo considerou desnecessária a produção de prova, no entanto tal decisão justifica-se pela (total) ausência de alegações de factos pelo Recorrente que permitissem concluir pela remoção da Recorrida do cargo de cabeça-de-casal.
IV. O Recorrente alegou apenas generalidades ou juízos conclusivos sem nada concretizar, nem sequer após ter sido convidado a aperfeiçoar a sua alegação, pelo que nada de concreto foi alegado que permita concluir pelo preenchimento de nenhuma das alíneas do art. 2086.º do Código Civil.
V. Diga-se, em abono da verdade, que os únicos factos que o Recorrente concretiza prende-se com a alegada não comparência da aqui Recorrida em diligências judiciais.
VI. Ora, se a lei concede à parte a possibilidade de esta se fazer representar por mandatário munido com procuração com poderes especiais, visto está que tal circunstância não poderá fundamentar um pedido de remoção do cargo de cabeça-de-casal.
VII. Assim, independentemente da prova junta ou requerida pelo Recorrente, a verdade é que a mesma apenas serviria algum propósito caso previamente tivessem sido alegados factos – e não conclusões ou generalidades – concretas que permitissem ao tribunal a quo, após produção de prova, concluir ou não pela verificação das circunstâncias de que a lei faz depender o incidente de remoção do cargo de cabeça-de-casal.
VIII. Ao contrário do alegado pelo Recorrente a Meritíssima Juíza a quo elencou os factos considerados provados – alíenas A a F – pelo que nem sequer tal irregularidade se verifica.
IX. Certo é que, o facto de a Recorrida se ter feito representar ao longo do processo por mandatário devidamente munido com procuração forense com poderes especiais, o facto de ter uma idade avançada ou o facto de uma – repete-se uma! – carta não ter sido pela mesma levantada, não constitui motivo justificativa para que a mesma seja removida do cargo de cabeça-de-casal.
X. Tais circunstâncias, por não terem tido qualquer influência na normal e regular tramitação do processo, por não demonstrarem falta de prudência ou zelo na administração do património hereditário ou sequer incompetência para o exercício do cargo, não poderiam em qualquer circunstância fundamentara pretensão do Recorrente.
XI. Assim, e porque nem sequer após o convite ao aperfeiçoamento o Recorrente se deu ao trabalho de concretizar factos suscetíveis de fundamentar o incidente de remoção, só de si se pode queixar.
XII. A prova serve para demonstrar a existência de determinado facto e não o seu contrário;
XIII. Não podendo a produção de prova colmatar a falta de alegação de factos.
XIV. No despacho objecto do recurso decidiu, ainda, a Meritíssima Juíza a quo que o Recorrente não detém qualquer direito de uso e habitação relativamente à fracção autónoma objecto da presente partilha adicional;
XV. Decisão essa com a qual o Recorrente não concorda, alegando que a decisão que veio a ser proferida no âmbito do processo nr. 17898/16.3T8PRT, ao julgar parcialmente improcedente a reconvenção na parte em que a ora Recorrida peticionou a entrega do prédio livre de pessoas e bens, reconheceu ao Recorrente um direito de uso e habitação.
XVI. Ora, os direitos de uso e de habitação constituem-se e extinguem-se pelos mesmos modos que o usufruto, com excepção do usucapião – cfr. art. do Código Civil;
XVII. Ou seja, por contrato, testamento ou disposição da lei – cfr. art. 1440.º do Código Civil.
XVIII. O Recorrente não alega a existência de um qualquer contrato ou testamento através do qual lhe tenha sido concedido esse direito, nem qualquer disposição legal que lhe atribua tal direito.
XIX. Assim, e porque o direito de uso e habitação não se constituiu por sentença transitada em julgado, desde logo se conclui que o direito que o Recorrente invoca não existe.
XX. Não satisfeito, ensaia o Recorrente nova tese nas suas alegações de recurso, invocando agora um pretenso contrato de comodato.
XXI. Diga-se a este propósito que nunca em momento algum – seja nos presentes autos, seja no acção de reivindicação de propriedade que correu termos – o Recorrente invocou a existência de um contrato de comodato ou de qualquer outro.
XXII. Antes pelo contrário, sempre defendeu ser proprietário, razão pela qual intentou a acção de reivindicação que correu termos sob o nr. 17898/16.3T8PRT.
XXIII. O Recorrente apresenta versões subsidiárias dos factos, faltando à verdade de forma consciente, de acordo com as suas conveniências.
XXIV. O Recorrente alega que o tribunal desconsiderou a existência do contrato de comodato sendo certo que em lado nenhum alegou o Recorrente a existência desse mesmo contrato.
XXV. Recorrente nunca alegou que tivesse celebrado um contrato de comodato com o de cujos ou qualquer outro, tendo-se limitado a afirmar que a sentença proferida no âmbito do processo nr. 17898/16.3T8PRT lhe reconhecia um direito de uso e habitação.
XXVI. O despacho recorrido não poderia pronunciar-se sobre essa factualidade – a do pretenso contrato de comodato –, porquanto nada a esse propósito foi alegado.
XXVII. Mas mais, ainda que assim não fosse, a verdade é que é absolutamente falso que o imóvel em apreço tivesse sido cedido ao Recorrente e sua família para uso determinado.
XXVIII. Tal como resultou provado no âmbito da acção de reivindicação (ponto 19 da matéria de facto dada como provado),
o referido B… consentiu e tolerou, sem prazo ou uso determinado, que o Autor e o seu agregado familiar utilizassem a fração em causa, sendo por esse motivo que o Autor ali come, dorme, recebe visitas e faz a sua vida, apenas pagando o que consome, como água, luz e telefone, e o necessário para o equipamento da residência, mas que não integra o imóvel.” (sublinhado e negrito nossos)
XXIX. Como tal, ainda que por mera hipótese académica se considerasse que o Recorrente teria celebrado um contrato de comodato – o que em hipótese alguma se consente – a verdade é que, não tendo sido convencionado uso determinado, sempre teria o Recorrente que restituir a fracção logo que esta lhe fosse exigível – cfr. art. 1137.º do Código Civil;
XXX. Não tendo, ainda assim, um direito vitalício ao referido imóvel conforme alega.
XXXI. Visto está que em hipótese alguma o Recorrente possui um título legítimo para recusar a entrega da fracção autónoma em causa nos autos.
XXXII. Em face de tudo quanto ora se expôs, não assiste qualquer razão ao Recorrente, motivo pelo qual deverá o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente.» (sic)
Defendeu deste modo a confirmação das decisões.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação dos recorrentes, acima transcritas (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 690º do Código de Processo Civil).
Somos chamados a decidir duas questões, a saber:
1ª. Quanto ao incidente de remoção da cabeça-de-casal, se a decisão deve ser anulada para a 1ª instância tomar prévio depoimento às testemunhas que foram arroladas e a algum interessado.
2ª. A existência de um direito de uso e habitação dos recorrentes ou de um contrato de comodato.
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III.
Vejamos!
1. Remoção do cabeça-de-casal
Dispõe o art.º 1082º do atual Código de Processo Civil que o processo de inventário cumpre, entre outras, determinadas funções ali previstas, das quais destacamos a que nos interessa: fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens (al. b)).
Este inventário é, assim, caracterizado pelo princípio da universalidade, sendo o seu objetivo a partilha de todos os bens e direitos que integram a herança, de preferência de uma só vez. Visa-se uma partilha igualitária, já que o inventário tem por finalidade distribuir fiel e equitativamente todo o património do referido acervo e nele interessa sobretudo apurar toda a verdade para que a partilha seja efetuada com igualdade e justiça.
Esta regra admite desvios, nomeadamente com a realização de partilhas adicionais ou a remessa dos interessados para os meios comuns, verificados que sejam determinados pressupostos.
Esta doutrina subjazia já ao Código de Processo Civil de 1962 (cf. respetivo art.º 1326º, nº 1).
Prevê a lei, no art.º 2079º do Código Civil, o cargo de cabeça-de-casal com competência para administrar a herança até à sua liquidação e partilha. O cabeça-de-casal administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal. Pode pedir a entrega de bens a terceiros e aos herdeiros que deva administrar, cobrar dívidas ativas da herança, vender frutos ou outros bens deterioráveis, intentando ações possessórias se necessário for (art.ºs 2087º e seg.s do mesmo código).
No processo de inventário, deve o cabeça-de-casal praticar vários atos específicos necessário ao seu bom desenvolvimento, com vista ao relacionamento de bens e partilha, de que destacamos atualmente a apresentação do requerimento inicial do processo e da relação de bens (art.ºs 1097º e 1098º do atual Código de Processo Civil). Mas já no Código de Processo Civil de 1962, o cabeça-de-casal desempenhava funções semelhantes (respetivos art.ºs 1338º, nº 2, 1340º e 1345º).
O Código Civil, sob o art.º 2080º, nºs 1 a 4, estabelece um critério para o preenchimento do cargo de cabeça-de-casal, segundo a seguinte ordem:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários.
De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.
Por estar adstrito ao cumprimento de deveres funcionais, estando obrigado a prestar contas (art.º 2093º do Código Civil), designadamente na pendência do processo de inventário, o cabeça-de-casal pode ser removido do cargo, sem prejuízo de outras sanções que ao caso couberem, se:
a) Dolosamente ocultar a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciar doações ou encargos inexistentes;
b) Não administrar o património hereditário com prudência e zelo;
c) Não cumprir no inventário os deveres que a lei lhe impuser;
d) Revelar incompetência para o exercício do cargo (art.º 2086º do Código Civil[2].
Os recorrente pediram a remoção da interessada C… do cargo de cabeça-de-casal ao abrigo dos fundamentos constantes das aludidas al.s b) e d).
Em que se traduzem estes fundamentos?
João A. Lopes Cardoso[3] escrevia já que “as funções do cabeça-de-casal, porque são vastas e complexas, hão-de ser desempenhadas com seriedade, bom senso e diligência. Só desta forma o inventário poderá tocar seu termo com segurança e brevidade e oferecer garantia segura de que as partilhas são rigorosas e têm base séria.
A complexidade de tais funções exige competência para o desempenho do cargo e, porque do seu bom exercício depende a finalidade a que visa o processo de inventário, compreende-se que a lei estabeleça cominação para as faltas cometidas pelo cabeça-de-casal, por culpa sua, quer provenientes de incúria ou negligência, quer voluntariamente praticadas.
Há, por assim dizer, como que um feixe de direitos e deveres por parte do cabeça-de-casal, cuja postergação importa falta grave para a qual a remoção actua como castigo bastante”.
No que concerne à alínea b), deve o cabeça-de-casal administrar o património hereditário com prudência, tino administrativo, diligência e cuidado.
Prossegue Lopes Cardoso[4], “dum modo genérico pode dizer-se que administra mal aquele que vota ao abandono as propriedades ou nelas não realiza simples obras de conservação; quem deixa deteriorar os móveis, por não os preservar de possíveis estragos; quem não faz, a tempo e horas, as culturas dos campos, os grangeios da vinha, as podas do arvoredo, as recolhas dos produtos, a armazenagem conveniente e, até, a própria venda quando a sua conservação os deteriore. Não administra bem o que deixa de fazer pontualmente o pagamento das contribuições, sujeitando a herança ao gravame dos juros de mora ou às consequências do relaxe; será mau administrador o que não leve a sua prudência ao ponto de manter em ordem e em dia o pagamento dos prémios dos seguros, o que deixa de cumprir as variadíssimas obrigações impostas por numerosos diplomas quanto a manifestos, declarações e participações”, prosseguindo com muitos outros exemplos. E conclui: “Tenha-se, porém, como certo que a má administração (…) tem de deduzir-se de factos que inequivocamente a revelem e não de simples considerações de ordem geral, insusceptíveis de serem captadas através de prova e sem relevância para se ajuizar da conduta do cabeça-de-casal”.
Quanto à falta de competência para o exercício do cargo, diz-nos também Lopes Cardoso: “Este fundamento não se confunde com o respeitante à falta de zelo (alínea b)). Na alínea b), prevê-se o caso de, sendo embora competente profissionalmente, o cabeça-de-casal se meta em aventuras perigosas ou se desleixe no cumprimento dos deveres que lhe incumbem; na alínea d), atinge-se o caso de inexistirem no cabeça-de-casal qualidades bastantes para a administração ou para esse cumprimento. (…) Não basta, pois, que de antemão se saiba que lhe falece competência; é mister que dê provas da incompetência através de um exercício, mais ou menos prolongado, das respectivas funções. Na averiguação dela também há grande margem para arbítrio judicial, por isso que a lei a não define (…)».[5]

Por serem graves as consequências da remoção e a afetação do prestígio e do bom nome daquele que é removido das funções, a pena só terá aplicação quando a falta cometida revista gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres. A lei exemplifica os casos em que a pena de remoção pode ser imposta e na apreciação deles e na interpretação dos fundamentos legais, ainda fica margem para um grande arbítrio do julgador.
Como se refere também no citado acórdão da Relação de Lisboa, “o prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são factores primaciais a atender na aplicação da referida pena”.[6]
A remoção do cabeça-de-casal depende, assim, da alegação e prova de qualquer das situações elencadas no art.º 2086º do Código Civil. Por se tratar de um incidente no processo de inventário, é-lhe aplicável o conjunto de normas previstas nos art.ºs 292º e seg.s do Código de Processo Civil (cf. art.º 1103º, nº 2, do atual Código de Processo Civil e art.º 1334º do Código de Processo Civil de 1962, então com referência os art.ºs 302º a 304º do mesmo código), sendo o ónus da prova do requerente da remoção.
Ilustrando o fundamento da falta de competência para o cargo do cabeça-de-casal, sumariou-se, a propósito do exercício de deveres de gestão de estabelecimentos comerciais ou empresas[7]:
(…)
III- Na situação de o património hereditário integrar estabelecimentos comerciais ou empresas, será necessário que quem as administra esteja à altura do cargo e possua as qualidades necessárias para o exercício e desempenho cabal de tais funções, de molde a praticar uma administração do património hereditário com competência, prudência e zelo, em ordem à salvaguarda dos direitos dos restantes herdeiros, que não devem ser prejudicados de forma grave e irreparável, sendo, por decorrência a actividade do cabeça de casal indissociável de uma boa e corrente gestão dessas empresas.
IV- Assim sendo, nessa situação, necessário se revela que se demonstre que o cabeça-de-casal não possui qualificação ou quaisquer conhecimentos profissionais ou de gestão que lhe permitam assegurar, pessoal e adequadamente, a boa administração das sociedades comerciais cujas participações sociais integram o acervo de bens da herança, em ordem ao preenchimento dos requisitos indispensáveis ao deferimento da providência cautelar de remoção do cabeça-de-casal solicitada ao Tribunal, nos termos estatuídos na alínea d), do nº 1, do art. 2086º do Código Civil.
V- E essa incompetência, enquanto inaptidão para o exercício do cargo, terá de decorrer da matéria de facto alegada e provada nos autos, ainda que em sede cautelar.
De relevar aqui também o acórdão da Relação de Coimbra de 12.4.2018[8] onde, no sentido já propugnado e seguindo o que nos aprece ser, pelo menos, jurisprudência dominante, se sumariou:
I – No tocante à “incompetência para o exercício do cargo” enquanto fundamento para o incidente de remoção do cargo de cabeça de casal à luz do disposto no art. 2086º, nº 1, al. d) do C.Civil, trata-se de norma em branco a preencher casuisticamente.
II – Enquanto “incidente” da instância do inventário, o respetivo ónus será da Requerente, nos termos das regras gerais dos arts. 292º e segs. do n.C.P.Civil.
III – Nesta dita al. d), atinge-se o caso de inexistirem no cabeça-de-casal qualidades bastantes para a administração ou para esse cumprimento, sendo que a pena/remoção só terá aplicação quando a falta cometida revestir gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres.” Ali se sustenta também que o prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são fatores primaciais a atender na aplicação da referida pena, e ainda que “a má administração tem de se deduzir de factos que inequivocamente a revelem, captadas através de prova suficiente para se poder ajuizar da conduta do cabeça-de-casal”[9].
Por aplicação das regras gerais do processo civil, o requerente deve alegar, no requerimento inicial de remoção, os factos essenciais em que faz assentar os fundamentos daquele pedido (art.º 5º, nº 1, do Código de Processo Civil), para além do dever de oferecer também ali o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova (art.º 293º, nº 1, do mesmo código).
Consta da decisão recorrida que o interessado alegou matéria conclusiva e que não alegou --- nem no requerimento inicial de origem, nem no requerimento aperfeiçoado --- factualidade concreta da qual se possa extrair a existência de má administração da herança, nem factos de onde se extraia a incompetência da cabeça-de-casal para ao exercício do cargo, pelo que a inquirição das testemunhas arroladas pelo Requerente sempre seria um ato inútil.
Matéria conclusiva são as conclusões de facto, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo, com as regras da experiência.[10]
São factos “as ocorrências concretas da vida real”[11], isto é, os “fenómenos da natureza, ou manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens”.[12]
É sabido que o tribunal não pode introduzir expressões conclusivas em sede de matéria de facto. Se, por exemplo, um artigo dos articulados é constituído por expressões conclusivas, o tribunal não lhe deve responder, à semelhança do que faz nos casos em que está perante questões de direito.
Como se extrai do acórdão de 22.9.2014[13], «ao contrário do que por vezes se vê apregoado, a tanto quanto possível separação rigorosa da matéria de facto e de direito não é tributária de uma postura formalista e arcaica, antes é uma decorrência indeclinável de “qualidade” e genuinidade na instrução da causa. De facto, se não houver rigor na delimitação destes campos, as testemunhas serão chamadas a emitir juízos de valor, inclusive de ordem legal, procedendo assim a uma verdadeira usurpação de funções consentida, porquanto, assim actuando, demitir-se-á o julgador da função que lhe é própria, transferindo-a, à margem da lei, para as diversas entidades operantes em sede de instrução».
Tem que haver rigor na delimitação dos campos do Direito e dos factos, sob pena de se admitirem juízos de valor das testemunhas, inclusive de ordem legal, com indevida transmissão para outros intervenientes da própria função de julgar, exclusiva do juiz.
O Requerente D… fundamentou o pedido remoção da cabeça-de-casal em factos que descreveu no âmbito dos pontos 1 a 17 do requerimento aperfeiçoado com a seguinte alegação:
«(…)
1. Os presentes autos têm o seu início a 4 de setembro de 2012.
2. Citada a 13 de setembro de 2012 para prestar o devido compromisso de honra e as declarações de cabeça de casal, esta não se fez comparecer, encontrando-se apenas presente a ilustre mandatária munida de procuração com poderes especiais requerendo que o referido compromisso e declarações fossem prestadas por escrito.
3. A 31 de outubro de 2012, por intermédio da sua mandatária, a cabeça de casal junta, por escrito, um documento que intitula de «DECLARAÇÕES DE CABEÇA DE CASAL E COMPROMISSO DE HONRA» documento dactilografado e onde apenas está aposta a sua assinatura.
4. Esta é a primeira – e única! – intervenção da cabeça de casal ao longo de mais de 8 anos.
5. Seguem-se as conferências de interessados. A primeira, realizada em 15 de maio de 2014, ocasião em que a cabeça de casal, mais uma vez, não se fez comparecer, não obstante ter sido notificada e ter interesse direto na partilha.
6. O mesmo veio a suceder em 23 de novembro de 2015,17 de fevereiro de 2016, 9 de março de 2016 e 17 de outubro de 2016. Ocasiões em que se realizaram as conferências de Interessados e que, não obstante a cabeça de casal ter interesse direto e devidamente notificada para o efeito, nunca se fez comparecer presencialmente.
7. Volvidos mais de 8 (oito) anos desde o início dos presentes autos a única intervenção direta (e escrita} da requerente foi apenas a referida no artigo 3º.
8. Nunca se tendo feito comparecer presencialmente
9. O que muito se estranha considerando o teor e a duração dos presentes autos.
10. Ora, apesar de terem sido requeridas da cabeça de casal as mesmas nunca foram prestadas uma vez que a mesmo nunca compareceu, presencialmente, em juízo.
11. Em 13 de novembro de 2019 este Tribunal remete à cabeça de casal, para a morada por esta indicada – e para a qual tinha vindo, sempre, a ser citada – notificação da conta, carta esta devolvida com a menção «objeto não reclamado».
12. Diversas foram as vezes em que o interessado D… tentou estabelecer contacto com a cabeça de casal para cumprimento da sentença.
13. Tentativas, essas, sempre frustradas porque nunca se conhecia o paradeiro daquela.
14. Tendo sido, entretanto, informado, pelo administrador do Condomínio onde reside o interessado, que a mesma se encontraria a residir no Lar sito na rua do …, n.° …. ….-… Porto.
15. Mudança essa que a cabeça de casal não comunicou, como deveria, aos presentes autos o que dificultou, e muito, na comunicação entre os interessados e a cabeça de casal.
16. Nesse sentido, os interessados, viram-se na obrigação de recorrer à instauração de um processo executivo para que aquela fosse «obrigada» a cumprir o ordenado pela douta sentença proferida nos presentes autos, processo esse, que corre os seus termos no Juiz 7 do Juízo de Execução do Tribunal da Comarca do Porto e sob o número 14366/19.5T8PRT.
17. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, a conduta da cabeça de casal, no seu todo considerada, é motivo mais do que suficiente para a sua remoção.»
Os itens 9 e 17 são manifestamente conclusivos.
No requerimento inicial de remoção do cabeça-de-casal o mesmo requerente havia alegado, a propósito, o seguinte:
«(…)
11. Vejamos. A requerente tem hoje 88 anos e reside num lar situado na rua do …, ,…, Porto, ….-… Porto.
12. Diversas foram as vezes em que se mostrou difícil a citação da aqui requerente.
13. Tendo, inclusive, mudado de residência e não tendo dado conhecimento aos autos, obrigação a que estava adstrita na qualidade de cabeça de casal.
14. O que motivou a que os co-herdeiros soubessem por terceiros a nova morada fiscal da aqui requerente uma vez que aquela nunca ofereceu qualquer indicação.
15. Nessa medida, desde a data do início do presente processo até hoje a requerente não diligenciou de forma correia. Ou porque não se deixava citar, ou porque mudou de domicílio fiscal sem comunicar aos autos, nunca tendo, inclusive, respeitado a adjudicação dos bens móveis.
16. Ressalvando que a aqui requerente tem já hoje 88 anos, reside num lar, e está completamente alheia a tudo o que aqui se discute.
17. Recorde-se que à data da abertura do presente inventário a requerente, enquanto cabeça de casal, notificada para prestar o compromisso de honra e as declarações de cabeça de casal, em 16 de Outubro de 2012, não compareceu.
18. Em boa verdade a aqui requerente nunca se fez presenciar nos presentes autos, encontrando-se sempre representada.
19. Até mesmo nos autos de compromisso de honra e declarações de cabeça de casal – referência cifíus 11368736.
20. Nessa ocasião, mesmo notificada pela segunda vez para o efeito, não compareceu tendo, finalmente, o Tribunal a quo admitido que tal compromisso fosse prestado por escrito e junto aos autos.
(…)».
Ora, o tribunal deu como provados os seguintes factos:
A)
C… foi nomeada cabeça de casal por despacho de 12.9.2012 e notificada para prestar compromisso de honra a 16.10.2012, pelas 14.00 horas;
B)
No dia 16.10.2012 foi determinado que a mesma prestasse o compromisso de honra por escrito, concedendo-se prazo para apresentação desse compromisso, das declarações e relação de bens, o que veio fazer a por requerimento de 31.10.2012.
C)
A cabeça de casal não esteve presente em nenhuma das datas em que se realizaram as conferências de interessados.
D)
Em 13 de novembro de 2019 foi junta uma carta dirigida à cabeça de casal enviada para a sua morada com a menção “ não reclamada”.
E)
A cabeça de casal tem 88 anos e reside num lar situado na …, n.º …, no Porto.
F)
A cabeça de casal não deu conhecimento nos autos da alteração do seu domicílio.

A matéria alegada, no que concerne às dificuldades de citação da cabeça-de-casal, não está traduzida em facto concretos e não consta que daí tivesse resultado qualquer atraso significativo e prejuízo para o normal desenvolvimento do processo. Esta é matéria processual a extrair da análise dos próprios autos e não de depoimentos testemunhais ou declarações e depoimentos de parte.
As faltas a atos processuais de declarações e apresentação de relação e bens, e a conferências de interessados estão tratadas nos factos dados como provados e, como reconhece o próprio Requerente, a cabeça-de-casal fez-se sempre representar por mandatário. Não está alegado, sem sequer conclusivamente, que dali resultou prejuízo para o normal desenvolvimento do processo ou para a administração a herança. Aliás, a cabeça-de-casal foi admitida a prestar compromisso de honra e as suas declarações por escrito e fê-lo tempestivamente, então sem arguição de nulidades ou interposição de recurso pelos interessados. A comparência da cabeça-de-casal nas conferências não era obrigatória e não decorre dos requerimentos original e aperfeiçoado que a sua ausência (mas sempre representada por mandatário) acarretou qualquer fundamento de remoção; ou seja, não há alegação de qualquer facto de onde possa decorrer que a falta de comparência da cabeça-de-casal às conferências de interessado ocasionou um conjunto de circunstâncias capaz de traduzir falta de prudência e zelo na administração dos bens que compõem a herança ou incompetência para o exercício do cargo para que foi nomeada, nomeadamente por ter causado algum prejuízo ou acarretar um potencial de prejuízo para herança ou até mesmo para o processo.
Da idade da cabeça-de-casal, seja ela qual for, e do local da sua residência também não decorre necessariamente a sua incompetência par ao exercício do cargo. Esta há de decorrer sobretudo da sua conduta processual, como seja a existência de atrasos ou erros significativos e injustificados na prática de atos da sua incumbência, com possível confirmação clínica de inaptidão por qualquer incapacidade intelectual relevante. Não são as testemunhas nem a própria interessada que vão afirmar e convencer o tribunal sobre a sua incapacidade, em razão da idade, para o desempenho do cargo, que a sua prática processual não revela.
As dificuldade em contactar a cabeça-de-casal podem ser resolvidas através do contacto do seu mandatário e podem ser acusadas ao tribunal, não sendo, só por si, reveladoras de incompetência para o cargo ou sinal de imprudência ou falta de zelo na administração a herança. Nem o Requerente dali extrai consequências graves ou prejuízo considerável para a herança ou para o processo, através da alegação de factos concretos.
A prova da instauração ou pendência de uma execução ou de um processo judicial de qualquer outra natureza faz-se pela junção da respetiva certidão e é desta junção documental que poderá decorrer que houve necessidade da sua instauração, e não de depoimentos testemunhais ou de declarações ou depoimentos de parte. A alegação da necessidade da instauração da execução não se faz com uma crua e conclusiva alegação, sem que o interessado alegue factos concretos que traduzam tais fundamentos de remoção da cabeça-de-casal, como suscetíveis de conduzir à verificação de uma má administração do património da herança ou à incompetência para o exercício do cargo, segundo os padrões de exigência normalmente tratados pela doutrina e pela jurisprudência, conforme os critérios acima expostos, de que destacamos os requisitos da gravidade de conduta e o prejuízo ou o potencial prejuízo, quase sempre espelhados no próprio inventário pela forma como o cargo é exercido.
A produção de meios de prova destinar-se-ia a demonstrar factos concretos que tivessem sido alegados, pelo menos os que se revelassem essenciais à satisfação do pedido de remoção do cabeça-de-casal nomeado para o cargo. Faltando estes, como faltam efetivamente para o reenchimento de qualquer dos fundamentos invocados, a inquirição de testemunhas e dos interessados seria um ato inútil e, por isso, proibido por lei (art.º 130º do atual Código de Processo Civil).
Improcede a primeira questão do recurso.
*
2. O direito de uso e habitação ou a celebração de um contrato de comodato
Pretendeu o interessado reclamante que se consigne no processo que, por sentença transitada em julgado, se reconheceu a existência na sua titularidade e do seu cônjuge do direito de uso e habitação sobre a fração AX que integra a herança.
Na segunda das decisões proferidas no despacho recorrido, o tribunal negou aquela pretensão, argumentado, além do mais, que o pedido reconvencional de restituição do imóvel deduzido pela herança ilíquida e indivisa foi negado «não porque não fosse reconhecido à Reconvinte um direito à restituição do espaço e que à cabeça de casal não assistisse o direito de pedir aos herdeiros a entrega dos bens que deva administrar mas porque entendeu “que não tendo a herança qualquer razão válida e ponderosa, que possa justificar a entrega da fação (com prévio despejo dos autores) considerando que ele próprio (autor) é titular sem determinação de parte, do acervo hereditário que integra a herança, entendemos quer tal entrega no contexto factual provado se traduziria numa excessiva desproporção entre o benefício visado pelo reconvinte e os óbvios prejuízos causados aos reconvindos, extravasando os limites impostos pela boa fé e pelo fim social ou económico”».
Entendeu o tribunal a quo que em momento algum, na sentença da 1ª instância ou no acórdão que a Relação do Porto proferiu em sede de recurso na ação comum que o reclamante invoca (proc. 17898/16.3T8PRT) foi judicialmente reconhecido um direito de uso e habitação ao interessado e ao cônjuge. Por isso, negou a consignação desse direito num contexto de valor económico do imóvel cuja partilha adicional se requer, e julgou improcedente tal pretensão.
Vejamos.
Remetida a questão da propriedade da fração autónoma atrás identificada por AX para os meios comuns, o recorrente e cônjuge instauraram ação declarativa comum contra a Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de B…, representada pela aqui cabeça-de-casal, C…, pedindo a condenação da Herança a reconhecer que aqueles são donos e legítimos possuidores daquela fração autónoma, por a terem adquirido por usucapião e, caso não lograssem fazer essa prova, fossem reconhecidos como legítimos donos e possuidores dessa mesma fração por haverem invertido a seu favor o título de posse da mesma que existia a favor do de cujus; bem como a ver anulado o registo dessa fração a favor deste último.
A R., opondo-se à procedência da ação, deduziu também reconvenção pedindo a condenação dos reconvindos a verem reconhecido que o de cujus era, e os seus herdeiros são hoje, em comum e sem determinação de parte ou de direito, proprietários daquela fração autónoma, devendo restituí-la à reconvinte livre de pessoas e bens.
A sentença da 1ª instância, proferida no dia 30.4.2018, absolveu os RR. do pedido e condenou os AA. reconvindos a reconhecer que B… (o de cujus) foi e os seus herdeiros são hoje, em comum e sem determinação de parte ou de direito, proprietários da dita fração.
A Relação do Porto, por acórdão de 4.2.2019, confirmou a sentença da 1ª instância. Dos fundamentos de ambos os arestos resulta claramente que, apesar do reconhecimento do direito de propriedade invocado na reconvenção e de assistir à cabeça-de-casal o direito de pedir aos herdeiros a entrega dos bens que deva administrar (até à liquidação e partilha) e que estes tenham em seu poder, no caso, os reconvindos habitam a fração com o consentimento e tolerância do falecido titular da herança, sem prazo ou uso determinados, o que sucede até hoje desde há mais de 30 anos. Por não haver interesse atendível na entrega material da fração à herança, na pessoa da cabeça-de-casal, até à partilha a efetuar, existiria nessa entrega uma excessiva desproporção entre o benefício visado pela reconvinte e os prejuízos causados aos reconvindos e, por isso, abuso de direito. Com efeito, não obstante a negação do direito de propriedade dos AA. e o reconhecimento do direito de propriedade invocado pela reconvinte, julgou-se ali improcedente o pedido reconvencional de restituição a fração enquanto não for partilhada.
O acórdão da Relação transitou em julgado.
Recusada na decisão recorrida a consideração da invocada existência de um direito de uso e habitação dos interessados reclamantes na decisão recorrida --- no que anuímos, sem qualquer reserva ---, passaram estes a defender, no recurso, que a decisão final proferida no proc. 17898/16.3T8PRT contém o reconhecimento da existência de um contrato de comodato (art.ºs 1129º e seg.s do Código Civil) havido entre o falecido e os reclamantes.
Trata-se da interpretação do acórdão da Relação do Porto (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), pelo que a invocação, pela primeira vez em recurso, da existência de reconhecimento judicial de um contrato de comodato, não é propriamente uma questão nova, com todos os efeitos daí advenientes, nomeadamente o seu não conhecimento (art.ºs 608º, nº 2 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O art.º 619º, nº 1, do Código de Processo Civil[14], dispõe que “transitada julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.° e 581.°, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.° a 702.°.
Segundo o subsequente art.º 621º, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”.
O caso julgado confere à decisão caráter definitivo. Uma vez transitada em julgado, a decisão não pode, em princípio[15], ser alterada; antes adquire estabilidade, deixando de ser lícito a parte vencida provocar a sua alteração mediante o uso dos recursos ordinários. E sendo de caso julgado material, relativo ao mérito da causa, que falamos, a estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo, e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo.
Por regra, o caso julgado forma-se sobre a decisão, a decisão relativa ao objeto da ação, e não sobre os motivos ou fundamentos da decisão (teoria limitativa). Em princípio, estes não são mais do que elementos interpretativos e definidores do pensamento do julgador e do alcance da parte dispositiva da decisão. Para além disso, o problema do caso julgado sobre os motivos só se coloca quanto a pontos que poderiam ser objeto de processo autónomo, no qual sobre eles se formaria o caso julgado nos termos normais[16] e nas situações em que a motivação considera questões que constituem um antecedente lógico e indispensável da decisão.
De outro passo, importa ainda referir que a sentença enquanto documento, com um conteúdo semântico e uma carga jurídica, deve ter uma leitura que exprima a sua coerência, tanto descritiva, como decisória, a qual se manifesta na correspondência e conexão entre uma e outra, não só a nível do texto, mas também da sua racionalidade (a). Por outro lado, a interpretação de uma sentença não se deve ficar pela mesma (documento isolado), mas atender ao seu contexto (documento integrado), atendendo-se à sua génese (i), iter (ii), epílogo (iii) e ulteriores desenvolvimentos (iv), de modo a atribuir-se um significado jurídico ao que foi sentenciado (b), valendo também ela como sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (art.ºs 295º e 236º, nº 1, do Código Civil)[17].
Pois bem.
A pretensão da ação foi julgada totalmente improcedente, sendo que o respetivo pedido nunca passou pelo reconhecimento de qualquer direito de habitar a fração, fosse com base na existência de um direito de uso e habitação ou na existência de um qualquer direito obrigacional assente no só agora invocado contrato de comodato.
Mais do que o reconhecimento de qualquer direito aos autores na citada ação comum, negou-se o direito da R. reconvinte à restituição da fração até à partilha, salvaguardando-se a possibilidade de utilização da casa pelos ali demandantes, apenas por não se justificar a sua entrega material atual à cabeça-de-casal para efeito de administração da herança. Apenas se preveniu o abuso de direito que resultaria dessa entrega anterior à partilha, por desproporcionalidade do efeito prejuízo para os AA. versus benefício para a herança indivisa.
Assim tendo sido, não vemos como entender que no acórdão de 4.2.2019, a Relação do Porto, ao arrepio do fundamento e do pedido da ação, tivesse considerado a existência de um contrato de comodato a favor dos AA. Se assim não o considerou, nem tal questão se inseria na respetiva causa de pedir, antes fazendo assentar a possibilidade da habitação da casa pelo recorrente e mulher em função de uma desnecessidade atual de entrega para efeito de administração pela cabeça-de-casal antes da partilha, manifestamente não tratou a situação, especialmente a negação da restituição do bem, como um caso de contrato de comodato a cumprir, sendo-nos vedado absolutamente fazê-lo agora.
Por conseguinte, da improcedência parcial do pedido reconvencional não decorre o reconhecimento de qualquer direito cujo reconhecimento tivesse sido submetido a apreciação na ação, seja o direito de uso e habitação, seja qualquer direito emergente de contrato de comodato.
Improcede também esta questão da apelação.
As decisões recorridas merecem inteira confirmação.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam-se as duas decisões impugnadas ao abrigo do despacho recorrido, proferido no dia 25 de janeiro de 2021.

Custas da apelação pelos apelantes por terem decaído no recurso (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Porto, 7 de outubro de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Partilhas Judiciais, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1991, pág. 26.
[2] Na redação introduzida pela Lei nº 23/2013, de 5 de março, a mais recente da norma.
[3] Partilhas Judiciais, Almedina, 4ª edição, 1991, vol. III, pág.s 11 e seg.s.
[4] Ob. cit., pág. 19.
[5] Neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 23.3.2017, proc. nº 745-13.5TJLSB-A.L1-6, in www.dgsi.pt.
[6] Sustentando esta visão da jurisprudência, citam-se ali os acórdãos do STJ de 28.6.1994; de 9.3.1998 e de 3 de Fevereiro de 1999, todos sumariados in www.dgsi.pt, e da Relação de Lisboa: v.g. acórdãos de 10 de Dezembro de 2009 – 1775/06.6YXLSB-E.L1.1. [“A má administração tem de se deduzir de factos que inequivocamente a revelem, captadas através de prova suficiente para se poder ajuizar da conduta do cabeça-de-casal”]; e de 23 de Março de 2014 – 1318/11.2YXLSB.L1.7.
[7] Acórdão da Relação de Guimarães de 5.3.2020, in www.dgsi.pt.
[8] Proc. nº 62/18.4YRCBR, in www.dgsi.pt.
[9] Acórdãos da Relação de Lisboa de 10 de dezembro de 2009, proc. nº 1775/06.6YXLSB-E.L1.1 de 23 de março de 2014, proc. nº 1318/11.2YXLSB.L1.7, in www.dgsi.pt.
[10] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anot., 2ª edição, vol. II, pág. 637. No mesmo sentido, vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2009, proc. 238/06.7TTBGR.S1, de 09.12.2010, proc. 838/06.5TTMTS.P1.S1, de 19.04.2012, proc. 30/80.4TTLSB.L1.S1 e de 22.05.2012, proc. 5504/09.7TVLSB.L1.S1, todos in www.dgsi.pt.
[11] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 406. No mesmo sentido, vide Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2009, 2ª edição, páginas 525 e 526.
[12] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 1950, página 209.
[13] Citado na nota que antecede.
[14] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[15] Poderá ser modificada através de recurso extraordinário, mas dele não temos na falta de norma especial interpretação das sentenças que cuidar aqui.
[16] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1982, vol. III, pág.s 392 e 398.
[17] Cf. acórdão desta Relação do Porto proferido no proc. 2250/17.1T8STS-B.P1, em que foi relator o Ex.mo Desembargador J. Correia Gomes e adjunto o aqui relato, citando Ac. STJ de 22/mar/2007 (Cons. Alves Velho), 08/jun./2010 (Cons. Urbano Dias), 03/fev./2011 (Cons. Lopes do Rego), 26/abr./2012 (Cons. Maria dos Prazeres Beleza); Ac. TRP de 14/mar./1995 (Des. Araújo de Barros), 14/jan./2013 (Des. Luís Lameiras), 26/set./2013 (Des. José Amaral), todos em www.dgsi.pt.