Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1267/12.7TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: TESTAMENTO
ANULAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
INABILITAÇÃO DO TESTADOR
Nº do Documento: RP201505041267/12.7TVPRT.P1
Data do Acordão: 05/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A inabilitação não restringe a capacidade testamentária ativa, pois o efeito normal da inabilitação é sujeitar a prática de certos atos jurídicos à assistência de um curador. Este regime seria inadmissível para o testamento, que é um ato por natureza pessoal.
II - Contudo, se o inabilitado não estiver em condições de entender e querer o sentido do seu ato, o testamento é anulável, com fundamento em incapacidade acidental, nos termos do art. 2199º CC.
III - Na ação de anulação de testamento, ao abrigo do art. 2199º CC, recai sobre o interessado na anulação o ónus de alegar e provar o estado de doença durante o período que abrange o ato anulado e que essa doença pela sua natureza e características impede o testador de entender o sentido da sua declaração ou o livre exercício da sua vontade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Testamento-1267/12.7TVPRT-296-15TRP
Comarca do Porto
Inst Central Porto-1ª sc Cv-J4
Proc. 1267/12.7TVPRT
Proc. 296/15-TRP
Recorrente: B…
Recorrido: C…
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Rita Romeira
Manuel Fernandes
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa sob o regime de processo comum e que foi instaurada sob a forma do regime processual civil experimental, entretanto revogado, em que figuram como:
- AUTOR: B…, nif ………, casado, residente na Rua …, …, ….-… …, Vila Nova de Gaia; e
- RÉUS: C… e mulher D…, residentes na Rua …, n° … – .º Esquerdo Traseiras, …, ….-… Porto
pede o Autor:
- a) que seja declarada a anulabilidade, com todos os legais efeitos, do testamento outorgado por E…, viúva, no dia 21 de junho de 2006 no Cartório Notarial do Licenciado F…, sito na Rua …, n° … – .º, Porto a fls. 35 do livro de testamentos nº 76-T;
b) declarada nula a citação da falecida E… no processo nº 957/08.3TJPRT do 3º Juízo Cível do Porto e de todo o subsequente processado em tais autos, incluindo a respetiva sentença, com todos os legais efeitos.
Alega para tanto e no essencial que a testadora, a falecida E…, não se encontrava, no momento da feitura do testamento, em condições psíquicas e intelectuais de entender e de querer o sentido da declaração testamentária, pelo que este testamento é anulável (art. 2199 do Código Civil).
Mais alega que nem a falecida, no estado demencial em que se encontrava, tinha capacidade intelectual ou discernimento para tomar a iniciativa de ir até um cartório notarial, conversar com um notário e mandar lavrar um testamento a favor de quem quer que fosse. Pelo que, perante essa incapacidade, ao invés, teve de ser o notário a ir a casa do Réu para lavrar um testamento cujas disposições, por coincidência, mas não por acaso, correspondem à conhecida vontade do Réu.
No que concerne à requerida nulidade da citação daquela E…, entretanto falecida, alega que no dia 29 de abril de 2008, o R. instaurou contra a sua mãe uma ação de prestação de contas que correu termos sob o processo nº 957/08.3TJPRT do 3º Juízo Cível do Porto. Na petição dessa ação, o A. (aqui réu) e a Ré (a mãe) são identificados, e bem, com residência no mesmo local, a casa do filho autor, que a mãe é citada via postal, assinando o respetivo aviso postal de receção, que a mãe (que o autor alega estar nessa data demente) demente não contratou qualquer advogado, não contestou essa ação, nem nada respondeu ao mesmo processo e, por via de tal absoluta incapacidade, o filho autor prestou as contas que quis, como quis, do que quis e pelo valor que quis, pelo que conseguiu, assim e dessa forma, este R. obter uma sentença a condenar a demente mãe a pagar-lhe a quantia de € 90.781,60.
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Citados, os Réus contestaram os factos alegados pelo autor para suportar os pedidos formulados e quanto ao segundo pedido mais alegam que não existe qualquer nulidade de citação e por conseguinte e muito menos qualquer nulidade da sentença proferida no processo porquanto a falecida não estava demente nem incapacitada na data de citação da referida ação (ano de 2008). Por fim alegam que este processo nunca seria o meio próprio para suscitar a questão da nulidade da citação feita no âmbito de outro processo, sendo que após o transito em julgado de sentença proferida em ação declarativa, o único meio que o réu revel pode invocar é interpondo um recurso de revisão invocando a falta de citação ao abrigo do disposto no artigo 771º alínea e) do CPC, e, alegam, sempre faltaria legitimidade.
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Findos os articulados, realizou-se uma tentativa de conciliação, a qual, não teve êxito.
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Dispensou-se, ao abrigo do artigo 547ºCPC a elaboração de despacho saneador e bem assim do despacho de identificação do objeto de litígio e de enunciação dos temas de prova e foi agendada data para realização do julgamento.
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Procedeu-se à realização de julgamento com intervenção de juiz singular e com observância do formalismo legal.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, julgo verificada a exceção dilatória inominada, consubstanciada, na inadequação do meio processual usado pelo aqui autor para apreciação do pedido consubstanciado em ver declarada a nulidade da citação da falecida E… no processo nº 957/08.3TJPRT do 3º Juízo Cível do Porto e de todo o subsequente processado em tais autos, incluindo a respetiva sentença, com todos os legais efeitos, absolvendo o réu da instância relativamente ao pedido formulado em segundo lugar, o que se declara para todos os efeitos legais.- artigos 576º, nºs 1, 2, 577º, 578º, 579º, todos do NCPC - e julgo improcedente, por não provada, a presente ação, e consequentemente, absolvo o Réu do pedido formulado em primeiro lugar.
Custas da ação a cargo do autor, fixando em € 30.000,01 o valor da ação”.
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O Autor veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
1. Foi dado por provado que no “processo de inabilitação nº 480/09.9TVPRT contra a mesma falecida mãe dos A. e R. marido, tendo sido proferida sentença, transitada em julgado, da qual consta o seguinte:… A requerida sofre de doença de Alzheimer que a torna total e definitivamente incapaz de administrar os seus bens, tal como parecer médico… O quadro de demência tem como data provável de início o ano de 2005.”
2. E provado que “da fundamentação jurídica da sentença proferida consta o seguinte: “Resulta claramente do interrogatório judicial a que foi sujeita, e exame médico a que foi submetida no âmbito destes autos que, E…, sofre de Síndrome Demencial, de etiologia provável degenerativa - tipo Doença de Alzheimer .. devido à doença que a afeta, de que padecerá pelo menos desde 2005…pelo que nesse âmbito será facilmente enganada, a doença de que padece tem caráter evolutivo e é incurável…”
3. E que “… proferiu o tribunal a seguinte decisão: “Pelo exposto e em conclusão, considerando o grau de incapacidade da requerida, decreto a inabilitação definitiva, por anomalia psíquica, de E…, fixando-se a data provável do começo da sua incapacidade em 2005…”
4. E também provado que “O Réu marido instaurou a 9 de maio de 2005 uma ação de inabilitação contra a sua mãe, a qual correu termos sob o nº 4580/05.5TBVNG na 2ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia…”
5. A. e R., os únicos filhos da falecida E…, naquele processo de inabilitação nº 480/09.9TVPRT declararam e reconheceram que a sua falecida mãe sofria de síndrome demencial desde, pelo menos, 2005.
6. Dados estes fatos provados, verifica-se a presunção de facto da incapacidade acidental da falecida E… desde, pelo menos, 2005.
7. Em consequência, tem de se concluir que aquando da feitura do testamento, em junho 2006, a falecida E… padecia de síndrome demencial.
8. No termos do decidido no Acórdão da Relação do Porto de 08.05.2000 (in www.dgsi.pt) “A incapacidade acidental, aquando da feitura do testamento, do testador não interdito por anomalia psíquica, pode ser objeto de presunção judicial”.
9. Perante o fato dos filhos da testadora terem reconhecido no processo de inabilitação que a sua mãe padecia síndrome demencial desde, pelo menos, 2005, o fato do filho R. ter requerido a inabilitação da testadora em 2005 e o fato de ter sido provado na ação nº 480/09.9TVPRT que a testadora sofria de tal doença desde aquela data, a incapacidade acidental da testadora, aquando da feitura do testamento, deveria ter sido, também, objeto de presunção judicial.
10. Tratam-se de limitações causadas por doença neurodegenerativa de que, pelo menos, desde 2005 a falecida já padecia – cfr. docs. 2 e 3 da pi.
11. Perante o teor dos vários processos judiciais juntos a estes autos e toda a matéria fatual que nos mesmos foi dada por provada, deve presumir-se, socorrendo-se das regras da experiência comum e atendendo à característica evolutiva da doença da testadora, que esta, no ato da outorga do testamento, não podia entender o sentido, nem querer o alcance da declaração manifestada.
12. Deve presumir-se que, dado este historial clínico e judicial da testadora, no momento da feitura do testamento, esta se encontrava privada de uma vontade sã, livre e consciente.
13. Dizem os médicos especialistas neste tipo de doenças que "É necessário que o testador demonstre claramente possuir a necessária liberdade para querer e entender as disposições tomadas…. A existência de uma doença psiquiatra só não invalida o testamento se os peritos pudessem estabelecer com clareza que a doença não altera os quadros de lúcida decisão do testador” (Prof. Polónio Sampaio, “Psiquiatria Forense”, 1975, págs. 298 e pág. 463)”.
14. Este ensinamento científico tem acolhimento na jurisprudência que considera que a fixação em sentença da data provável do início da incapacidade constitui presunção de facto da incapacidade natural, conforme decidido no Acórdão do STJ de 5.07.2001 (in www.dgsi.pt), no Ac. STJ de 14.01.75 (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 243, fevereiro 1975, p. 199 e 200) e no Acórdão da R.P. de 08.05.2000 (in www.dgsi.pt).
15. E a doutrina de Galvão Telles, na RT, Ano 1972, p. 268, ensina que: “provado o estado demencial, em período que abrange o ato anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo ato aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde isto ao id quod plerumque accidit; está em conformidade com as regras da experiência”.
16. Pelo que a conclusão jurídica que, de forma lógica se impõe de ver indeferido o pedido do A., é que só se fosse demonstrado – de forma científica - que o ato da feitura do testamento recaiu num momento de excecional, intermitente e rara lucidez.
17. A lei confere a possibilidade de se fazer intervir no testamento peritos médicos para abonarem da sanidade mental do outorgante testador, mas tal não aconteceu.
18. Dado que à data do testamento, a testadora sofria de síndrome demencial “de etiologia provável degenerativa - tipo Doença de Alzheimer”, que “a doença de que padece tem caráter evolutivo e é incurável…” é de concluir que, no momento da feitura do testamento, aquela se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária.
19. Dado este quadro fatual e dada a verificação da presunção de facto da incapacidade acidental da falecida E… desde, pelo menos, 2005, incumbia ao R. beneficiário do testamento fazer a prova de que, no momento da feitura do testamento, e apesar do síndrome demencial “de etiologia provável degenerativa - tipo Doença de Alzheimer” de que sofria, a testadora não foi influenciada pelo concreto estado demencial em que já se encontrava.
20. Pois que assim tal foi decidido no Acórdão do STJ de 24-05-2011 (in www.dgsi.pt): “… incumbia à beneficiária do testamento fazer a prova de que, no momento da feitura do testamento, apesar da esquizofrenia paranoide de que sofria, o testador não foi influenciado pelo concreto estado demencial em que se encontrava.”
31º. Pelo que, e tudo ponderado, andou mal o Julgador ao decidir desta forma, pois que deveria ter julgado procedente este pedido do A., uma vez que o R. beneficiário do testamento não fez essa necessária prova.
O apelante termina por pedir a substituição da sentença por outra que julgue procedente o pedido de anulação do testamento em causa.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em apurar se atenta a matéria de facto apurada estão reunidos os pressupostos para anulação do testamento celebrado em data anterior aquela em que foi proferida a sentença que declarou a inabilitação do testador.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1º. Conforme escritura de habilitação de herdeiros lavrada no dia três de abril de dois mil e doze, no Cartório Notarial da cidade do Porto, à Rua …, n° …, Terceiro, do Licenciado F…, A. e R. marido são os únicos herdeiros legitimários de sua mãe E…, falecida no dia vinte e seis de março de dois mil e doze no estado de viúva, conforme teor do documento 1 junto à petição inicial e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
2º. Conforme se alcança dessa escritura, declarou na mesma o R. marido que aquela falecida mãe deixou testamento outorgado no dia 21 de junho de 2006 naquele mesmo cartório notarial, cuja cópia faz parte do doc. 1.
3º. Correu termos pela extinta 1ª Vara Cível do Tribunal da Comarca do Porto, o processo de inabilitação nº 480/09.9TVPRT contra a mesma falecida mãe dos A. e R. marido, tendo sido proferida sentença, transitada em julgado, da qual consta o seguinte:
“Com interesse para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
… • No dia 27 de abril de 1922 …. nasceu a requerida E……
• A requerida sofre de doença de Alzheimer que a torna total e definitivamente incapaz de administrar os seus bens, tal como parecer médico constante de fis. 108;
• A requerida não tem capacidades para administrar bens, gerir dinheiro, comprar ou vender bens imobiliários ou mobiliários
• A requerida está capaz de decidir com quem e onde quer viver, dar consentimento médico informado, delegar, fazendo-se representar e, exercer o direito de voto;
• O quadro de demência tem como data provável de início o ano de 2005.”
4º. E da fundamentação jurídica da sentença proferida consta o seguinte:
“Resulta claramente do interrogatório judicial a que foi sujeita, e exame médico a que foi submetida no âmbito destes autos que, E…, sofre de Síndrome Demencial, de etiologia provável degenerativa - tipo Doença de Alzheimer - em estado ligeiro/moderado, mostrando-se a requerida incapaz de administrar os seus bens devido à doença que a afeta, de que padecerá pelo menos desde 2005, não tendo capacidade autónoma de gerir dinheiro, comprar ou vender bens imobiliários e/ou mobiliários, não reúne capacidades para gerir mesmo pequenas quantidades de dinheiro, incapaz de cálculo, planeamento, sequenciação, pelo que nesse âmbito será facilmente enganada, a doença de que padece tem caráter evolutivo e é incurável, mas não está total e definitivamente incapaz de reger a sua pessoa, sendo autónoma para as atividades básicas da vida diária (vestir, comer, higiene pessoal, marcha e controle de esfíncteres), capaz de decidir com quem e onde quer viver, dar consentimento médico informado, delegar, fazendo-se representar e, exercer o direito de voto.…
… em que se concluiu, tal como as partes aceitaram a final, que a requerida padece de uma incapacidade total e permanente limitada à esfera patrimonial, estando capaz de autonomamente reger a sua pessoa nos aspetos básicos do dia a dia.
Assim sendo, não se verificando situação de incapacidade total, por anomalia psíquica, mas incapacidade quanto à administração do património, é de decretar apenas a inabilitação da requerida por anomalia psíquica, nos termos que constam inclusivamente da transação efetuada nestes autos.
A inabilitada será assistida por um curador, a cuja autorização estarão sujeitos todos os atos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias deste caso concreto, digam respeito à administração dos seus bens, gestão de dinheiro, comprar ou vender bens imobiliários e/ou mobiliários, conforme consagrado no art. 153° do CC.”
5º. Pelo que, em consequência desta matéria factual provada, proferiu o tribunal a seguinte decisão:
“Pelo exposto e em conclusão, considerando o grau de incapacidade da requerida, decreto a inabilitação definitiva, por anomalia psíquica, de E…, fixando-se a data provável do começo da sua incapacidade em 2005, devendo ser assistida pelo curador, a cuja autorização estão sujeitos todos os atos de disposição de bens entre vivos e, todos os que impliquem administrar os seus bens, gerir dinheiro, comprar ou vender bens imobiliários e/ou mobiliários.”
6º. Foi dado por provado nessa ação que a falecida E… sofria de síndrome demencial, pelo menos, desde 2005.
7º- A falecida E… outorgou testamento no dia 21 de junho de 2006, o qual foi lavrado na residência do Réu, sita na Rua …, n° …, quarto, esquerdo, da freguesia …, Porto, pelo notário Dr. F… do Cartório sito à Rua …, n° …, terceiro, no Porto.
8º. Deste testamento consta o seguinte:
“E por ela foi dito que faz o seu testamento da seguinte forma:
I- Que por conta da quota disponível e da parte indivisa que possui no imóvel sito na freguesia …, concelho do Porto, à Rua …, n°s ../.., inscrito na matriz urbana sob o artigo 3.254, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto [Segunda] sob o número quinhentos e setenta e oito lega: a) três/sextos indivisos a seu filho C…, b)- um sexto indiviso ao restante filho B…;
II- Que por conta da legítima lega a seu filho B…:
a) metade indivisa do prédio urbano sito na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, ao …, inscrito na matriz sob o artigo 553;
b)- os prédios rústicos sitos na aludida freguesia …, inscritos na matriz sob os artigos 3.090 e 3.030.
III- Que por conta da legitima lega àquele seu filho, C…:
a) o prédio urbano sito em …, ao dito …, n°.., inscrito na matriz sob o artigo 1.205;
b)- os prédios rústicos sitos no indicado …, inscritos na matriz sob os artigos 5.154, 3.107 e 3.108.”
9º. Do relatório do exame pericial assinado 1-10-2010 no processo judicial que decretou a inabilitação da falecida, e com base nas observações feitas à falecida no dia 28-05-2010 e 24-09-2010, consta o seguinte: “Quando interrogada sobre as razões deste processo, a examinanda não esboça qualquer sentido crítico. Não sabe as razões. Não sabe o que se passa com os filhos, não vislumbra que ambos disputam este processo com opiniões contrárias. A própria examinanda refere: “Os meus filhos que tratem de tudo porque eu tenho já limitadas as minhas capacidades intelectuais!” (sic).
Reobservada em 24.09.2010 dado que na primeira observação e face à presença da delegação do Tribunal, a Requerida ficou inibida, insegura e revelou cansaço. Hipoacusia (diminuição da capacidade auditiva) que dificulta a entrevista Dificuldades visuais…. lê mas com dificuldade Desorientação temporo-espacial. … não sabe por que razão está a ser interrogada, não percebe a razão da perícia, não sabe o que faz em Tribunal. … pensamento com sérias dificuldades no movimento abstrato e na sequenciação / planeamento… Função executiva prejudicada. Amnésia de fixação (memória episódica). Diátese para a confabulação. Incapaz de lidar com dinheiro e sem qualquer noção do seu valor atual. Sem perceção adequada dos acontecimentos atuais (vive no “seu mundo” que já não é o “mundo atual”) Apresenta uma dependência total para atividades instrumentais da vida Diária Padece de SINDROME DEMENCIAL de etiologia provável neurodegenerativa….”
10º- A falecida havia feito, pelo menos, um anterior testamento em 29 de maio de 1996.
11º-Em 1996, quando a testadora outorgou esse anterior testamento, identificou os imóveis pelos nomes pelos quais os identificava, lugar e artigos matriciais pelos quais costuma receber e pagar a contribuição autárquica (atual IMI).
12º-No testamento de 2006, dez após, a testadora já não identifica os prédios pelos nomes pelos quais os identificava, mas descreve as ruas, números de polícia, artigos matriciais e números das descrições prediais e até identifica as respetivas conservatórias desses registos prediais.
13º- Em 1996 a falecida fez um testamento simples, com disposições de vontade simples, concisas e em 2006, dez após, as disposições são muito mais minuciosas.
14º- O Réu marido instaurou a 9 de maio de 2005 uma ação de inabilitação contra a sua mãe, a qual correu termos sob o nº 4580/05.5TBVNG na 2ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia e nesse processo foi proferida sentença em 25 de fevereiro de 2009 na qual consta que:
“Acrescente-se, ainda, que, de todos os elementos clínicos constantes dos autos (incluindo a perícia médica determinada pelo tribunal) e que resultam provados, nenhum aponta para a incapacidade da requerida em gerir o seu património, aliás, pelo contrário. Em face do exposto, outra solução não resta que a de indeferir a requerida inabilitação por prodigalidade da Requerida E…».
15º- No relatório pericial efetuado em 23 de outubro de 2007 no âmbito deste processo consta que «Segundo observação constante do documento 2 a D. E… não apresentaria sintomatologia psicopatológica em julho de 2005 e de acordo com exame psicológico elaborado na mesma data a D. E… revelava um processo de deterioração normal para a sua idade (0,10) e QI Global de 103. Estes dados são interpretados como evidencia de processo de perda da capacidade intelectual, mas com o nível intelectual mantendo-se ainda dentro dos parâmetros médios»
16º- E desse mesmo relatório pericial datado de outubro de 2007 consta expressamente que «O seu discurso foi coerente e fluente no que diz respeito à sua história biográfica descrevendo-nos com detalhe a sua evolução profissional e a organização do seu dia a dia. Nomeadamente foi capaz, duma forma lógica, de dar valor dos seus rendimentos (reforma e rendas) e a maneira como organiza o pagamento aos empregados, contribuições, pagamentos de serviços».
4.2 - Não estão provados os seguintes factos:
1º- Que o quadro de demência de que a falecida sofria no ano de 2010 teve o seu início em data não apurada de 2005.
2º- Que a testadora no ato da outorga do testamento, não podia entender o sentido, nem querer o alcance da declaração manifestada, nem que nesse momento a falecida E… se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária em causa, nem que a testadora, no momento da feitura do testamento, se encontrava privada de uma vontade sã, livre e consciente,
3º- Que a testemunha da outorga do testamento, de nome G…, seja irmã da mulher do Réu.
4º- Que o testamento de 2006, corresponda a uma resposta às de há muito conhecidas pretensões do R. de herdar os precisos bens que neste testamento lhe são legados.
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3. O direito
- Da validade do testamento -
Na presente ação o Autor-apelante formulou os seguintes pedidos:
a) que seja declarada a anulabilidade, com todos os legais efeitos, do testamento outorgado por E…, viúva, no dia 21 de junho de 2006 no Cartório Notarial do Licenciado F…, sito na Rua …, n° … – .º, Porto a fls. 35 do livro de testamentos nº 76-T;
b) declarada nula a citação da falecida E… no processo nº 957/08.3TJPRT do 3º Juízo Cível do Porto e de todo o subsequente processado em tais autos, incluindo a respetiva sentença, com todos os legais efeitos.
Na sentença julgaram-se improcedentes os dois pedidos.
Nas conclusões de recurso, o apelante insurge-se apenas contra o segmento da sentença que julgou improcedente o pedido de anulação do testamento, por considerar face aos factos provados que se deve julgar verificada a presunção de facto da incapacidade acidental da falecida E… desde, pelo menos, 2005, incumbindo ao Réu-apelado fazer a prova que a doença de que padecia o testador não influenciou a sua vontade e não logrando fazer tal prova devia proceder a pretensão do apelante.
A questão colocada consiste em apreciar da validade do testamento celebrado por inabilitado em data anterior à instauração da ação que declarou a inabilitação e sobre quem recai o ónus da prova dos fundamentos da anulação.
O testamento é o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe de todos ou de parte dos seus bens, para depois da morte (artigo 2179, n.º 1 do Código Civil – CC). É um negócio mortis causa, atenta a data de produção dos seus efeitos; um negócio jurídico unilateral e não receptício; um ato individual e pessoal; formal (artigo 2204 do CC) e livremente revogável.
No testamento, o consentimento deve ser perfeito, quer no sentido de ser completamente declarada a vontade de testar, quer igualmente no sentido de a vontade declarada estar em conformidade com a vontade real. Aplicam-se-lhe, além das regras específicas previstas nos artigos 2200 e 2201 do CC, as regras gerais relativas à falta de vontade (artigos 244 a 249 do CC), ou seja, “o consentimento no testamento deve outorgar-se sem vícios na formulação da vontade”[2].
Como decorre do art. 2188º CC podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer.
São incapazes de testar, nos termos do art. 2189º CC, os menores não emancipados e os interditos por anomalia psíquica.
A capacidade do testador determina-se pela data do testamento (artigo 2191º do CC).
Todos os inabilitados, mesmo que por anomalia psíquica têm capacidade para testar.
Dispõe-se no art. 152º do CC que podem ser inabilitados os indivíduos cuja anomalia psíquica..., embora de caráter permanente, não seja de tal modo grave que justifique a sua interdição.
Determina, ainda, o art. 153º, nº 1 do CC que os inabilitados são assistidos por um curador, a cuja autorização estão sujeitos os atos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, forem especificados na sentença.
A inabilitação abrange os atos de disposição de bens entre vivos, estando assim excluído o testamento, que constitui um ato de disposição por morte e ainda, os que forem especificados na sentença, face às circunstâncias do caso.
Anota a este respeito OLIVEIRA ASCENSÃO que “a inabilitação não pode efetivamente restringir a capacidade testamentária ativa, pois o efeito normal da inabilitação é sujeitar a prática de certos atos jurídicos à assistência de um curador. Este regime seria inadmissível para o testamento, que é um ato por natureza pessoal”[3].
Contudo, se o inabilitado não estiver em condições de entender e querer o sentido do seu ato, o testamento é anulável, com fundamento em incapacidade acidental, nos termos do art. 2199º CC[4].
A incapacidade acidental constitui fundamento de anulação do testamento de acordo com o art. 2199º CC, quando o testamento for feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.
O testamento pode ser anulado desde que se verifiquem um dos seguintes pressupostos:
- incapacidade do testador entender o sentido do que declarou;
- não possuir o testador o livre exercício da sua vontade, por qualquer causa, excluída da coação, por ter regime próprio[5].
Como repetidamente se tem pronunciado a doutrina[6] e a jurisprudência[7] dos tribunais superiores, ao contrário do que sucede na capacidade acidental para os negócios jurídicos em geral (art. 257º CC), não se exige para a anulação do testamento a notoriedade ou o conhecimento da anomalia.
A exclusão destes pressupostos reside no facto de o testamento ser um negócio estranho ao comércio jurídico, onde não existe uma oposição de interesses entre o declarante e o declaratário, não necessitando de ser protegida a confiança deste último.
A referência ao caráter transitório do vício previsto na norma reporta-se à deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.
Daqui decorre que uma deficiência cerebral ou mental pode não incapacitar o testador para entender o sentido da sua declaração ou afetar-lhe o exercício da sua vontade.
A verificação dos pressupostos da anulação, com fundamento no art. 2199º CC, constitui “[…]matéria de facto-jurídico e não de facto meramente material”[8].
A demonstração dos fundamentos de anulação assenta na descrição de factos que traduzam manifestações de que o testador não tinha o discernimento nem a vontade suficiente para testar, denunciando como se comportava e que falhas acusava, de maneira a permitir que o julgador, perante os factos apurados fique apto a valorar tais circunstâncias à luz dos pressupostos do art. 2199º CC[9].
Como observam PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA: “[a] anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no art. 2199º, assenta[…] na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam”[10].
Recai sobre o interessado que requer a anulação o ónus de alegação e prova dos pressupostos da anulação, ou seja, que no ato de outorga do testamento, o testador estava impossibilitado de entender e querer o sentido e alcance da declaração, por constituírem factos constitutivos do direito que se arroga, nos termos do art. 342º CC[11].
Estando em causa uma situação de doença com afetação das faculdades mentais –alzheimer ou esquizofrenia - na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se considerado que compete ao interessado na anulação do testamento “provar que o testador sofria de doença, que no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente. Tratando-se de uma doença que no plano clínico e cientifico está comprovada a degenerescência evolutiva e paulatina das condições de perceção, compreensão, raciocínio, gestão dos atos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstrato e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e fatores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, o peticionante da anulabilidade de um ato jurídico praticado por uma pessoa portador deste quadro patológico apenas estará compelido a provar o estado de morbidez de que o declarante é padecente, [itálico nosso] por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais”.
Considera-se, ainda, que “[a] permanência da situação de incapacidade não é incompatível com a existência de intervalos lúcidos por parte da pessoa demente, cabendo ao interessado na manutenção do ato jurídico [itálico nosso] em causa a prova dessa lucidez aquando da realização do acordo”.
Em apoio desta interpretação cita-se o estudo de GALVÃO TELES[12] onde se observa: “[p]rovado o estado de demência em período que abrange o ato anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo ato aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o ato recaiu num momento excecional e intermitente de lucidez”.
Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, nos Ac. STJ 11 abril 2013, Proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt; Acórdão do STJ, de 5-7-2001, CJ, Ano IX, Tomo II, página 151; Ac. do STJ de 24 de maio de 2011, Proc. 4936/04.1TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt., este último, citado pelo apelante nas conclusões de recurso.
Mesmo seguindo esta interpretação, não se deixa de considerar que recai sobre o interessado na anulação o ónus de alegar e provar o estado de doença em período que abrange o ato anulado e que essa doença pela sua natureza e características impede o testador de entender o sentido da sua declaração ou o livre exercício da sua vontade.
Cumpre também referir que a situação de facto objeto de análise nos citados arestos, não tem paralelo com aquela que nos cumpre aqui apreciar e por isso, não se pode transpor sem mais os considerandos ali tecidos para o presente caso.
No caso concreto, apurou-se que a testadora E…, nascida em 27 de abril de 1922 foi declarada inabilitada, por anomalia psíquica, por sentença de 23 de fevereiro de 2012, em ação instaurada em 2009.
Este aspeto é significativo desde logo, porque a anomalia psíquica, com natureza permanente, apresenta menor gravidade do que aquelas que podem fundamentar a interdição.
Trata-se, em regra, de doenças que apresentam uma certa duração e estabilidade e que existem no momento em que a situação está a ser apreciada e não permitem pressupor que a pessoa consiga recuperar as faculdades perdidas, por efeito da doença, motivo pelo qual se exige que tenham caráter permanente e atual. Este tipo de doença deve criar uma situação de inaptidão da pessoa para reger o seu património[13].
A inabilitação distingue-se da interdição pelo facto da pessoa em causa, apesar da doença de que padece, revelar alguma capacidade para reger a sua pessoa e bens, sendo por isso, determinante nestas circunstâncias um juízo de adequação e proporcionalidade da proteção do incapaz em função da sua incapacidade.
A anomalia psíquica, enquanto causa de inabilitação, não pode ser incapacitante, no sentido de impedir em absoluto que possa reger a sua pessoa e bens, mas como refere CASTRO MENDES reveste uma natureza “meramente prejudicial”[14], porque impossibilita de reger a pessoa e bens convenientemente.
Na sentença de inabilitação, considerando o grau de incapacidade da requerida, decretou-se a inabilitação definitiva, por anomalia psíquica, de E…, fixando-se a data provável do começo da sua incapacidade em 2005, devendo ser assistida pelo curador, a cuja autorização ficaram sujeitos todos os atos de disposição de bens entre vivos e, todos os que impliquem administrar os seus bens, gerir dinheiro, comprar ou vender bens imobiliários e/ou mobiliários.
Foi dado por provado nessa ação que a falecida E… sofria de doença de Alzheimer e que o quadro de demência tem como data provável de inicio o ano de 2005 (itens 3, 4, 5, 6 dos factos provados).
E… faleceu em 26 de março de 2012 e deixou testamento outorgado em 21 de junho de 2006 no Cartório Notarial da cidade do Porto, na Rua …, nº …, terceiro (itens 1 e 2 dos factos provados).
Verifica-se, assim, que a testadora E… faleceu com a idade de 89 anos e cerca de um mês depois de ter sido proferida a sentença de inabilitação. Quando outorgou o testamento tinha 84 anos.
A testadora foi declarada inabilitada, pelo que, mantinha a capacidade para outorgar testamento, já que não foi estabelecida qualquer limitação à sua capacidade de exercício nesse domínio, pois apenas ficou condicionada nos atos de disposição de bens entre vivos e, todos os que impliquem administração dos seus bens, gerir dinheiro, comprar ou vender bens imobiliários e/ou mobiliários.
Argumenta a apelante que perante os factos provados (que enuncia em 1 a 5 das conclusões de recurso) se verifica a presunção de facto da incapacidade acidental da falecida E… desde, pelo menos, 2005 e por isso, tem que se concluir que em junho de 2006 a falecida padecia de síndrome demencial.
Os factos em causa são os seguintes:
- “no processo de inabilitação nº 480/09.9TVPRT contra a mesma falecida mãe dos A. e R. marido, tendo sido proferida sentença, transitada em julgado, da qual consta o seguinte:… A requerida sofre de doença de Alzheimer que a torna total e definitivamente incapaz de administrar os seus bens, tal como parecer médico… O quadro de demência tem como data provável de início o ano de 2005.”
- “da fundamentação jurídica da sentença proferida consta o seguinte: “Resulta claramente do interrogatório judicial a que foi sujeita, e exame médico a que foi submetida no âmbito destes autos que, E…, sofre de Síndrome Demencial, de etiologia provável degenerativa - tipo Doença de Alzheimer .. devido à doença que a afeta, de que padecerá pelo menos desde 2005…pelo que nesse âmbito será facilmente enganada, a doença de que padece tem caráter evolutivo e é incurável…”
-“… proferiu o tribunal a seguinte decisão: “Pelo exposto e em conclusão, considerando o grau de incapacidade da requerida, decreto a inabilitação definitiva, por anomalia psíquica, de E…, fixando-se a data provável do começo da sua incapacidade em 2005…”
- E também provado que “O Réu marido instaurou a 9 de maio de 2005 uma ação de inabilitação contra a sua mãe, a qual correu termos sob o nº 4580/05.5TBVNG na 2ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia…”
- A. e R., os únicos filhos da falecida E…, naquele processo de inabilitação nº 480/09.9TVPRT declararam e reconheceram que a sua falecida mãe sofria de síndrome demencial desde, pelo menos, 2005.
A prova por presunções judiciais assenta em factos concretos e provados (art. 349º CC), pois as ilações extraem-se de factos conhecidos para firmar um facto desconhecido[15]. No caso concreto, são esses factos concretos que não se apuraram.
Como se observa, no Ac. STJ 30.06.2011[16]: “[…] a utilização pelas Relações de presunções naturais ou judiciais é lícita, mas tem como limite a exigência de uma congruência com a matéria de facto fixada através da livre valoração da prova produzida, com imediação e oralidade, em audiência, não podendo conduzir, nem a uma alteração direta das respostas dadas aos pontos de facto que integravam a base instrutória, nem a um desenvolvimento, no próprio Acórdão, da base factual do litígio, suscetível de criar contradições com o julgamento da matéria de facto que formalmente tenha permanecido como inalterado ou imodificado”.
Com efeito, como se refere no Ac. STJ de 02.12.2010[17]: “[…] as instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a. Os factos comprovados podem ser trabalhados com base em regras racionais e de conhecimentos decorrentes da experiência comum de modo a revelarem outras vivências desconhecidas. Mas essas deduções hão de ser o desenvolvimento lógico e racional dos factos assentes. Já não é possível extraí-las de factos não provados, nem de factos não alegados, ou seja, de uma realidade processualmente não adquirida. Quando tal aconteça a dedução factual extraída viola frontalmente o disposto no art. 349º C.Civil”.
O recurso a presunções judiciais não permite a alteração da decisão da matéria de facto no sentido de incluir novos factos em juízo em contradição com os que se julgaram não provados, sendo certo que só através da reapreciação da decisão de facto se pode alterar essa decisão, mas o apelante não veio suscitar a reapreciação da decisão de facto, nem é notório o erro na apreciação da prova que justifique, mesmo a título oficioso, a reapreciação da decisão de facto.
Ponderando os argumentos do apelante somos levados a concluir, no contextos dos factos provados e não provados, que apesar da testadora padecer de síndrome demencial, pelo menos desde 2005, portanto desde data anterior à celebração do testamento, não significa que se encontrava incapacitada de entender o sentido de ato de testar ou afetada no exercício da sua vontade, quando outorgou o testamento.
Apenas determina a anulação do testamento, qualquer causa ou vício que condicione o livre exercício da vontade à data em que é outorgado o testamento, recaindo sobre o apelante-interessado na anulação o ónus da prova dos factos que configurem essa situação, sendo certo que o apelante não logrou provar tais factos, como resulta do enunciado dos factos não provados.
O apelante alegou no art.47º da petição que do relatório do exame pericial no processo judicial que decretou a inabilitação da falecida, consta o seguinte:
“Quando interrogada sobre as razões deste processo, a examinanda não esboça qualquer sentido crítico. Não sabe as razões. Não sabe o que se passa com os filhos, não vislumbra que ambos disputam este processo com opiniões contrárias.
A própria examinanda refere: “Os meus filhos que tratem de tudo porque eu tenho já limitadas as minhas capacidades intelectuais!” (sic).
Reobservada em 24.09.2010 dado que na primeira observação e face à presença da delegação do Tribunal, a Requerida ficou inibida, insegura e revelou cansaço.
Hipoacusia (diminuição da capacidade auditiva) que dificulta a entrevista Dificuldades visuais…. lê mas com dificuldade Desorientação temporo-espacial.
… não sabe por que razão está a ser interrogada, não percebe a razão da perícia, não sabe o que faz em Tribunal.
… pensamento com sérias dificuldades no movimento abstrato e na sequenciação / planeamento…
Função executiva prejudicada.
Amnésia de fixação (memória episódica).
Diátese para a confabulação.
Incapaz de lidar com dinheiro e sem qualquer noção do seu valor atual.
Sem perceção adequada dos acontecimentos atuais (vive no “seu mundo”que já não é o “mundo atual”)
Apresenta uma dependência total para atividades instrumentais da vida diária
Padece de SINDROME DEMENCIAL de etiologia provável neurodegenerativa…”.
Efetivamente, são estas as considerações que ali se tecem, como se pode constatar da análise do doc. nº4, junto com a petição, a fls. 76.
Alegou, ainda, no art. 48º da petição que de todas estas limitações já sofria a falecida E… desde, pelo menos, 2005 ou fins de 2001.
Contudo, não logrou provar tais factos, porque não se provou que o quadro de demência de que a falecida sofria no ano de 2010 teve o seu início em data não apurada de 2005 ( item 1 dos factos não provados ).
De igual forma, não logrou provar que a testadora no ato da outorga do testamento, não podia entender o sentido, nem querer o alcance da declaração manifestada, nem que nesse momento a falecida E… se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária em causa, nem que a testadora, no momento da feitura do testamento, se encontrava privada de uma vontade sã, livre e consciente (item 2 dos factos não provados).
Os factos provados apenas permitem concluir que à data em que foi proferida a sentença de inabilitação o estado de incapacidade era atual e permanente e justificava a medida adotada porque por efeito da doença se revelava incapaz de administrar o seu património. A doença de que padecia, Síndrome Demencial, de etiologia provável degenerativa – tipo Doença de Alzheimer – em estado ligeiro/moderado apresentava uma certa duração e estabilidade e não permitia pressupor que E… conseguisse recuperar as faculdades perdidas, por efeito da doença, para administrar os seus bens.
Não se provaram factos que permitam concluir que o estadio da doença reconhecida na sentença de inabilitação em 2012, já existia com as mesmas características em 2005 e à data em que foi outorgado o testamento.
Na data em que foi proferida a sentença de inabilitação – fevereiro de 2012 – considerou-se, face aos elementos que constavam dos autos que “resulta claramente do interrogatório judicial a que foi sujeita, e exame médico a que foi submetida no âmbito destes autos que, E…, sofre de Síndrome Demencial, de etiologia provável degenerativa - tipo Doença de Alzheimer - em estado ligeiro/moderado, mostrando-se a requerida incapaz de administrar os seus bens devido à doença que a afeta, de que padecerá pelo menos desde 2005, não tendo capacidade autónoma de gerir dinheiro, comprar ou vender bens imobiliários e/ou mobiliários, não reúne capacidades para gerir mesmo pequenas quantidades de dinheiro, incapaz de cálculo, planeamento, sequenciação, pelo que nesse âmbito será facilmente enganada, a doença de que padece tem caráter evolutivo e é incurável, mas não está total e definitivamente incapaz de reger a sua pessoa, sendo autónoma para as atividades básicas da vida diária (vestir, comer, higiene pessoal, marcha e controle de esfíncteres), capaz de decidir com quem e onde quer viver, dar consentimento médico informado, delegar, fazendo-se representar e, exercer o direito de voto.…
… em que se concluiu, tal como as partes aceitaram a final, que a requerida padece de uma incapacidade total e permanente limitada à esfera patrimonial, estando capaz de autonomamente reger a sua pessoa nos aspetos básicos do dia a dia.
Assim sendo, não se verificando situação de incapacidade total, por anomalia psíquica, mas incapacidade quanto à administração do património, é de decretar apenas a inabilitação da requerida por anomalia psíquica, nos termos que constam inclusivamente da transação efetuada nestes autos.
A inabilitada será assistida por um curador, a cuja autorização estarão sujeitos todos os atos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias deste caso concreto, digam respeito à administração dos seus bens, gestão de dinheiro, comprar ou vender bens imobiliários e/ou mobiliários, conforme consagrado no art. 153° do CC.”
A doença de que padecia E…, de etiologia provável degenerativa, em estado ligeiro/moderado afetava de modo particular a sua esfera patrimonial, na medida em que mantinha o discernimento para cuidar da sua pessoa, decidir com quem quer viver, dar consentimento médico informado, delegar, fazendo-se representar e exercer o direito de voto, o que desde logo não permite considerar que a doença de que padecia afetava a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e fosse passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente, nomeadamente no que concerne à disposição dos bens por morte.
Cumpre também salientar que a ação de inabilitação por prodigalidade que o apelado instaurou em 2005 contra a sua mãe, E… foi julgada improcedente, por sentença proferida em 25 de fevereiro de 2009 (item 14 dos factos provados).
Nessa ação, no relatório pericial, com data de 23 de outubro de 2007, considerou-se, além do mais, que « [s]egundo observação constante do documento 2 a D. E… não apresentaria sintomatologia psicopatológica em julho de 2005 e de acordo com exame psicológico elaborado na mesma data a D. E… revelava um processo de deterioração normal para a sua idade ( 0,10 ) e QI Global de 103. Estes dados são interpretados como evidencia de processo de perda da capacidade intelectual, mas com o nível intelectual mantendo-se ainda dentro dos parâmetros médios”. E desse mesmo relatório pericial datado de outubro de 2007 consta expressamente que «O seu discurso foi coerente e fluente no que diz respeito à sua história biográfica descrevendo-nos com detalhe a sua evolução profissional e a organização do seu dia a dia. Nomeadamente foi capaz, duma forma lógica, de dar valor dos seus rendimentos (reforma e rendas) e a maneira como organiza o pagamento aos empregados, contribuições, pagamentos de serviços”(itens 15 e 16 dos factos provados).
Em data posterior à outorga do testamento, a testadora não apresentava sinais de uma doença do foro psiquiátrico, incapacitante e permanente.
Observa, ainda o apelante, que Autor e Réu, os únicos filhos da falecida E…, no processo de inabilitação nº 480/09.9TVPRT declararam e reconheceram que a sua falecida mãe sofria de síndrome demencial desde, pelo menos, 2005.
Em matéria de direitos indisponíveis a confissão não faz prova contra o confitente, como determina o art. 354º CC, motivo pelo qual não poderia o tribunal atender a tal elemento de prova.
Conforme decorre do art. 421º CPC, a prova admitida num outro processo pode ser invocada noutro processo contra a mesma parte. Para tanto será necessário que se verifiquem os seguintes requisitos:
- tenha havido audiência contraditória, nos termos do art. 415º CPC; o que significa que a parte contra quem a prova é produzida [aquela que resulte desfavorecida com o resultado probatório] há de ter tido possibilidade de intervenção no ato de produção ou no procedimento de admissão da prova;
- seja a mesma, nos dois processos, a parte contra quem a prova é produzida;
- o ato de produção de prova não tenha sido anulado[18].
No processo de inabilitação o referido acordo não foi considerado como meio de prova, o que só por si seria suficiente para não extrair qualquer efeito de tal alegação.
Contudo, como já se referiu, a prova de tal facto em nada releva porque não está demonstrado que à data da outorga do testamento a testadora não estava em condições de entender o sentido da declaração ou impedida de exercer de forma livre o poder de dispor dos seus bens.
Não se provaram factos que permitam concluir que a doença de que padecia E…, reconhecida na sentença de inabilitação em 2012, já existia com as mesmas características em 2005 e à data em que foi outorgado o testamento, mais propriamente, que sendo de etiologia provável degenerativa, condicionava de tal forma a vontade do testador, que o afetasse na sua capacidade de entender e perceber o ato de testar ou de disposição de bens mortis causa.
Conclui-se, assim, que a partir dos factos enunciados nas conclusões de recurso não podia o juiz do tribunal “a quo” extrair a conclusão que aquando da feitura do testamento em 2006, a doença de que padecia a testadora, desde pelo menos 2005, a impedia de entender o sentido do ato de outorgar um testamento ou condicionava o livre exercício da sua vontade, pelo que, não cumpria ao apelado provar que o testamento foi outorgado num período ou intervalo de lucidez da testadora.
Desta forma, improcedem as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante.
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Porto, 04 de maio de 2015
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Rita Romeira
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
[2] RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, I Volume, 4.ª edição renovada/reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 175/176.
[3] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, pag. 70.
[4] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Sucessões, ob. cit., pag. 70
[5] ANTÓNIO PAIS DE SOUSA e CARLOS FRIAS DE OLIVEIRA MATIAS, Da Incapacidade Jurídica dos Menores Interditos e Inabilitados – no Âmbito do Código Civil, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 1983, pag. 260
[6] ANTÓNIO PAIS DE SOUSA e CARLOS FRIAS DE OLIVEIRA MATIAS, Da Incapacidade Jurídica dos Menores Interditos e Inabilitados – no Âmbito do Código Civil, ob. cit., pag. 260
[7] Ac. STJ 11 abril 2013, Proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1, Ac. STJ 13.11.2003, Proc. 03B3008 disponíveis em www.dgsi.pt
[8] ANTÓNIO PAIS DE SOUSA e CARLOS FRIAS DE OLIVEIRA MATIAS, Da Incapacidade Jurídica dos Menores Interditos e Inabilitados – no Âmbito do Código Civil, ob. cit., pag. 262
[9] Cfr., ANTÓNIO PAIS DE SOUSA e CARLOS FRIAS DE OLIVEIRA MATIAS, Da Incapacidade Jurídica dos Menores Interditos e Inabilitados – no Âmbito do Código Civil, ob. cit, pag. 262; Na jurisprudência entre outros Ac. STJ 11 abril 2013, Proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1 disponível em www.dgsi.pt
[10] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pag. 324
[11] Ac. Rel. Porto 07 outubro de 2004, Proc. 0434311; Ac. Rel. Porto 14 outubro de 2008; Ac. Rel. Porto 16 março 2010, Proc. 286/08.2TBALJ.P1; Ac. STJ 24 março de 2011, Proc. 509/04.TBPVZ.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt
[12] GALVÃO TELES Revista dos Tribunais, ano 72, página 268 “ apud Ac. Ac. STJ 11 abril 2013, Proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[13] Cfr. ANABELA SUSANA DE SOUSA GONÇALVES “Breve Estudo sobre o Regime Jurídico da Inabilitação “ in COUTO GONÇALVES et al Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Hörster, ob. cit., pag. 116.; CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por ANTÓNIO PINTO MONTEIRO E PAULO MOTA PINTO, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pag. 235 e 241;
[14] JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Civil – Teoria Geral, Vol. I, Lisboa, AAFDL, 1978, pag. 346.
[15] Neste sentido podem ainda consultar-se Ac. STJ 26.02.2009 – Proc. 09B0347 e Ac. STJ 30.06.2011 – Proc. 6450/05.9 TBSXL.L1.S.1 – todos em www.dgsi.pt.
[16] Proc. 6450/05.9 TBSXL.L1.S.1 disponível em www.dgsi.pt.
[17] Proc. 1/04.0TBCPV.P1.S1 disponível em www.dgsi.pt.
[18] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pag. 221-222.