Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
80/12.6TTPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: ISENÇÃO DE PENHORA
INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
COMPARTICIPAÇÃO
Nº do Documento: RP2014063080/12.6TTPRT-B.P1
Data do Acordão: 06/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: É impenhorável a comparticipação financeira atribuída pelo Instituto de Solidariedade Social, I.P., no âmbito de um acordo de cooperação que celebrou com uma Instituição Particular de Solidariedade Social – pessoa colectiva de utilidade pública –, destinado à prestação de cuidados domiciliários a diversos utentes, apresentando-se tal comparticipação essencial à realização de tal actividade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 80/12.6TTPRT-B.P1
Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Des. António José Ramos, (2) Des. Eduardo Petersen Silva.

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B… (NIF ………, residente na …, n.º .., ..º Dto, ….-… Porto) intentou contra C… (NIPC ………, com sede na Rua …, n.º …, …, ….-… Gondomar) acção executiva, para pagamento de quantia certa, com vista a obter o pagamento da quantia global de € 17.824,44.

Para tanto referiu o seguinte:
“1 - Por sentença lavrada nestes autos em 28-03-2012, foi a executada condenada a pagar à exequente a quantia de 16.054,65 euros, acrescida dos juros legais desde a citação até integral pagamento;
2 - A executada foi citada em 24-01-2012;
3 - Pelo que, até à presente data, venceram-se juros à taxa legal de 4%, no valor de 605,24 euros;
4 - Acresce, nos termos artigo 829º-A- nº 4 do Código Civil, e desde a data da sentença juros compulsórios à taxa de 5%, estando vencido o valor de 756,55 euros;
5 - E ainda o valor das custas de parte da exequente, nos termos do artigo 26º do Código da Custas Judiciais, correspondente só aos honorários do mandatário, porquanto litigou com apoio judiciário, no valor de 408,00 euros;
6 - O debito da executada ascende, pois, actualmente, ao valor de 17.824,44 euros.
Termos em que deve ser efectuada a penhora de bens da executada, para o que desde já se indica
a) Crédito mensal sobre o Instituto da Segurança Social, I.P., com sede na Rua …, .., ….-… Lisboa, mercê dos apoios recebidos até ao valor da quantia exequenda acrescida das custas previsíveis e
b) Veículo automóvel, com a matricula ..-..-HS, carrinha Volkswagen;
c ) Saldo da conta bancária numero ……….., do Banco D… ate ao limite do crédito exequendo e das custas”.

No que ao crédito mensal sobre o Instituto da Segurança Social, I.P., diz respeito [alínea a) dos bens nomeados à penhora], foi em 24-02-2014 proferido o seguinte despacho:
“Resulta do acordo junto a fls. 47 e segs, que a comparticipação efectuada pela segurança Social destina-se a contribuir para uma melhoria da qualidade de vida de 17 utentes, assegurando-lhes a satisfação das necessidades básicas, de cuidados de saúde e de ordem física. Por cada utente, a segurança Social comparticipa com € 211,67.
Assim sendo, considero que estas verbas do Estado estão isentas de penhora nos termos do artigo 737.º, n.º 1 do novo C.P.Civil.
Notifique”.

Inconformada com o referido despacho, a exequente dele veio interpor recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
“I – Não se tendo a executada oposto à execução estava vedado ao Tribunal conhecer oficiosamente desta matéria.
Sem prescindir
II – A comparticipação financeira nos termos da informação prestada pelo ISS destinava-se a pagar as remunerações do pessoal da Executada afecto à resposta social que esta pretende dar pelo que nessas remunerações se insere o valor devido à Exequente.
III – A receita da comparticipação social a partir do momento em que foi concedida deixou de ser uma verba do Estado.
IV – A executada não é uma pessoa colectiva de utilidade publica pelo que aquela sua comparticipação é penhorável.
V – A decisão recorrida violou o disposto no artigo 737º, nº 1 do C.P.C.
Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida.”.

O recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, como subida imediata, em separado, com efeito meramente devolutivo.

Recebidos os autos neste tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta entendeu estar-lhe vedada a possibilidade de emitir parecer, por inaplicabilidade do disposto no artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho.

Cumpre agora apreciar e decidir.

II. Objecto do recurso e factos
Sendo o âmbito dos recursos delimitados pelas conclusões das respectivas alegações do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil, ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), no caso colocam-se à apreciação deste tribunal duas questões:
- saber se o tribunal a quo podia conhecer oficiosamente da matéria referente à impenhorabilidade da “comparticipação” efectuada pela segurança social à executada;
- saber se a referida comparticipação é, efectivamente, impenhorável.

Com vista à decisão a proferir, importa atender à seguinte matéria de facto que resulta dos autos, designadamente dos documentos juntos:
1. De acordo com o requerimento executivo junto aos autos, por sentença de 28-03-2012, proferida na acção principal, foi condenada a aqui executada a pagar à aqui exequente a quantia de € 16.054,65, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento (fls. 3);
2. Não tendo a executada procedido ao pagamento da quantia em que foi condenada, na acção executiva a exequente nomeou à penhora, entre outros, os seguintes bens da executada: “Crédito mensal sobre o Instituto da Segurança Social, I.P. (…), mercê dos apoios recebidos até ao valor da quantia exequenda acrescida das custas previsíveis” (fls. 3);
3. Sobre o requerido foi em 24-02-2014 proferido o seguinte despacho: “Resulta do acordo junto a fls. 47 e segs, que a comparticipação efectuada pela segurança Social destina-se a contribuir para uma melhoria da qualidade de vida de 17 utentes, assegurando-lhes a satisfação das necessidades básicas, de cuidados de saúde e de ordem física. Por cada utente, a segurança Social comparticipa com € 211,67.
Assim sendo, considero que estas verbas do Estado estão isentas de penhora nos termos do artigo 737.º, n.º 1 do novo C.P.Civil.
Notifique”.
4. A executada é uma Associação de Solidariedade Social, e encontra-se registada como tal na Direcção Geral da Segurança Social (fls. 12 e 36);
5. Entre o Instituto da Segurança Social, I.P. e a executada foi celebrado em 28 de Junho de 2006 um “Acordo de Cooperação”, do qual consta, além do mais, o seguinte clausulado (fls. 12 a 18):
“Cláusula I
(objecto)
Constitui objecto do presente acordo:
1, A definição dos termos e condições em que a Instituição desenvolve as actividades de apoio social que respondem às necessidade da população alvo;
2. A definição dos termos e condições em que o CDSS do Porto presta o apoio técnico e financeiro à Instituição pelo desenvolvimento das actividades de apoio social.
Cláusula II
(finalidade)
O presente acordo de cooperação visa criar condições para a intervenção conjugada da Instituição com o CDSS do Porto, dirigida a indivíduos e famílias que por motivos de doença, deficiência ou outro impedimento não possam assegurar, temporária ou permanente, a satisfação das suas necessidades básicas e/ou actividades de vida diária.
Esta resposta social consiste na prestação de cuidados individualizados e personalizados no domicílio, de harmonia com as orientações técnicas existentes.
Cláusula III
(objectivos)
Constituem objectivos do presente acordo:
- Contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e famílias;
- Retardar ou evitar a institucionalização;
- Assegurar aos indivíduos e famílias a satisfação das necessidades básicas;
- Prestar cuidados de ordem física e apoio psicossocial aos indivíduos de modo a contribuir para o seu equilíbrio e bem estar;
- Colaborar na prestação de cuidados de saúde.
Cláusula IV
(identificação da resposta)
Os objectivos identificados na cláusula anterior são concretizados através do Serviço de Apoio Domiciliário (…)
Cláusula VIII
(obrigações da Instituição)
A Instituição obriga-se a
1. Garantir o bom funcionamento dos equipamentos ou serviços, de harmonia com os requisitos técnicos adequados e em conformidade com os estatutos das instituições;
2. Proceder à admissão de utentes de acordo com os critérios definidos nos respectivos estatutos e regulamentos e, muito especialmente, atribuir prioridade a pessoas e grupos social e economicamente mais desfavorecidos;
3. Aplicar as normas de comparticipação dos utentes ou famílias, segundo os critérios das instituições, desde que adequados aos indicativos técnicos aplicáveis para cada modalidade consensualizados entre os serviços do ministério da tutela e das uniões;
4. Assegurar as condições de bem-estar dos utentes e o respeito pela sua dignidade humana através da prestação de serviços eficientes e adequados, promovendo a sua participação, na vida do equipamento;
5. Assegurar a existência de recursos humanos adequados ao bom funcionamento dos equipamentos e serviços (…).
6. Nos termos do anexo I ao referido “Acordo de Cooperação” (fls. 17):
“Cláusula I
(resposta social)
As actividades desenvolvidas pela Instituição e respeitantes ao presente acordo integram a respostas social de Serviço de Apoio Domiciliário, com a concepção e distribuição de refeições, cuidados de higiene e conforto pessoal, manutenção e limpeza de habitação, tratamento de roupa e apoio psicossocial.
Cláusula II
(número de utentes)
A lotação estabelecida no acordo é de 20 (vinte) utentes;
O número de utentes abrangidos pelo acordo é de 17 (dezassete). (…)”.
7. A comparticipação financeira do Instituto de Segurança Social, I.P., à executada, por via do acordo de cooperação, cifrava-se em Janeiro de 2014 em € 4.103,29 mensais, tendo em conta a assistência prestada a 17 utentes (fls. 11).

III. Fundamentação
1. Do conhecimento oficioso da impenhorabilidade da comparticipação financeira
A requerente suscita em primeiro lugar a questão do tribunal a quo não poder conhecer oficiosamente da matéria, uma vez que a executada não se opôs à execução.
Em relação a tal questão, impõe que se diga, desde logo, que não resulta dos autos, nem da consulta do “histórico informático” do processo, que até à data da prolação do despacho recorrido a executada tenha sido citada para a execução.
Além disso, tendo sido notificado o Instituto de Segurança Social, I.P., com vista à penhora da comparticipação financeira que a mesma entregava à executada, veio aquele colocar a dúvida sobre a penhorabilidade ou não dessa comparticipação.
E foi nessa sequência, e após a obtenção de esclarecimentos, que a Exma. Juíza proferiu o despacho recorrido.
Ora, como decorre do disposto no artigo 723.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, à semelhança do que dispunha o artigo 809.º, n.º 1, alínea d), do anterior Código de Processo Civil, compete ao juiz decidir questões suscitadas pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes.
Daí que tendo o ISS, I.P., colocado a questão da (eventual) impenhorabilidade da comparticipação, ao juiz competia decidir – como decidiu – a mesma.
Improcede, por isso, a conclusão I das alegações de recurso.

2. Da impenhorabilidade da comparticipação financeira
Como resulta do relato supra, o despacho recorrido decidiu que a comparticipação entregue pelo ISS, I.P., à executada era(é) impenhorável, face ao que dispõe o artigo 737.º do Código de Processo Civil, por se destinar a assegurar a satisfação das necessidades básicas, dos cuidados de saúde e de ordem física dos utentes.
Diferente é o entendimento da recorrente, que sustenta, ao fim e ao resto, que a executada não é uma pessoa colectiva de utilidade pública e que a receita da comparticipação social a partir do momento em que é concedida deixa de ser verba do Estado.
Vejamos.

Estatui o artigo 737.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, à semelhança do que estabelecia o artigo 823.º, n.º 1, do anterior Código de Processo Civil, que estão isentos de penhora os bens de pessoas colectivas de utilidade pública que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.
Do referido preceito decorrem, pois, dois requisitos, cumulativos, quanto à impenhorabilidade dos bens:
i) que os mesmos pertençam a pessoa colectiva de utilidade pública;
ii) que se encontrem afectados à realização de fins de utilidade pública.
Quanto ao primeiro dos requisitos, é incontroverso que a executada é uma Instituição de Particular de Solidariedade Social, que se encontra registada no ISS, I.P.
Ora, como Instituição Particular de Solidariedade Social rege-se pelos Estatutos que se encontram anexos ao Decreto-Lei n.° 119/83, de 25 de Fevereiro, com as alterações que decorrem do Decreto-Lei n.º 89/85, de 1 de Abril (revoga o art.º 32.º), n.º 402/85, de 11 de Outubro (revoga o n.º 2 do art.º 7.º e o art.º 11.º) e n.º 29/86, de 19 de Fevereiro (revoga o n.º 2 do art.º 94.º).
Nos termos do artigo 8.º de tais Estatutos, as instituições registadas (e, note-se, a executada encontra-se registada no Instituto de Solidariedade Social) adquirem automaticamente a natureza de pessoa colectiva de utilidade pública.
Daí que ao contrário do que sustenta a recorrente se mostra verificado primeiro requisito quanto à impenhorabilidade dos bens: pertencerem os mesmos a pessoas colectivas de utilidade pública.
E, pergunta-se: os bens encontram-se afectos à realização de fins de utilidade pública?
Também aqui a nossa resposta é positiva.
Como a jurisprudência tem afirmado, os bens de uma pessoa colectiva de utilidade pública estão afectos à realização de fim de utilidade pública quando sem eles não pode prosseguir a sua actividade, deixa de funcionar, quando os bens são essenciais ao seu funcionamento [neste sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 29-02-1996 (BMJ 454-801) e de 05-07-2012 (Proc. n.º 1759/10.2YYPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt).
No caso em apreço não se põe em causa que a executada desenvolve actividades de utilidade pública.
No desenvolvimento de tais actividades presta apoio domiciliário, assegurando a satisfação das necessidades básicas, cuidados de saúde e de ordem física a 17 utentes, em razão do qual recebe uma comparticipação financeira da Segurança Social.
Conforme o acordo de cooperação celebrado, o mesmo visa criar condições para a intervenção conjugada entre a aqui executada e o Instituto de Segurança Social, IP., através de resposta social que consiste na prestação de cuidados individualizados e personalizados no domicílio (cfr. cláusula II do acordo).
E para tanto é prestado o apoio financeiro por parte da Segurança Social (cfr. cláusula I, n.º 2): verifica-se, pois, uma relação directa entre a comparticipação da segurança social à executada e a prestação por esta de cuidados ao domicílio a 17 utentes.
Ou seja, sem essa comparticipação financeira à executada não seria possível a prestação de cuidados sociais àqueles utentes, e caso não preste esses cuidados não recebe tal comparticipação financeira (assim que é que a comparticipação financeira se prende com o número de utentes a quem são prestados os cuidados).
Por isso se conclui que no caso o “bem” em causa (comparticipação financeira) é directamente aplicado aos fins e actividade de utilidade pública prosseguidos pela executada.
É certo que não se ignora, por um lado, que a regra é a da penhorabilidade de bens, sendo a impenhorabilidade uma excepção, competindo, por isso, ao executado alegar e provar que o bem penhorado está especialmente afecto à realização de fins de utilidade pública (cfr. artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil); e, por outro, que tratando-se de um bem/crédito fungível poder-se-á sustentar – como parece sustentar a recorrente (conclusão III) – que após a sua atribuição passa a integrar o património da executada, que lhe dará o destino que melhor lhe aprouver.
Em relação a tal argumentação objecta-se que assim se fosse sempre que o “bem” se reportasse a uma qualquer quantia em dinheiro não poderia haver impenhorabilidade, na medida em que após a atribuição daquela sempre o executado poderia dela fazer o que bem entendesse: ora, não se vislumbra que o legislador pretendesse excluir da impenhorabilidade as quantias em dinheiro que o executado recebe, já que a impenhorabilidade não está dependente da natureza do bem, mas apenas dos requisitos supra referidos (o bem ser de pessoa colectiva pública e destinar-se à realização de necessidades públicas).
Além disso, no caso concreto, como resulta do que já se deixou afirmado, o acordo de cooperação estabelece regras muito específicas quanto às obrigações da “Instituição”/executada e quanto à relação entre a prestação de cuidados aos utentes por parte da executada e o correspondente recebimento de comparticipação da segurança social, tanto assim que esta varia mensalmente em função do número de utentes a quem os cuidados são prestados.
Nesta sequência, reafirma-se, sendo a comparticipação financeira da segurança social destinada à realização de fins de utilidade pública por parte da executada (prestação de cuidados domiciliários a 17 utentes) e sendo tal comparticipação essencial a tais fins, a mesma é impenhorável.
Improcedem, por consequência, as conclusões das alegações de recurso.

Assim, em síntese (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
É impenhorável a comparticipação financeira atribuída pelo Instituto de Solidariedade Social, I.P., no âmbito de um acordo de cooperação que celebrou com uma Instituição Particular de Solidariedade Social – pessoa colectiva de utilidade pública –, destinado à prestação de cuidados domiciliários a diversos utentes, apresentando-se tal comparticipação essencial à realização de tal actividade.

IV. Decisão
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto por B…, e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Porto, 30 de Junho de 2014
João Nunes
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva