Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
720/21.6T8ETR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
INVENTÁRIO SUBSQUENTE AO DIVÓRCIO
INSTAURAÇÃO POR NÃO DEPENDÊNCIA DE OUTRO PROCESSO
Nº do Documento: RP20220407720/21.6T8ETR.P1
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A competência material afere-se em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).
II - É da competência exclusiva dos tribunais, mais concretamente dos juízos de Família e Menores, tramitarem inventário subsequente a processo de divórcio que neles hajam corrido termos, no qual haja sido proferida a decisão de que emerge o propósito de proceder à partilha dos bens comuns do ex-casal.
III - Nesta hipótese, o inventário deve correr termos por apenso ao processo de divórcio.
IV - Não tendo o inventário sido instaurado por dependência a outro processo judicial, aquele pode ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais; optando pelo recurso aos tribunais judiciais, são os tribunais de Família e de Menores os materialmente competentes para tramitarem o processo de inventário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 720/21.6T8ETR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Estarreja – Juiz 2


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.
1. AA, NIF ..., divorciada, residente na Rua ..., Urbanização ..., ..., instaurou no Juízo de Competência Genérica de Estarreja processo de inventário contra BB, divorciado, residente na Travessa ..., ..., ... ESTARREJA, para partilha dos bens comuns do dissolvido casal.
Alega, para tanto, que a 9.10.2019, no processo n.º 475/2019, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Estarreja, foi decretado divórcio por mútuo consentimento entre requerente e requerido.
Foram relacionados como bens comuns do ex-casal vários bens que existem e que cabe partilhar, destinando o processo de inventário à partilha desses bens.
A 28.01.2022 foi proferido o seguinte despacho:
“AA veio intentar a presente acção especial de inventário em consequência de divórcio.
Determina o artigo 122º, nº2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário que “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”
Ou seja, de tal preceito legal resulta a conclusão que a competência para a tramitação do presente inventário é do Juízo de Família e Menores.
A infracção das regras de competência em razão da matéria integra excepção dilatória, nos termos do artigo 577º, al. a) do CPC e determina a incompetência absoluta do tribunal – artigo 96º, al. a) do CPC.
A incompetência absoluta do tribunal implica o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comporte, como é o presente caso – artigos 1100º, 98º e 99º, nº1 do CPC.
Ora, conforme supra expendido, tem de concluir-se pela incompetência, em razão da matéria deste Juízo de Competência Genérica para o conhecimento da presente acção executiva.
Consequentemente, nos termos do disposto nos artigos 96º, al. a), 98º e 99º, nº1 do CPC e 122º, nº2 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto declaro este Juízo de Competência Genérica de Estarreja absolutamente incompetente e, indefiro liminarmente a presente acção.
Custas pelo requerente.
Valor da acção: €30.000.01 (trinta mil euros e um cêntimo)”.
2. Não se resignando com tal decisão, dela interpôs a requerente recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
1.ª – No que respeita à tramitação de processo de inventário subsequente a divórcio que correu termos junto de Conservatória de Registo Civil, deverá ser tido como tribunal materialmente competente o Juízo de Competência Genérica,
2.ª – Em virtude do Juízo de Família e Menores se ter declarado materialmente incompetente,
3.ª – Estando-se, portanto, perante um conflito negativo de competência.
4.ª - NESTES TERMOS e nos demais proficientemente supridos por V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença proferida, julgando-se como materialmente competente para tramitar os presentes autos o Juízo de Competência Genérica de Estarreja, em ordem à realização da JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se o tribunal recorrido é materialmente competente para tramitar o processo de inventário subsequente a divórcio decretado pela Conservatória do Registo Civil.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos/incidências processuais relevantes ao conhecimento do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório e, além desses, os seguintes:
- AA e BB casaram entre si no dia 21.06.2001.
- Tal casamento foi dissolvido por divórcio, por decisão de 9 de Outubro de 2019, transitada em julgado na mesma data, proferida pela Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Estarreja.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Na sequência do divórcio decretado pela Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Estarreja, alegando a requerente a existência de bens comuns do (dissolvido) casal formado por ela e pelo ora requerido, veio aquela, com o fim de obter a partilha desses bens, instaurar processo de inventário, atribuindo, para o efeito, ao Juízo de Competência Genérica de Estarreja, onde apresentou o respectivo requerimento inicial[1], competência material para a tramitação do referido processo.
Não aceitou aquele Juízo a referida competência, pelo que pelas razões dissertadas no despacho aqui escrutinado, se declarou materialmente incompetente para processar os autos de inventário, indeferindo liminarmente a petição inicial.
A competência afecta às secções de família e menores encontra-se delimitada pelos artigos 122.º a 124.º, inclusive, da Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto, alterada pela Lei n.º 40-A/2016 de 22 de Dezembro, pela Lei n.º 107/2019, de 09 de Setembro e pela Lei n.º 77/2021, de 23 de Novembro.
Dispõe o n.º 2 do artigo 122.º do aludido diploma que “Os juízos de família e menores exercem [ainda] as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.
A Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, cuja entrada em vigor ocorreu a 1.01.2020, veio, além do mais, revogar o regime jurídico do processo de inventário introduzido pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, aprovando um novo regime do inventário notarial e reintroduzindo no Código de Processo Civil o inventário judicial, disciplinado agora nos artigos 1082.º a 1135.º da lei processual civil.
Sem embargo do regime transitório definido nos seus artigos 12.º e 13.º, a mencionada Lei n.º 117/2019 procede à repartição de competências para a tramitação do inventário entre os tribunais judiciais e os cartórios notariais, achando-se os casos de competência exclusiva dos tribunais judiciais tipificados no n.º 1 do artigo 1083.º.
Será, assim, da competência exclusiva dos tribunais judiciais o inventário que constitua dependência de outro processo judicial[2].
Segundo o n.º 1 do artigo 1133.º do Código de Processo Civil, “Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”
Tomé D'Almeida Ramião[3], anotando o facto de o artigo 1133.º do Código de Processo Civil não especificar se o inventário corre autonomamente ou por apenso ao processo de divórcio, ao contrário do que previa o correspondente artigo 1404.º, nº 3, do anterior Código de Processo Civil, conclui: “(…) Perante a ausência de norma expressa em sentido adverso, o processo de inventário instaurado no âmbito do artigo 1133.º do C. P. Civil continua a ser tramitado como processo autónomo e independente, cuja competência está deferida aos Tribunais de Família e Menores, nos termos do referido n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ.(…).”
Embora o normativo em causa não indique, de forma expressa[4], que o inventário para partilha de bens comuns, subsequente ao divórcio, deva prosseguir por apenso ao processo onde foi decretado o divórcio, razões de conexão e de interdependência entre ambos os processos justificam fundadamente essa apensação.
Existe, com efeito, inegável dependência entre o inventário para separação de meações em relação ao processo de divórcio que o antecede, sendo deste que emerge o direito à partilha dos bens comuns do ex-casal.
Determina o n.º 2 do artigo 206.º do Código de Processo Civil que “As causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam”.
Como esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[5]: “(…) Agora, que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário, faz todo o sentido que o processo de inventário subsequente a sentenças declarativas de divórcio ou de separação, ou de anulação do casamento, proferidas no âmbito de processos judiciais seja tramitado nos tribunais judiciais e que, ademais, corra por apenso a tais processos (competência por conexão), nos termos do art. 206º, nº 2.(…).”
E segundo Pedro Pinheiro Torres[6]: “(…) Será, porventura, relevante, fazer referência aos tribunais competentes para a instauração do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal dissolvido por divórcio, uma vez que a solução quanto ao tribunal competente dependerá do órgão em que tiver ocorrido o processo de divórcio, sendo competente para o inventário subsequente o divórcio decretado judicialmente, o tribunal em que este foi decretado, devendo o processo de inventário correr por apenso àquele, de que é dependente, nos termos do n.º 2 do artigo 206.º do CPC; (…).”
Sustenta o acórdão da Relação de Lisboa de 14.07.2020[7]: “Cremos [...] que a regra da apensação, justificada pela relação de dependência e conexão entre ambos os processos, é a que melhor se coaduna com a competência exclusiva dos tribunais judiciais para tramitar, nomeadamente, o inventário requerido na sequência de divórcio judicial, sendo ainda a mais conforme com o princípio da economia processual, já que do processo de divórcio poderão constar elementos relevantes para a decisão da partilha (cfr. art. 1789 do C.C., com a epígrafe “Data em que se produzem os efeitos do divórcio”).
Pelo que, tendo em conta o disposto no art. 206, nº 2, do C.P.C., não podemos retirar do confronto entre o atual art. 1133 do C.P.C. e o correspondente art. 1404 do C.P.C. de 1961 que o inventário será tramitado de forma autónoma e independente nos tribunais de família e menores ainda que aí tenha corrido termos a ação que lhe deu origem e que com ele é conexa.
Em suma, concluímos que cabendo aos juízos de família e menores preparar e julgar ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil (sem prejuízo das competências atribuídas às conservatórias do registo civil em matéria de divórcio ou separação por mútuo consentimento), cabe-lhes ainda tramitar, por apenso, os processos de inventário que deles decorram, nos termos dos arts. 122, nº 2, da LOSJ, e 206, nº 2, do C.P.C.”[8].
Assim, é da competência exclusiva dos tribunais judiciais e, de entre estes, dos juízos de família e menores, a tramitação de inventário para partilha dos bens comuns subsequente ao processo de divórcio judicial, como decorre dos artigos 1083, n.º1, b) do Código de Processo Civil e 122.º, n.º 2 da LOSJ, devendo o processo de inventário ser instaurado por apenso ao processo onde foi proferida a decisão judicial de divórcio.
Não existindo a apontada conexão e dependência, designadamente por inexistência de processo de divórcio do qual tenha emergido o inventário, este pode ser instaurado autonomamente “à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais”, nos termos do n.º 2 do artigo 1083.º do Código de Processo Civil.
No caso em apreço, o inventário requerido pela ora apelante é, como ela própria alega e atesta documentalmente, subsequente a processo de divórcio que correu termos na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Estarreja, que, em 9 de Outubro de 2019, proferiu decisão a decretar o divórcio entre ela e o então seu cônjuge.
Assim, não sendo o referido inventário dependente de processo judicial, não se configura a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 1083.º do Código Civil.
E não podendo ser tramitado por apenso ao processo de divórcio, já que a entidade administrativa que proferiu a decisão de divórcio não dispõe de competência em matéria de inventários, sejam eles ou não subsequentes a processo de divórcio, o processo de inventário aqui em discussão poderia ser processado autonomamente, em cartório notarial ou no tribunal judicial - concretamente, em juízo de família e menores, que dispõe de competência específica para tal matéria - , à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, conforme facultado pelo n.º 2 do artigo 1083.º do Código de Processo Civil[9].
Na hipótese que se vem abordando, não se configurando uma situação de competência material exclusiva do juízo de família e menores para tramitar o inventário, por nenhuma das condicionantes previstas no n.º 1 do artigo 1083.º se mostrar preenchida, essa competência é repartida com o cartório notarial, cabendo ao interessado a escolha, nos termos que o n.º 2 do mencionado normativo lhe consente, cuja tutela efectiva também por ele é assegurada.
A requerente optou por instaurar em tribunal o processo de inventário para partilha dos bens comuns da dissolvida sociedade conjugal, ao invés de, também como podia, ter escolhido o cartório notarial para esse efeito, garantindo o n.º 2 do citado artigo 1083.º essa liberdade de escolha ao interessado e tutelando a mesma.
E tendo optado, como a lei lhe permite, por recorrer aos meios judiciais para ser efectuada a partilha dos bens comuns do ex-casal, a competência material para tramitar tal processo não é do tribunal recorrido (de competência genérica), sendo tal competência atribuída aos tribunais de família e menores[10].
Do que se conclui, assim, ser o tribunal recorrido materialmente incompetente para o processo de inventário instaurado pela aqui apelante.
Uma vez que a requerente decidiu impugnar, por via do presente recurso, a decisão proferida pelo tribunal recorrido[11], improcede o recurso, confirmando-se a decisão apelada.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida.
Custas: pela apelante.

Porto, 7.04.2022
[Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos]
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] Depois de o Juízo de Família e de Menores de Estarreja, onde inicialmente instaurou o processo, ter indeferido liminarmente a petição inicial com fundamento na sua incompetência material para tramitar os autos de inventário.
[2] Artigo 1083.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil.
[3] Cadernos do CEJ, “Inventário: o novo regime”, Maio de 2020, págs. 39/40.
[4] Ao contrário do que sucedia com o antecedente artigo 1404.º do Código de Processo Civil, na versão do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.
[5] “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2020, Vol. II, pág. 527.
[6] Cadernos do CEJ, “Inventário: o novo regime”, Maio de 2020, pág. 31.
[7] Processo n.º 699/16.6T8CSC-D.L1-7, www.dgsi.pt.
[8] No mesmo sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 23.02.2021, processo 435/20.2T8PBL-A.C1, www.dgsi.pt.
[9] Conforme acórdão, deste mesmo colectivo, de 11.03.2021, não publicado, proferido no processo 3416/20.2T8AVR.P1; cfr., em idêntico sentido, acórdãos da Relação do Porto de 24.01.2022, processo 1240/21.4T8AVR.P1 e de 24.05.2021, processo 171/20.0T8ILH.P1, ambos em www.dgsi.pt.
[10] No caso, o tribunal materialmente competente é o Juízo de Família e Menores de Estarreja, pelo que a decisão por ele proferida a declarar-se materialmente incompetente para tramitar o processo de inventário podia/devia ter sido recursivamente impugnada pela requerente, ao invés de instaurar novo processo de inventário, agora no Juízo de Competência Genérica de Estarreja, sendo este desprovido de competência material para o efeito.
[11] Em vez de aguardar o trânsito da decisão para, depois, obter a resolução do conflito negativo de competência.