Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
214/04.4TBLMG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DAS CONDIÇÕES GERAIS DA APÓLICE
Nº do Documento: RP20140709214/04.4TBLMG.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Área Temática: .
Sumário: Na reapreciação da prova feita em Juízo, é inequívoco que as Relações têm a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, enquanto garantia de um segundo grau de jurisdição, configurando, efectivamente, um novo julgamento.
As condições gerais da apólice de contrato celebrado, atinente a acidente ocorrido antes da entrada em vigor do DL 72/2008 de 16 de Abril, devem ser interpretadas de acordo com o regime geral dimanado do direito substantivo civil (artºs 236º a 239º do Código Civil) com as especificidades decorrentes do DL 446/85 de 15 de Outubro e DL 176/95 de 26 d Julho, que aludem às regras da transparência para a actividade seguradora, sem deixarmos de anotar que o sentido de qualquer cláusula não pode, nem deve, ser apreendida de forma isolada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 214/04.4TBMLG.P1
Relator - Leonel Serôdio ( 361)
Adjuntos - Amaral Ferreira
- Deolinda Varão


Acordam no Tribunal da Relação do Porto



HERANÇA DE B……, representada pelos seus herdeiros C….., D….. E E…., instauraram a presente acção declarativa com processo ordinário, contra F…., Lda. e G….., S.A. incorporada na H….. SA, pedindo a condenação das R.R. a pagar-lhe “a quantia de € 60.602,26 correspondente ao custo global de reconstrução de parte de uma azenha destruída por efeito do acidente descrito na petição, assim como a indemnizarem a A. pelo custo das obras adequadas à consolidação da parte da mesma construção urbana que não ruiu, mas que foi afectada na sua segurança e ainda pelos prejuízos correspondentes à perda de rendimentos inerentes à impossibilidade de laboração da azenha, tanto no fabrico do azeite das suas propriedades, como de outros lavradores, ambas essas indemnizações dos montantes que resultarem de liquidação em execução de sentença, com as demais consequências legais.”

Alega, em síntese, que contratou com a 1ª Ré a realização de trabalhos numa quinta dela e que a máquina industrial que os realizava ficou enterrada e que os funcionários da 1ª Ré para retirarem a máquina procederam as escavações provocando danos numa azenha existente na referida quinta, o que a impediu de fabricar azeite. Mais alega que a 1ª Ré transferiu para a 2ª Ré a sua responsabilidade por danos causados pela referida máquina.

A Ré Seguradora contestou, invocando a existência de franquia a cargo da Ré F...., Lda. e ainda que o acidente dos autos ocorreu quando a máquina circulava por si própria no caminho municipal, o que exclui o dever de indemnizar com base no seguro e impugnou o alegado pela A, quanto aos danos. Concluiu pela improcedência da acção.

A Ré F...., Lda. contestou, arguindo a sua ilegitimidade e impugnou a matéria de facto alegada pela A. Concluiu pela improcedência da acção.

No saneador foi julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva invocada pela 1.ª Ré e elaborou-se a base instrutória.
A A. desistiu do pedido relativamente á Ré F...., Lda, desistência homologada por sentença de fls. 653.

O processo prosseguiu os seus termos, com atraso provocado principalmente com a renúncia do mandato por parte do Sr. Advogado da 1ª Ré e a dificuldade de notificação dessa renúncia e depois, de finalmente, se ter realizado a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré H.... -Companhia de Seguros, S.A. do pedido.

A A apelou e terminou a sua alegação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
«1. Mesmo com base na matéria de facto dada como provada, a acção devia ter sido julgada parcialmente procedente, uma vez que dessa factualidade não se extrai que o acidente em discussão tenha acontecido quando a máquina circulava na via pública.
2. Igual implicação devia considerar-se resultar do facto de não se ter provado ter o mesmo acidente acontecido "em áreas adjacente do sítio habitual de laboração".
3. Para o caso de assim não se entender e não ser alterada a decisão da matéria de facto conforme ora propugnado, deverá ordenar-se a repetição do julgamento para resposta a mais duas questões de natureza factual, quais sejam:
Saber se quando aconteceu o facto (dado como provado) objecto do quesito 3 da B.I. a máquina entrou imediatamente em terreno do prédio da A. e se as escavações referidas nos quesitos 9 e 10 da B.I. ocorreram em terreno do prédio da A.
4. Com base numa análise e valoração mais correcta do depoimento da testemunha da A., I….., deve alterar-se a decisão da matéria de facto no tocante às respostas dadas aos quesitos 7, 9 e 10.
O primeiro com o acrescento de que a máquina ficou soterrada em terreno do prédio da A., o segundo com a resposta apenas de "provado" e o terceiro com o acrescento de que as escavações nele referidas foram feitas em terreno do prédio da A.
5. Entendemos que essa alteração se justifica plenamente com base no depoimento da referida testemunha, uma vez que, relativamente às correspondentes questões de facto, para além de não ter sido posta em causa a sua idoneidade probatória, esse mesmo depoimento se mostra claro, coerente e prestado com total segurança e à -vontade e ainda por se basear na mais sólida razão de ciência que não foi minimamente abalada ou posta em causa, nem ter sido produzida qualquer prova em sentido contrário ou divergente.
6. Com a matéria de facto assim alterada, necessariamente que a acção deverá ser julgada parcialmente procedente, na medida das consequências danosas constantes dos pontos 16, 21 e 22 da "Fundamentação de Facto" da sentença recorrida.
7. Assim não se tendo entendido e decidido, pensamos não ter sido correctamente interpretada e aplicada ao caso a cláusula de exclusão constante do nº3 do art. 2º do contrato de seguro, assim como incorrectamente analisada e valorada a prova resultante do depoimento da única testemunha presencial e, em consequência, violado o art. 483º do C. Civil, pelo que
No provimento do presente recurso, deve revogar-se a sentença recorrida e, em sua substituição ser proferida outra que julgue a acção parcialmente procedente nos termos supra indicados»

A Ré contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

Factos julgados provados na 1ª instância:

1- J….., K….. e L….. declararam, por escritura pública, no dia 11 de Agosto de 1999, que no dia 17 de Julho de 1999, na freguesia de Paranhos, cidade do Porto, faleceu B….. casado com C….. em primeiras núpcias de ambos e no regime de comunhão geral, natural da freguesia de Mafamude, concelho de Vila Nova de Gaia, o qual não deixou testamento nem qualquer outra disposição de bens por morte, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros legitimários a mulher e dois filhos, a saber, respectivamente, C….., D….. e E….., não existindo outras pessoas que, segundo a lei, prefiram aos indicados herdeiros ou que com eles concorram á sucessão aberta por óbito do referido B….. (cfr. al. A) dos Factos Assentes).
2- A 1ª Ré tem por objecto a execução de obras de engenharia civil, obras públicas e aluguer de equipamentos (cfr. al. B) dos Factos Assentes).
3 - No dia 1 de Abril de 2001, na freguesia de Cambres, deste concelho e comarca de Lamego, ocorreu um acidente com uma máquina giratória, com a marca “Benati”, modelo 3.3 BHS, pertença da primeira Ré (cfr. al. C) dos Factos Assentes).
4 - À data do acidente referido em 3 a responsabilidade civil emergente de acidente com a utilização de máquinas e equipamentos necessários para ou relativos à execução de construções e montagens da 1.ª Ré encontrava-se transferida para a 2.ª Ré, mediante acordo de seguro titulado pela apólice n.º 2-1-98-010140/10 (cfr. al. D) dos Factos Assentes).
5 - Mediante o acordo de seguro referido em 4. e quando do facto relatado em 3., a responsabilidade civil emergente de acidente com a utilização da aludida máquina giratória encontrava-se transferida para a 2.ª Ré (cfr. al. D’) dos Factos Assentes).
6 - Nos termos do referido acordo de seguro atinente a “máquinas casco”, a 2.ª Ré assumiu a responsabilidade pelas indemnizações que, em conformidade com a legislação em vigor, sejam exigidas à 1ªRé, a titulo de reparação civil extracontratual, em consequência de danos resultantes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros em virtude de acidente enquanto a apólice estiver em vigor, constando do artigo 3.º do mencionado acordo que não são indemnizáveis perdas ou danos causados a terceiros quando os veículos seguros circulem na via publica, em áreas adjacentes do sitio habitual de laboração, tudo como flui do documento de fls. 28 a 39, cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos (cfr. al. E) dos Factos Assentes).
7 - A apólice referida em 4. previa uma cobertura adicional de responsabilidade civil perante terceiros até ao valor de Esc. 250.000.000$00 (€ 124.699,47), bem como uma franquia a cargo da 1ª Ré igual a 10% dos prejuízos indemnizáveis, sendo franquia mínima aplicável a de Esc. 50.000$00 (cfr. al. F) dos Factos Assentes).
8 - A 1ª Ré e os A.A. acordaram que a primeira efectuaria para os segundos trabalhos consistentes numa surriba em área de cultivo numa quinta sita em …., Lamego, designada por “M….” (cfr. artigo 1.º da B.I.).
9 - Em cumprimento do acordo referido em 8., a 1.ª Ré, em 1 de Abril de 2001, fez deslocar para a referida Quinta a máquina aludida em 3. (cfr. artigo 2.º da B.I.).
10 - …A qual em andamento veio a escorregar para o lado direito atento o sentido em que seguia (cfr. artigo 3.º da B.I.).
11- Os trabalhadores da 1ª Ré resolveram retirar a máquina aludida em 3. com o auxilio de outra máquina (cfr. artigo 6.º da B.I.).
12- A máquina referida em 3. ficou soterrada, dela apenas se vendo o respectivo braço (cfr. artigo 7.º da B.I.).
13 - A máquina ficou soterrada em virtude de o piso ter cedido devido à fraca resistência do solo provocada pela água que nele existia (cfr. artigos 8.º e 26.º da B.I.).
14 - Com vista à retirada da máquina foi preciso escavar para a soltar da terra (cfr. artigo 9.º da B.I.).
15 - Foram atingidas as fundações de uma construção urbana, consubstanciada numa azenha de produção de azeite (cfr. artigos 10.º e 20.º da B.I.).
16 - O facto referido em 15. determinou a ruína da parte do alçado nascente dessa construção com a área aproximada de 60 m2. (cfr. artigo 11.º da B.I.).
17 -Essa construção era em blocos de betão maciços (cfr. artigo 12.º da B.I.).
18 - E tinha uma altura de cerca de 5 metros (cfr. artigo 13.º da B.I.).
19 - Sendo interiormente revestida a azulejo (cfr. artigo 14.º da B.I.).
20- E com o chão revestido a mosaico (cfr. artigo 15.º da B.I.).
21- A reconstrução da parte aludida em 16., incluindo o custo da reconstituição da instalação eléctrica, importa uma despesa global de € 12.000,00, acrescida de I.V.A. à taxa legal em vigor (cfr. artigos 16.º e 17.º da B.I.).
22- Em consequência do facto indicado em 16. a parte restante da aludida construção ficou afectada ao nível das fundações e telhados (cfr. artigo 18.º da B.I.).
23- O que exige obras de consolidação (cfr. artigo 19.º da B.I.).
24 - Os factos referidos em 10. ocorreram no arruamento público que, partindo da E.N. 222, permite o acesso a Sabugães e, passando ao largo do hotel Aquapura, liga novamente á EN 222 (cfr. artigo 24.º da B.I.).
25 - Na data indicada em 3. o arruamento indicado em 24. tinha 3 metros de largura, sendo em terra batida (cfr. artigo 25.º da B.I).
26 - A construção aludida em 15 encontrava-se, à data do “acidente”, encerrada (cfr. artigo 27.º da B.I.).
***
Fundamentação

A questão essencial a decidir é a de saber se os danos causados no prédio do A. estão ou não incluídos no âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado entre a 1ª Ré e a Ré Seguradora

Recurso da matéria de facto

Antes do mais importa fixar a factualidade a atender, dado que a Apelante, apesar de numa segunda linha de argumentação, também recorreu da decisão da matéria de facto, quanto às respostas aos arts 7º, 9º e 10º.

Por outro lado, na conclusão 3ª, ainda que de forma pouco clara pretende que se anule o julgamento para que se decidam as seguintes questões de facto:
Saber se quando aconteceu o facto (dado como provado) objecto do quesito 3 da B.I. a máquina entrou imediatamente em terreno do prédio da A. e se as escavações referidas nos quesitos 9 e 10 da B.I. ocorreram em terreno do prédio da A.

No entanto, constando do processo todos os elementos de prova produzida na 1ª instância, nos termos do art. 662º n.º 1 e n.º 2 al. c) do CPC a contrario, esta Relação, não pode, em princípio, anular a decisão da matéria de facto, deve antes se tal se justificar alterar essa decisão.
Assim sendo, considera-se também impugnada a resposta ao art. 3º da base instrutória.

Nestes artigos pergunta-se e obtiveram as respostas seguintes:

art. 3º - A qual (máquina referida em C) em andamento veio a escorregar para o lado direito atento o sentido em que seguia;
Provado.

art. 7º - Chegados ao local no dia seguinte verificaram que a máquina acidentada se encontrava soterrada, dela apenas se vendo o respectivo braço?

Provado que a máquina referida em C (máquina giratória, com a marca “Benati” Modelo 3.3, BHS, pertença da 1ª Ré) ficou soterrada, dela apenas se vendo o respectivo braço.
art. 9º -Com vista à retirada da máquina foi preciso escavar à volta para a soltar da terra?
Provado apenas que com vista à retirada da máquina foi preciso escavar para a soltar da terra.

art. 10º - Escavações essas que devido à sua profundidade e à proximidade de uma construção urbana, vieram a atingir as fundações dessa construção?
Provado que foram atingidas as fundações de uma construção urbana, consubstanciada numa azenha de produção de azeite (resposta que inclui também o quesitado no art. 20.º da B.I., com o seguinte teor. a construção urbana aludida em 10º era uma azenha de produção de azeite).

A Apelante pretende que com fundamento no depoimento de I….., engenheiro, que trabalha para ela há 12 anos se alterem as respostas aos referidos quesitos.
Assim, na resposta ao quesito 7º sustenta que se devia incluir a indicação que a máquina ficou soterrada em terreno do prédio da A. Ao quesito 9º defende que se devia responder simplesmente "provado", donde no seu entendimento resultaria dar-se como provado que as escavações foram efectuadas “à volta da máquina”. Na resposta ao quesito 10º defende que se devia ter acrescentado que as escavações nele referidas tinham sido feitas dentro do prédio da A.

Por outro lado, pretende que na resposta ao quesito 3ª se acrescente que quando aconteceu o facto nele dado como provado, a máquina entrou imediatamente em terreno do prédio da A.

Para enquadramento das questões de facto, suscitadas, importa ter presente que está definitivamente assente por não ter sido impugnado, nem estar em contradição com a factualidade impugnada, o seguinte:
A 1ª Ré e os A.A. acordaram que a primeira efectuaria para os segundos trabalhos consistentes numa surriba em área de cultivo numa quinta sita em …., Lamego, designada por “M…..”;
Em cumprimento desse acordo referido, a 1.ª Ré, em 1 de Abril de 2001, fez deslocar para a referida Quinta a aludida máquina giratória;
A qual em andamento veio a escorregar para o lado direito atento o sentido em que seguia;
Os trabalhadores da 1ª Ré resolveram retirar a aludida máquina e com o auxílio de outra máquina;
A máquina ficou soterrada em virtude de o piso ter cedido devido à fraca resistência do solo provocada pela água que nele existia.

Importa também salientar que no art. 5º da base instrutória, que reproduzia o alegado pela A e se questionava se o facto da máquina ter escorregado para o lado direito, atento o sentido em que seguia, tinha ocorrido dentro da “M....”, obteve resposta negativa. Por outro lado, foi dado como provada a versão da Ré, na resposta ao art. 24º da base instrutória, ou seja, que o referido em 3 (ter a máquina escorregado para o lado direito) ocorreu no arruamento público, que, partindo da E.N. 222, permite o acesso a Sabugães e, passando ao largo do hotel ….., liga novamente à E.N. 222.

Para dar como provado essa factualidade (resposta ao quesito 24º - n.º 24 dos factos provados dados da sentença) o Tribunal recorrido deu particular relevância à participação do sinistro efectuada à Ré em Junho de 2001, no qual a segurada declarou: “ Quando a máquina de deslocava no Caminho Municipal, o terreno afundou, obrigando a máquina a ficar soterrada. Com o deslizamento provocado pela cedência do terreno, a máquina embateu num edifício destruindo-o parcialmente” ( cf. fls. 565 e 566).
Como se constata na motivação da decisão da matéria de facto e, é consensual, esse arruamento público é contíguo à referida “ M....”.
A Apelante pretende agora que se julgue provado que a mesma ficou soterrada no interior do terreno dela/ A.

Como se constata da leitura das partes transcritas do depoimento da testemunha I….. este afirmou que a máquina se tinha soterrado no interior do prédio da A e não no arruamento, acabando por demonstrar insegurança e imprecisão no seu depoimento quanto a esta questão, como detalhadamente foi salientado na motivação da decisão da matéria de facto.
Assim e considerando ainda que este depoimento é contrariado pela referida participação, não pode com base nele, este Tribunal afastar a convicção formada pelo tribunal recorrido, no conjunto dos depoimentos, para dar como provado que a máquina ficou inicialmente soterrada no interior do prédio do A.

Contudo, está provado como consta da resposta ao quesito 3º ( n.º 10 dos factos provados) que a máquina que circulava no arruamento escorregou para o lado direito e, por outro lado, como se referiu, é consensual, que o caminho onde a máquina circulava é contíguo ao terreno do prédio da A, a denominada “ M....”.
Note-se que a testemunha I.... afirmou sem que isso fosse questionado que entre a azenha existente da referida quinta e o caminho distavam cerca de 2 m e meio. Por outro lado, da fotografia que consta dos autos a fls. 81 (parte de baixo), constata-se que a referida máquina está muito próxima do prédio da A e na de fls. 84 também se pode inferir que os trabalhos para libertar a máquina ocorrem junto ao prédio.
De resto, apenas tendo as escavações para desenterrar a máquina ocorrido junto ao prédio da A se justifica que tenha sido julgado provado na resposta ao art. 10º da base instrutória, que as suas fundações tenham sido atingidas.
Não há pois qualquer razão lógica para desvalorizar o depoimento da referida testemunha I...., quando este referiu que as escavações à volta da máquina decorreram no interior do prédio da A e se foram aproximando do edifício, de forma que o fez ruir.
De registar que a Ré na sua contra-alegação apesar de vincar que o “acidente” não ocorreu no interior da “M....”, refere que devido “ao facto do caminho ser a um nível superior ao do terreno, o que já foi tema de discussão em julgamento e, por isso, é que a máquina que se encontrava no caminho e resvalou para o lado direito, destruindo-o bem como parte da azenha” (cf. fls. 730), ou seja admite que a máquina resvalou para o prédio da A.
Também a testemunha da Ré, Eng. N…., que na altura trabalhava para a empresa que efectuou a peritagem do sinistro para a Ré, então G….., única das indicadas pela Ré que foi ano ao local do sinistro, cerca de 2 meses depois dele ter ocorrido, apesar de ter referido que a máquina ficou enterrada no caminho, admitiu que resvalou para o prédio do A e atingiu a azenha.
Por outro lado, também a participação do sinistro que mereceu particular relevância ao Tribunal recorrido, atrás transcrito referiu que a máquina deslizou e embateu no edifício.

Assim, mantêm-se as respostas aos arts. 7º e 9º, pois não se fez prova que a máquina tivesse ficado inicialmente soterrada no prédio do A e ser a alteração pretendida à resposta ao quesito 9º, um pormenor insignificante e irrelevante.
Contudo, para que a factualidade corresponda à realidade que foi possível apurar apesar do tempo decorrido, do que decorre dos depoimentos das duas testemunhas atrás referidas, da participação do sinistro, das fotografias e das regras da experiência, esclarece-se e acrescenta-se que referida máquina resvalou para a denominada “ M....”, passando a resposta ao quesito 3º - n.º 10 dos factos provados a ter a seguinte redacção:
A qual em andamento veio a escorregar para o lado direito atento o sentido em que seguia e depois resvalou para o prédio da A denominada “ M....:
Por outro lado, a resposta conjunta aos art. 10º e 20º - n.º 15 ( dos factos provados) a ter a seguinte redacção:
As escavações referidas em 14 ( resposta ao quesito 9º) ocorreram, pelo menos, parcialmente, no interior da M....” e foram atingidas as fundações de uma construção urbana, consubstanciada numa azenha de produção de azeite.

Recurso da matéria de direito

A questão essencial é a saber se a responsabilidade da Ré está ou não excluída pelo art. 3º n.º 2 das condições gerais da apólice.
Esta cláusula dispõe:
“As presentes coberturas são válidas quer as máquinas estejam em funcionamento, paradas, em montagem ou desmontagem no local, ou a deslocarem-se de um local para o outro, dentro da área de influência do sítio habitual de laboração, especificado nas condições particulares.
Não são, todavia, indemnizáveis perdas ou danos causados a terceiros quando os veículos seguros circulem na via pública, em áreas adjacentes do sítio habitual de laboração.”

Quanto à interpretação do clausulado do contrato de seguro em causa, vale, o regime geral do Código Civil (arts. 236.º a 239º) com as especificidades decorrentes dos arts. 7.º, 10.º e 11.º do DL. n.º 446/85, de 15.10, a que acresce o disposto nos arts. 8.º e 9.º do DL. n.º176/95, de 26.07, sobre regras de transparência para a actividade seguradora.
De referir que quando foi celebrado o contrato e também quando ocorreu o sinistro ainda não estava em vigor o DL n.º 72/2008, de 16.04, que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro.
O n.º 1 do artigo 236º do CC estipula: “ a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.”
Este artigo, consagra, na primeira parte, a denominada teoria da impressão do destinatário. Dele resulta que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante (cf. Antunes Varela e Pires de Lima, CC Anotado, vol I, pág. 222), ou seja, na interpretação dos negócios jurídicos prevalece o sentido objectivo que se obtenha do ponto de vista do declaratário concreto, supondo-o uma pessoa razoável (cf. Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 311 e 312).
O n.º 2 do citado artigo 236º, consagra o denominado princípio falsa demonstratio non nocet, ao estipular sempre que o declaratário conheça a vontade do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida, mas, em regra, nos contratos de seguro, verdadeiros contratos de adesão, a não ser quanto às condições particulares, é praticamente impossível determinar qual foi a vontade real concordante das partes, sendo certo que o tomador do seguro se limita a aderir as cláusulas pré-definidas pela seguradora.
Por isso, tem aplicação o art. 11º do DL 446/85, de 25/10 (com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL 220/95, de 31/08), que instituiu o Regime Geral das Cláusulas Contratuais Gerais - que estipula:
“ 1- As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real.
2 - Na dúvida prevalece o sentido mais favorável ao aderente".
Por outro lado, o art. 8º do DL n.º 176/95 estabelece: “ As condições especiais e especiais devem ser redigidas de modo claro e perfeitamente inteligível.”

Estes são em traços gerais os princípios que presidem à interpretação das cláusulas dos contratos de seguro.
Importa contudo salientar que o sentido da cláusula em causa não pode ser apreendido de forma isolada, deve sempre atender-se, ao conjunto das cláusulas e, desde logo, ao objecto do seguro.
Ora, o objecto do seguro, como consta do art. 1º das condições gerais da apólice e dado como expressamente assente na al. d) dos factos provados é a responsabilidade civil da tomadora do seguro emergente de acidente com “a utilização de máquinas e equipamentos necessários para ou relativos à execução de construções e montagens.”
A sociedade tomadora do seguro, que foi também inicialmente demandada, tem por objecto a execução de obras de engenharia civil, obras públicas e aluguer de equipamentos.
Ora, o sentido objectivo, da cláusula em causa, mesmo tomada isoladamente, para o tomador médio e razoável ou para o cidadão comum é que a seguradora apenas não responde por danos causados pelos veículos segurados quando estes circulem nas vias públicas, em áreas adjacentes do sítio habitual de laboração.
Esta exclusão é aceitável e não abusiva, se considerarmos que os veículos utilizados pelo construtor civil na execução das obras que circulam pelos próprios meios pelas vias públicas, devem estar a coberto de um normal e obrigatório de seguro de responsabilidade civil de veículos terrestres a motor, vulgarmente denominado seguro automóvel.
As máquinas abrangidas pelo contrato de seguro em causa, que o artigo preliminar das condições gerais da apólice, denomina “máquinas-cascos”, em regra, não circulam pelas vias públicas e, por isso, se justifica a exclusão da responsabilidade da seguradora quando ocorra um acidente na via pública com as mesmas, ou seja, quando as máquinas estejam a circular na via pública como qualquer outro veículo terrestre a motor.
Também para um cidadão médio, a interpretação de área adjacente ao sítio habitual de laboração, atento o adjectivo habitual, que tem como sinónimos -comum, frequente, usual, frequente, constante - tem de ser restringido ao local onde o empreiteiro tem as seus estaleiros, ou, o local onde as máquinas estão normalmente aparcadas e não o local onde está a ser executada determinada obra, que, como é inerente à própria actividade do construtor civil é temporária, na maioria dos casos de curta duração, até porque parte das máquinas apenas são utilizadas em determinadas fases das obras.
Discorda-se pois da interpretação do conceito de sítio habitual de laboração adiantado pela sentença recorrida de forma a abranger todos os locais próximos das obras onde a máquina era utilizada.
Assim e sendo os requisitos da referida cláusula de exclusão cumulativos, ou seja, acidente provocado por máquina em circulação na via pública e em área adjacente ao sitio habitual de laboração, este segundo requisito não está preenchido apenas por ter ocorrido junto do prédio onde a segurada ia executar a obra de escavação (surriba) contratada pela A.
Por outro lado, a interpretação de que os danos no prédio da A foram causados pela circulação da máquina da segurada na via pública, avançada pela Ré Seguradora e acolhida na sentença, não traduz o que decorre da factualidade provada, ou seja, a factualidade provada não permite sustentar que o sinistro em apreço pode ser enquadrado num acidente de circulação da referida máquina industrial.
Note-se que a testemunha indicada pela Ré, a referida N….. esclareceu que a máquina em causa tem cerca de 30 toneladas e admitiu que não percorreu qualquer distância relevante antes de ter ficado enterrada no caminho, tendo sido descarregada alguns metros atrás.
Apesar de no momento inicial do sinistro a máquina abrangida pelo seguro em causa, propriedade da tomadora do seguro, ainda não se encontrar na sua função especifica, ou seja, a proceder a escavações no terreno do prédio da A, estava num caminho contíguo ao prédio e para ele aceder e, por isso, não se pode sustentar que circulava por uma via pública, como qualquer outro veículo terrestre a motor, enquanto veículo circulante e que o sinistro tenha sido causado pelo risco de circulação inerente a um veículo circulante.
De salientar, que como consta da sentença proferida no processo n.º 32/04.0TBMLG, intentada pela sociedade F.... Lda, aqui 1ª Ré contra a G…., aqui 2ª Ré, cuja certidão consta de fls. 539 a 548 dos autos, e que tem como causa de pedir também o acidente em causa nos presentes autos, a referida máquina giratória não se deslocou para as proximidades do prédio da A pelos seus próprios meios, antes foi para ali transportada por um camião porta máquinas (cf. al. m dos factos provados a fls. 542), factualidade que se pode dar por adquirida por constar de documento autêntico junto aos autos pela Ré Seguradora.
Atenta a factualidade apurada não pode considerar-se que a máquina industrial em causa quando ocorreu o sinistro estivesse em circulação numa via pública, dado que tinha sido transportada para próximo do local por um veículo adequado para esse efeito e tinha apenas decorrido uma curta distância, para aceder ao prédio onde ia proceder aos trabalhos.
De referir ainda que não há dúvida que se verifica o nexo de causalidade entre a utilização da máquina industrial segurada e os danos causados no prédio da A, pois os mesmos não teriam ocorrido se a máquina industrial não estivesse a ser utilizada no trabalho contratado, admitindo mesmo as Rés que máquina atingiu a azenha e também é pacífico que uma máquina industrial com aquelas características pode sempre em abstracto causar aquele tipo de danos, quando trabalha próximo de uma construção, sendo certo que o nexo de causalidade não é afastado por terem ocorrido outras causas, no caso as escavações para desenterrar a máquina.
De resto, o objecto do contrato de seguro, não se limita às máquinas em si mas à utilização delas pelo tomador do seguro nas obras que executa e os trabalhos para desenterrar a máquina estão englobados nessa utilização coberta pela apólice em causa.
Por outro lado, como atrás se referiu, não se pode interpretar como “sítio habitual de laboração” todos os locais onde a máquina realiza os seus funções específicas nas obras que o tomador do seguro realiza.
Assim sendo, decidimos que o sinistro em causa não está excluído pelo referido art. 2º n.º 3º das condições gerais da apólice.
Por isso, a Ré seguradora tem de indemnizar a A pelos danos apurados, deduzidas de uma franquia de 10%, como consta do al. F) dos factos assentes e ainda documento de fls. 27 que titula as condições particulares e o art. 21º das condições gerais ( cf. fls. 23. v).
Quanto aos danos no prédio da A, ficou provado que as escavações determinaram a ruína da parte do alçado nascente da azenha, numa área de aproximada de 60 m2 e que a reconstrução dessa parte, incluindo o custo da reconstituição da instalação eléctrica, importa uma despesa global de € 12.000,00, acrescida de I.V.A. (n.º 21 dos factos provados na sentença - respostas aos arts. 16º e 17º da BI) .

A A na petição pedia também a condenação da Ré no montante a apurar em incidente de liquidação, correspondente ao custo das obras de consolidação da parte da construção que não ruiu, pedido que reafirma no recurso.
Ora, para além da factualidade atrás referida, a A logrou ainda provar que em consequência do facto indicado em 16. a parte restante da aludida construção ficou afectada ao nível das fundações e telhados, o que exige obras de consolidação (nºs 22 e 23 da sentença - respostas aos arts 18º e 19.º da B.I.).
Ao contrário do que sustenta a Ré as obras a que se reportam as respostas aos artigos 16º e 17º no valor de € 12 000 e IVA, são as obras de reconstrução e não englobam as obras de consolidação a que se reportam as respostas aos art. 18ºe 19º da BI.
Nada justificava respostas distintas às obras de consolidação se as mesmas estivessem englobadas nas obras de reconstrução que os Srs. Peritos avaliaram em € 12 000 + IVA.
Se a Ré entendia que tinha havido erro na decisão da resposta aos citados artigos 17º e 18º devia ter ampliado o objecto do recurso.
Assim e dado ter ficado provado serem necessárias obras de consolidação e não se tendo apurado o montante necessário para a sua execução, o A tem direito no montante que se vier a ser liquidado, nos termos do artigos 564º n.º 2, 2ª parte do CC e 609 n.º 2 do CPC, deduzida a franquia de 10%, para além da quantia já liquidada no montante de € 13 284,00 [€12,000 x 23% (IVA à taxa normal em vigor actualmente) - 10% franquia] e até ao limite do contrato de seguro.

Decisão

Julga-se a apelação procedente, revoga-se a sentença recorrida e condena-se a Ré Seguradora a pagar à A a quantia € 13 284,00 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e ainda a quantia que se vier a liquidar em incidente ulterior, necessária para a realização de obras de consolidação referidas nos pontos nºs 22 e 23 dos factos provados.
Custas nesta instância pela Ré/Apelada, na 1ª instância pela A e Ré na proporção do decaimento.[1]

Porto, 09.07.2013
Leonel Serôdio
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
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[1] Atendendo ao valor de € 60.602,26 o decaimento da A é de € 47 318,26 e o da Ré Seguradora de 13 284,00