Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
398/12.8T2ILH.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIRECÇÃO EFECTIVA DE VIATURA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Nº do Documento: RP20191210398/12.8T2ILH.P1
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A direção efetiva do veículo é daquele que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento, independentemente da titularidade ou não de algum direito sobre o mesmo, a apreciar caso a caso.
II - Se o proprietário de um veículo o entrega para reparação a um mecânico e este fica com o bem à sua guarda, enquanto esta durar aquele perde a possibilidade de controlar, de facto, a sua utilização e o seu funcionamento, passando a ser o segundo quem, realmente, tem a sua direção efetiva, a que acresce interesse na sua reparação.
III - Ocorrendo um acidente com o veículo naquelas condições, conduzido pelo mecânico, o proprietário não pode ser responsabilizado pelo risco.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 398/12.8T2ILH.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Ílhavo – J1

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Adj. Desemb. Francisca Mota Vieira

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, divorciado, serralheiro, contribuinte fiscal n.º ………, residente na Rua …, n.º .., ….-… …, em 11 de setembro de 2012 instaurou ação declarativa comum sob a forma de processo sumário contra
C…, casado, mecânico, portador do BI n.º ……., emitido pelos SIC de Aveiro, residente na Rua …, lote ., n.º .., …. …; e
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, pessoa coletiva nº ………, com sede na Avenida …, n.º .., ….-… Lisboa, alegando essencialmente
que foi interveniente em acidente de viação ocorrido no dia 13.9.2009, do qual foi culpado o R. C…, condutor do outro veículo que então não beneficiava de seguro válido, e do qual resultaram vários danos.
Formulou o seguinte pedido:
«Termos em que, e nos mais de direito, julgando-se procedente, por provada, a presente acção, deverá a ré ser condenada a pagar:
a) 18.000,00 € pelos danos temporários, permanentes, estéticos e Quantum Doloris;
b) 9.915,58 € pelos danos patrimoniais;
c) 1.000,00 € pela privação do uso do veículo;
d) a indemnização pela privação do uso até à reparação do veículo do autor, calculada
e) os juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, sobre todas as quantias peticionadas, desde a citação e até integral pagamento, cuja liquidação se protesta fazer ainda na presente acção, ou já em execução de sentença;
f) as custas e condigna procuradoria.» (sic)
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D…, solteira, portadora do Bilhete de Identidade nº …….., com o NIF ………, residente na Rua …, Ílhavo, instaurou também ação declarativa comum sob a forma de processo sumário (ação nº 502/12.6T2ILH) contra E… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. (atualmente com a designação de F… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A)[1], com sede na Rua …, .., Ap. …., Porto;
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, com sede e instalações na Avenida …, nº .., em Lisboa e
B…, acima identificado, alegando, aqui em síntese, que era passageira do motociclo conduzido pelo B…, tendo sofrido danos em consequência do acidente acima identificado, ocorrido entre este e o veiculo conduzido pelo C….
Pediu a condenação dos RR. no pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, da quantia de € 18.869,82, juros de mora vencidos, à taxa legal, desde a citação e vincendos até efetivo e integral pagamento, custas e demais encargos com o processo.
Citados, a R. F…, S.A. e o R. B… contestaram a ação, impugnando a dinâmica do acidente descrita pela A. Pelo R. FGA foi ainda invocado, quanto à A. D…, a exceção de caso julgado e a exceção de prescrição e, quanto ao A. B…, a exceção de ilegitimidade processual passiva e a sua ilegitimidade material. A R. F1.., S.A. invocou igualmente a exceção de prescrição e pugnou ainda pela improcedência do pedido, sustentando que, à data do acidente, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação relativa ao veículo conduzido por C… não estava transferida para a R. seguradora. O R. B… invocou igualmente a exceção de prescrição, pugnando pela sua absolvição do pedido.
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O R. C… apresentou contestação, mas foi desentranhada por ter sido considerada extemporânea.
Por despacho de fls. 134 a 136, foi determinada a apensação de ambas as ações para julgamento conjunto.
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Por despacho de fls. 253 a 255, foi determinada a intervenção principal provocada do lado passivo de G…, proprietário do veículo automóvel ligeiro interveniente no acidente, matrícula ..-..-SZ, o qual, citado editalmente, não apresentou contestação, sendo representado nos autos pelo Ministério Público.
Teve lugar audiência prévia, em duas sessões, onde foi fixado o valor da ação seguido do saneamento processual no qual se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade processual passiva invocada pelas RR., se afirmou a validade e a regularidade da instância e se especificaram o objeto do processo e os temas da prova, ainda seguidos de pronúncia sobre os meios de prova.
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Decorridas várias vicissitudes relacionadas com a instrução do processo, com admissão de novas provas, teve lugar a audiência final, em duas sessões, finda a qual o tribunal proferiu sentença que terminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Face ao exposto, julgo a acção proposta pela Autora D… totalmente improcedente, por não provada, e a acção proposta pelo Autor B… parcialmente procedente, por provada, e em consequência, decide-se:
a) Absolver os Réus Fundo de Garantia Automóvel e F… – Companhia de Seguros, S.A. da instância quanto aos pedidos contra si formulados pela Autora D…;
b) Absolver os Réus B… e G… dos pedidos contra si formulados pela Autora D…;
c) Condenar os Réus Fundo de Garantia Automóvel e C… no pagamento solidário ao Autor B… da quantia de 4.029,50€ (quatro mil e vinte e nove euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% desde a data da citação para os termos da presente acção (sobre o valor de 29,50€) e desde a data da presente decisão (sobre o valor de 4.000,00€) até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se os Réus do demais peticionado.
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Custas por Autores e Réus na proporção do respectivo decaimento – cfr. art. 527.º n.º1 e 2 do C.P.C.»
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Inconformado, recorreu o R. Fundo de Garantia Automóvel de apelação, concluindo assim as suas alegações:
«1. Provando-se a propriedade do veículo, presume-se a direcção efectiva e o interesse na sua utilização pelo proprietário;
2. Incumbia ao proprietário provar a utilização abusiva e contrária ao seu interesse;
3. A entrega do veículo pelo seu proprietário a terceiro para que este promova a sua reparação mecânica não oblitera o juízo presuntivo referido no ponto 1 das conclusões;
4. O facto de o seguro de garagista ser obrigatório não pode implicar a exclusão da responsabilidade do proprietário do veículo sem seguro, sob pena de ficar sem sanção o desrespeito por tal obrigação;
5. Sem conceder,
6. Ainda que não se considere que o réu G… detinha a direcção efectiva e o interesse na circulação do veículo, o mesmo deve ser condenada por ser o proprietário do veículo que omitiu a celebração do contrato de seguro, dando, assim, causa à intervenção do FGA;
7. O Tribunal a quo, não os interpretando da forma acima assinalada, violou o art. 54º, nº 1,2, 3 e 4 do Decreto Lei nº 291/2007 e o artigo 503.º do CC.» (sic)
Termina pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que condene também o R. G…, a par do recorrente (FGA) e do R. C….
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação do R. (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).

Somos chamados a decidir:
1. Se o proprietário de um veículo automóvel sem seguro obrigatório que o entregou a um mecânico para reparação, sem seguro de garagista, perde, ou não, a qualidade de detentor do veículo e se é solidariamente responsável com este e com o FGA, a título de risco, pelos danos consequentes de um acidente de viação em que esse automóvel foi interveniente.
2. Se G… deve ser condenado simplesmente por ter a qualidade de proprietário e ter omitido a celebração do contrato de seguro, dando causa à intervenção do FGA.
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III.
Os factos dados como provados na ação:[2]
1. No dia 13 de Setembro de 2009, pelas 16h10, na Rua …, em Ílhavo, seguia o veículo ..-..-SZ tripulado pelo réu C…, no sentido de marcha Rua …/….
2. Na mesma rua, mas com o sentido de marcha Rua …/Rua …, circulava o veículo ..-..-BU, conduzido pelo autor.
3. Trata-se de uma recta com boa visibilidade e as condições climatéricas apresentavam-se na ocasião bom tempo.
4. Sendo que o local onde ocorrera o acidente era visível por qualquer um dos condutores a mais de 50 metros de distância.
5. O piso apresentava-se pouco irregular e seco,
6. A via estava ladeada com passeio próprio para peões.
7. Ao chegar à entrada do H…, o condutor do veículo ligeiro de passageiros, o réu C… efectuou a mudança de direcção para a sua esquerda, na tentativa de aceder ao hipermercado, e foi embater com a parte da frente do veículo por si conduzido no veículo conduzido pelo autor.
8. Cortando, deste modo, a mão de trânsito do condutor do veículo conduzido pelo autor, atento o sentido de marcha de ambos.
9. Em consequência desse embate, o autor perdeu o controlo do veículo e acabou também por colidir num veículo de matrícula ..-..-JD que estava parado à entrada do referido estabelecimento a fim de entrar na Rua ….
10. O réu C… seguia desatento e demonstrou alheamento às condições e regras de trânsito, com que devia pautar a sua conduta.
11. O réu C… sabendo que o trânsito de processava em ambos os sentidos deveria ter prestado mais cuidado ao tráfego envolvente.
12. Antes de iniciar a manobra, o réu C… deveria assegurar-se previamente que a conseguiria realizar por completo e sem perigo para os demais condutores que circulam na hemi-faixa contrária.
13. O condutor C… apresentava uma taxa de alcoolemia (TAS) de 0,27g/l).
14. O Réu C… é mecânico e, na altura, conduzia, a título pessoal, um veículo propriedade do seu cliente G… e que lhe havia sido entregue para reparação, circulando sem seguro de responsabilidade civil válido.
15. Como resultado do acidente acima descrito, o autor sofreu ferimentos que o obrigaram a receber tratamento nas urgências hospitalares, sendo transportado para o Hospital …, E.P.E. de Aveiro.
16. No Hospital …, EPE, foram efectuados exames radiológicos ao autor, tendo-lhe sido dada alta ainda nesse dia.
17. Cerca de três semanas após o acidente e como consequência deste, o pé esquerdo do autor infectou, pelo que foi submetido a uma intervenção cirúrgica no Hospital …, tendo ficado internado durante cerca de 15 dias.
18. De Outubro de 2009 a Janeiro de 2010, o autor foi seguido em consultas externas no Hospital …, tendo, a partir de Janeiro, iniciado sessões de fisioterapia.
19. Foi atribuída baixa médica ao Autor a partir do dia 05 de Outubro de 2009 até 16 de Outubro de 2009.
20. Apesar dos tratamentos que recebeu, a recuperação do autor não foi completa, ficando a padecer de dores no pé esquerdo.
21. O autor tem de andar medicado para suportar as dores e poder trabalhar, não conseguindo, porém, por diversas vezes, correr, nem mesmo caminhar prolongadamente.
22. A lesão sofrida limita a capacidade motora do autor, o que deixa profundamente abalado e revoltado.
23. Quer no dia do acidente, quer nos dias seguintes, até ao dia em que foi submetido a intervenção cirúrgica, o autor teve dores lancinantes no corpo, em especial incidência nas zonas directamente traumatizadas.
24. Ao longo do tempo em que andou em tratamentos e convalescença, sofreu dores fortíssimas: tendo-lhe sido feito, no bloco operatório, um desbridamento e drenagem de hematoma infectado do pé esquerdo, teve limitações de movimentos durante 5 meses, período em que ficou impossibilitado de andar, locomovendo-se com o auxílio de canadianas e cadeira de rodas, fez várias sessões de fisioterapia, deslocou-se inúmeras vezes a consultas no Hospital …, e esteve impossibilitado durante esse período de trabalhar.
25. Todo o relatado supra causou também muita angústia (incerteza quanto ao futuro e sucesso dos tratamentos), medo (nos tratamentos e véspera da intervenção cirúrgica) desespero (com a morosidade da recuperação) e frustração (com o receio de não voltar a andar na sua plenitude, de praticar desportos, de dançar, em suma de fazer uma vida igual à que tinha antes do acidente).
26. O autor suportou os custos com as consultas e sessões de fisioterapia que realizou no Hospital …, EPE, tendo dispendido o valor global de 29,50 €.
27. A situação económica do Autor não lhe permitiu suportar o custo com a reparação do motociclo.
28. O autor tinha adquirido o seu veículo na véspera do dia do acidente.
29. Desde a data do acidente até ao presente não foi entregue ao autor qualquer viatura de substituição.
30. Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas no auto, a Autora era transportada no veículo motociclo BU.
31. O condutor do motociclo BU não era à data do acidente portador de habilitação legal que lhe permitisse efectuar o exercício da condução de qualquer veículo motorizado na via pública.
32. Como consequência do acidente mencionado a Autora sofreu ferimentos e teve que ser transportada de urgência ao Hospital …, em Aveiro,
33. Foi-lhe diagnosticada a “secção parcial do Tendão de Aquiles à esquerda”,
34. No próprio dia do sinistro, foi submetida a intervenção cirúrgica denominada “tenorrafia do tendão de Aquiles”.
35. Ficou internada no Hospital desde o dia 13 de Setembro até ao dia 21 de Setembro, data em que teve alta hospitalar, passando a ser seguida em regime de consulta externa.
36. Foi retirado o gesso no dia 06 de Novembro de 2009,
37. Após cicatrização, por indicação médica passou a efectuar tratamentos de fisioterapia, tendo-os iniciado a 29 de Janeiro de 2010 e terminado a 01 de Março do mesmo ano.
38. Desde o dia em que teve alta hospitalar apenas de deslocava com o auxilio de canadianas, que manteve até Dezembro de 2009,
39. Iniciou tratamento de fisioterapia (1º tratamento) a 19 de Novembro de 2009 e terminou-o a 01 de Março de 2010 (2º tratamento).
40. Durante o mês de Janeiro de 2010 até meados de Fevereiro do mesmo ano passou a locomover-se apenas o auxílio de uma muleta, a qual veio a deixar também poucos dias antes de terminar o segundo tratamento de fisioterapia.
41. A Autora teve um período de convalescença, que durou cerca de 7 meses, absolutamente impeditivo para o exercício de qualquer actividade laboral ou de lazer.
42. Durante este período a Autora não conseguia exercer qualquer tipo de actividade em que fosse necessário permanecer de pé,
43. Sempre que a A. por qualquer motivo passa mais tempo que o normal de pé fica com dores na região do calcanhar,
44. Tem bastante dificuldade em subir e descer escadas,
45. Não consegue usar todo o tipo de calçado e passou por isso a usar apenas sapatos de materiais flexíveis e moldáveis na zona da lesão, sob pena de agudizar ainda mais as dores que sente.
46. A Autora é mãe de uma criança que contava na altura do acidente com apenas um ano de idade e que, como é normal necessitava de toda a atenção e cuidados da mãe, a qual devido à situação em que se encontrava não lhos não podia dar.
47. De facto, por força do acidente relatado nos presentes autos, a Autora sofreu um período de défice funcional temporário total fixável em 9 dias, um período de défice funcional temporário parcial fixável em 154 dias e um quantum doloris fixável em grau 4/7; apresenta défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 2 pontos, com sequelas compatíveis com o exercício da actividade profissional, mas que implicam esforços suplementares e um dano estético permanente fixável no grau 2/7.
48. A Autora tem que liquidar ao Hospital … a quantia de 1.957,97€ (mil novecentos e cinquenta e sete euros e noventa e sete cêntimos) relativas aos tratamentos prestados por esse hospital.
49. Tendo liquidado já a quantia de 55,20€ relativos a taxas moderadoras.
50. À data do acidente, o Réu C… não havia celebrado contrato de seguro de garagista.
51. A Autora intentou uma acção declarativa sob a forma de processo sumário contra os aqui Réus Fundo de Garantia Automóvel e E… - Companhia de Seguros, S.A., qual correu termos sob o n.º 495/11.7T2ILH, a qual tinha como causa de pedir o acidente de viação ocorrido no dia 13/09/2009, sendo intervenientes os veículos de matrícula ..-..-SZ e ..-..-BU, e tendo a Autora formulado um pedido no valor de € 22.869,82 a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sobredito acidente. – cfr. certidão junta aos autos em 24/05/2019 e que aqui se dá por reproduzida.
52. No processo referido em 51) foi proferida sentença transitada em julgado em 16/12/2011 a qual concluiu julgar a acção inepta e absolver os Réus do pedido.
53. A Autora D… intentou a presente acção em 18/10/2012.
54. O Autor / Réu B… foi citado para os termos da presente acção proposta pela Autora D… em 22/10/2012.
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Foi considerada não provada a seguinte factualidade:[3]
a) O réu conduzia, nas circunstâncias de modo, tempo e lugar supra descritas, o veículo com a matrícula ..-..-SV.
b) Ao Autor foi atribuída baixa médica até 12 de Fevereiro de 2010.
c) À data o Autor auferia a retribuição mensal de 450,00 €.
d) O autor despendeu ainda da quantia global de 156,39 € em medicamentos.
e) Às despesas que o autor suportou, acrescem outras que estão por liquidar, no valor global de 4.942,21 €, peticionadas pelo Hospital … ao autor, referentes a uma Nota de Débito, no valor de 13,00 € e às facturas n.ºs 9006498 e 9007520, no valor de 4.812,01 € e 117,20 €.
f) Em resultado da colisão verificada, o veículo do autor sofreu inúmeros danos materiais obrigando à reparação e substituição das seguintes peças: 2 gaxetas cabeçote do cilindro, 4 anéis de borracha, 8 molas, 2 anéis de borracha, 2 juntas cilindro, 1 junta 2, 1 junta T. motor, 2 jogos de anéis (STD), 1 carter conj., 1 tampa lateral esquerda preta, 2 bainhas suspensão, 1 lanterna traseira completa e 1 estribu traseiro conj., no valor global de 2.544,48 €.
g) O condutor do veículo BU circulava a uma velocidade seguramente superior a 50 Km/hora.
h) Motivo pelo qual não conseguiu parar o veículo a tempo de evitar a colisão com o SZ.
i) A Autora desconhecia que o condutor do motociclo (BU) não era titular de carta de condução.
j) Alguns dias após a ocorrência do acidente, a Autora tomou também conhecimento de que o motociclo (BU) não tinha seguro válido.
k) A Autora era uma jovem extremamente dinâmica e com enorme apetência para o desporto, designadamente para a corrida, a qual deixou de praticar devido à lesão sofrida.
l) Estava inserida num grupo de amigas onde era habitual fazerem jogging duas vezes por semana, actividade que deixou de fazer.
m) Durante o período de recuperação teve necessidade de se deslocar para consultas e para outras actividades diárias, utilizando para o efeito transportes públicos, principalmente o táxi, com os quais despendeu em média a quantia de 5,00€/dia.
n) O condutor/proprietário do veículo SZ havia transferido a responsabilidade civil para a Ré E…, Companhia de Seguros, S.A. por contrato de seguro titulado pela apólice nº …………...
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IV.
1. Importa saber se se mantém a presunção da direção efetiva e interesse na utilização de um veículo pelo proprietário que, sem seguro válido à data do acidente, o entrega para reparação, a um terceiro, mecânico, sem seguro de garagista, que o conduzia nas circunstâncias do sinistro, devendo o proprietário responder solidariamente com este e com o FGA, a título de risco, pelos danos consequentes
Em termos semelhantes, somos chamados a verificar se a sentença recorrida decidiu bem ao não responsabilizar pelo risco e ao abrigo do art.º 503º, nº 1, do Código Civil, o proprietário de um veículo que foi interveniente num acidente de viação quando era conduzido por um mecânico de uma oficina onde aquele o entregara para reparação, tendo tal condutor agido com culpa.
Aquele normativo contém as ideias mais caraterísticas da responsabilização pelo risco: “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.” (nº 1).
Nos casos em que haja culpa do condutor do veículo, não sendo ele quem tem a direção efetiva, o detentor pode ser chamado a responder, não apenas como comitente, mas também com fundamento na simples detenção do veículo, respondendo neste caso como criador do risco inerente à sua utilização.
Essa responsabilidade só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art.º 505º).
Tal responsabilidade, pelo risco, depende de duas características cumulativas:
a) Ter o visado a direcção efectiva do veículo causador do dano; e
b) Estar o veículo a ser utilizado no seu próprio interesse.
A primeira destina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objetiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências para que o veículo funcione sem causar dano a terceiros. São normalmente o proprietário, o usufrutuário, o locatário, o comodatário, o adquirente com reserva de propriedade, aquele que utiliza o veículo sem autorização e contra a vontade do que tinha a respetiva direção efetiva, etc. A direção efetiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo; é o elemento fundamental que serve de suporte legal à responsabilidade objetiva na circulação terrestre. Tem a direção efetiva do veículo aquele que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento.
A segunda --- utilização do veículo no próprio interesse --- visa afastar a responsabilidade objetiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem.[4]
Tem-se entendido, tradicionalmente, que o interesse na utilização tanto pode ser um interesse material ou económico (se a utilização do veículo visa satisfazer uma necessidade suscetível de avaliação pecuniária), como um interesse moral ou espiritual[5] (como no caso de alguém emprestar o carro a outrem só para lhe ser agradável), nem sequer sendo caso de exigir aqui que se trate de um interesse digno de proteção legal. Pode tratar-se mesmo de um interesse reprovável (empréstimo do veículo para um fim imoral ou ilícito): seria um contrassenso libertar o dono do veículo da responsabilidade objetiva que, em princípio, recai sobre o detentor, a pretexto de ser contrário à lei ou aos bons costumes o fim que determinou a cedência do veículo.
Posição semelhante segue Dario Martins de Almeida[6] quando refere: “O criador do risco pode ser então o proprietário, o usufrutuário o locatário, o comodatário, possuidor em nome próprio, o adquirente com reserva de propriedade desde que passe a utilizar a viatura, o que a utiliza sem autorização ou contra a vontade daquele que dela tinha a respetiva direcção efectiva, o comprador que passou a ter a direcção do veículo ainda que o contrato seja nulo, aquele que, antes da compra do veículo, vai experimentá-lo, no seu interesse e sob a sua exclusiva direcção, o ladrão que se apodera fraudulentamente da viatura e passa a conduzi-la, o candidato que faz exame de condução e enquanto o faz, o instrutor de condução de automóveis, desde que não seja um mero comissário, o amigo a quem, no interesse dessa amizade, se cede o veículo para um passeio."
Menezes Leitão[7] defende que "direcção efectiva do veículo" significa ter um poder de facto ou exercer controlo sobre o veículo, independentemente da titularidade ou não de algum direito sobre o mesmo.
Tudo depende do real sentido das situações, a ponderar e interpretar caso a caso, sendo indispensável que, em cada um deles, se conjuguem, cumulativamente, os dois requisitos: o da direção efetiva do veículo e o da utilização no próprio interesse; sem essa verificação conjunta não é possível ter essas pessoas como criadoras de risco e responsabilizá-las, em consequência, ao abrigo do art.º 503º, nº 1, do Código Civil.
Desde que a responsabilidade objetiva se funda na criação de risco, deve ela caber àquele que cria o risco, e este é criado por quem tem a efetiva direção do veículo e o utiliza no seu interesse.[8]
Sobre os fundamentos da responsabilidade pelo risco, escreveu Dario Martins de Almeida, no citado Manual[9], já nos idos anos de 1987, que «o espírito do nosso sistema legal está muito longe de reflectir uma inflação crescente da responsabilidade civil pelo risco, apegada apenas à materialidade meramente causal do perigo e cegamente virada só para a reparação do dano. Se bem que o alargamento da responsabilidade a zonas alheias à culpa represente, do ponto de vista filosófico, um corolário das tendências do humanismo integral, como apelo à solidariedade humana, a lógica e o bom senso repelem a aliança dessa responsabilidade sem culpa, com a culpa de quem poderia tê-la evitado. Num regime de regulamentação do trânsito como o que vigora em todo o mundo, isso não representaria mais do que a recompensa para os imprudentes.».
Conforme entendimento generalizado na doutrina e na jurisprudência, da propriedade resulta a presunção de direção efetiva do veículo por parte do proprietário e de utilização no interesse deste. Por presunção natural (art.º 349º do Código Civil), pode concluir-se que o proprietário tem a sua direção efetiva e interessada (art.º 1305º do mesmo código)[10]. Mas já não se extrai presunção de que, entre ele e o utilizador, haja uma relação comitente – comissário; essa relação tem de ser objeto de prova efectiva[11]. Desconhecendo-se os factos integradores desta relação e não ilidida aquela presunção, o proprietário ou aquele que tiver a detenção é responsável a título de risco próprio do veículo, não obstante haver culpa do condutor do seu automóvel[12].
A presunção legal de culpa do condutor por conta de outrem a que se refere o nº 3 do art.º 503º do Código Civil só surge desde que se prove a relação comitente - comissário entre o proprietário e o condutor do veículo, competindo ao lesado ou ao titular do direito à indemnização a prova de tal relação.
No caso, não está demonstrada qualquer relação de dependência entre o proprietário do veículo (R. G…) e o condutor (R. C…). Para ela não basta a mera constatação de o proprietário e o condutor do veículo serem pessoas diferentes[13].
Dario Martins de Almeida, em relação às exclusões de responsabilidade previstas no art.º 505º, entende que dizer que só é excluída em tais hipóteses, pretende também significar que a responsabilidade daquele que tem a direção efetiva do veículo e o utiliza no seu interesse, através do seu condutor, permanece, mesmo no caso de acidente devido exclusivamente a culpa desse condutor[14]. Com efeito, não é havido como terceiro o condutor ou qualquer outra pessoa encarregada do veículo[15].
Nem quando a causa de pedir invocada se consubstancia na culpa efetiva do condutor do veículo fica impedida a possibilidade de decidir responsabilizar aquele que tiver a direção efetiva do veículo e o utilizar no seu próprio interesse (seja ele o proprietário ou outro), pelos danos em causa, como provenientes dos riscos próprios do veículo, nos termos do citado artigo 503º, nº l.
Vejamos, então, no caso concreto quem foi o criador do risco relevante. Se foi o proprietário do veículo ligeiro ..-..-SZ, G…, ou o seu condutor, C… (já definitivamente declarado culpado pelo acidente – art.º 635º, nº 5, do Código de Processo Civil[16]).
De mais significativo, ficou provado que “o Réu C… é mecânico e, na altura, conduzia, a título pessoal, um veículo propriedade do seu cliente G… e que lhe havia sido entregue para reparação, circulando sem seguro de responsabilidade civil válido” (ponto 14 dos factos provados).
Américo Marcelino[17] defende a irrelevância do tempo da cedência do veículo e do espaço percorrido pelo seu detentor, referindo: “Ora, se numa viagem longa, se perde a direcção efectiva (…), não é menos verdade que o proprietário que cedeu o carro por cinco ou dez minutos para o comodatário levar um doente ao hospital mais próximo, também a perdeu. Naqueles cinco minutos o comodatário pode fazer do carro o que muito bem entender, sem que o dono tenha a mais leve possibilidade de o impedir. Desde que o carro se afastou de si, seja por cinco minutos, seja por cinco dias, seja por 50 metros, seja por 50 quilómetros, o proprietário fica fisicamente impossibilitado de dispor do carro. Em suma: — em qualquer dos casos perde a sua direcção efectiva, sendo que num caso a perde por cinco ou dez minutos, e no outro por cinco dias ou semanas. A diferença é, pois, e apenas, quantitativa, não qualitativa.” No período de tempo de cedência, o proprietário perde o controlo do seu veículo, não sendo aceitável que, só por ser o seu dono deva responder a título de risco.
Mais concretamente, no que se respeita à confiança do veículo pelo proprietário a um mecânico, com vista à sua reparação, contribui aquele autor[18] com as seguintes passagens:
«(…) Acontece por vezes o carro ser confiado a um mecânico para reparação, e este, ao experimentá-lo, ter com ele um acidente, lesando terceiros.
(…)
Ora, a experimentação do carro deve enquadrar-se na reparação, de tal forma que, segundo as leis da experiência corrente, sem ela, não pudesse considerar-se completada a reparação. Primeiro que tudo, portanto, haverá que se alegar, provar depois, um nexo de ligação necessária e incindível, entre a reparação e a experimentação.
Em segundo lugar, a experimentação deve ser adequada à reparação. Grande número de avarias no motor ou na instalação eléctrica não exigem que a respectiva reparação seja testada na estrada. Outros consertos, obviamente, a dispensam.
(…)
Mas se tiver que ser experimentado, e para tanto bastar uma volta de dois quilómetros não poderá andar mais que essa distância, sob pena de, então, ocorrendo qualquer acidente, não poderem ser pedidas responsabilidades ao proprietário. Deixaria de haver circulação no interesse do proprietário, que é o pressuposto da responsabilidade pelo risco (art. 503 C. C.).
Pela mesma razão porque não pode levar-se à conta de risco, o passeio que o mecânico dá no carro em reparação, à praia, muito embora até certo ponto isso também constitua um acto de experiência, também não pode o risco justificar, à conta do proprietário, todo o uso que se afaste um milímetro que seja do ponto que, segundo as regras da experiência seria a indispensável a tal experimentação.
É pois, essencial que o A. alegue e mais tarde prove factos donde se tire um nexo de imprescindibilidade e normalidade entre a experiência e a reparação, de modo a que sem aquela esta não fosse possível, ou não pudesse considerar-se perfeita. Deste quadro, a responsabilidade desloca-se, conforme os casos, ou para a pessoa do próprio mecânico, ou para a empresa encarregada da reparação. (…)».
Como afirmámos já, não obstante o espírito humanista e de solidariedade presida à responsabilidade pelo risco com vista à reparação do dano, a tendência não é para alargar essa responsabilidade objetiva, sem culpa, mas para responsabilizar quem teve culpa ou quem a poderia ter evitado, assim prevenindo a responsabilização de alguém que, para além de não ter qualquer culpa na prática do facto, não tinha sequer o controlo do perigo inerente ao funcionamento do veículo e a possibilidade de o prevenir e, por qualquer modo o influenciar, sabendo nós que o perigo nem sequer é exclusivamente inerente ao veículo em si, antes deve ser visto, as mais das vezes, de uma forma dinâmica que passa pelo seu funcionamento sob o binómio máquina-condutor.
Se é certo que a expressão “a título pessoal”[19] incluída no teor do ponto 14 dos factos provados é conclusiva e não deve ser atendida para efeito da decisão, está provada aquela utilização pelo mecânico reparador, a quem foi confiado, não nos parecendo exigível que o proprietário, sem o controlo do seu veículo e desconhecedor das exigências da reparação, demonstre uma utilização abusiva pelo mecânico. Ao entregar o veículo para reparação, o proprietário, o comodatário, o usufrutuário ou qualquer detentor do veículo, está a transferir para a oficina ou para o mecânico reparador a sua direção efetiva, o poder de facto sobre o mesmo, sendo também do destinatário o interesse na sua utilização, experimentando-o ou dando-lhe qualquer outra utilização, em princípio fora do controlo efetivo ou do domínio de facto do transmitente. Ainda que se possa admitir algum interesse deste na utilização do veículo pelo mecânico em razão da pretendida reparação, não é dele, ao menos em regra, a direção efetiva do veículo enquanto estiver na disponibilidade e sob a confiança do garagista.
O art.º 6º, nº 1, da Lei do Seguro Obrigatório (Decreto-lei nº nº 291/2007, de 21 de agosto) faz impender a obrigação de segurar «sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, o adquirente ou o locatário».
Determina ainda o subsequente nº 3: «Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional».
Assim e como se argumenta no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.2.2018[20], tirado no âmbito de aplicação da anterior Lei do Seguro Obrigatório (aprovada pelo Decreto-lei nº 522/85, de 31 de dezembro), mas cuja doutrina essencial se mantém na atual LSO, a par do seguro obrigatório de responsabilidade civil que o nº 1 impõe ao proprietário do veículo, este nº 3 criou, especificamente, um seguro obrigatório de garagista (e das demais entidades nele referidas) que garante a responsabilidade civil para ele decorrente da utilização das viaturas de que é detentor por virtude da suas funções e no âmbito da sua atividade profissional, razão pela qual o nº 2 deste mesmo artigo esclarece que «se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior». Ou seja, “o legislador entendeu equiparar o trânsito do veículo quando utilizado no desempenho das actividades profissionais contempladas no nº 3 do citado art. 2º ao da circulação em circunstâncias normais, obrigando o pontual detentor da direção efetiva ao mesmo regime de seguro obrigatório do proprietário”[21].
Concordamos também com aquele acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2018 quando escreve que tudo isto significa “que a obrigação de efetuar e manter em vigor um contrato de seguro de responsabilidade civil não tem que recair necessariamente sobre o titular da propriedade do veículo, pois como refere Vaz Serra, «o que importa não é saber a quem pertence o veículo, mas quem de facto o dirige e dele se aproveita, isto é, quem cria o risco»[22], salientando que «a finalidade essencial do requisito da direcção efectiva do artigo 503º, nº 1 do C.C., é afastar a responsabilidade daqueles que, a qualquer título, não tenham o poder efectivo da direcção ou disposição do veículo e, por isso, não criem o risco especial derivado da sua utilização[23] ». Ali se acrescentando no sentido por nós já propugnado, que “a direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo e constitui elemento comum a todas as situações referidas, sendo a falta dele que explica, em alguns dos casos, a exclusão da responsabilidade do proprietário” e que “direcção efectiva de um veículo não depende do domínio jurídico sobre este, podendo existir sem esse domínio, da mesma forma que tal domínio pode existir sem ela, pois essa direcção, intencional e expressamente qualificada pela lei como efectiva, se identifica com o poder real (de facto) sobre o veículo em causa”.
Aquele mesmo acórdão tratou de um caso com significativas semelhanças ao presente: a proprietária de um determinado automóvel entregou-o numa oficina para que o vendessem, sendo que o produto da venda, a ela pertencente, constituiria um crédito sobre a oficina vendedora a utilizar no futuro sobre a reparação de veículos automóveis que ela iria solicitar. Concluiu-se que, sendo o mecânico que conduzia o veículo à sua guarda nas circunstâncias do acidente, não era a proprietária, mas aquele condutor, que tinha a sua direção efetiva.
No caso sub judice, não tendo o proprietário G… a direção efetiva do seu veículo quando o acidente ocorreu, por estar à guarda e confiança do garagista, então o seu efetivo detentor, não pode, por essa razão, ser responsabilizado pelo risco nos termos do art.º 503º, nº 1, do Código Civil e solidariamente condenado com o FGA e com o culpado C…. Foi, assim, ilidida a presunção da detenção do proprietário.
Improcede a primeira questão da apelação.
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2. G… deve ser (solidariamente) condenado, apenas por ter a qualidade de proprietário e ter omitido a celebração do contrato de seguro, por assim ter dado causa à intervenção do FGA?
Defende o recorrente que resulta da interpretação do art.º 54º, nºs 1, 2 e 3, da LSO que, ainda que não se aplique ao caso o disposto no art.º 503º do Código Civil, a condição de réu do proprietário do veículo, de pessoa obrigado à celebração do contrato de seguro, determina, só por si, a necessidade da sua condenação.
Acrescenta o recorrente: “Ora, a presente norma habilita o Fundo de Garantia Automóvel a demandar a pessoa obrigada à celebração do seguro, com base, única e simplesmente, no facto de aquela não ter celebrado o respectivo contrato. Ou seja, a lei prevê que se prescinda, relativamente a estas pessoas, da verificação, face a elas, dos pressupostos da responsabilidade civil, por factos ilícitos, ou pelo risco”. Considera que está aqui “um fundamento de responsabilidade novo e autónomo face à responsabilidade civil decorrente dos arts. 483º e 503º do Código Civil: a lei impõe aos obrigados ao seguro a obrigação de ressarcir o Fundo de Garantia das quantias que este despendeu em função do facto de não haverem celebrado contrato de seguro válido e eficaz”.
Pois bem, da própria argumentação do recorrente resulta solução diversa, numa espécie de contradição entre os fundamentos invocados e a sua pretensão recursiva.
Os art.ºs 54º e seg.s da LSO respeita a reembolsos e o nº 1 daquele primeiro artigo refere-se claramente a sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel, pressupondo a sua prévia satisfação da indemnização: «1- Satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso.» O nº 3 prevê: «São solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.° 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro.»
Não é a presente ação destinada a reembolsar o FGA de qualquer indemnização que tenha pago, mas a apurar responsabilidade de pagamento de indemnização aos AA., lesados no acidente. O FGA não é aqui autor, mas réu. O direito que a LSO lhe reconhece é de reembolso de quantias pagas, não o direito de exigir a condenação do proprietário no pagamento de indemnização diretamente aos lesados.
Sem necessidade de mais considerações, improcede também esta segunda questão da apelação.
A sentença merece confirmação.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida
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Custas da apelação pelo recorrente, por nela ter decaído totalmente (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Porto, 10 de dezembro de 2019
Filipe Caroço
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] Adiante também designada por F1…, S.A.
[2] Por transcrição.
[3] Por transcrição.
[4] P. de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, 2ª edição, vol. I, pág.s 446 e 447 (anotação ao art.º 503º, nº 1).
[5] Neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2.2.1993, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, I, 2º, pág. 125 e de 29.1.2014, proc. 249/04.7TBOBR.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[6] Manual dos Acidentes de Viação, Almedina, 3ª edição, pág.s 314 e 315.
[7] Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, pág. 351.
[8] Vaz Serra, BMJ nº 90/74, citando Enneccerus e Lehmann.
[9] Pág. 313.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.4.2001, proc. 01A3460, in www.dgsipt.
[11] Acórdão da Relação do Porto de 8.10.2002, proc. 0121692 e acórdão da Relação de Coimbra de 6.5.2008, proc. 300/06.6TBGVA.C1, in www.dgsi.pt.
[12] Acórdãos desta Relação de 28.10.1991, 19.10.1992, 7.1.1993, 17.11.1999, 26.1.2000, 10.2.2000 e ainda o acórdão de 30.6.2005, todos in www.dgsi.pt, o último citando Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I Vol., 10ª ed., 656; Vaz Serra, RLJ 114º-278 e, entre outros, os acórdãos do STJ de 27.10.88, BMJ 380/469 e de 6.12.2001, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, IX, III, pág. 141. Ainda o acórdão desta relação de 15.5.2008, também publicado na referida base de dados do Ministério da Justiça.
[13] Acórdão desta Relação de 16.11.2004, in www.dgsi.pt.
[14] Ob. cit., pág. 149.
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, I Vol, 4ª ed., 518; Oliveira Matos, C. da Estrada Anotado, pág. 460, citados no referido acórdão de 30.6.2005.
[16] Proibição da reformatio in pejus.
[17] Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Livraria Petrony, 2ª edição, rev. e ampliada, 1984, pág.s 107 e 108.
[18] Ob. cit., pág.s 115 e 116.
[19] Ainda que indiciadora de uma utilização autónoma e interessada do condutor.
[20] Proc. 36/08.3TBSTS.P2.S2, in www.dgsi.pt, citado na douta sentença recorrida.
[21] O mesmo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, citando o acórdão do mesmo Alto Tribunal de 21.4.2009, proc. 1550/06.0TBMTJ.S1, in www.dgsi.pt.
[22] RLJ, ano 109, pág. 163.
[23] RLJ, ano 109, pág. 163.