Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1100/14.5T8VNG-T.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS
PRODUÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RP201902071100/14.5T8VNG-T.P1
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º162, FLS.24-32)
Área Temática: .
Sumário: Tendo o tribunal, após a realização da audiência de julgamento no apenso de verificação e graduação de créditos, consentido ao Administrador da Insolvência modificar a lista de créditos por si reconhecidos, retirando a um dos créditos o privilégio imobiliário especial que lhe atribuíra, e pretendendo o credor produzir prova testemunhal dos factos necessários ao reconhecimento do privilégio, não pode o tribunal exigir que o credor apresente prova documental e perante a não apresentação desta, decidir de imediato contra o credor com o argumento de que este não produziu qualquer prova de tais factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019:1100.14.5T8VNG.T.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
Por apenso ao processo de insolvência da sociedade comercial B…, S.A., com NIPC ……… e sede na freguesia de …, Maia, vieram os respectivos credores reclamar os seus créditos, nos termos do artigo 128.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O Administrador da Insolvência apresentou a lista com a relação dos créditos reconhecidos e não reconhecidos. Entre eles conta-se, como reconhecido o crédito do trabalhador C… no valor de €9.501,60, relativo a direitos laborais, mencionando-se que o mesmo goza de «privilégio imobiliário e mobiliário geral (art. 333.º do CT)».
Por virtude da impugnação de um crédito, foi proferido despacho saneador e realizou-se subsequente julgamento, vindo a julgar-se procedente a impugnação e, em consequência, excluído o crédito impugnado.
Com o objectivo de «proferir sentença de graduação de créditos» foram de seguida realizadas sucessivas diligências e pedidos de informação.
Na sequência disso o Administrador da Insolvência apresentou um requerimento no qual modificou da natureza do crédito que reconheceu ao trabalhador da insolvente C…, sustentando que o mesmo não goza de privilégio imobiliário especial.
Para o efeito, alegou o seguinte: «relativamente aos créditos de C…, o facto de lhe ser atribuído privilégio imobiliário resultou de um lapso, dado que, sendo a actividade da sociedade insolvente a construção civil, e de acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2016, publicado em Diário da República n.º 74/2016, Série I de 2016-04-15, do qual resultou a uniformização da jurisprudência nos seguintes termos “Os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003”, o que é o caso relativamente aos créditos em causa, uma vez que a sede da sociedade não era propriedade desta, nem esta possuía qualquer outro imóvel que não os por si construídos destinados a comercialização. […] 4. Que, assim sendo, os créditos reconhecidos a C… [e outro] usufruem unicamente de privilégio mobiliário geral previsto no art. 333º, nº 1, al. a), do Código do Trabalho
Confrontado com isso, veio este veio aos autos informar «que os funcionários da empresa, como ele, usavam a fracção “A”, do Lote 1 (do prédio descrito sob o n.º 850, da freguesia …, do concelho de Guimarães) e a loja 133, do Lote 2 (do prédio descrito sob o n.º 612, da freguesia …, do concelho de Guimarães), para as diversas funções, constituindo os locais onde se faziam os escritórios, os stands de vendas e armazenamento de materiais utilizados pelos trabalhadores».
O tribunal ordenou a notificação deste trabalhador e outro para «para, em dez dias, juntarem prova documental que demonstre em que imóvel apreendido é que prestavam trabalho».
O trabalhador C… veio aos autos reiterar que prestava o seu «trabalho em Guimarães, centrando o seu trabalho ora no prédio sito na Rua …, …, quando estava a trabalhar nos Lotes 2 e 3 (do prédio descrito sob o n.º 612, da freguesia …, do concelho de Guimarães), ora na fracção “A” do n.º 7, do Lote 1, na Rua …, quando trabalhava no Lote 1 (do prédio descrito sob o n.º 850, da freguesia …, do concelho de Guimarães), sendo que tais imóveis estavam exclusivamente destinados ao trabalho da empresa, administrativo e de produção». Mais referiu que só poderá fazer essa prova com prova testemunhal porque «não há contratos escritos».
Realizadas outras diligências foi, sem mais, proferida sentença de graduação de créditos em cuja fundamentação se escreveu além do mais o seguinte:
«Uma primeira nota para os créditos dos trabalhadores da insolvente, que sendo emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, nos termos do artigo 333.º, 1, do Código do Trabalho (CT), gozam de privilégio mobiliário geral e de um privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
Todavia, como se nota pela redacção do artigo 333.º, 1, do CT, o trabalhador não beneficia de privilégio sobre todos os bens imóveis do empregador, mas apenas sobre aquele (ou aqueles) onde presta a sua actividade, tratando-se por isso de um privilégio imobiliário especial dos créditos laborais cuja concessão é justificada por uma especial ligação funcional do trabalhador ao imóvel através do exercício da sua actividade, competindo a alegação e prova dos factos constitutivos do privilégio imobiliário ao trabalhador reclamante (acórdãos da Relação de Coimbra de 28/06/2011 (processo n.º 494/09.9TBNLS-C.C1) e de 12/06/2012 (processo n.º 1087/10.3TJCBR-J.C1) e da Relação de Lisboa de 16/01/2014 (processo n.º 246/09.6TBPDL-F.L1.8), consultados em www.dgsi.pt).
Esta ressalva que aqui se faz assume importância decisiva porque de acordo com a informação prestada pelo Senhor Administrador da Insolvência a fls. 453/454 nenhum dos trabalhadores a quem foram reconhecidos créditos prestavam a sua actividade nos bens imóveis referidos, razão pela qual não beneficiam de privilégio imobiliário, sendo os seus créditos considerados com comuns.
Note-se ainda que tendo o credor C… se insurgido contra este reconhecimento do senhor administrador da insolvência (fls. 462), a verdade é que não juntou qualquer meio de prova que o pudesse contrariar (fls. 471), daí que se mantenha o reconhecimento como comum.»
Desta sentença, o trabalhador C… interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª Tendo um trabalhador alegado que desempenhava as suas funções em dois locais que indicou, sendo duas fracções autónomas, uma em cada um de dois prédios que a empregadora levava em construção, nas quais, como disse, estavam guardadas as ferramentas e materiais de construção, para além do que estavam instalados os “stands” de vendas; tendo o administrador da insolvência indicado que o trabalho não era prestado em nenhum dos locais referidos; tratando-se de trabalhos na construção civil, sendo crível, por isso e em face das regras da experiência, que o trabalho de construção civil implica que se guardem ferramentas e materiais de construção, onde os trabalhadores, entre o mais, costumam troca de roupa; tratando-se, afinal de contas, apenas de uma fracção autónoma em cada prédio; parece poder concluir-se que a informação do Sr Administrador da Insolvência não é verdadeira e que verdadeiro é o facto invocado pelo trabalhador, para se concluir que o crédito do trabalhador está garantido pelo produto da venda dessas duas fracções autónomas;
2.ª Tendo um trabalhador invocado que desempenhava as suas funções em dois prédios, tendo a empregadora, em cada um deles, reservado um local para se guardarem ferramentas e materiais de construção e para “stand” de vendas; tendo o tribunal notificado o trabalhador para apresentar prova documental desse facto relativo aos locais de trabalho; tendo o trabalhador respondido que não tinha documentos que o comprovassem, mas apenas testemunhas; não havendo nenhuma exigência legal relativa à formalidade ou à prova desse facto, antes este se demonstrando, as mais das vezes, por prova testemunhal; podemos concluir que devia o tribunal recorrido ter determinado a notificação do trabalhador para indicar testemunhas e ouvido as declarações das que viessem a ser indicadas, em face do disposto no nos artigos 413.º e 411.º, do Código de Processo Civil, sobretudo tendo presente que o trabalhador não se mostrava representado por advogado.
3.ª Tendo um trabalhador invocado que desempenhava as suas funções em dois prédios, tendo a empregadora, em cada um deles, reservado um local para se guardarem ferramentas e materiais de construção e para “stand” de vendas; tendo o tribunal notificado o trabalhador para apresentar prova documental desse facto relativo aos locais de trabalho; tendo o trabalhador respondido que não tinha documentos que o comprovassem, mas apenas testemunhas; não havendo nenhuma exigência legal relativa à formalidade ou à prova desse facto, antes este se demonstrando, as mais das vezes, por prova testemunhal; não pode o tribunal restringir a prova desse facto à apresentação de prova documental, sob pena de ofender o direito constitucional do acesso ao direito e da decisão equitativa, consagrados no n.º 1, do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2, do artigo 18.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, na vertente do direito à prova dos factos, como já deliberou, ainda que a respeito de normas relativas a outros processos (as normas do n.º 3, d artigo 146.º-B, e n.º 2, do artigo 246.º, ambos do Código de Procedimento e Processo Tributário, e do n.º 2, do artigo 27.º, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho), o Tribunal Constitucional designadamente nos Acórdãos 759/2013 e 853/2014.
4.ª A decisão recorrida não aplicou e violou o disposto nos artigos 341.º, 364.º (à contrário), 391.º e 392.º, todos do Código Civil, 411.º e 413.º, do Código de Processo Civil, e n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos melhores doutamente supridos por V.as Ex.as, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que declare que o crédito do recorrente está garantido e graduado em primeiro lugar pelo produto da venda dos seguintes bens: a fracção “A”, do Lote 1 (do prédio descrito sob o n.º 850, da freguesia …, do concelho de Guimarães); a loja 133, do Lote 2 (do prédio descrito sob o n.º 612, da freguesia …, do concelho de Guimarães); se assim se não entender, o que não se concebe nem concede, deve ser revogada a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que determine que o tribunal notifique o recorrente para indicar prova testemunhal para apuramento do facto relativo ao seu local de trabalho, ouvindo as declarações das que venham a ser indicadas, decidindo da graduação de créditos em função da prova produzida relativa a esse facto.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se para apurar se um trabalhador prestava serviço num determinado bem apreendido para a massa insolvente podia exigir-se prova documental e, não junta esta, podia decidir-se de imediato essa questão sem dar oportunidade ao trabalhador que reclamou o seu crédito de fazer essa prova através de testemunhas.
III. Os factos:
Os factos que importam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
IV. O mérito do recurso:
Conforme resulta do relatório que antecede, verifica-se que nos autos foi proferido despacho saneador e procedeu-se a audiência de julgamento em relação apenas a um crédito que tinha sido objecto de impugnação.
Após a audiência de julgamento, foram realizadas diligências para proferir a sentença de graduação dos créditos. No decurso das mesmas o Administrador da Insolvência apresentou uma rectificação à lista por si apresentada, resultando dessa rectificação a retirada ao crédito do credor/trabalhador ora recorrente do benefício do privilégio imobiliário, mantendo o mesmo apenas o privilégio mobiliário geral do artigo 333º, nº 1, al. a), do Código do Trabalho.
A seguir foi proferido despacho intimando o credor a juntar aos autos prova documental da referida relação. O trabalhador não juntou prova documental, referindo que só através de prova testemunhal poderia fazer a prova da existência de relação entre o seu local de trabalho e bens imóveis da massa insolvente.
Apesar disso, foi proferida sentença na qual se qualificou o crédito como comum no pressuposto da inexistência dessa relação entre o local de trabalho e os bens com o fundamento de que o credor «não juntou qualquer meio de prova», situação contra a qual o trabalhador reclamante se insurge.
Quid iuris?
Numa acção declarativa comum cabe ao autor, na petição inicial, apresentar a causa de pedir que elegeu para fundamentar o seu pedido. A causa de pedir da acção é composta pelos factos jurídicos concretos destinados ao preenchimento dos pressupostos do fundamento jurídico (legal ou contratual) onde o autor funda a sua pretensão.
Nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o autor deve alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir. Em conformidade com essa disposição, o artigo 552.º do mesmo diploma estabelece que na petição inicial o autor deve expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção.
Nos termos do artigo 584.º do Código de Processo Civil a réplica apenas serve para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção, naturalmente se esta tiver sido deduzida. A réplica não serve, portanto, para o autor alegar os factos essenciais destinados a servir de fundamento do seu pedido que não alegou na petição inicial.
No Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas as coisas são algo diferentes. Segundo o artigo 11.º deste diploma, no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
Retira-se desta norma, a contrário, que nos restantes apensos do processo de insolvência, designadamente na reclamação de créditos, funcionam as regras gerais do Código de Processo Civil, isto é, que o juiz apenas pode fundar a sua decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, do mesmo diploma, que, no que concerne aos factos essenciais permite que sejam ainda levados em consideração os factos que resultem da instrução da causa (se ela vier a ser realizada) e sejam complemento ou concretização dos factos alegados.
Após a declaração de insolvência abre-se a fase da verificação do passivo, a qual constitui um processo declarativo que corre por apenso ao processo de insolvência, compreendendo as fases de reclamação de créditos (artigos 128.º e seg.), saneamento (artigo 136.º), instrução (artigo 137.º), discussão e julgamento (artigos 138.º e 139.º) e sentença (artigo 140.º).
Os credores da insolvência que pretendam fazer valer os seus direitos de crédito no âmbito do respectivo processo, têm que apresentar a competente reclamação de créditos, dispondo para o efeito do prazo fixado na sentença de declaração de insolvência. A reclamação é feita mediante requerimento dirigido ao administrador da insolvência, acompanhado de todos os documentos probatórios disponíveis.
Nos termos do artigo 128.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, esse requerimento deve indicar: «a) a sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros; b) as condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas; c) a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável; d) a existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes; e) a taxa de juros moratórios aplicável.»
As reclamações apresentadas são depois apreciadas pelo administrador da insolvência, o qual deve, nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, entregar duas listas na secretaria, organizadas por ordem alfabética, sendo uma respeitante aos créditos por si reconhecidos e outra relativa aos créditos não reconhecidos (artigo 129.º, n.º 1, primeira parte). O reconhecimento pode ter por base quer a reclamação, quer o facto de os direitos constarem dos elementos de contabilidade do devedor ou serem por outra forma do conhecimento do administrador (artigo 129.º, n.º 1, parte final).
Sendo reconhecido o crédito é indicado na lista correspondente, com identificação do credor, do montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, das garantias pessoais e reais, dos privilégios, da taxa de juros moratórios aplicável e das eventuais condições suspensivas ou resolutivas (artigo 129.º, n.º 2). Não sendo reconhecido, o crédito é indicado na respectiva lista com indicação dos motivos justificativos do não reconhecimento (artigo 129.º, n.º 3).
Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo para o administrador da insolvência apresentar relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, qualquer interessado pode «impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos» (artigo 130.º).
Se não houver impugnações, o juiz deve proferir de imediato sentença de verificação e graduação de créditos, a qual, salvo erro manifesto, se limita a homologar a lista dos credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e a graduar os créditos em atenção ao que conste dessa lista (artigo 130.º, n.º 3).
Podem responder às impugnações o administrador da insolvência e qualquer interessado que assuma posição contrária, incluindo o devedor. Se, porém, a impugnação se fundar no facto de a um crédito ter sido atribuído um montante excessivo, só pode responder o próprio titular do crédito impugnado (artigo 131.º).
Havendo impugnações seguem-se o saneamento do processo, a eventual tentativa de conciliação, e a elaboração do despacho saneador (artigos 136.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e artigos 595.º e 596.º do Código de Processo Civil). Neste, o juiz deve reconhecer os créditos incluídos na respectiva lista e não impugnados, os créditos que, embora impugnados, tenham sido aprovados na tentativa de conciliação (art.º 136.º, n.º 4), e ainda os créditos que tenham sido parcialmente impugnados sem resposta, nos termos constantes da impugnação (nesse sentido Acórdão da Relação do Porto de 26-05-2015, proc. 130/13.9TBVFR-I.P1, in www.dgsi.pt, citando Mariana França Gouveia, in Themis, 2005, pág. 160, e Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2.ª edição, pág. 235).
O artigo 131.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não dispõe sobre o conteúdo possível da resposta à impugnação, razão pela qual se aplica o disposto no artigo 17.º que manda aplicar aos «processos regulados no presente diploma» as disposições do «Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código».
À partida, por força dessa remissão, seríamos levados a equiparar a reclamação de créditos à petição inicial e resposta à impugnação à réplica. Todavia, como bem se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-04-2017, proc. 2116/14.7T8VNG-E.P1, in www.dgsi.pt: «Se não é pacífico nem linear a qualificação processual do processo de insolvência, é ao menos consensual que envolve uma fase de pendor declarativo, que visa a declaração de insolvência, com a consequente alteração na situação jurídica do devedor e o despoletar dos efeitos que lhe são inerentes, e uma fase de pendor executivo de natureza concursal, em que são chamados a intervir no processo todos os credores do devedor. A reclamação de créditos constituirá neste enquadramento o exercício do direito de execução por cada um dos credores, com a particularidade de que não está dependente da apresentação de título executivo. Tanto podem reclamar o seu crédito os credores que estão munidos de título executivo, como os que o não estão, ainda que o reconhecimento do crédito reclamado dependa dos elementos de prova produzidos – cfr. artº 128º do CIRE. Apesar de a reclamação de créditos não estar subordinada à condição que é exigida para a propositura da ação executiva não obstará a que seja considerada como configurando um verdadeiro requerimento executivo [..] em que o acertamento positivo (necessariamente provisório) da existência do crédito e das garantias ou privilégios de que beneficia resulta da apreciação feita pelo administrador da insolvência – cfr. artº 129º do CIRE - compreendendo-se assim que a impugnação seja dirigida contra a lista dos credores reconhecidos, e não contra as reclamações, e legitimando-se por outro lado o entendimento de que a impugnação da lista de credores reconhecidos configura, em termos processuais, uma oposição por embargos [..], iniciada precisamente pelo requerimento de impugnação, e em que a decisão será proferida com base no que vier alegado nesse requerimento e na resposta a essa impugnação, já que os requerimentos de reclamação de créditos, que são dirigidos ao administrador da insolvência, nem sequer são presentes ao juiz – cfr. artºs 128º/2) e 132º do CIRE. Dentro deste enquadramento surge evidente que a exigência em termos de alegação (da inexistência do crédito ou da sua qualificação) recai em primeiro lugar sobre o impugnante, que, nos termos do disposto no nº 1 do artº 130º do CIRE haverá de alegar os factos em que se consubstancia a indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou a incorrecção do respetivo montante, e/ou da qualificação dos créditos reconhecidos. Só depois, e em face do que tiver sido alegado no requerimento de impugnação, recairá sobre o reclamante o ónus da resposta previsto no artº 131º, nº 1, do CIRE
Concordamos com esta interpretação, a qual parece implícita na circunstância de o requerimento de reclamação de créditos ser dirigido ao administrador da insolvência e não ao juiz, ao contrário das impugnações e das respostas às reclamações. Bem como na circunstância de o artigo 134.º mandar aplicar às impugnações e às respostas a obrigação de «oferecer todos os meios de prova de que disponha», a qual constitui um verdadeiro ónus desencadeador de consequências processuais, ao invés da reclamação que, podendo ser acompanhada de «documentos probatórios» (sic), não impede o administrador de reconhecer o crédito com base em «elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento».
Como resulta do relatório, na lista que inicialmente apresentou o Administrador da Insolvência indicou que o crédito do trabalhador recorrente goza de «privilégio imobiliário e mobiliário geral (art. 333.º do CT)». Vendo o seu crédito ser reconhecido como dotado desse privilégio, o credor não necessitava de impugnar esta lista e não a impugnou realmente. Tanto quanto se vislumbra dos autos, esse crédito também não foi impugnado por nenhum outro credor. Não havendo impugnação, o credor também não necessitava de indicar quaisquer meios de prova para demonstrar aquilo que afinal já resultava da lista apresentada pelo Administrador.
Posteriormente, o Administrador decidiu alterar a sua posição e retirar ao crédito o aludido privilégio imobiliário do artigo 333.º do Código do Trabalho.
Para o efeito argumentou com um lapso da sua parte, quando, conforme resulta à evidência do seu requerimento, o que sucedeu foi que o Administrador da Insolvência só então se deu conta do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2016 que fixou a interpretação jurídica de que «os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003», e decidiu ajustar a sua posição a este Acórdão.
Não se tratou, manifestamente, da correcção de um lapso, mas sim de uma modificação do critério jurídico que havia seguido na elaboração da lista de créditos reconhecidos, na qual, por força do n.º 2 do artigo 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tinha de indicar a natureza do crédito e os privilégios de que o mesmo beneficiava.
Colocava-se, por isso, a questão de saber se este requerimento do Administrador da Insolvência era admissível, se lhe é permitido a meio do processo de verificação e graduação dos créditos, já depois de saneado o processo e realizada audiência de julgamento, alterar a lista de créditos reconhecidos retirando os privilégios que antes atribuíra a um deles, ao ponto de suscitar agora do respectivo credor uma reacção que até esse momento era desnecessária. Essa discussão era sobretudo pertinente porque face ao estado do processo (estava realizada a audiência de julgamento e faltava somente a prolação da sentença) já não era possível ao credor impugnar a lista e defender a existência do privilégio agora recusado pelo Administrador da Insolvência.
O tribunal a quo não se ocupou desta questão e mandou notificar o credor «para, querendo, se pronunciar» sobre a modificação pretendida pelo Administrador da Insolvência. O tribunal não assinalou a essa notificação qualquer cominação, designadamente a de indicar meios de prova sob pena de não o poder fazer posteriormente. Por esse motivo, exactamente por nos encontrarmos perante uma tramitação anómala, que sai fora do paradigma legal, não se pode considerar aplicável ao recorrente a exigência de indicação imediata dos meios de prova do artigo 134.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, por remissão para o artigo 25.º, n.º 2.
Tendo o credor manifestado a sua discordância em relação à modificação, o tribunal a quo notificou-se de seguida «para, em dez dias, juntar prova documental que demonstre em que imóvel apreendido é que prestava trabalho». Não o convidou, pois, para indicar outros meios de prova e, ao invés, pareceu vedar-lhe essa possibilidade. Depois, tendo o credor sustentado que apenas podia fazer a prova desse facto através de testemunhas, o tribunal a quo entendeu sem mais poder proferir sentença com o argumento de que o credor «não juntou qualquer meio de prova que pudesse contrariar» a posição do Administrador da Insolvência.
Desta forma, o tribunal a quo assumiu que o Administrador da Insolvência podia modificar livremente a sua lista no estado actual do processo, que cabia ao credor fazer a prova do facto negativo que o Administrador da Insolvência alegou supervenientemente e que apenas lhe era consentido fazer essa prova por documentos (autênticos ou particulares, presume-se).
No recurso apenas está em causa este último aspecto e, em relação a ele, é manifesto que o recorrente tem razão e que a posição do tribunal a quo não tem sustentação.
Não existe norma legal que imponha que a demonstração deste facto tenha de ser feito por documento. Não apenas por não ser um facto que careça de estar documentado ou para cuja demonstração se exija a intervenção de autoridade ou oficial público que pudesse certificar o facto, mas também por se tratar de uma facto da via quotidiana, comum, que na maior parte das situações só poderá ser provado por testemunhas, sendo certo que a existirem documentos eles apenas constituirão um indício probatório do facto e, portanto, não impedem nem prejudicam a prova por outros meios, como a prova testemunhal.
Como sabemos, segundo o artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo. Atenta essa relação forçosa entre o modo como a acção é configurada e as necessidades que o objectivo do reconhecimento do direito coloca, num qualquer processo cível existem apenas dois fundamentos para recusar à parte a produção de um meio de prova pretendido pela mesma: a manifesta falta de interesse do meio de prova para a demonstração dos factos relevantes (porque o facto que o meio de prova visa demonstrar já se encontra provado por outro meio de prova produzido ou porque o facto nenhum interesse tem para a decisão do litígio); a violação das regras de direito probatório formal que regulam a admissão e produção desse meio de prova.
A partir do momento em que ao juiz não é consentido que se abstenha de decidir quando não se sinta suficientemente elucidado sobre os factos relevantes e que existem regras relativas ao ónus da prova que definem contra qual das partes o tribunal deve decidir em caso de dúvida sobre a realidade de um facto relevante, é inerente à natureza equitativa do processo a atribuição às partes do mais amplo direito à produção da prova, balizado apenas pela necessidade de proteger direitos legítimos (v.g. proibições de prova, direito ao sigilo) ou pela absoluta falta de interesse da diligência probatória pretendida.
Escreve Lebre de Freitas in Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª edição, pág. 129, nota 12, que “no tribunal constitucional federal alemão fixou-se a jurisprudência no sentido de só a admissão de provas manifestamente irrelevantes poder ser recusada, pois se entende que as partes têm o direito, não só à proposição, mas também à admissão das provas relevantes para o objeto da causa (…). Nesse juízo de manifesta irrelevância não devem entrar considerações derivadas duma valoração da prova (ainda não produzida) apressadamente feita à priori (…). O Supremo Tribunal Federal (…) admitiu-o quando o juiz já estivesse convencido da realidade do facto que a parte pretende provar com o meio de prova, recusando-o apenas na hipótese inversa de convicção de que o facto não se verificou (…); mas, em decisão mais recente (de 2002), negou em qualquer caso, a admissibilidade desse juízo prematuro (…)”. É esse igualmente o nosso entendimento.
O direito à produção da prova, sendo embora um direito de natureza processual, encontra-se, como todos os demais, sujeitos a limites no respectivo exercício, sob pena de se tornar abusivo e, por isso, ilegítimo. Enquanto dimensão do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, o direito à produção de prova não é um direito absoluto e deve ser compatibilizado com outros interesses legais definidos em preceitos normativos, como é, por exemplo, o caso do princípio processual civil da proibição da prática de actos inúteis (cf. artigo 130.º do Código de Processo Civil) ou da proibição da realização de diligências que sejam impertinentes ou dilatórias (cf. artigo 6.º do Código de Processo Civil que define o âmbito do dever de gestão processual). Não pode por isso ser exercido em excesso, de forma desproporcionada, para atingir objectivos estranhos à concreta lide, para tutela de direitos que por mais legítimos que possam ser excedem o objecto da instância onde os meios de prova são requeridos.
O facto de já se ter realizado a audiência de julgamento impede nova produção de prova testemunhal? Cremos que não. A partir do momento em que se admitiu a modificação substancial da posição deste crédito por mero requerimento tardio do Administrador da Insolvência e se possibilitou, conforme seria sempre necessário, ao credor tomar posição sobre a alteração, tem de se aceitar que se o conflito entretanto gerado e admitido demandar a produção de prova para apuramento dos factos indispensáveis à graduação do crédito, é imprescindível reabrir a audiência para produzir essa prova.
Acresce que nos termos do artigo 411.º do Código de Processo Civil incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. Esta norma impõe ao juiz aquilo que hodiernamente se pode chamar de posição proactiva na condução da produção de prova, com vista à realização de todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade, no que goza mesmo de autênticos poderes-deveres de actuação oficiosa que acentuam a necessidade de só muito residualmente indeferir o requerido pelas partes com esse objectivo. Se o juiz tem esse poder-dever, naturalmente que a decisão sobre os requerimentos das partes de realização de diligências probatórias se deve guiar pelo mesmo critério da necessidade para o apuramento da verdade.
Cumpre referir ainda o seguinte.
Ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, as questões suscitadas pelas intervenções do Administrador da Insolvência e pelo credor são duas e distintas.
Por um lado, a questão de saber se perante a actual redacção do Código do Trabalho (mais especificamente do artigo 333.º) continua válida a doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2016 que fixou a interpretação jurídica de que «os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003».
Por outro lado, saber se, beneficiando o trabalhador de privilégio imobiliário, se este se estende à totalidade dos bens da empregadora insolvente afectos à sua organização empresarial ou apenas ao bem ou bens específicos que eram o local onde aquele concreto trabalhador exercia as suas funções.
O Acórdão coloca e decide a questão de saber se o privilégio imobiliário especial não existe em relação a imóveis construídos pela empresa de construção civil empregadora para serem vendidos e não propriamente para afectar ao exercício da sua actividade comercial ainda que o trabalhador exerça funções na construção desses imóveis (os imóveis são o produto da actividade e não o local de exercício da actividade social, apesar de, para os construírem, os trabalhadores terem de desempenhar funções nos imóveis destinado à venda).
Questão distinta é a de saber se em relação aos imóveis sobre os quais recai o privilégio imobiliário especial, o trabalhador pode reclamar o privilégio apenas em relação ao bem no qual exerce especificamente a sua actividade ou pode fazê-lo relativamente a todos os imóveis afectos ao desenvolvimento da actividade comercial da empresa empregadora.
A jurisprudência não dá uma resposta uniforme a estas questões, pelo que a sentença deve apresentar na respectiva fundamentação (ou no elenco dos factos não provados) os factos necessários para decidir as questões, qualquer que seja a solução plausível que venha a ser adoptada.
De todo o modo, essa resposta depende do que se apurar sobre os imóveis onde a devedora insolvente desenvolvia a sua actividade comercial de construção civil (v.g. escritórios, armazéns, depósitos, stands de venda, instalações produtivas) e sobre os imóveis que, no exercício dessa actividade comercial, ela construía para vender a terceiros. É necessário saber, por referência aos bens apreendidos para a massa insolvente, que instalações possuía a empresa, onde tinha os seus escritórios administrativos, comerciais ou técnicos, onde guardava os seus bens e equipamentos, que fracções foram construídas para vender, que função exercia o trabalhador recorrente, em que imóvel a exercia.
Na sentença recorrida não está enunciado qualquer facto que elucide sobre estes aspectos (ou outros) que estavam co-envolvidos na lista apresentada pelo Administrador da Insolvência onde se afirma possuírem os créditos dos trabalhadores tais privilégios creditórios.
Deve pois concluir-se que tendo admitido, mesmo depois de realizada a audiência de julgamento, o Administrador da Insolvência a modificar a lista de créditos apresentada e chamado o credor a pronunciar-se sobre essa modificação, estando esta dependente do apuramento de factos que permitam decidir se o crédito goza de privilégio imobiliário especial, o tribunal a quo não podia proferir sentença de graduação, sem consentir ao trabalhador indicar e produzir os meios de prova que julgue pertinentes para fazer a prova desses factos (se necessário reabrindo a audiência de julgamento), estando-lhe vedado limitar esses meios de prova à prova documental.
Por outro lado, não havendo na sentença factos que permitam proferir essa decisão nem sendo possível a esta Relação julgá-los por efeito de uma inexistente falta de iniciativa alegatória ou probatória do credor, a Relação não pode substituir-se à 1.ª instância e realizar a graduação dos créditos.
Nessa medida, procede o recurso, devendo a sentença recorrida ser revogada, ordenando-se a realização das diligências de prova destinadas ao apuramento dos factos a que se fez referência, incluindo a produção dos meios de prova a indicar pelo credor, e posteriormente a prolação de nova sentença.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, relegando para momento posterior à tramitação ordenada a decisão sobre a natureza do crédito do trabalhador recorrente e a sua graduação.
Custas do recurso pela massa insolvente.
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Porto, 7 de Fevereiro de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]