Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6983/17.4T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS PARA O DECRETAMENTO DA INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP201809116983/17.4T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 09/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 843, FLS 142-145)
Área Temática: .
Sumário: I – A al.a) do nº1 do artº 20º CIRE refere-se à “suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas”, o que implica a cessação, senão de todas elas, de um conjunto amplo de obrigações do devedor que cumpre identificar, ou pelo credor, ou pelo montante aproximado, já que a simples falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações integra um facto-índice próprio e autónomo, constante da al.b) do nº1do normativo.
II – Para a integração da norma da al.b) do nº1 do artº 20º CIRE é ónus do requerente o de, juntamente com a alegação de incumprimento, concretizar a desproporção do crédito ou a natureza das circunstâncias que, uma vez demonstradas, fazem deduzir a penúria generalizada.
III – Do facto de a Requerida ter cessado a respectiva actividade comercial, não se retiram, sem mais, as razões da cessação, designadamente não se pode concluir que essa cessação tenha a ver com a falta de solvabilidade da Requerida e não fica demonstrada a inviabilidade de retomar a respectiva actividade económica, mesmo que organizada em torno de outro estabelecimento comercial.
IV – Em matéria de desconhecimento da existência de património da Requerida, cumpria à Requerente ter passado pelo crivo da verificação dessa insuficiência em processo de execução, como expressamente a alude a presunção da al.e) do nº1 do artº 20º.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: • Rec.6983/17.4T8VNG-A.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão de 1ª instância – 9/1/2018.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Notícia Explicativa
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de Insolvência nº6983/17.4T8VNG-A, do Juízo de Comércio de Vª Nª de Gaia.
Apelante / Requerida – B..., Ldª.
Requerente – C....

Tese da Requerente
Foi trabalhadora da Requerida, tendo feito cessar o contrato de trabalho celebrado entre ambas por motivos de ordem pessoal em 08.05.2016.
A Requerida não cumpriu com a Requerente o pagamento de diversos créditos salariais, pelo que, instaurada acção no Tribunal de Trabalho, foi a mesma julgada procedente. A Requerente é credora da Requerida pelo montante de €1.208,11 a título de créditos salariais.
Entretanto, a Requerida fez cessar a sua laboração e abandonou a exploração e gestão do estabelecimento.
Concluiu pedindo fosse decretada a insolvência da Requerida, com as demais consequências no processo.

Não tendo a Requerida deduzido oposição, foram considerados aceites os factos alegados na petição deduzida.

Sentença Recorrida
Na sentença que proferiu, a Mmª Juiz “a quo” julgou procedente o pedido e declarou a insolvência da Requerida.

Conclusões do Recurso de Apelação:
1.A factualidade provada é ou não suficiente para que seja decretada a insolvência da requerida? Vejamos:
2. O Tribunal “a quo” em 09 de Janeiro de 2018 proferiu sentença de declaração de insolvência.
3. A insolvente, por sua vez, só em 17 de Janeiro de 2018 apresentou a oposição invocando para o efeito a falta de notificação da decisão/proposta de indeferimento do apoio judiciário.
4. No âmbito da oposição apresentada pela insolvência foi junto o documento de quitação dos créditos laborais da requerente da insolvência datado de 27.12.2017- (data anterior à declaração de insolvência)
5. À data da sentença de insolvência o ativo da insolvente era muito superior ao passivo, Cfr. Doc.2, 3,4 que se juntou com a oposição.
6. Não obstante o supra referido, e salvo melhor opinião da análise do caso concreto a factualidade provada não é suficiente para que fosse decretada a insolvência da requerida.
7. Primeiro porque, pese embora o credor/requerente não tenha de fazer prova da inviabilidade económica do devedor para requerer a insolvência, certo é que terá sempre de invocar e provar factos dos quais possa resultar a prova de que o devedor estava impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
8. Todavia tais factos não foram demonstrados/provados, sendo apenas junto pela requerente, para fundamentar o pedido de insolvência, a sentença de condenação/reconhecimento dos créditos laborais.
9. Cremos não ser por si só tal facto suficiente para demonstrar que o devedor está impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas,
10. Não só porque não foi demonstrado qualquer tentativa de interpelação,
11. Como ponderado o montante da divida e período de tempo decorrido desde o seu vencimento (note-se apenas 2 meses) não se poderia concluir pela insusceptibilidade da recorrente satisfazer suas obrigações.
12. À data da interposição da acção de insolvência (Setembro de 2017) a recorrente apenas tinha uma divida vencida (há dois meses) no valor global de 1203,00€, para com a requerente/trabalhadora.
13. Assim sendo, cremos que o reconhecimento do crédito laboral sem a junção de qualquer prova de interpelação para pagamento, era insuficiente para se concluir pela verificação do facto índice previsto art.º 20.º, n.º 1, al. g), CIRE.
14. Até mesmo porque, a agora recorrente não tem quaisquer dívidas vencidas, nem tem conhecimento de quais quer acções/processos contra si intentados.
15. Os cinco maiores credores da recorrente á data da declaração de insolvência resumem-se única e exclusivamente ao I.S.S.- cfr. o exposto supra sob nº22.
16. Sendo manifesta a inexistência da situação de Insolvência da recorrente.
17. Pelo que, estamos agora confrontados com uma declaração de insolvência sem créditos vencidos.
18. Note-se ainda que a declaração de quitação dos créditos laborais da requerente da insolvência não pode deixar de ser admitida nos termos do disposto nos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, CPC, porquanto tal junção não era naturalmente possível em momento anterior, uma vez que, a recorrente não tinha conhecimento da decisão do apoio judiciário e consequentemente do início de prazo para apresentar a oposição.
19. Assim sendo, não resultando provada, por parte do requerente e até mesmo pela recorrente, a impossibilidade de cumprir quaisquer obrigações vencidas e, por isso, exigíveis pelos seus credores, conclui-se que inexiste fundamento para a declaração de insolvência.

Factos Provados
1. A requerida “B..., LDA.”, pessoa colectiva n.º ........., matriculada na Conservatória do Registo Comercial, com sede na ..., ..., Porto.
2. A requerente foi trabalhadora da requerida tendo feito cessar o contrato de trabalho celebrado entre ambas por motivos de ordem pessoal em 08.05.2016.
3. A requerida não pagou diversos créditos salariais, pelo que, foi instaurada a competente acção no Tribunal de Trabalho, julgada procedente, nada tendo pago a requerida.
4. A requerente é credora da requerida pelo montante de €1.208,11 a título de créditos salariais.
5. A requerida fez cessar a sua laboração e abandonou a exploração e gestão do estabelecimento.
6. É gerente da requerida D....

Fundamentos
A pretensão resultante do presente recurso de apelação melhor se dividirá nos seguintes itens:
- Saber se a Requerente não invocou, nem provou, factos dos quais pudesse resultar que o devedor se encontrava impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
- Saber da possibilidade de consideração, por via de documentos juntos ao processo em momento posterior à declaração de insolvência, que se encontrava solvido, por parte da Requerida, o crédito da Requerente, no momento da prolação da sentença, e que o activo da Insolvente era então muito superior ao passivo.
Vejamos pois.
I
Quanto ao primeiro ponto supra citado.
A matéria remete-nos para o disposto no artº 3º nº1 CIRE e para o genérico conceito de insolvência – de que é considerado em tal situação “o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Esta prova, porém, mostra-se facilitada aos credores requerentes da insolvência, que poderão pedir a referida declaração com base em factos-índice ou presuntivos de insolvência, quais sejam os referenciados nas diversas alíneas do artº 20º nº1 CIRE.
Ou seja: é ao devedor que cabe trazer ao processo os factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, isto caso se possa afirmar a ocorrência do facto-índice que corporiza a causa de pedir – cf. Prof. Carvalho Fernandes e Dr. João Labareda, CIRE Anotado, I, 2005, pg. 133.
Isto dito, e posto que não está em causa neste concreto recurso a ausência de dedução de oposição a cargo da ora Recorrente, o que importa é verificar a ocorrência in casu dos factos-índice referidos, a partir da própria alegação da Requerente (e posto que, como afirmado, a Recorrente não se apresentou a contrariar a alegação da Requerente).
Em causa, portanto, a afirmada integração dos factos provados no disposto nas als. a), b) e g) do nº1 do artº 20º CIRE, tal como consta da sentença recorrida.
A al.a) refere-se à “suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas” – no caso dos autos verifica-se, da alegação do petitório, que, além de ser devedora à Requerente, a Requerida não é titular de quaisquer bens ou direitos, tendo abandonado a exploração do seu estabelecimento comercial e cessado o pagamento aos credores.
De um lado, a “suspensão” significa uma “cessação” ou “paralisação” do cumprimento, por absoluta incapacidade de o devedor gerar recursos financeiros (não se encontra em causa uma situação meramente transitória, que o vocábulo “suspensão” poderia pressupor).
Por “suspensão generalizada” entende-se a cessação, senão de todas elas, de um conjunto muito amplo de obrigações do devedor – cf. Ac.R.C. 17/1/2012 Col.I/10, relatado pelo Des. Freitas Neto, Ac.R.C. 8/5/2012, pº 716/11.6TBVIS.C1, relatado pelo Des. Artur Dias, e o Ac.R.L. 4/12/2014, pº 877/13.0YXLSB.L1-6, relatado pelo Des. António Martins - a simples falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações integra um facto-índice próprio e autónomo, constante da al.b).
A questão é que não basta ao credor alegar genericamente a previsão normativa para que esta se mostre integrada – cumprir-lhe-ia, e ele credor Requerente, para lá da alegação concretizada de abandono da exploração do respectivo estabelecimento comercial, ter especificado qual o conjunto de credores que viu “cessado” ou “paralisado” o cumprimento das obrigações que a Requerente tinha para com eles, ou quais as obrigações concretas que se viram assim suspensas – neste sentido, Ac.R.C. 17/11/2015, pº 3383/15.4T8VIS.C1, relatado pelo Des. Carlos Moreira.
Nada tendo dito a Requerente, de factual e relevante, que permitisse a conclusão relativa à cessação generalizada de pagamentos a credores – facto-índice relevante, não era lícito ao Tribunal, salvo o merecido e devido respeito, ter concluído com base na própria conclusão, por assim dizer, em verdadeira tautologia.
Como assim, não se nos afigura mostrar-se integrado o facto-índice da al.a) do nº1 do artº 20º CIRE.
Do mesmo passo, por não se mostrarem identificadas as obrigações generalizadamente incumpridas, também de não podem dizer identificar as obrigações que não foram objecto de cumprimento, reportadas aos últimos seis meses, de natureza tributária, a favor da segurança social ou emergentes de contrato de trabalho, como seria necessário para caracterizar os factos-índice das als. g)i), g)ii) e g)iii) do nº1 do artº 20º CIRE.
II
Na al.b) do nº1 do já citado normativo exige-se, como índice da declaração de insolvência, a “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.
Conforme se acentuou no Ac.R.C. 17/1/2012 cit., o legislador quer significar que será de decretar a insolvência sempre que se verifique que um dos créditos já vencidos atinge um valor de tal forma desproporcionado perante os demais que, nesse quadro, não valerá já a pena, ou será inútil, admitir que o devedor venha a satisfazer as restantes obrigações.
Ou então que concretizadas circunstâncias do incumprimento revelam a impossibilidade de cumprir pontualmente com a generalidade das obrigações respectivas.
Neste caso, cf. Ac.R.L. 24/5/2011, pº221/10.8TBCDV-A.L1-7, relatado pelo Des. Luís Lameiras, “é ónus do requerente o de, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias das quais, uma vez demonstradas, é razoável deduzir a penúria generalizada; importam aqui factos que preencham a insatisfação de uma ou mais obrigações e o circunstancialismo que a rodeou, e que sejam tidos como idóneos e vocacionados para, razoavelmente e em consonância com ditames próprios da experiência comum, fazer concluir pela falta de meios do devedor para solver em tempo os seus vínculos”.
Ora, encurtando razões, no caso dos autos não se possuem elementos que permitam efectuar esse necessário juízo de “desproporção” do crédito da Requerente face à generalidade dos restantes, nem ainda se conhecem as circunstâncias do incumprimento para que se conclua pela “penúria generalizada”.
De concreto sabe-se, porém, que a Requerida abandonou a exploração e a gestão do seu estabelecimento comercial, não possuindo ou gerindo qualquer outro.
Mas, do facto de ter cessado a respectiva actividade comercial, não se retiram, sem mais, as razões da cessação, designadamente não se pode concluir que essa cessação tenha a ver com a falta de solvabilidade da Requerida e não fica demonstrada a inviabilidade de retomar a respectiva actividade económica, mesmo que organizada em torno de outro estabelecimento comercial – assim, Ac.R.L. 19/4/2012, pº 912/09.6TYLSB-H.L1-8, relatado pela Desª Carla Mendes.
E quanto ao invocado desconhecimento da existência de património da Requerida, cumpria à Requerente ter passado pelo crivo da verificação dessa insuficiência em processo de execução, como expressamente a alude a presunção da al.e) do nº1 do artº 20º.
Temos assim que, em entendimento desta instância, a Requerente não invocou (e, em consequência, não provou), os concretos factos-índice dos quais pudesse resultar que o devedor se encontrava impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, designadamente que habilitassem à integração do disposto nas als. a), b) e g) do nº1 do artº 20º CIRE, tal como constava da douta sentença recorrida.
E, não o tendo feito, logra a Recorrente o respectivo objectivo de revogação do anteriormente decidido, tornando inútil a apreciação dos demais fundamentos recursórios.

Concluindo:
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Deliberação (artº 202º nº1 CRP):
Julga-se procedente, por provado, o recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a douta sentença recorrida, absolvendo-se agora a Requerida do pedido.
Custas pela Apelada, sem prejuízo do Apoio Judiciário de que goza.

Porto, 11/IX/2018
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença