Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1422/11.7TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ENTREGAS AO FIDUCIÁRIO
CESSAÇÃO ANTECIPADA DA EXONERAÇÃO
Nº do Documento: RP201809131422/11.2TJPRT.P1
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º143, FLS.61-67)
Área Temática: .
Sumário: I - A falta de entrega imediata ao fiduciário, quando recebida, da parte dos rendimentos objecto de cessão, adoptando o devedor uma conduta dolosa ou com negligência grave, que acarrete prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, implica a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
II - Incorre em incumprimento de tal dever o devedor que, bem sabendo que está obrigado a entregar imediatamente os rendimentos objecto de cessão, não procede a essa entrega nem cuida de prover o pagamento de quantias em atraso nem requer alteração do montante indisponível fixado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
Processo n.º 1422/11.7TJPRT.P1
Comarca do Porto
Porto - Juízo Local Cível - J4
Relator: Paulo Dias da Silva
1.º Adjunto: Des. Teles de Menezes
2.º Adjunto: Des. Mário Fernandes
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
B… e C…, residentes na Rua …, …, Habitação …, …. - … Porto, foram declarados insolventes por sentença proferida em 17.08.2011, tendo sido proferido despacho inicial de concessão da exoneração do passivo restante em 17.11.2011.
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Em 04.04.2018 o Sr. Juiz a quo recusou a exoneração do passivo restante ao abrigo do disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE.
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Não se conformando com a decisão proferida, os recorrentes “B…” e “C…” vieram interpor o presente recurso de apelação em cujas alegações concluem da seguinte forma:

I. O art.º. 243.º, n.º 1, al. a) do CIRE exige que o devedor tenha violado os seus deveres com dolo ou negligência grave.

II. Da mera leitura dos requerimentos, do relatório do fiduciário e da decisão recorrida, decorre que a punição aplicada aos insolventes configura uma verdadeira responsabilidade independente de culpa, sendo omissos em relação ao elemento volitivo.

III. Não tendo o fiduciário cumprido os seus deveres previstos no art.º. 241º n.º 1 do CIRE, nem auxiliado os insolventes a evitar o incumprimento (designadamente avisando-os), o incumprimento imputado aos insolventes é meramente negligente, não sendo, assim, nem doloso nem grosseiramente negligente.

IV. Se é verdade o que é dito no despacho recorrido - que as obrigações do fiduciário não têm nada a ver com a obrigação do insolvente - a verdade é que não se pode dissociar o incumprimento do fiduciário do incumprimento dos insolventes, uma vez que um é causa do outro.

V. A conduta dos insolventes, sendo legalmente leigos e desconhecedores dos trâmites processuais, corresponde a um grau de negligência meramente ligeira, sendo bem mais censurável a conduta do fiduciário, que não auxiliou os leigos a cumprir as suas obrigações.

VI. O incumprimento da obrigação dos insolventes, podendo, nos termos legais, provocar a cessação antecipada da exoneração, não deve, especialmente em situações onde não existe recusa activa de pagamento, levar a que, antes de ser declarada a cessação, não seja dada aos insolventes a possibilidade de regularizar o incumprimento, sob pena de violação do art.º. 18º nº 2 da CRP.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pelos recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que a questão a resolver no âmbito do presente recurso prende-se com saber do mérito da decisão que determinou a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
3. Conhecendo do mérito do recurso
3.1 - Factos assentes
Com relevância para o conhecimento do recurso mostram-se assentes os seguintes factos:
- B… e C…, residentes na Rua …, …, Habitação …, …. - … Porto, foram declarados insolventes por sentença proferida em 17.08.2011 tendo sido proferido despacho inicial de concessão da exoneração do passivo restante por despacho proferido a 17.11.2011.
- Os insolventes não procederam às entregas a que estavam obrigados, estando em falta quantia não inferior a €10.669,84.
- Em 04.04.2018 o Sr. Juiz a quo recusou a exoneração do passivo restante ao abrigo do artigo 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE, proferindo o seguinte despacho:
Informou o Sr. Fiduciário que os insolventes não procederam às entregas a que estavam obrigados, estando em falta quantia não inferior a €10.669,84.
Os credores D… e Banco E… requereram o indeferimento antecipado do pedido de exoneração do passivo restante.
Responderam os insolventes alegando apenas não ter sido efetuada a notificação prevista no art. 241.º do CIRE.
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No caso dos autos, os insolventes não impugnam a falta de entrega de rendimentos alegada pelo fiduciário; apenas ensaiam justificar o seu comportamento com ocorrência de uma causa impeditiva do cumprimento da sua obrigação imposta pelo tribunal.
A obrigação do fiduciário de informar a entidade patronal do insolvente – entre outros devedores de rendimentos ao insolvente – sobre a existência de uma decisão de cessão de rendimentos (art. 241.º do CIRE) nada tem a ver com a obrigação do insolvente de entregar ao fiduciário a parte do seu rendimento resultante do despacho inicial de exoneração do passivo restante (art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE).
O despacho inicial é claro - e a lei também é clara. O insolvente tem uma obrigação própria, não tendo esta obrigação própria ficado condicionada à satisfação de qualquer outra obrigação que, eventualmente, impendesse sobre outrem.
A putativa omissão de efetivação da notificação prevista no n.º 1 do art. 241.º do CIRE não tem por efeito justificar o incumprimento do dever resultante do disposto no art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE.
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Dispõe o art.º. 243.º, n.º 1, do CIRE que:
«1 − Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência».
Resulta do já exposto que o(a/s) insolvente(s) não procedeu(ram) às entregas a que estava obrigado(a/s). Com este procedimento, prejudicaram a satisfação dos créditos reclamados em quantia não inferior a €10.669,84. Deve proceder o pedido incidental formulado.
Em face do exposto, ao abrigo do art.º. 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE, recuso a exoneração do passivo restante.
Notifique.”.
3.2 - Fundamentos de Direito
De acordo com o artigo 1.º do CIRE, “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.
Já do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, (pontos 3 e 6) se podia retirar: “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Não obstante o objectivo fundamental do processo de insolvência se traduzir na satisfação, tão eficiente quanto possível, dos direitos dos credores, o CIRE, através da exoneração do passivo restante, figura inovadora que o CPEREF não previa, permite, em certas circunstâncias, que os insolventes, pessoas singulares, se libertem das dívidas que os oneram e recomecem de novo, sem elas, a sua vida económica.
Ou seja: através do recurso à exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente é concedida a faculdade, em casos previamente delimitados e previstos, de, decorridos cinco anos - período durante o qual terá de ceder parte do seu rendimento aos credores através de um fiduciário -, obter a extinção das suas dívidas não satisfeitas ou satisfeitas apenas em parte, através da liquidação da massa insolvente, ou através daquela cessão dos rendimentos, desvinculando-se da obrigação de no futuro proceder ao seu pagamento integral.
A exoneração do passivo restante constitui, deste modo, “uma liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante” - cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol. II, p. 183 e segs.
Como sustenta Luís Menezes Leitão, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, 4ª edição, págs. 236, 237 e segs., a figura da exoneração do passivo traduz-se num benefício concedido ao insolvente, com a inerente possibilidade de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”, visando, desta forma, conceder ao devedor um fresh start, “permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior”.
Assim caracterizada a figura da exoneração do passivo restante, torna-se evidente que a sua concessão não pode ser feita de forma automática, antes estando dependente e condicionada pela necessidade de preenchimento de determinados requisitos: “a concessão da exoneração do passivo restante tem de ser pedida pelo devedor, mas depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém” - cf. Luís A. Carvalho Fernandes, “Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência”, págs. 276/277.
Para além disso, pressupõe um processamento próprio, onde se destacam, como principais fases, o pedido de exoneração, o despacho liminar ou despacho inicial e o despacho final.
Perante a formulação de pedido de exoneração do passivo restante, o juiz, ouvidos os credores e o administrador da insolvência, pronunciando-se sobre a admissibilidade de tal pedido, profere despacho liminar no qual defere ou indefere a pretendida exoneração do passivo.
Trata-se, repete-se, de um juízo liminar, reclamando apenas do juiz uma análise e ponderação sumárias acerca da existência ou não de condições de admissibilidade ou de indeferimento da exoneração do passivo restante legalmente especificadas: admitirá o pedido quando nenhuma circunstância tida pela lei como obstáculo ao seu deferimento ocorra; indeferi-lo-á quando se verifique alguma circunstância apontada pela lei como causa de indeferimento liminar, designadamente alguma das tipificadas no nº 1 do artigo 238º do CIRE.
Essa decisão liminar, como a sua designação pressupõe, não se confunde com a decisão final da exoneração a que alude o artigo 244º do CIRE, a ser proferida após o termo da cessão.
Salienta Assunção Cristas, in Revista “Themis”, Ano 2005, Edição Especial, “Novo Direito da Insolvência” - “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” págs. 169-170, “o indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável”.
Por sua vez, dispõe o n.º 4, do artigo 239.º do CIRE que: “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores”.
Como explicam Carvalho Fernandes e João Labareda, in obra citada, pág. 788, em anotação ao artigo 239.º, “o n.º 4 impõe ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida.
Neste plano, e para esses fins, importa, desde logo, que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efectivamente auferidos pelo devedor. Assim, não devendo este ocultá-los ou dissimulá-los, está ainda obrigado a prestar todas as informações que aquelas entidades lhe solicitem, não só quanto aos rendimentos, mas também quanto ao seu património [al. a); cf., ainda, al. d)]”.
Dessas obrigações tinham os insolventes pleno conhecimento, constando as mesmas da decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por ela formulado, e da qual a mesma foi notificada.
Consta, com efeito, da referida decisão que se admite o pedido de exoneração do passivo restante, “o qual será definitivamente concedido uma vez observadas pelos Insolventes as condições previstas no art.º 239º, do CIRE, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (art.º 237º, alínea b) do CIRE)” e que “durante o período da cessão, os insolventes ficam obrigados a: a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado”.
Sendo que sobre os insolventes recaía a obrigação de “informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado”, como decorre da 2.ª parte, da alínea a), do n.º 4, do artigo 239.º do CIRE, nunca os mesmos prestaram tais informações, nunca tendo o fiduciário logrado obter deles os elementos que lhes solicitou, apesar das várias diligências empreendidas para o efeito, quer por contacto pessoal com a mesma, quer através da sua mandatária e, mesmo quando notificados pelo tribunal para entregar os elementos solicitados relativos aos seus rendimentos e património, não o fizeram, nem forneceram qualquer justificação para esse comportamento omissivo.
Dispõe o artigo 243.º do CIRE:
“1- Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.[...]”.
No caso em apreço, a cessação antecipada do procedimento de exoneração foi declarada com fundamento na violação pelos insolventes da obrigação que sobre os mesmos impendia e contida no artigo 239º, nº 4, alínea c), do CIRE, ou seja, entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Escreveu-se na decisão recorrida:
Informou o Sr. Fiduciário que os insolventes não procederam às entregas a que estavam obrigados, estando em falta quantia não inferior a €10.669,84.
Os credores D… e Banco E… requereram o indeferimento antecipado do pedido de exoneração do passivo restante.
Responderam os insolventes alegando apenas não ter sido efetuada a notificação prevista no art. 241.º do CIRE.
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No caso dos autos, os insolventes não impugnam a falta de entrega de rendimentos alegada pelo fiduciário; apenas ensaiam justificar o seu comportamento com ocorrência de uma causa impeditiva do cumprimento da sua obrigação imposta pelo tribunal.
A obrigação do fiduciário de informar a entidade patronal do insolvente – entre outros devedores de rendimentos ao insolvente – sobre a existência de uma decisão de cessão de rendimentos (art. 241.º do CIRE) nada tem a ver com a obrigação do insolvente de entregar ao fiduciário a parte do seu rendimento resultante do despacho inicial de exoneração do passivo restante (art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE).
O despacho inicial é claro - e a lei também é clara. O insolvente tem uma obrigação própria, não tendo esta obrigação própria ficado condicionada à satisfação de qualquer outra obrigação que, eventualmente, impendesse sobre outrem.
A putativa omissão de efetivação da notificação prevista no n.º 1 do art. 241.º do CIRE não tem por efeito justificar o incumprimento do dever resultante do disposto no art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE.
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Dispõe o art. 243.º, n.º 1, do CIRE que:
«1 − Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência».
Resulta do já exposto que o(a/s) insolvente(s) não procedeu(ram) às entregas a que estava obrigado(a/s). Com este procedimento, prejudicaram a satisfação dos créditos reclamados em quantia não inferior a €10.669,84. Deve proceder o pedido incidental formulado.
Em face do exposto, ao abrigo do art. 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE, recuso a exoneração do passivo restante.”
Resulta assim dos autos que os insolventes não procederam às entregas a que estavam obrigados, estando em falta quantia não inferior a €10.669,84, sendo que os mesmos não impugnam a falta de entrega de rendimentos alegada pelo fiduciário apenas ensaiando justificar o seu comportamento com ocorrência de uma causa impeditiva do cumprimento da sua obrigação imposta pelo tribunal.
Todavia, como bem refere o Tribunal a quo a obrigação do fiduciário de informar a entidade patronal do insolvente – entre outros devedores de rendimentos ao insolvente – sobre a existência de uma decisão de cessão de rendimentos (art. 241.º do CIRE) nada tem a ver com a obrigação do insolvente de entregar ao fiduciário a parte do seu rendimento resultante do despacho inicial de exoneração do passivo restante (art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE).
Com efeito, os insolventes têm uma obrigação própria, não tendo esta obrigação própria ficado condicionada à satisfação de qualquer outra obrigação que, eventualmente, impendesse sobre outrem.
Os esclarecimentos prestados, face ao supra explanado, são claramente insuficientes para afastar o dolo, ou pelo menos a negligencia grave, na sua actuação.
Com efeito, no caso em apreço, os insolventes conhecedores de que estavam obrigados a prestar informações sobre os seus rendimentos e património, conforme determina o artigo 239.º, n.º4, alínea a), 2.ª parte, do CIRE – obrigação que, repete-se, constava expressamente da decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, da qual foram notificados -, ignorou as diversas solicitações que lhe foram feitas pelo Sr. Fiduciário para juntar elementos documentais que pudessem transmitir aquelas informações, nunca forneceu qualquer justificação para essa conduta faltosa, comportamento que reiterou quando o próprio tribunal lhe ordenou que procedesse à entrega daqueles elementos.
Constata-se, assim, que os insolventes violaram, pelo menos com grave negligência (considerando a consciência e vontade com que actuaram), as obrigações a que se encontravam sujeitos.
E tal violação repercute-se directamente nos valores a entregar aos credores e consequentemente na medida do seu ressarcimento.
Assim, entende-se que a conduta omissiva dos insolventes consubstancia a violação dos deveres previstos no procedimento de exoneração do passivo, pelo menos a título de negligência grave.
Ademais, confundem os recorrentes a cessação antecipada da exoneração, tratada no artigo 243.º do CIRE, que a decisão impugnada determinou, com a revogação da exoneração, a que alude o artigo 246.º do mesmo diploma legal.
Com efeito, enquanto a revogação da exoneração pressupõe uma actuação dolosa do devedor faltoso, da qual resulte um prejuízo relevante para a satisfação dos credores da insolvência, a cessação antecipada do procedimento da exoneração basta-se com a culpa grave, sem necessidade de a conduta infractora revestir a modalidade de dolo, não se exigindo que o prejuízo seja relevante - cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, 22.11.2016, processo n.º 152/13.0TBMIR.C1, www.dgsi.pt.: “a razão de ser da diferença reside, por certo, no facto de a revogação ser mais grave, nas suas consequências, por fazer cessar efeitos jurídicos já produzidos” - cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág. 802 e acórdão da Relação do Porto de 22.11.2016, processo n.º 152/13.0TBMIR.C1, www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto.
Realmente, ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação do insolvente resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa do insolvente para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, nitidamente mais exigente: esse prejuízo deve ser relevante.
A relevância desse prejuízo deve ser aferida, como regra, de harmonia com um critério quantitativo, portanto, em função do quantum do pagamento dos créditos sobre a insolvência, sendo que a essa aferição não deve ser estranha a natureza do crédito e a qualidade do credor.
Ora, no caso em apreço, estando em falta quantia não inferior a €10.669,84 e dada a natureza do crédito e a qualidade dos credores há que concluir que tal conduta necessariamente prejudicou os credores da insolvência e que é relevante o prejuízo provocado.
Configuram-se, pois, em concreto, os pressupostos exigidos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, última parte, do CIRE.
Uma referência importa fazer ainda ao art.º 18.º, n.º 2, da CRP, já que os Recorrentes invocam que a decisão recorrida violou tal preceito legal, que determina o seguinte: «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.»
Ora, não está em causa a restrição de direitos, liberdades ou garantias dos devedores insolventes: tem efectivamente a qualidade de devedores, estão obrigados a satisfazer os créditos dos credores, como é de direito e de justiça, salvo regime legal que os desonere, designadamente o regime de exoneração do passivo consagrado no CIRE, observados que sejam os seus requisitos. Por outro lado, a decisão recorrida não consiste em segmento normativo, não é lei, pelo que não há como violar o disposto no art.º 18.º, n.º 2, da CRP (sendo certo que não foi invocada a inconstitucionalidade do disposto no art.º 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE).
Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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4. Decisão
Nos termos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo dos apelantes.
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Notifique.
Porto, 13 de Setembro de 2018.
Paulo Dias da Silva (Relator; Rto 180)
Teles de Menezes
Mário Fernandes