Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5544/11.6TAVNG-L.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
PAGAMENTO DA PRESTAÇÃO TRIBUTÁRIA
REPARAÇÃO
JULGAMENTO
Nº do Documento: RP201603165544/11.6TAVNG-L.P1
Data do Acordão: 03/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 933, FLS.152-156)
Área Temática: .
Sumário: I - O RGIT é uma lei especial relativamente ao direito Penal (Código Penal) e regulou de forma expressa a questão relativa à reposição da verdade fiscal e pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais, nos artºs 22º e 44º;
II – O legislador no RGIT previu a possibilidade de na pendencia do processo crime haver pagamento da divida ou restituição dos benefícios obtidos através da acção ilícita em todos as suas fases: inquérito (artº 44º1), instrução (artº 44º2) e julgamento – até à decisão final ou posteriormente no prazo nela fixado (artº 22º2), e fixou as suas consequências/efeitos;
III – Não existe, no RGIT, lacuna a ser preenchida, com o recurso às normas do Código Penal, em especial ao regime dos artºs 206º e 217º CP, por aplicação subsidiária deste (artº 3º RGIT);
IV- As diferenças de regime (RGIT e CP) justificam-se pela diversa naturezas dos bens jurídicos protegidos em cada um deles, sendo que no RGIT está em causa um bem jurídico público relativamente ao qual nem a administração fiscal bem a Segurança Social podem dispor livremente e, pelas acentuadas necessidades de prevenção geral no domínio da criminalidade fiscal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 5544 11.6TAVNG-L.P1
Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
O Ministério Público junto da Comarca do Porto, Instância Central Criminal, inconformado com o despacho proferido nos autos acima referenciados (Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 17.11.2015) que, nos termos dos artigos 206º nº 1 do Código Penal e art. 87º do Regime Geral das Infracções Tributárias, julgou extinto o procedimento criminal relativamente ao arguido B… (acusado da prática do crime de burla tributária p. e p. pelo artigo 87º do RGIT), recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1º O Ministério Público discorda da decisão que determinou a extinção do procedimento criminal contra o arguido B… e o consequente arquivamento dos autos por força da aplicação do disposto no art. 206º do Código Penal aos crimes de burla tributária, p. e p. pelos arts. 87º nº 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, de que vinha acusado, por força da aplicação subsidiária àquele diploma legal avulso das disposições legais enunciadas no Código Penal, conforme art. 3º a) do RGIT.
2º O Ministério Público defende que o disposto no art. 206º do Código Penal não é aplicável aos ilícitos criminais tipificados no Regime Geral das Infracções Tributárias porquanto sendo uma lei especial a mesma não contempla a possibilidade de aplicação do mencionado normativo, tipificado no Código Penal apenas para crimes contra o património e propriedade, e sem remissão da sua aplicação a crimes tipificados em legislação avulsa, ainda que de natureza análoga aos tipificados na legislação comum.
3º A remissão realizada pelo art. 3º a) do RGIT contempla apenas uma remissão para as normas gerais do Código Penal passíveis de aplicação a qualquer ilícito criminal, ainda que tipificados em legislação avulsa, e não para normas específicas, como é o caso do art. 206º do Código Penal, aplicável a um núcleo restrito de ilícitos comuns.
4º O bem jurídico protegido no crime de burla tributária à Segurança Social de que os arguidos se encontram acusados, p. e p. pelo art. 87º do RGIT, não visa apenas a protecção do património do Estado, como parece ter sido o entendimento perfilhado no despacho recorrido, e, por isso, passível de ter um tratamento idêntico ao património e propriedade dos particulares afectados pelo acto criminoso, mas antes a protecção do erário público enquanto interesse da pessoa ou da comunidade na manutenção ou integridade de um certo Estado, a quebra da relação de confiança em que assenta a relação fiscal entre o beneficiário e o Estado, não se limitando o legislador a criminalizar o recebimento indevido de um beneficio, para o qual a lei prevê a utilização dos cabais mecanismos em sede de execução fiscal, mas sobretudo o sancionamento criminal de comportamentos dolosos dos contribuintes que atentem contra a lealdade e cooperação para com o Estado.
5º A reparação dos prejuízos causados pelos arguidos à Segurança Social pela sua actuação apenas poderia ter sido objecto de valoração no âmbito do regime consagrado pelos arts. 22º e 44º do RGIT que prevêem expressamente a possibilidade de uma aplicação aos arguidos do instituto da dispensa de pena, ou porventura, a atenuação especial da mesma ou o arquivamento com dispensa de pena.
6º Se fosse intenção do legislador permitir a extinção do procedimento criminal nos ilícitos de natureza fiscal tipificados no RGIT e, mormente no caso em apreço, da burla tributária, por força da aplicação do art. 206º do Código Penal, expressamente o teria feito consignar no corpo do art. 87º do RGIT acrescentando um novo número àquele normativo ou introduzindo no corpo daquele art. 206º do Código Penal um número que permitisse a sua aplicação subsidiária aos crimes nele tipificados em legislação avulsa de natureza análoga.
7º A aplicação do disposto no art. 206º do Código Penal há-de resultar de factos que inequivocamente exprimam um sentimento espontâneo, livre e não pressionado ou determinado por condicionalismos exógenos de restituição ou de reparação, como sucedeu, no caso do arguido em que que subjacente à aludida reparação esteve sobretudo procurar obter a regularização da sua carreira contributiva junto da Segurança Social em ordem a que no futuro continuasse a poder beneficiar do pagamento de prestações contributivas e não a expiação da sua culpa pela reparação do mal causado e reconhecimento do desvalor da sua acção.
8º Ainda que porventura fosse passível de aplicação o disposto no art. 206º do Código Penal aos crimes de burla qualificada tributária de que o arguido se encontrava acusado, o que só por mera hipótese se pode considerar, sempre se nos afiguraria ser indispensável a realização quanto ao mesmo de julgamento pelos factos de que o mesmo se encontrava acusado porquanto sempre a actuação do mesmo seria passível punição pelo eventual crime de falsificação de documento consubstanciado no envio de declarações de remunerações falsas ao Instituto de Segurança Social, do qual poderia vir a resultar, em sede de uma alteração da qualificação jurídica a operar nos termos do art. 358º do Código de Processo Penal, a condenação daquele, tal como previsto pelo art. 87º nº 4 do RGIT.
9º Violaram pois os Mmos Juízes as normas tipificadas nos arts. 3º a); 22º, 44º e 87º nº 1, 2 , 3 e 4 do RGIT ; art. 206º do Código Penal e 358º do Código de Processo Penal ao interpretarem as mencionadas normas no sentido de que a reparação dos prejuízos causados à Segurança Social pelo arguido conduziria, por força da aplicação subsidiária das normas do Código Penal enunciadas no art. 3º a) do RGIT e do disposto no art. 206º do Código Penal, à extinção do procedimento criminal pelo crime de burla tributária de que o arguido vinha acusado, nos termos do art. 87º nº 1, 2 e 3 do RGIT, e, consequentemente, não daria lugar à aplicação, no caso em apreço, do disposto no art. 22º do RGIT, mas de imediato à extinção do procedimento criminal contra o mesmo, sem a possibilidade daquele ser julgado com eventual alteração da qualificação jurídica do ilícito de que vinha acusado, nos termos do art. 358º do CPP.
10º O sentido com que os Mmos. Juízes interpretaram aqueles normativos no entender do Ministério Público contraria a vontade do legislador sendo que a única interpretação que se nos afigura consentânea com o texto daquelas normas a de que a aplicação subsidiária das normas enunciadas no Código Penal e Processual Penal, a que alude o art. 3º a) do RGIT, refere-se apenas e tão só às normas gerais enunciadas naqueles normativos, aplicáveis a todos os crimes quer tipificados em legislação avulsa quer crimes comuns, e, por isso, não seria passível a aplicação do disposto no art. 206º do Código Penal aos crimes de burla tributária de que os arguidos vinham acusados, tipificados no art. 87º do RGIT, por se tratar de uma norma aplicável apenas aos crimes nela enunciados e aos crimes onde a mesma se encontra expressamente prevista, sem a possibilidade da sua remissão para os crimes de natureza fiscal tipificados no RGIT, que pela natureza do seu bem jurídico não permitem a aplicação daquele normativo com a consequente extinção do procedimento criminal, mas apenas e tão só, havendo lugar a uma reparação do prejuízo, a possibilidade de aplicação do instituto da dispensa de pena ou da atenuação especial da pena ou do arquivamento por dispensa de pena, conforme previsto nos arts. 22º e 44º do RGIT.
11º A decisão proferida no sentido da extinção da responsabilidade criminal do arguido violou ainda o disposto no art. 358º do CPP ao considerar que estando os factos pelos quais o arguido vinha acusado apenas tipificados no crime de burla tributária não poderiam os Mmos. Juízes conhecer dos factos que lhes eram imputados em sede de audiência de julgamento, o que, a nosso ver, contraria o disposto no art. 358º do CPP, considerando que sempre teriam os Mmos. Juízes que, em face dos factos imputados, procederem á realização da audiência de julgamento e dando-se como provados os factos ali descritos, imputados ao arguido, procederem à eventual alteração da qualificação jurídica para um crime de menor gravidade, como seria o de falsificação de documento, por força do disposto no art. 358º do CPP e art. 87º nº 4 do RGIT.
12º Importa ainda mencionar que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 412º nº 5 do CPP foram já interpostos anteriormente recursos por idêntica decisão proferida nos autos, declarando extinto o procedimento criminal nos mesmos moldes em relação aos arguidos C…; D…; E…, F…, G…, H…, I…, J…; L…; M…; N…; O… e P… recursos estes que foram retidos e em relação aos quais o Ministério Público continua a ter interesse na sua apreciação, sendo que em relação ao modo de subida desses recursos foi já interposta reclamação.
Terminou pedindo que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se a mesma por decisão que determine o prosseguimento dos autos, com vista à designação de datas para a realização da audiência de julgamento em relação ao arguido B… pelos factos e crime pelos quais o mesmo se encontra acusado.
*
Nesta Relação, a Ex.ª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e consequente revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que determine o prosseguimento do procedimento criminal.
Cumpriu-se o disposto no art. 417º,2 do CPP.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
*
2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto
O despacho recorrido (proferido na Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 17.11.2015) é do seguinte teor:
“ (…)
Após, o Mmo. Juiz Presidente proferiu o seguinte
DESPACHO
Face à posição de concordância hoje assumida pela Assistente Instituto de Segurança Social e ao disposto nos art° 206°, 217° e 218° do C. Penal, aplicáveis ao caso, no entender do Tribunal, por força do disposto no art° 3°, al. a) do RGIT, verificando-se a reparação integral dos prejuízos causados, e a concordância da ofendida Instituto de Segurança Social, o Tribunal colectivo delibera declarar extinta a responsabilidade criminal do arguido B… (59), pela prática do crime de burla tributária de que vinha pronunciado.
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique.
(…) ”
2.2 Matéria de direito
2.2.1. Objecto do recurso
Nos presentes autos, o arguido B… foi acusado da prática de um crime de burla tributária qualificada, p. e p. pelo art. 87º, n.º 1 e 2 do RGIT, com referência ao art. 202º,al.a) do C.P, ex vi da al. d) do art. 11º do RGIT.
Em 6-10-2015 a defensora do arguido B… requereu a extinção do procedimento criminal, nos termos do art. 206º, 1 do C.P, por ter procedido à reparação do prejuízo, com pagamento integral do montante reclamado pelo Assistente, “Instituto da Segurança Social IP”.
Em 17-11-2015 o Instituto da Segurança Social confirmou o pagamento, pelo arguido B…, do montante de € 222,30 (duzentos e vinte e dois euros e trinta cêntimos) e declarou concordar com a extinção do procedimento criminal relativamente ao arguido.
Nessa mesma data, no decurso da audiência de discussão e julgamento, o Juiz Presidente ditou para a acta o despacho objecto do presente recurso e acima transcrito.
O MP recorreu desse despacho, por entender que o artigo 206º do C.P não é aplicável ao caso.
2.2.2. Análise dos fundamentos do recurso
O despacho recorrido declarou extinta a responsabilidade criminal do arguido B…, pela prática do crime de burla tributária de que vinha pronunciado, “ao abrigo do disposto nos arts° 206°, 217° e 218° do C. Penal, aplicáveis ao caso (…) por força do disposto no art° 3°, al. a) do RGIT”. O Tribunal a quo aplicou assim, sem qualquer justificação, o art. 206º do C. Penal, limitando-se a invocar o art. 3º do RGIT, ou seja, considerou (implicitamente) estar perante uma lacuna de regulamenta ção e, consequentemente, aplicou o direito penal subsidiário.
O MP/recorrente entende que não existe qualquer lacuna, pois o RGIT regula exaustivamente, nos artigos 22º e 44º, as consequências do pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais, prevendo expressamente a possibilidade de dispensa da pena ou arquivamento dos autos, com dispensa da pena. Argumenta ainda o MP que, mesmo a ser aplicável o art. 206º do C. Penal, não era possível, nesta fase do processo (isto é, durante a audiência de discussão e julgamento) julgar extinto o procedimento criminal, pois o comportamento do agente poderia vir a ser punido pela prática do crime de falsificação, tal como previsto no art. 87º, 4, do RGIT.
Vejamos a questão.
O n.º 1 do art. 206º do C. Penal, sob a epígrafe “Restituição ou reparação”, refere o seguinte:
“1. Nos casos previstos nas alíneas a), b) e) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 204º e no n.º 4 do artigo 205º, extingue-se responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados”.
Relativamente ao crime burla, o n.º 4 do artigo 217º do C. Penal refere o seguinte: “É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206º e 207º”. Idêntica remissão é feita no n.º 5 do art. 218º, sob a epígrafe “Burla relativa a seguros”.
Por seu turno, o art. 3º do RGIT diz-nos que são aplicáveis subsidiariamente, “Quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar”.
A questão de saber se o art. 206º, 1 do C.P é (ou não) aplicável, é assim a de saber se o RGIT, relativamente aos efeitos da reparação integral dos prejuízos causados, contém (ou não) uma lacuna. Colocada a questão noutra perspectiva, o que importa é saber se o RGIT regula toda a matéria relativa à relevância do pagamento integral do prejuízo causado.
Na verdade, perante um complexo normativo que pode qualificar-se como lei geral (Código Penal) e um outro que pode qualificar-se como lei especial (RGIT), a dificuldade interpretativa radica em saber se a circunstância de a lei especial não se referir à extinção do procedimento criminal, quando o agente proceda à reparação integral dos prejuízos, até à publicação da sentença em 1ª instância, é uma lacuna a preencher pela aplicação subsidiária do C. Penal (art. 3º do RGIT), ou não é lacuna nenhuma, mas sim uma derrogação da lei geral.
A nosso ver, e adiantando desde já a conclusão, pensamos que o MP tem razão. Na verdade, o Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) é uma lei especial relativamente ao direito penal (C. Penal) e regulou de forma expressa a questão relativa à reposição da verdade fiscal e pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais, nos seus artigos 22º e 44º, cujo teor transcrevemos:
Artigo 22.º
Dispensa e atenuação especial da pena
1 - Se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a 2 anos, a pena pode ser dispensada se:
a) A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves;
b) A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos, até à dedução da acusação;
c) À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.
2 - A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado.”
“Artigo 44.º
Arquivamento em caso de dispensa da pena
1 - Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, ouvida a administração tributária ou da segurança social e com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa.
2 - Se a acusação tiver sido já deduzida, o juiz de instrução, enquanto esta decorrer, pode, com a concordância do Ministério Público e do arguido, ouvida a administração tributária ou da segurança social, decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos da dispensa da pena.
Destes preceitos legais (ora transcritos) decorre que a restituição do benefício injustificadamente auferido (como ocorreu no presente caso) permite, verificados os demais pressupostos: (i) a dispensa da pena, se a restituição ocorrer até à dedução da acusação; (ii) a atenuação especial, se tal ocorrer até à decisão final ou no prazo nela fixado; (iii) o arquivamento do processo se, para além dos requisitos da dispensa da pena, houver concordância da Administração Fiscal ou da Segurança Social e do Juiz de Instrução, na fase de inquérito ou na fase de instrução, sendo neste caso exigida a concordância do MP.
O legislador previu assim a possibilidade de, na pendência do processo-crime, haver pagamento da dívida ou restituição dos benefícios obtidos através da acção ilícita, em todas as suas fases: inquérito (art. 44º, 1); instrução (art. 44º, 2) e julgamento - até à decisão final ou, posteriormente, no prazo nela fixado (art. 22º, 2). O cuidado do legislador em diferenciar as diferentes fases em que pode ocorrer o pagamento das quantias em dívida ou dos benefícios ilegítimos obtidos, com consequências jurídicas diversas, em função da fase processual em que tal ocorra, não evidencia qualquer lacuna. Antes pelo contrário, mostra que a situação de facto (restituição dos benefícios) foi ponderada e expressamente regulada pelo legislador.
Constatamos ainda que as consequências da reparação integral do prejuízo são diversas no RGIT e no C. Penal, sendo o regime previsto no RGIT mais exigente. Exigência acrescida que decorre, desde logo, de só ser admissível o arquivamento do processo (situação similar à extinção do procedimento criminal no CP) desde que se verifiquem os pressupostos da dispensa da pena previstos no art 22º, entre os quais se destacam a ponderação da gravidade da ilicitude e das razões de prevenção (cfr. art. 44º e 22º). Ou seja, no domínio da criminalidade fiscal, nem sequer basta (i) o pagamento e (ii) o acordo da Administração Tributária ou da Segurança Social, para que o processo possa ser arquivado, nos termos do artigo 44º.
As diferenças de regime justificam-se pela diversa natureza dos bens jurídicos protegidos nos crimes de burla e nos crimes de burla fiscal; neste último está em causa um bem jurídico público, relativamente ao qual nem a Administração Fiscal nem a Segurança Social podem dispor livremente. E justificam-se ainda pelas necessidades de prevenção geral, muito mais acentuadas no domínio da criminalidade fiscal, até por razões históricas de menos consciencialização pública da ilicitude fiscal.
Deste modo, encontramos diferenças claras sobre a relevância jurídica da restituição do benefício ilegítimo, nos regimes previstos no Código Penal e no RGIT, sendo que este último mostra um maior cuidado e exigência na apreciação de tal questão. Com efeito, nos casos em que é admissível o arquivamento do processo (art. 44º do RGIT), o julgador só o poderá fazer quando a ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves e a tal se não opuserem razões de prevenção.
Esta diferença de regimes e sua razão de ser mostram-nos que não estamos perante uma qualquer lacuna de regulamentação do RGIT (a preencher pela aplicação subsidiária do C. Penal), mas sim perante uma regulamentação expressa, diferente e enquanto tal justificada.
Se compararmos agora o disposto nos arts 22º,2 do RGIT e 206º,2 do C. Penal constatamos que em ambos os preceitos se prevê a atenuação especial da pena, mesmo que não se verifiquem os pressupostos da dispensa da pena, ou a concordância dos ofendidos. Ou seja, tanto o RGIT como o C. Penal tiveram em conta as situações de facto em que, apesar da reparação do “mal do crime”, os ofendidos não concordam com a dispensa da pena ou a extinção do procedimento criminal.
Do exposto decorre que existem razões para se concluir que o legislador quis regular exaustivamente no RGIT a situação decorrente do pagamento da dívida tributária ou da restituição do benefício ilegitimamente obtido, uma vez que (i) regulou expressamente a relevância de tal comportamento em todas as fases do procedimento (inquérito, instrução até ao julgamento, decisão final ou prazo nela fixado); (ii) fez essa regulamentação de modo diverso do previsto no C. Penal (iii) a justificação dessas diferenças adequa-se à natureza pública do bem jurídico protegido pela incriminação e pelas especiais razões de prevenção.
Nestes termos, impõe-se conceder provimento ao recurso do MP, uma vez que não estamos perante uma lacuna (oculta) a preencher pela aplicação subsidiária do C. Penal (art. 3º do RGIT) e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.
Sem custas.

Porto, 16/03/2016
Élia São Pedro
Donas Botto