Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
351/20.8GAPRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ELEMENTO TÍPICO DO CRIME
QUEIXA
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Nº do Documento: RP20230118351/20.8GAPRD.P1
Data do Acordão: 01/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A rejeição da acusação, por os factos nela descritos não constituírem crime, nos termos do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, só poderá ocorrer se tal se revelar como manifesto, claro e inequívoco, o que não se verificará se houver divergências ao nível da jurisprudência ou da doutrina sobre a questão.
II – Mesmo que tais factos possam não preencher os elementos típicos do crime imputado na acusação (violência doméstica), mas podendo integrar outros ilícitos menores (vg. ameaças e injúrias), não deverá ser rejeitada a acusação nos termos das referidas normas legais, pois que eventual diferente integração jurídica só poderá ser efectuada em audiência de julgamento, depois de produzidas as provas, nos termos do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do mesmo Código. (cfr. Acórdão do STJ n.º 11/2013, de 12-06, publicado no DR-I de 19-07-2013).
III – A eventual inexistência de queixa e/ou de acusação particular por parte do ofendido também não deverá constituir fundamento para a rejeição da acusação com aquele fundamento, quanto a esses outros ilícitos, questão que apenas em momento ulterior deverá ser apreciada, se também quanto a ela se verificar divergência de entendimento jurisprudencial ou doutrinal, por forma a salvaguardar todas as plausíveis soluções de direito.

[Sumário elaborado pelo Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 351/20.8GAPRD.P1

Sumário:
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Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
Nos presentes autos de Processo Comum Singular n.º 351/20.8GAPRD, do Juízo Local Criminal de Paredes – Juiz 2, foi proferido despacho, em 07-09-2022, pelo qual se decidiu rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público, com imputação ao arguido AA de um crime de violência doméstica, por ser considerada manifestamente infundada, dado os factos aí descritos não preencherem os elementos típicos daquele crime (ref.ª 89647789).
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O Ministério Público interpôs recurso dessa decisão, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
I - O presente recurso versa a questão de saber se a acusação deduzida é, ou não, manifestamente infundada e impugna o douto despacho jurisdicional que decidiu rejeitar a acusação por a factualidade não constituir crime, com a invocação da carência da narração dos factos integrantes do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), do C.P., sustentando-se no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do CPP.
II - Na verdade, a actividade de saneamento do processo e as faculdades concedidas ao juiz no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, são consagrações do princípio do acusatório, com vista a evitar a submissão do arguido a julgamento quando manifestamente os factos descritos na acusação não integrem a prática de facto tipificado por lei como crime.
III - Tal análise deve resultar do simples exame da factualidade descrita e exposta na acusação, sem necessidade de recorrer a outros elementos já constantes do processo, anteriores ou posteriores à dedução da acusação, pois se a inexistência de crime não resultar inequivocamente da análise do teor da acusação só na sentença, após a realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz pode decidir da existência ou não de um crime, uma vez que a questão tem natureza substantiva.
IV - A rejeição de acusação ao abrigo da alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, tem como pressuposto que da simples leitura dos factos nela descritos se possa concluir que não constituam crime.
V – A acusação pública em causa nos presentes autos possui todos os elementos objectivos do crime, designadamente que, desde 2016, após ser libertado do cumprimento de prisão, o arguido passou a viver com a mãe, actualmente com 87 anos de idade, a quem diariamente ofendia, dizendo que era “uma puta, uma vaca, uma badalhoca, que fosse mamar piça”, a quem exigia dinheiro diariamente, intimidando-a, com expressões como “boto lume à casa”.
VI - A rejeição com base nos fundamentos aduzidos realizou um verdadeiro julgamento de mérito, quando não foi essa a amplitude que o legislador quis dar ao artigo 311.º do Código de Processo Penal.
VII - Desta forma, o douto despacho recorrido deverá ser mandado revogar e substituir por outro que considere a acusação pública foi deduzida nos correctos termos impostos pelo artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a receba e mande dar cumprimento ao disposto no artigo 311.º-A do CPP.
V. Ex.as, como sempre, farão JUSTIÇA!” (ref.ª 8253772).[1]
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Tal recurso foi regularmente admitido por despacho de 14-10-2022, notificado aos sujeitos processuais, não tendo sido apresentada resposta, designadamente por parte do arguido AA (ref.ª 90035925).
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Recebidos os autos neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nele enunciando o que está em causa nos autos e transcrevendo as conclusões apresentadas pelo recorrente, concluindo que o recurso se encontra sustentado de facto e de direito, merecendo a apreciação deste Tribunal, pelo que apõe o competente visto (ref.ª 16423266).
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Foi proferido despacho liminar e depois colhidos os vistos, com decisão em conferência.
II
As conclusões enunciadas, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).
Não havendo outras de conhecimento oficioso, cumpre atentar nas questões colocadas pelo recorrente à apreciação deste Tribunal, sendo que, para melhor percepção e análise das mesmas, importa ter presente a acusação deduzida nos autos, a qual é do seguinte teor (no que agora releva):
O Ministério Público acusa, para julgamento em processo comum e perante o Tribunal Singular:
AA, natural de ..., nascido a .../.../1970, solteiro, filho de BB e de CC, titular do C. C. n.º ... e residente na Rua ..., ..., ..., Paredes,
Porquanto há indícios suficientes de ter praticado os seguintes factos:
1. O arguido AA, nascido em .../.../1970, após ter cumprido uma pena de prisão efetiva e não ter outro lugar para residir, desde 2016, passou a coabitar com a ofendida CC, sua mãe, em habitação situada na Rua ..., ..., 1.º andar, ..., Paredes.
2. A ofendida CC, nascida a .../.../1935, à data dos factos que infra se vão descrever, contava já com 85 anos.
3. O arguido não tem quaisquer fontes de rendimentos para fazer face ao seu vício de consumo de álcool, pelo que, desde aquela data, que o arguido exigiu ser sustentado pela ofendida, sendo que a ofendida apenas aufere cerca de €400,00, com o qual tem que fazer face a todas as despesas.
4. Nas alturas em que o arguido fica descompensado, torna-se agressivo, capaz de gerar comportamentos imprevisíveis, agredindo verbalmente a ofendida.
5. Ameaçando que qualquer dia bota lume à casa.
6. Sendo usual, no domicílio comum, o arguido adoptar uma postura intimidatória, fazendo peito à ofendida, quando esta o decide contrariar ou chamar à atenção, face à sua diminuída condição física.
7. Apelidando-a de puta, vaca, badalhoca, dizendo-lhe para ir mamar na piça.
8. Com recurso à intimidação e violência psicológica, o arguido, diariamente, no interior do domicílio comum, exige à ofendida que esta lhe entregue dinheiro para fazer face ao seu vício e se a mesma recusa a lhe dar dinheiro, nessas alturas, o arguido torna-se violento, partindo objetos que se encontram no interior da habitação, diminuindo a sua capacidade de defesa.
9. Ademais, nas alturas em que o arguido se encontra notoriamente embriagado, o arguido impede a ofendida de descansar, já que permanece no quarto da ofendida a falar alto e a fazer barulho.
10. Pelos factos que se tem vindo a descrever, foram mesmo os autos suspensos provisoriamente, por despacho datado de 04.12.2020, pelo período de 24 meses.
11. Acontece que o arguido, desbaratando esta oportunidade, nunca deixou de adotar comportamentos agressivos contra a sua progenitora, motivado por um consumo regular de álcool.
12. Continuando a exigir, diariamente, à sua progenitora, que esta lhe entregue quantias monetárias para aquisição de álcool, fazendo crer à ofendida que se esta recusar, que a vai agredir, através de uma postura intimidatória, pelo que a mesma acede, entregando-lhe diariamente quantias de valor não concretamente apurado.
13. Quando a ofendida recusa, o arguido apelida-a de puta.
14. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente com o propósito, concretizado, de molestar física e psicologicamente a ofendida, sua mãe, destratando-a na sua honra, consideração e dignidade pessoal, tendo-a submetido a um tratamento desrespeitoso, e colocando-a numa situação de dependência física e emocional, não obstante bem saber que por ser seu filho, impendia sobre si um dever especial de respeito para com aquela.
15. Mais sabia que as expressões que dirigia à ofendida, no tom, e circunstâncias em que foram proferidas eram adequadas a causar temor, receio e intranquilidade na ofendida, e que dessa forma, causava na mesma perturbação na sua livre decisão e determinação e decisão.
16. O arguido atuou de forma reiterada e direcionou a sua vontade para aqueles propósitos que quis e conseguiu, não se coibindo de adotar aqueles comportamentos no interior da residência da ofendida.
17. Mais abusando da sua ascendência física e psicológica face à ofendida, aproveitando-se da incapacidade da sua progenitora de se defender e da sua fragilidade, pessoa particularmente indefesa, que, face ao que se tem vindo a expor, se encontra numa situação de especial fragilidade, bem sabendo que dessa forma diminuía a capacidade de resistência e de defesa da ofendida às agressões de que foi alvo.
18. Aliás, ao privar a ofendida, sua progenitora, do seu descanso, na sua casa, que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, sabia o arguido que atentava contra a dignidade humana daquela, causando-lhe sofrimento psíquico, o que quis e conseguiu.
19. Tudo com o objetivo de manter a ofendida sob domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acabou por viver submergida pela ansiedade e pelo medo.
20. Com este tipo de comportamentos, o arguido mantinha a sua mãe, ofendida, sempre com medo daquilo que o mesmo pudesse fazer contra si e/ou contra os seus bens.
21. Tinha perfeita noção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, não obstante não se coibiu de atuar nos termos supra descritos.
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Com a factualidade descrita, o arguido incorreu, deste modo, em autoria material, na prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do C. P. e na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, prevista no n.º 4 do artigo 152.º e ainda na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, com o afastamento da residência desta e seu local de trabalho e fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância (n.º 5). (…)” (ref.ª 89328204).
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E importa, também, ter presente o despacho recorrido, o qual é do seguinte teor:
I - Da falta de preenchimento dos elementos do tipo de violência doméstica:
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido, pelo art. 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), ambos do Código Penal.
Porquanto, considera indiciado que o arguido atuou no citado contexto situacional contra a ofendida, sua mãe, com recurso à intimidação e violência psicológica, desde o ano de 2016, diariamente, exigindo-lhe dinheiro para fazer face aos seus vícios, como vinho. E porque a mesma recusa a dar-lhe dinheiro, nessas alturas, o arguido torna-se violento, diminuindo a sua capacidade de defesa. Mais se refere que à data dos factos a ofendida contava já com 85 anos, considerando-a como pessoa particularmente indefesa, perante as atitudes perpetradas pelo arguido.
Assim, relativamente ao elemento objectivo do tipo, descreveu os factos do seguinte modo (sublinhado nosso):
“1. O arguido AA, nascido em .../.../1970, após ter cumprido uma pena de prisão efetiva e não ter outro lugar para residir, desde 2016, passou a coabitar com a ofendida CC, sua mãe, em habitação situada na Rua ..., ..., 1.º andar, ..., Paredes.
2. A ofendida CC, nascida a .../.../1935, à data dos factos que infra se vão descrever, contava já com 85 anos.
3. O arguido não tem quaisquer fontes de rendimentos para fazer face ao seu vício de consumo de álcool, pelo que, desde aquela data, que o arguido exigiu ser sustentado pela ofendida, sendo que a ofendida apenas aufere cerca de €400,00, com o qual tem que fazer face a todas as despesas.
4. Nas alturas em que o arguido fica descompensado, torna-se agressivo, capaz de gerar comportamentos imprevisíveis, agredindo verbalmente a ofendida.
5. Ameaçando que qualquer dia bota lume à casa.
6. Sendo usual, no domicílio comum, o arguido adoptar uma postura intimidatória, fazendo peito à ofendida, quando esta o decide contrariar ou chamar à atenção, face à sua diminuída condição física.
7. Apelidando-a de puta, vaca, badalhoca, dizendo-lhe para ir mamar na piça.
8. Com recurso à intimidação e violência psicológica, o arguido, diariamente, no interior do domicílio comum, exige à ofendida que esta lhe entregue dinheiro para fazer face ao seu vício e se a mesma recusa a lhe dar dinheiro, nessas alturas, o arguido torna-se violento, partindo objetos que se encontram no interior da habitação, diminuindo a sua capacidade de defesa.
9. Ademais, nas alturas em que o arguido se encontra notoriamente embriagado, o arguido impede a ofendida de descansar, já que permanece no quarto da ofendida a falar alto e a fazer barulho.
10. Pelos factos que se tem vindo a descrever, foram mesmo os autos suspensos provisoriamente, por despacho datado de 04.12.2020, pelo período de 24 meses.
11. Acontece que, o arguido, desbaratando esta oportunidade, nunca deixou de adotar comportamentos agressivos contra a sua progenitora, motivado por um consumo regular de álcool.
12. Continuando a exigir, diariamente, à sua progenitora, que esta lhe entregue quantias monetárias para aquisição de álcool, fazendo crer à ofendida que se esta recusar, que a vai agredir, através de uma postura intimidatória, pelo que a mesma acede, entregando-lhe diariamente quantias de valor não concretamente apurado.
13. Quando a ofendida recusa, o arguido apelida-a de puta.”
Por fim, refere-se que o citado arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente com o propósito concretizado de molestar física e psicologicamente a ofendida, destratando-a na sua honra, consideração e dignidade pessoal, tendo-a submetido a um tratamento desrespeitoso, e colocando-a numa situação de dependência física e emocional, não obstante bem saber que por ser seu filho, impendia sobre si um dever especial de respeito para com aquela.
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Ora, a este respeito é consabido que a função da incriminação em causa é de prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho. Tendo a reforma do Código Penal efetuada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, introduzido importantes alterações ao regime até aí existente, passando a incriminar a par dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos. E, após a última revisão legislativa levada a cabo, esclareceu-se o que vinha sendo, precisamente, a maior querela interpretativa anteriormente suscitada, que consistia, precisamente, em saber se se exigia uma atuação reiterada do agente, repetindo sucessivamente condutas, alongando a violação típica no tempo, mesmo que por atuações diversas ou se bastava um único ato isolado, desde que a sua gravidade fosse tamanha que por si só, fosse adequado a atingir a dignidade do visado, isoladamente. E é precisamente neste último sentido que vai a atual previsão legislativa: basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa.
Todavia, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, mas sim, e apenas, que os atos atinentes, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciem em maus tratos, isto é, quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.
Ora, in casu, para além da conclusiva descrição factual contida nos pontos 4.º a 12.º da acusação, da mesma não se consegue depreender quantos episódios ocorreram, em que data e hora (se mais recentemente ou há já alguns anos), e as suas concretas circunstâncias, acabando por ter de concluir-se que a maioria dos factos descritos na acusação são vagos e conclusivos.
É que de relevo apenas se pode retirar que:
O arguido apelida a ofendida de “puta, vaca, badalhoca, dizendo-lhe para ir mamar na piça (parte do facto 7.); ameaçando que qualquer dia bota lume à casa (facto 5.)”, e que o arguido “exige à ofendida que esta lhe entregue dinheiro para fazer face ao seu vício e se a mesma recusa a dar-lhe dinheiro, nessas alturas, o arguido torna-se violento, partindo objetos que se encontram no interior da habitação”.
De resto, também relativamente a estes episódios, não sabemos a sua regularidade, nem os seus concretos contornos, quando ocorreram.
O mesmo ocorre com o facto 9., de onde resulta que “nas alturas em que o arguido se encontra notoriamente embriagado, o arguido impede a ofendida de descansar, já que permanece no quarto da ofendida a falar alto e a fazer barulho”, mas de onde não ressalta, nem consta da acusação, que com isso queira molestar ou amedrontar a ofendida, para que daí resulte preenchido o elemento objectivo do tipo, traduzindo-se, quando individualmente considerado, num facto até inócuo do ponto de vista criminal.
Assim, do libelo acusatório, somente se depreende a vaga ocorrência de alguns episódios, sem se perceber quantos, porque não estão especificados, nem enumerados (nem se pode consegue se ocorreram no mesmo dia), em que o arguido injuriou e ameaçou a ofendida, no citado contexto situacional.
Assim, excluída que se encontra a reiteração e/ou regularidade das condutas ofensivas, dir-se-á também que a gravidade subjacente ao evento descrito não atinge aquele patamar, ao nível do desvalor da ação e do resultado, capaz de fazer concluir por se estar perante um caso de maus tratos físicos e/ou psíquicos reveladores de uma conduta maltratante, onde pontificam sentimentos de crueldade, desprezo, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vitima.
Afigura-se-nos, portanto, que a indiciada conduta encontra enquadramento adequado nos tipos legais de ameaça e injúria, previstos e punidos, respetivamente, pelos arts. 153.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Nessa medida, impõe-se concluir pela inexistência de indícios suficientes do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito criminal imputado.
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II – Da falta de legitimidade do Ministério Público por falta de queixa:
O artigo 153.º, n.º 2, do Código Penal, expressamente estabelece que o procedimento criminal, pela prática do crime de ameaça, depende de queixa.
Trata-se de um crime semi-público sendo necessário que o ofendido dê conhecimento do facto ao Ministério Público – artigo 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
A diversa natureza dos crimes na nossa ordem penal – públicos, semi-públicos e particulares - é uma forma de o legislador regular e equilibrar interesses e bens jurídicos sem recorrer ao princípio da oportunidade.
O artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, estatui o seguinte: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”
E, como é sabido, “queixa” é a manifestação de vontade de quem de direito no sentido da instauração de procedimento criminal, com vista a perseguir e responsabilizar criminalmente o agente de um determinado facto criminoso.
Deste modo, tendo presente o tipo legal que nos ocupa – art. 153.º, n.º 2, do Código Penal – nos termos da acusação do Mº Pº, as ameaças foram dirigidas à ofendida CC, é esta que, em concreto, aqui se mostra especialmente protegida com a incriminação, nela radicando, por isso, a legitimidade para apresentar a correspondente queixa.
Descendo ao caso concreto, temos que a ofendida não apresentou queixa, tendo-se os autos iniciado com a notícia da prática de crime de violência doméstica pelo arguido, jamais tendo a mesma sequer manifestado desejar procedimento criminal contra o arguido, tanto quando prestou depoimento, conforme auto de inquirição de fls. 62 e 247/8, manifestando claramente não pretender procedimento criminal contra o arguido.
Constata-se, pois, que a queixa não foi apresentada contra o arguido no decurso do inquérito.
Tendo em consideração a natureza do crime em causa – semi-público – a apresentação de queixa constitui um pressuposto para a instauração do respectivo procedimento criminal, sem a qual o Ministério Público fica destituído de legitimidade para o prosseguimento do processo, tal como espelham os artigos 48.º e 49.º do Código de Processo Penal.
Assim, e uma vez que não foi apresentada queixa contra o arguido uma queixa, é legalmente inadmissível o procedimento por falta de legitimidade do Ministério Público (arts. 49º, n.º 1, e 50º, n.º 1, do Código de Processa Penal), razão por que sempre seria de determinar a absolvição do arguido, pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo art. 153.º, n.º 1, do Código Penal (sem necessidade de operar alteração da qualificação jurídica, atenta a absolvição do arguido, por razões de celeridade processual).
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III - Da falta de legitimidade do Ministério Público por falta de acusação particular:
O crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, depende de acusação particular nos termos do disposto no proémio do n.º 1, do artigo 188.º, do mesmo diploma.
É, portanto, um crime de natureza particular.
A diversa natureza dos crimes na nossa ordem penal – públicos, semi-públicos e particulares - é uma forma de o legislador regular e equilibrar interesses e bens jurídicos sem recorrer ao princípio da oportunidade.
Tratando-se, como se disse já, de um crime particular, é necessário que o ofendido se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular – artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Ora, no caso, só temos uma denúncia levada a cabo pelo irmão do arguido, DD, a fls. 4 dos auto; e os autos de inquirição da ofendida CC, como testemunha, de fls. 62 e 247/8, onde nem sequer manifesta que deseja procedimento criminal contra o arguido (datados de 07/07/202 e 28/06/2021).
Se bem que o auto de inquirição mencionado poderá ser tido por uma queixa (o que é discutível), importa considerar que não houve constituição de assistente pela ofendida, nem foi, naturalmente, deduzida acusação particular.
Assim, mesmo que no decorrer da audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 358.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal, seja comunicada ao arguido a eventual alteração da qualificação jurídica, passando a imputar-se ao arguido a prática de pelo menos um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, em detrimento do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo 152.º, n.º 1, alínea d), 2, 4 e 5, do Código Penal, pelo qual vinha acusado, não poderão os autos prosseguir.
Ou seja, o Ministério Público perde a legitimidade para prosseguir nos autos a partir do momento em que se cristaliza a alteração da qualificação jurídica relativamente ao arguido e o tribunal deixa de ter jurisdição para dirimir o conflito particular nesse mesmo momento.
Face a estas simples razões, cumprirá absolver o arguido da prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, atenta a inexistência de acusação particular e, consequente, ilegitimidade do Ministério Público para prosseguir a acção penal, tudo nos termos do disposto nos artigos 50.º do Código de Processo Penal e 117.º, 181.º e 188.º do Código Penal (sem necessidade de operar alteração da qualificação jurídica, atenta a absolvição do arguido, por razões de celeridade processual).
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IV – Da rejeição da acusação:
Ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, o juiz deve rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada.
Por sua vez, o n.º 3 da mesma disposição legal enumera as situações em que a acusação é manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituem crime.
A acusação considera-se manifestamente infundada, quando não contenha a narração dos factos, se não indicar as disposições legais aplicáveis, as provas que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime (311.º, n.º 3, do mesmo Código).
O processo penal português tem por força do art. 32.º, n.º 5, da CRP estrutura acusatória. Tal significa uma clara separação entre quem acusa (o MP ou o assistente) e quem julga.
Os princípios jurídico-constitucionais da autonomia do MP perante a magistratura judicial (arts. 202.º, 1 e 2, 219.º, 2 e 220.º, 1 CRP) e da sua competência para exercer a ação penal (art. 219.º, 1 da CRP) «resulta, como consequência inevitável, que a estrutura acusatória que o processo penal assume por imperativo constitucional se realiza por divisão de funções processuais entre o juiz ou tribunal, de um lado, e o MP, do outro, e não qualquer outra forma nomeadamente por divisão entre o juiz do julgamento e o juiz de instrução» (Figueiredo Dias, “Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal”, AA. VV., Jornadas de Direito Processual - O Novo Código de processo Penal, Coimbra Almedina, 1988, p. 3 e ss, especificamente p. 23).
Sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido, o legislador de 1998 – lei n.º 59/98, de 25.08 -, elencou os casos de rejeição por manifesta improcedência e definiu-os taxativamente no n.º 3, do art. 311º do CPP. Entre eles considera-se a acusação manifestamente infundada “quando não contenha a narração dos factos”.
E que factos são estes?
Dada a tendencial sobreposição entre o artigo 311.º e o artigo 283.º do CPP, a narração dos factos aparentemente deve obedecer à alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, do CPP.
A acusação cumpre três funções essenciais: i) uma função de promoção processual, introduz o facto em juízo, permitindo que um terceiro, independente e imparcial, decida o caso. Sem ela o juiz não pode conhecer e julgar, daí que a falta de acusação é causa de nulidade insanável – art. 119.º, b); ii) cumpre uma função informativa. O arguido fica a saber os factos que lhe são imputados, podendo preparar a sua defesa e exercer o contraditório; iii) em terceiro lugar, a acusação tem uma função delimitativa. O objeto do processo fica, em princípio fixado, devendo haver uma certa identidade entre a acusação e a sentença (Cf. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 1141 e autores aí citados, bem como o Ac. do STJ de 25.01.2007, Rel. Conselheiro Pereira Madeira).
Para tanto, a acusação tem de informar o arguido dos factos que lhe são imputados.
O facto, o acontecimento histórico, aquele «pedaço de vida» deve ser assim descrito do ponto de vista naturalístico, evitando conceitos conclusivos e qualificativos. Os juízos de valor e os conceitos de direito devem ser banidos do texto da acusação (Cf. Conde Correia, Questões práticas Relativas ao Arquivamento e à Acusação e á sua Impugnação, Porto, 2007, PUC, pág. 112).
Mostra-se necessário que a descrição nela feita evidencie de uma maneira precisa e imediatamente inteligível aquilo que é imputado ao arguido. (Cf. António Leones Dantas, “Os factos como matriz do objecto do processo”, RMP, 18, pág. 117).
Portanto, há uma certa unanimidade em considerar que «a acusação há-de ser concisa, clara e rigorosa» e conter uma mensagem clara e acessível a todos, não podendo ser tão reduzida que não contenha informação nenhuma, impossibilitando a defesa do arguido.
A narração há-de compreender os factos que sustentam a aplicação de uma pena (o seu quantum incluído) ou de uma medida de segurança ao arguido.
Para que a acusação seja válida «não basta fazer-se uma afirmação conclusiva e genérica, concretizando-se um ou dois factos, há que descrevê-los, sob pena de se violar claramente o direito de defesa do arguido consagrado no art. 32.º, da CRP.
Na «narração dos factos há que descrever o circunstancialismo de tempo, de modo e lugar capazes de caraterizar o crime (…) e não de forma conclusiva e genérica» (Cf. Eduardo Maia Costa, “Habeas Corpus: passado, presente, futuro”, Julgar, 29,2016, pág. 950).
Na tarefa de identificar aquilo que é importante, o tipo legal de crime em causa assume especial relevo. A indicação dos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime constitui o núcleo essencial da descrição dos factos imprescindíveis à validade da acusação. Se faltar algum deles, a conduta descrita não constitui crime e a acusação não pode ser recebida (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 1149 e 1150).
Refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da CEDH, UCE, 4.ª edição atualizada, pág. 817, citando o Ac. do TRC de 13.10.2010, CJ, XXXV, 4, 49): “O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.”
E dá exemplo de acusação manifestamente infundada por inexistência de crime, a acusação fundada em “factos conclusivos”, que omite os concretos factos ilícitos e apenas imputa factos vagos.
Importa referir que a análise da acusação se faz sem recurso a qualquer outro elemento externo, sendo com base no seu texto que se deve concluir ou não se os factos narrados pelo MP poderão levar à aplicação duma pena.
Como se refere no acórdão do TRE de 10/10/2006 (http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/6f12e77d8d15485180257de1005748eb?OpenDocument), a acusação destina-se «a fazer-se valer de forma autónoma em julgamento” embora não deixe de “ser uma peça provisória, a narração de “um pedaço de vida” a comprovar».
Sintetizando, da rápida leitura da acusação resulta que a maioria dos factos ali elencados se tratam de factos conclusivos e vagos, como supra já se referiu.
Relativamente àqueles dos quais se poderia retirar alguma consequência jurídico-penal, como vimos, a realização de julgamento traduzir-se-ia numa perda de tempo, já que os mesmos não se consubstanciam na prática do crime de violência doméstica pelo qual o arguido vem acusado.
Inútil seria, também, proceder à alteração da qualificação jurídica, já que relativamente ao eventual crime de ameaça, não existiu queixa pela ofendida, e quanto ao crime de injúria, não existiu queixa, nem acusação particular.
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Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correcção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, alínea d), considero a acusação pública manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma.” (ref.ª 89647789).
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Apreciando.
Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP).
Versando o presente recurso sobre matéria de direito, a lei impõe que, nestes casos, sejam indicadas, designadamente, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).
Para o caso releva, em face dos fundamentos do despacho recorrido, o disposto no n.º 2 do artigo 311.º do CPP, [2] o qual estabelece o seguinte:
Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;”
(…).
Por sua vez, o n.º 3 do mesmo preceito refere o seguinte:
Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
(…)
d) Se os factos não constituírem crime.”
Trata-se, na verdade, do primeiro despacho após o recebimento dos autos no tribunal, pelo qual se procede ao saneamento do processo, controlando-se a sua regularidade, com apreciação de eventuais nulidades, irregularidades ou outras questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer, por forma a que, se for o caso, prossiga para julgamento, com notificação do arguido para contestar e oportuna designação de data para a audiência (arts. 311.º-A a 313.º do CPP).
Como resulta daquela norma, o fundamento para rejeitar a acusação consiste no facto de a mesma ser considerada pelo juiz “manifestamente infundada”, sendo que uma das circunstâncias que a tal conduzem consiste em os factos nela descritos “não constituírem crime”.
Ou seja, é tida por manifestamente infundada uma acusação cujos factos nela descritos não preencham tipicidade criminal. Trata-se, pois, de uma questão de qualificação jurídica dos factos narrados na acusação, o que contende com a substância de tal despacho final do Inquérito
Em todo o caso, se esses factos não integrarem o ilícito imputado pelo acusador, mas sim um outro diverso, caso em que se tratará de um erro de subsunção dos factos ao direito, tal não constituirá fundamento para a rejeição da acusação, pois que, em momento posterior, poderá ter lugar uma alteação da qualificação jurídica, com recurso ao disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.
Ademais, o Supremo Tribunal de Justiça fixou Jurisprudência Obrigatória no sentido de que “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP” (cfr. Acórdão n.º 11/2013, de 12-06, publicado no DR-I de 19-07-2013).
Compreende-se que assim seja, pois que, como refere Fernando Gama Lobo, perante a relevância da questão e “o plano indiciário em que ainda nos encontramos, a decisão do juiz de requalificação jurídica dos factos só deverá ser tomada no final do julgamento, pois só aí estará definitivamente apurada a matéria de facto subsumível aos tipos legais (que poderá decorrer até do regime das alterações de factos e/ou da sua qualificação jurídica – v. arts. 358.º e 359.º)”.[3]
A rejeição da acusação com o fundamento de os factos nela descritos não constituírem crime, sendo, por isso, manifestamente infundada, tem em vista evitar o prosseguimento dos autos perante a clarividência da falta de objecto processual, assim se evitando uma actividade inútil e a sujeição do arguido a julgamento.
Mas tal não ocorre em quaisquer circunstâncias, pois que a inexistência de factos com relevância criminal tem de ser manifesta, ou seja, inequívoca, clara, que salte à vista do julgador. Não é, pois, suficiente para tal rejeição uma situação dubitativa ou sustentada numa posição que não é consensual na doutrina e/ou na jurisprudência.
Tal como se salienta no Acórdão da Relação de Lisboa de 18-10-2017 (Proc. n.º 1212/15.8PBAMD.L1-3), “se os factos narrados na acusação, segundo determinada interpretação jurídica, suportada por um entendimento jurisprudencial ou doutrinário significativo ou possível, poderem ser qualificados como crime, não pode a acusação ser considerada como manifestamente infundada” (disponível em www.dgsi.pt).
Com efeito, se se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, designadamente por divergência doutrinal ou jurisprudencial, a mesma não poderá ser tida por manifestamente infundada e objecto de rejeição liminar, nos termos do referido preceito legal. Nesse contexto, os autos deverão prosseguir para julgamento, onde a questão, segundo as várias perspectivas que se perfilem e com plena observância do contraditório, será discutida e decidida.[4]
Tal como também refere Paulo Pinto de Albuquerque, “o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.”[5]
Neste contexto, não deverá ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação que, embora apresente uma enunciação fáctica deficiente, comporte um mínimo de factos com relevância criminal.
O mesmo é dizer que se não for possível concluir, de forma inequívoca, incontroversa e evidente que os factos descritos na acusação não integram a prática de crime, nunca deverá a mesma ser objecto de rejeição com o aludido fundamento, devendo, antes, o processo prosseguir os seus termos, para julgamento.
Voltando ao caso sub judice, cremos que não pode considera-se a acusação formulada pelo Ministério Público contra o arguido AA como manifestamente infundada, por os factos aí descritos não constituírem crime, conforme considerou a Exm.ª Juíza.
Com efeito, ainda que alguns dos pontos da acusação não contenham concretização factual muito pormenorizada, incluindo quanto ao contexto e momento da sua prática, de forma alguma se pode considerar, como se escreveu no despacho recorrido, que a descrição factual contida nos pontos 4.º a 12.º da acusação seja vaga e conclusiva, ao ponto de não constituir crime. Na verdade, é referido o contexto vivencial entre o arguido AA e a ofendida CC, sua mãe, então com 85 anos de idade, situando-se em 2016 o início da coabitação entre ambos (pontos 1. e 2.), passando-se depois a enunciar os comportamentos que aquele adoptou para com esta, que se situam “desde aquela data” (ponto 3.), enunciando-se as expressões ameaçadoras e injuriosas que lhe dirigia, o que alegadamente fazia no interior do “domicílio comum”, fazendo-o “diariamente” (pontos 6., 8. e 12.), sendo a globalidade dos factos objectivos descritos nos pontos 1. a 13. e os elementos subjectivos nos pontos 14. a 21. (acima transcritos).
Ainda que nem sempre se consiga perceber os concretos episódios que ocorreram, pois que não individualizados no tempo (data e hora), já não pode afirmar-se não sabermos a sua regularidade, pois que se diz, relativamente a alguns daqueles comportamentos, que isso ocorria diariamente. E estando os factos, na sua globalidade, balizados temporalmente a partir de 2016 (necessariamente com o limite da data em que foi deduzida a acusação), sempre poderá, após a produção da prova em audiência, tal período temporal ser melhor concretizado, seja pela sua redução, seja também pela concretização da frequência das ocorrências, podendo resultar que não eram diárias, mas sim com diferente frequência ou até reportadas a ocasiões específicas, podendo essas eventuais alterações factuais ser determinadas e comunicadas, nos termos e em conformidade com o disposto no artigo 358.º do CPP.
Embora a acusação tenha fixado o objecto do processo, da discussão da causa poderão resultar outros factos que, não alterando substancialmente aqueles, permitam melhor concretização da matéria em apreciação, tendo em conta as soluções jurídicas pertinentes (arts. 124.º, n.º 1, e 339.º, n.º 4, do CPP).
Não poderá, pois, nesta fase, considerar-se a acusação manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, designadamente o que vem imputado ao arguido AA.
Desde logo, a amplitude e os contornos da norma incriminadora da violência doméstica (art. 152.º do C. Penal) não são consensuais na doutrina e na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.
Segundo Taipa de Carvalho, tal preceito incriminador tutela um “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, bem jurídico esse que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos (…) que afectem a dignidade” da vítima.[6]
Neste contexto, além das ofensas físicas ou verbais, na violência doméstica a conduta do agente, no seu todo e no contexto em que foi levada a cabo, terá de ser especialmente desvaliosa e maltratante para a vítima, ao ponto de afectar a sua própria dignidade pessoal.
Daí que, como refere Plácido Conde Fernandes, “a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos”.[7]
Por isso, neste enquadramento, existirá “violência doméstica” se os actos praticados pelo agente forem graves e afectarem a saúde - seja física, psíquica ou emocional - da vítima (além de eventuais privações de liberdade ou ofensas sexuais), assim diminuindo ou afectando a sua dignidade enquanto pessoa, designadamente no âmbito de uma relação conjugal.
Só assim se poderá concluir pelo preenchimento desse tipo legal de crime, o qual de forma alguma tutelará desavenças destituídas dessa gravidade e dos contornos inerentes ao tipo de ilícito aqui em questão, as quais possam somente encontrar eventual tutela no domínio daqueles outros ilícitos tradicionais menos graves (v.g. ofensas à integridade física, ameaças, injúrias, etc.).[8]
Mas para outra corrente, as pessoas incluídas no catálogo do normativo em causa são beneficiários de uma tutela penal especial, suportada no vínculo familiar que as liga ou ligou ao agente.
Como escreve Nuno Brandão, essa tutela pode manifestar-se “em praticamente todos os graus de violência física ou psíquica praticada sobre tais vítimas, desde o mais ligeiro, como o que configura ofensa à integridade física simples ou qualificada, até àqueles que assumem crescente gravidade e conformam os crimes de maus tratos, de ofensa à integridade física grave qualificada e no limite de homicídio qualificado. É assim assegurada uma protecção reforçada destas vítimas, que em regra não conhecerá descontinuidades. Vale por dizer que em relação a todas estas formas de violência o regime legal confere a estas vítimas uma tutela mais forte do que a que prevê, via de regra, para outras pessoas que sofram ofensas de natureza semelhante, mas não tenham uma tal ligação familiar, actual ou passada, ao agente.”[9]
Segundo Maria Elisabete Ferreira, o legislador quis, primordialmente, punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou relacional, considerando que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico.[10] Daí não relevar especialmente a gravidade da ofensa e a danosidade para a vítima.
Também no Acórdão da Relação de Coimbra de 18-05-2022 se refere que “o legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no sei familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica”.[11]
Seja qual for o entendimento quanto ao tipo de lícito em causa, que agora não cumpre estabelecer, cremos que, perante os factos descritos na acusação (sem prejuízo de eventuais futuras alterações não substanciais), bem como a relação familiar existente entre o arguido e a ofendida, além da idade desta e do contexto da coabitação, não pode afastar-se, nesta fase, a integração dessa factualidade no crime imputado, ao pondo de se considerar a mesma infundada. Pelo menos, isso não se apresenta como manifesto.
Por outro lado, afigura-se também prematuro efectuar agora diferente qualificação jurídica dos factos, o que apenas poderá vir a ocorrer ulteriormente, nos termos legais e atenta a referida jurisprudência obrigatória (art. 358.º do CPP e AUJ 11/2013), daí se extraindo, se for o caso, as consequências da aludida inexistência de queixa e acusação particular, conforme estabelecem os artigos 49.º e 50.º do CPP.
Diga-se, ainda, que a própria exigência de queixa e de acusação particular nos casos de convolação do crime de violência doméstica para um daqueles crimes menos graves, cujo procedimento criminal delas dependa, como foi equacionado no despacho recorrido, não tem sido consensual na jurisprudência.[12]
Daí que, numa avaliação preliminar, reportada ao momento em causa nestes autos, se os factos descritos constituírem crime, seja o que vem imputado ou outro, não deve a acusação deduzida ser rejeitada, por manifestamente infundada, tanto mais que tal factualidade sempre poderá ser objecto de alteração não substancial e de melhor enquadramento jurídico, depois de produzidas as provas em audiência, com recurso ao disposto no aludido artigo 358.º do CPP.
Devem, assim, os autos prosseguir para julgamento, onde as questões em enunciadas, segundo as várias perspectivas plausíveis, submetidas ao filtro do contraditório e da apreciação da prova, melhor se decidirão.
Nessa medida, tem de proceder o recurso interposto, com a consequente revogação do despacho sob censura, o qual deverá ser substituído por outro que, recebendo a acusação, determine o prosseguimento dos autos, com a tramitação legal, incluindo a oportuna marcação de data para a realização da audiência de julgamento, nos termos dos artigos 311.º-A e 312.º do CPP.
III
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso e revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que receba a acusação deduzida e determine a subsequente tramitação legal dos autos, com oportuna designação de data para a realização da audiência de discussão e julgamento.
Sem custas.
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Notifique.
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Porto, 18-01-2023.
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira
Paula Pires
___________
[1] Por manifesto lapso, a peça processual é apresentada sob a designação de “Resposta a recurso”.
[2] Ainda que na parte final do despacho se tenha, por lapso, indicado o n.º 1, alínea a).
[3] Vide Código de Processo Penal anotado, 3.ª Edição, Almedina, pág. 654.
[4] Este entendimento tem sido perfilhado pela jurisprudência, podendo ver-se, entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 07-12-2010 (Proc. n.º 475/08.0TAAGH.L1-5); da Relação de Coimbra de 25-03-2010 (Proc. n.º 127/09.3SAGRD.C1) e de 27-04-2011 (Proc. n.º 134/10.3TAGRD.C1) e da Relação de Guimarães de 19-09-2011 (Proc. n.º 715/10.5TABRG.G1) e de 25-02-2019 (Proc. n.º 611/15.0PGMR.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. Assim também os Acórdão da Relação de Évora de 12-01-2021, CJ I, págs. 225 a 228, e da Relação de Guimarães de 12-04-2021, CJ II, págs. 297 e 298.
[5] In Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição actualizada, UCE, pág. 817.
[6] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, págs. 329 a 332.
[7] In Revista do CEJ, N.º 8, 1.º Semestre de 2008, pág. 305.
[8] Neste sentido interpretativo da norma podem ver-se, designadamente, os seguintes Acórdãos: da Relação de Évora, de 06-12-2016 (Proc. n.º 59/15.6GAVVC.E1); da Relação de Coimbra, de 22-11-2017 (Proc. n.º 1176/16.0PBCBR.C1); da Relação de Coimbra, de 17-01-2018 (Proc. n.º 204/10.8GASRE.C1); da Relação do Porto, de 29-02-2012 (Proc. n.º 368/09.3PQPRT.P1); da Relação de Évora, de 25-03-2010 (Proc. n.º 345/07.9PAENT.E1) e da Relação de Évora, de 30-06-2015 (Proc. n.º 1340/14.7TAPTM.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[9] In A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica (disponível em pdf na Internet).
[10] In “O Crime de Violência Doméstica Na Jurisprudência Portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Professor Costa Andrade, Vol. I, Direito Penal (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra).
[11] In www.dgsi.pt (Proc. 924/19.1PBLRA.C1 – Des. Paulo Guerra).
[12] Tal exigência foi afirmada, designadamente, pelos acórdãos da Relação do Porto de 14-10-2020 (CJ IV, pág. 194) e de 10-11-2021 (CJ V, pág. 184), mas negada pelo acórdão da mesma Relação de 13-01-2021 (CJ I, pág. 282) e pelo acórdão da Relação de Coimbra de 03-02-2021 (mesma CJ IV, pág. 42).