Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
450/15.8PASTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: TAXA DE JUSTIÇA
TAXA SANCIONATÓRIA EXCEPCIONAL
Nº do Documento: RP20200714450/15.8PASTS.P1
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O requerimento em que a parte, relativamente a matéria decidida já com trânsito em julgado, vem repetir a argumentação do anterior requerimento que teve o desfecho da decisão transitada, e em que apenas pretende deixar no processo para memória futura a (sua) verdade dos factos, constitui um ato que não pode lograr qualquer efeito processualmente útil, que é manifestamente improcedente, abusivo e revelador da violação do dever de diligência por parte de quem o intenta, restando apenas a sua aptidão para desencadear o mecanismo da taxa sancionatória excecional.
(Sumário do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 450/15.8PASTS-A.P1
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Acordam em conferência na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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1 - RELATÓRIO
No Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular n.º 450/15.8PASTS, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Santo Tirso - Juiz 2, a Mma. Juíza, em 25-03-2020, proferiu o seguinte despacho:
«Fls.1033 e ss:
O arguido veio reiterar o seu anterior requerimento, insistindo em trazer para estes autos questões impertinentes e descabidas, as quais são, por isso, manifestamente irrelevantes e inapropriadas às finalidades processuais.
Por conseguinte, considero não escritos os arts.1º a 30º e 32º a 38º de tal peça processual.
Coloque sobre os mesmos folha opaca, a fim de que tais escritos fiquem invisíveis.
Condeno o arguido pela anomalia do incidente fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art.10º do RCP).
Caso o arguido insista em tal comportamento processual será a anomalia tributada entre 4 a 15 UC.
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Não se conformando com esta decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
«1 - Vem o presente recurso interposto do Despacho de 25.03.2020, com o número de referência 413485732, que condenou o Arguido pela “anomalia do incidente”, fixando a taxa de justiça em 2 UC`s.
2 - Incidente a que o Arguido não deu causa.
3 - Porém, não fundamentou o douto Tribunal a quo, nem de facto nem de direito, tal decisão, numa clara violação do disposto nos Art.os 97.º, n.º 5, do CPP e 205.º, n.º 1, da CRP.
4 - Não basta dizer-se generalidades como “questões impertinentes e descabidas” e “manifestamente irrelevantes e inapropriadas às finalidades processuais”, quando o Arguido se limitou a pronunciar como ordenado pelo Tribunal e a explicar detalhadamente por que razão transferiu a quantia em que foi condenado para a conta do crédito à habitação do ex-casal.
5 - O Arguido foi chamado a pronunciar-se sobre um requerimento (e um documento) da Assistente, pelo que não poderia dar causa a um incidente.
6 - Também não se vê qualquer fundamento, de facto ou de direito, que integre a reação do ora Recorrente num incidente processual anómalo ou estranho ao andamento normal do processo, a justificar a sua tributação em custas.
7 - A Assistente, em requerimento para o efeito (referência n.º 24960171), respondeu alegou que o Arguido não lhe pagou a indemnização, juntando uma declaração da B….
8 - Através do seu requerimento datado de 13.02.2020, com o número de referência 25130909, o Arguido pronunciou-se.
9 - Pelo que não se percebe como possa caber nos Art.os 7.º ou 8.º do RCP e na Tabela anexa II, nem se prefigura qualquer justificação para a condenação da ora Recorrente em custas.
10 - Certo é que, não obstante prever o Art.º 521.º, n.º 1, do CPP uma condenação de taxa sancionatória excepcional, tal tem que ser expressamente “explicado” na decisão proferida, sendo que na que é posta em crise não se mostra alegado, e muito menos verificado, o circunstancialismo apresentado nesse preceito.
11 - A Assistente, depois de notificada para se pronunciar, acusou o Arguido, no tal requerimento com a referência 24960171, de “distorcer factos” e de ter solicitado que “esse dinheiro fosse usado para o pagamento do mútuo existente”, o que é rotundamente falso.
12 - A Assistente fez acusações que o Arguido considerou gravosas e não correspondentes com a realidade, pelo que não lhe restou alternativa que não fosse a de se defender e justificar a razão pela qual procedeu como procedeu.
13 - Por Despacho de 19.02.2020, referência 412503460, foi o Arguido condenado em 3 UC’s por alegadamente dar causa a incidente anómalo.
14 - Quando se limitou a pronunciar-se conforme determinado pelo Despacho de 05.02.2020 (referência 411980765).
14 - Perante o não pagamento das prestações mensais, a ameaça do “acionamento judicial da totalidade da dívida” e, mais crítico, a comunicação do incumprimento ao BdP, o Arguido propôs à Assistente que, tendo em conta o grave prejuízo que era para ambos tal facto, aceitasse que os Eur. 15.000,00 fossem entregues à B… para liquidação do crédito vencido.
15 - Face à pressão da B… (pressão bancária que todos conhecemos) e à comunicação ao BdP, o Arguido interpretou o demorado silêncio da Assistente como aceitação.
16 - Não obstante, o Tribunal a quo voltou a condenar o Arguido em 2 UC’s, no seu Despacho de 25.03.2020, com a referência 413485732.
17 - Da análise e interpretação conjugada dos normativos invocados só se pode concluir que carece de qualquer fundamento a condenação do ora Recorrente imposta no aludido segmento do Despacho visado, pelo que deve o mesmo ser revogado, ficando sem efeito a sua condenação em 2UC`s.
18 - Ao decidir da forma explanada no douto Despacho recorrido, violou o Tribunal a quo, entre outros, os Art.os 97.º, n.º 5, 521.º, 524.º do CPP, 7.º e 8.º do RCP e 205.º da CRP e os preceitos, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da tipicidade, da proporcionalidade e da adequação.
19 - In casu, não se vê que a justificação do Arguido consubstancie uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal da lide determinante de um grau sensível de perturbação do normal andamento do processo.
20 - A sua argumentação não é nem descabida e muito menos dilatória, na medida em que tinha e ainda tem prazo para pagar a indemnização em que foi condenado.
21 - O Arguido não deu causa a um acréscimo anormal da atividade processual, tão pouco a uma excessiva demora na tramitação processual.
22 - Pelo que daí, por si só, não se pode retirar uma atitude manifestamente impertinente, inútil, estranha ao normal andamento do processo e, pelo que tal comportamento não devia ser tributável como incidente anómalo, antes sim encarado como abrangido pela tributação própria do processo.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, e, em consequência, substituir-se o douta Despacho por outro que absolva o Arguido da condenação em custas por incidente anómalo,
Assim se fazendo inteira e costumada JUSTIÇA!»
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.
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Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, tendo o recorrente respondido, concluindo no sentido da sua motivação de recurso.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 - QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1- Da violação pelo despacho recorrido do dever de fundamentação imposto pelos artigos 97.º, n.º 5, do CPP e 205.º, n.º 1, da CRP, por omissão dos respetivos fundamentos de facto e de direito.
2- Da aplicação da taxa sancionatória excecional em violação do disposto nos artigos 521°, n°. 1, do Código de Processo Penal e 531° do Código de Processo Civil.
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2.2- CIRCUNSTÂNCIAS RELEVANTES EXTRAÍDAS DOS AUTOS.
Além do despacho recorrido acima transcrito, importa considerar, com relevo para a resolução da questão colocada, as circunstâncias dos autos (cfr. certidão que instruiu o presente recurso e o processo principal consultado eletronicamente) que a seguir se descrevem:
1 - Em 13.03.2019 foi proferida sentença nestes autos, confirmada poo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.09.2019, já transitado em julgado, que condenou o arguido C… pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, nº1, al. a), c) e nº2 do C. Penal, na pena de dois anos e oito meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de dois anos e oito meses, sob a condição de o arguido proceder ao pagamento à lesada D…, no prazo de um ano e meio, da indemnização civil em que adiante vai condenado, no montante de 15.000,00€, acrescida de juros até integral pagamento.
2 - Em 29.11.2019, o arguido veio juntar aos autos documento relativo a uma transferência bancária no montante de 15.000,00€, que no seu entender comprovava do pagamento da indemnização devida.
3 - Em 29.01.2020, depois de ter sido notificada para informar o tribunal sobre se recebeu o valor que terá sido objeto da transferência bancária que antecede, veio a lesada dizer, em resumo que o arguido não pagou qualquer quantia, muito menos o pedido de indemnização civil. E refere a assistente nesse requerimento que o comprovativo junto aos autos de uma transferência do montante de €15.000,00, corresponde a uma transferência feita para uma conta conjunta titulada pela assistente e pelo Arguido, onde se encontra filiado o crédito habitação contraído pela assistente e arguido em 1997 e que à data de 29/11/2019 tinha ainda em aberto o montante de €14.945,07. Assim, o Arguido, no dia 29 de Novembro de 2019, efetuou a transferência do valor de quinze mil euros de uma outra conta sua para aquela conta conjunta para proceder à liquidação do mútuo existente. Em apoio do alegado, juntou documento da entidade bancária.
4 - Em 13.02.2020, após notificação para se pronunciar sobre o requerimento da assistente, veio o arguido em requerimento dizer, em resumo, que pagou tal quantia através da dita transferência porquanto, tendo em conta o grave prejuízo que era para ambos o facto do incumprimento do já referido mútuo ter sido comunicado ao BdP, propôs à assistente que aceitasse que os Eur. 15.000,00 fossem entregues à B… para liquidação do crédito vencido. No silêncio desta, entendeu que tinha o assentimento e realizou a dita transferência.
5 - Em 18.02.2020, a Sra. Juíza do processo proferiu despacho a declarar não cumprida – pela referida transferência bancária - a aludida condição.
6 - É do seguinte teor do despacho proferido em 18.02.2020:
«Nos presentes autos, o arguido C… foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, nº1, al. a), c) e nº2 do C. Penal, na pena de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos e oito meses, sob a condição de o arguido proceder ao pagamento à lesada D…, no prazo de um ano e meio, da indemnização civil no montante de 15.000,00€, acrescida de juros até integral pagamento.
O arguido veio, em 29.11.2019, juntar “comprovativo do pagamento da quantia em que foi condenado a título de indemnização civil” – cfr. fls.986 e ss.
Todavia, da declaração bancária de fls.1001 resulta que, a sua solicitação junto da B…, o condenado liquidou com tal quantia financiamento para construção de habitação própria permanente no valor remanescente de 14.945,07€, por débito na conta solidária, em seu nome e da ex-mulher, aqui assistente, provisionada por crédito de transferência de 15.000,00€ ordenada por C….
É bom de ver, até porque decorre da admissão expressa do arguido (Cfr. fls.1013 e ss.), que a amortização de tal dívida ao banco não equivale ao pagamento à assistente da indemnização em que foi condenado (veja-se por ex. que nem sequer se podem extinguir por compensação créditos provenientes de factos ilícitos dolosos, como preceituado no art.853º, nº1, al. a) do Código Civil) que é, de resto, condição suspensiva da execução da pena de prisão aplicada nos autos.
Acresce que as demais considerações expendidas pelo arguido a fls.1014 e ss. são perfeitamente irrelevantes, deslocadas e obviamente inócuas nos presentes autos, que o requerente – como é notório – procura instrumentalizar para atingir objectivos alheios às finalidades do processo, o que não se pode deixar de censurar e de, em consequência, tributar, o que melhor adiante se liquidará.
Em face do exposto, mais não resta senão declarar não cumprida – pela referida transferência bancária - a aludida condição.
Condeno o arguido nas custas do incidente manifestamente anómalo a que deu causa, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 UC (art.10º do RCP).
Notifique, sendo a assistente para indicar no processo o número de conta bancária em que pretende receber a indemnização atribuída nos autos
7 - Notificado, o arguido não recorreu deste despacho.
8 - Em cumprimento do ordenado no despacho a assistente juntou aos autos documento com o número da conta bancária (IBAN) em que pretendia receber a indemnização e em 28.02.2020 foi ordenada a notificação desse documento ao arguido.
9 - Em 10.03.2020, após ter sido notificado do documento com o IBAN, veio o arguido apresentar requerimento no qual, em suma, refere que não pretendeu fazer operar qualquer compensação; retoma o relato da sua visão das coisas quanto à transferência de 15.000,00€, no essencial repetindo o que já havia dito no anterior requerimento e sobre o qual recaiu o despacho de 18.02.2020; informa que só procederá ao depósito/transferência da quantia em que foi condenado no dia 08.03.2021; que não recorreu do despacho de 18.02.2020 por razões que não interessa chamar à colação; mas tal não o impede de, em resposta ao envio do IBAN, deixar nos autos para memória futura a verdade dos factos no que tange à questão concreta do pagamento da indemnização devida à Assistente; e termina o requerimento com a expressão: «É que eles – os autos – findam, mas ficam disponíveis para memória futura.».
10 - Sobre este requerimento recaiu o despacho recorrido de 25.03.2020.
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2.3.- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
2.3.1 - Da violação pelo despacho recorrido do dever de fundamentação imposto pelos artigos 97.º, n.º 5, do CPP e 205.º, n.º 1, da CRP, por omissão dos respetivos fundamentos de facto e de direito.
Entende o recorrente que o despacho recorrido que o condenou na taxa sancionatória excecional violou o dever de fundamentação imposto pelos artigos 97.º, n.º 5, do CPP e 205.º, n.º 1, da CRP, por omissão dos respetivos fundamentos de facto e de direito.
Vejamos então do dever de fundamentação das decisões judiciais, começando pelo princípio.
E no princípio, como é sabido, está a Constituição da República que, no seu artigo 205º, n.º 1, impõe que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.»
E compreende-se a razão de ser desta imposição quer na decisão judicial em geral quer no processo penal, pois a fundamentação da decisão, dando a conhecer aos destinatários da decisão, à comunidade em geral e, em caso de recurso, ao tribunal da instância superior, as razões pelas quais o Tribunal decidiu num sentido ou noutro, é uma exigência do Estado de Direito e do direito a um processo justo e equitativo, onde constitui uma garantia de defesa, desde logo através do direito ao recurso, assegurado pelo artigo 32º, n.º 1 da Constituição.
Este princípio constitucional do dever de fundamentação das decisões judiciais é depois concretizado pelo legislador ordinário, variando o grau de fundamentação exigido de acordo com as matérias e relevância das decisões em causa, o que é claramente percetível no Código de Processo Penal na diferença de tratamento dada às sentenças, aos despachos e aos despachos de mero expediente.
Com efeito de acordo com o artigo 97.º, n.º 5 do CPP, «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.»
E, nos termos do n.º 1 são atos decisórios dos juízes: as sentenças, quando conhecerem a final do objeto do processo; e os despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo, fora do caso previsto na alínea a) do mesmo número.
O grau de exigência na fundamentação das sentenças é superior ao dos despachos, conforme se retira do disposto nos artigos 374º, 375º e 379º do CPP.
A decisão recorrida que aplicou ao arguido a taxa sancionatória excecional constitui um despacho que não é de mero expediente pelo que, embora sujeita ao dever geral de fundamentação do artigo 97º, n.º 5 do CPP, não está sujeita às exigências de fundamentação das sentenças, pois o artigo 374º do CPP é aplicável apenas às sentenças, conforme resulta logo da sua inserção sistemática.
É certo que nos despachos que não sejam de mero expediente devem ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, mas passar daí à exigência da enumeração ponto por ponto, como nas sentenças, dos factos suscetíveis de integrar a previsão da norma em causa é algo que não se vislumbra nas disposições legais aplicáveis.
O que é necessário é que neles estejam suficientemente compreensíveis e claros os fundamentos facto e de direito da decisão. E para tanto é admissível, desde que compreensível e clara, a fundamentação por remissão, seja para peças processuais, para promoções do Ministério Público ou para requerimentos dos Advogados, os quais se consideram integrados no despacho.
São razões de eficácia, celeridade e economia processual que justificam tal procedimento, válido desde que não frustre os fins da fundamentação, nomeadamente a inteligibilidade da decisão para os seus destinatários.
Diz o recorrente que «não basta dizer-se generalidades como “questões impertinentes e descabidas” e “manifestamente irrelevantes e inapropriadas às finalidades processuais”» para cumprir o dever de fundamentação de facto da decisão.
Mas esquece-se, desde logo, da remissão prévia feita no despacho para o requerimento que levou à aplicação da taxa sancionatória excecional. Com efeito, o despacho recorrido inicia-se com a remissão para o requerimento «Fls.1033 e ss..» e ao fazê-lo integra o teor do requerimento no despacho. Ora, o requerimento em causa sendo da autoria do recorrente era por si necessariamente conhecido. Acresce que, ainda que assim não se entendesse o despacho recorrido refere «O arguido veio reiterar o seu anterior requerimento, insistindo em trazer para estes autos questões impertinentes e descabidas…». A reiteração ou repetição de um anterior requerimento é com certeza um facto jurídico com eventual relevância para desencadear o efeito jurídico da taxa sancionatória. E também a insistência em trazer aos autos questões impertinentes e descabidas se poderá considerar constituir também facto jurídico com relevo para a aplicação da sanção em causa.
Quanto à fundamentação de direito, admitimos que o despacho poderia ter citado os artigos 531º do CPP e 521º do CPC, mas a leitura do despacho no seu todo, designadamente a expressão ‘Condeno o arguido pela anomalia do incidente’ e sobretudo a referência ao artigo 10° do Regulamento das Custas Processuais, cuja epígrafe é ‘Taxa sancionatória excecional’, deixa sem margem para dúvidas qual foi o instituto aplicado.
Aliás, o próprio recorrente entendeu, como da leitura das conclusões do recurso naturalmente resulta, qual o instituto aplicado e quais as normas em causa. Em suma, compreendeu os fundamentos facto e de direito da decisão.
Assim, contrariamente ao pretendido, entendemos que o despacho recorrido não violou, por omissão dos respetivos fundamentos de facto e de direito, o dever de fundamentação imposto pelos artigos 97.º, n.º 5, do CPP e 205.º, n.º 1, da CRP.
2.3.2- Da aplicação da taxa sancionatória excecional em violação do disposto nos artigos 521°, n°. 1, do Código de Processo Penal e 531° do Código de Processo Civil.
Vejamos então se se verificam na situação em análise os pressupostos de que depende a aplicação da taxa sancionatória excecional prevista nos termos dos artigos 521°, n°. 1, do Código de Processo Penal, 531° do Código de Processo Civil e 10° do Regulamento das Custas Processuais.
Nos termos do artigo 521º, n.º1 do CPP, «à prática de quaisquer atos em processo penal é aplicável o disposto no Código de Processo Civil quanto à condenação no pagamento de taxa sancionatória excecional.»
Por outro lado dispõe o artigo 531.º do Código de Processo Civil que esta sanção é aplicada por despacho fundamentado «quando a ação, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida».
A taxa sancionatória excecional, de acordo com o disposto no artigo 10.º do Regulamento das Custas Processuais, pode ser fixada entre 2 e 15 UC.
A finalidade desta taxa sancionatória excecional é a de contribuir para a economia processual e celeridade da justiça, instituindo um mecanismo de penalização dos intervenientes processuais que, por motivos dilatórios, bloqueiam os tribunais com recursos e requerimentos manifestamente infundados, conforme resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.2.
Com este instituto visa-se sobretudo evitar a prática de atos inúteis, impedindo que o tribunal se debruce sobre questões que se sabe de antemão serem insuscetíveis de conduzir ao resultado pretendido ou sendo jurídico-processualmente estéreis não poderem produzir a qualquer efeito processual útil, para além claro da aptidão para desencadearem o mecanismo da taxa sancionatória excecional.
São pressupostos de aplicação da taxa sancionatória excepcional[1]:
- a natureza manifestamente improcedente do requerimento, recurso, reclamação ou incidente, revelando uma natureza meramente dilatória;
- a atuação imprudente, desprovida da diligência, no caso exigível, e como tal censurável, da parte de quem os formula/apresenta;
- o seu efeito dilatório.
A utilização de meios não previstos na lei ou a sua utilização abusiva integram a previsão do artigo 531º do CPC, pois constituem a prática de atos meramente dilatórios completamente infundados.
Para concluir pela utilização abusiva de meios processuais deve o Tribunal proceder a uma rigorosa distinção entre o que constitui uma defesa enérgica e exaustiva dos interesses das partes e um uso desviante e perverso dos meios processuais. Só neste último caso se justificando o sancionamento nos termos do citado artigo 531.º, do CPC[2].
Vejamos então.
Conforme resulta das circunstâncias relevantes acima expostas, o arguido, após ter sido condenado numa pena de prisão suspensa condicionada ao pagamento à ofendida da quantia de 15.000€, veio aos autos dizer que satisfez a condição tendo procedido ao pagamento. Depois de notificada, a ofendida em requerimento negou o pagamento e o arguido respondeu em requerimento, tendo a Sra. Juíza decidido por despacho o incidente, declarando não cumprida a aludida condição e determinando que a ofendida fornecesse aos autos o IBAN para onde deveria ser transferida ou depositada a referida quantia. O despacho transitou em julgado sem que ninguém dele tivesse recorrido. A ofendida cumpriu com o ordenado juntando o IBAN aos autos, sendo dado conhecimento do mesmo ao arguido.
O arguido, notificado do IBAN e não obstante o trânsito do despacho que decidiu o incidente sobre o alegado cumprimento da condição, veio em novo requerimento, em que repetiu os argumentos de pagamento do seu anterior requerimento, sobre o qual já tinha incidido despacho transitado em julgado, acrescentando ainda que só procederá ao depósito/transferência da quantia em que foi condenado no dia 08.03.2021, que não recorreu do despacho de 18.02.2020 por razões que não interessa chamar à colação, mas tal não o impede de, em resposta ao envio do IBAN, deixar nos autos para memória futura a verdade dos factos no que tange à questão concreta do pagamento da indemnização devida à Assistente; e termina o requerimento com a expressão: «É que eles – os autos – findam, mas ficam disponíveis para memória futura.».
Quer dizer, quanto à matéria decidida e transitada o arguido repete a argumentação do anterior requerimento, mas que não recorreu do despacho por razões que não interessam, mas que pretende deixar para memória futura a verdade dos factos.
Fala o recorrente em exercício do contraditório. Não entendemos porquê, é que não há contraditório depois da causa terminada. A causa (ou o incidente processual) finda com a decisão transitada.
Finda a causa ou o incidente processual, não há lugar a uma espécie de declarações processuais ‘ad perpetuam rei memoriam’ ou ‘post mortem’. A última palavra no processo é do Tribunal, não das partes.
Ora, o requerimento em causa é absolutamente anómalo, não se antevendo qual a finalidade processual legítima do mesmo. Deixar para memória futura, através de requerimento interposto após o trânsito em julgado da decisão, a discordância da parte com o definitivamente decidido pelo Tribunal não é pretensão com assento nas leis processuais.
Quando se discorda duma decisão judicial, recorre-se.
Se não se recorre e se deixa a decisão transitar, não há que levantar incidentes que não podem lograr qualquer efeito processualmente útil, manifestamente improcedentes, abusivos, sem qualquer fundamento legal e reveladores da violação do dever de diligência por parte de quem os intenta.
Acresce que este género de incidentes só leva à prática de atos inúteis, ao gasto de tempo do tribunal e ao entorpecimento da marcha do processo, sendo jurídico-processualmente estéreis por não poderem produzir qualquer efeito processual útil, excetuando a sua aptidão para desencadear o mecanismo da taxa sancionatória.
Concluindo, o requerimento em que a parte, relativamente a matéria decidida já com trânsito em julgado, vem repetir a argumentação do anterior requerimento que teve o desfecho da decisão transitada, e em que apenas pretende deixar no processo para memória futura a (sua) verdade dos factos, constitui um ato que não pode lograr qualquer efeito processualmente útil, que é manifestamente improcedente, abusivo e revelador da violação do dever de diligência por parte de quem o intenta, restando apenas a sua aptidão para desencadear o mecanismo da taxa sancionatória excecional.
Assim, encontrando-se preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido da taxa sancionatória excecional, a qual foi fixada no mínimo da moldura abstrata (2 a 15 UC, artigo 10º do RCP), é de negar provimento ao recurso, sendo de confirmar a condenação do recorrente e arguido na multa de 2 UCs, a título de taxa sancionatória excecional, nos termos dos artigos 521°, n°. 1 do Código de Processo Penal, 531° do Código de Processo Civil e 10° do Regulamento das Custas Processuais.
2.3.3 Responsabilidade pelo pagamento de custas
Uma vez que o arguido decaiu totalmente no recurso que interpôs, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar - artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal.
Nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9, Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III.
Tendo em conta a complexidade mediana do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UC.
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3 - DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente, com 4 UC de taxa de justiça.
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Notifique.
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º n.º 2, do CPP)
Porto, 14 de Julho de 2020
William Themudo Gilman
Liliana Páris Dias
______________
[1] Cfr. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, p. 1274-1275); o Ac. do STJ de 09-05-2019 (Conceição Gomes) e o Ac. TRC de 19-12-2018 (Maria José Nogueira), in dgsi.pt.
[2]Cfr. neste sentido o Ac. STJ de 29-05-2019 (Maia Costa), in dgs.pt.