Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
139/20.6T9VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: ORDEM DOS ADVOGADOS
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
LEGITIMIDADE
CRIME DE PROCURADORIA ILÍCITA
CUSTAS
Nº do Documento: RP20201125139/20.6T9VNG-A.P1
Data do Acordão: 11/25/2020
Votação: MAIORIA COM 1 DECLARAÇÃO DE VOTO E 1 VOTO VENCIDO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para além da discutida questão de saber se a Ordem dos Advogados, pela sua missão e pela sua natureza de associação pública, é titular do interesse público protegido através da incriminação da usurpação de funções (artigo 358.º, b), do Código Penal) e se, portanto, a sua legitimidade para se constituir assistente estará coberta pela alínea a) do n.º 1, do artigo 68.º do Código de Processo Penal, há que ter em conta a ressalva de lei especial que consta desse n.º 1 desse artigo («além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito»).
II - Há que considerar, por isso, o artigo 49.º do Regime das Associações Públicas Profissionais (Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que revogou a, invocada pela requerente, Lei n.º 6/2008, de 13 de fevereiro, que continha já disposição idêntica no seu artigo 44.º), de onde decorre a legitimidade das associações públicas profissionais (entre as quais se conta a Ordem dos Advogados) para intervirem como assistentes em processos penais relacionados com o exercício da profissão que representam. E é isso que sucede no caso em apreço, relativo ao exercício da advocacia.
III - Por outro lado, a Ordem dos Advogados também tem legitimidade ex vi de outra lei especial (o n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto) para se constituir assistente em caso de eventual prática de crime de procuradoria ilícita, p. e p. pelo n.º 1 desse mesmo artigo; e que se encontra numa relação de especialidade (concurso aparente) com o de usurpação de funções quando estas funções dizem respeito ao exercício da advocacia.
IV - A intenção do legislador foi, de facto, reduzir ao máximo, as situações de concessão generalizada de isenção subjetiva de custas, anteriormente consagradas no Código das Custas Judiciais ou em legislação avulsa. A isenção agora prevista no art.º 4.º, n.º 1, al. g), do Regulamento das Custas Processuais diz respeito a qualquer entidade pública quando actue, exclusivamente, no âmbito das suas atribuições para defesa daqueles direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos relacionados com aquelas áreas, quer pelo seu estatuto, quer quando a lei legitime a sua intervenção.
V - Na situação em causa nos autos, deve considerar-se que a Ordem dos Advogados atua directamente na defesa de uma classe profissional (os advogados) e do cumprimento de uma sanção por ela própria imposta. Ainda que possa afirmar.se que está simultaneamente (ainda que de forma indirecta) a defender a boa administração da justiça, o que a lei exige é que actue exclusivamente para defesa daqueles direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos relacionados com aquelas áreas e que essa atribuição (exclusiva) lhe seja atribuída pelo seu estatuto ou por lei que legitime a sua intervenção – não devendo assim ser declarada isenta de custas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 139/20.6T9VNG-A. P1
Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – A Ordem dos Advogados (representada pelo Conselho Regional do Porto) veio interpor recurso do douto despacho do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que indeferiu a sua intervenção no processo como assistente e a condenou em custas.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«I) O despacho de indeferimento de constituição de Assistente violou os arts. 68.º, n.º 1, al. a) do CPP, 358.º, al. b) do CP, 7.º, nº 4 da Lei nº 49/2004, de 24 de agosto, 3.º do EOA e 33.º do Regime das Associações Públicas Profissionais (Lei nº 6/2008, de 13 de fevereiro).
II) No caso concreto, de concurso aparente do crime de usurpação de funções e do crime de procuradoria ilícita, a Ordem dos Advogados deve ser admitida e intervir no processo penal como assistente, direito que resulta da interpretação conjugada dos arts. 68.º, n.º 1, al. a) do CPP, 358.º, al. b) do CP, 7.º, nº 4 da Lei nº 49/2004, de 24 de agosto, 3.º do EOA e 33.º do Regime das Associações Públicas Profissionais (Lei nº 6/2008, de 13 de fevereiro) e do conceito de Estado lato sensu, porquanto os interesses públicos subjacentes também são prosseguidos pela Administração Pública Indirecta, na qual se integram as Ordens Profissionais.
III) O acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ n.º 1/2003, publicado no DR I-A, de 27.02.2003, adoptou “um conceito amplo de ofendido, ao arrepio da jurisprudência até então dominante e que considerava o art. 68.º, n.º 1, al. a), como consagrando um conceito de ofendido como titular do interesse directa ou predominantemente protegido pela incriminação(M. MIGUEZ GARCIA, Argumentos, premissas, evidências. Um olhar sobre o processo penal, 2004, p. 118, sublinhado nosso). Ora, a Ordem dos Advogados é titular do interesse público protegido pela norma tipificadora do crime de usurpação de funções porque foi criada exactamente para o efeito de prosseguir a integridade do sistema oficial de provimento e exercício da Advocacia.
IV) Apesar da publicidade do crime de usurpação de funções, no caso sub judice, este apresenta-se numa relação de consumpção com o crime de procuradoria ilícita. Ou seja, tal como configurado na denúncia apresentada, verifica-se o preenchimento dos elementos do tipo objectivo de ambos os ilícitos, prevalecendo, contudo, o crime de usurpação de funções por ser o que tutela mais eficazmente o bem jurídico subjacente. Sendo pacífico que a Ordem dos Advogados tem legitimidade para se constituir assistente quando perante a prática de um crime de procuradoria ilícita (art. 7º, n.º 2 L 49/2004, de 24/8 e art. 68.º, n.º 1, al. b) do CPP), no caso dos autos deverá ser deferida a sua constituição como Assistente.
V) A Ordem dos Advogados garante a integridade do sistema oficial de provimento e exercício da advocacia, bem jurídico protegido pelo art. 358.º, al. b) do CP, que é corporizado na OA.
VI) Os factos em causa reportam-se à prática ilícita de actos próprios de Advogados pela Participada, Ilustre Advogada, com inscrição disciplinarmente suspensa na Ordem dos Advogado, ofendendo, além do mais, uma decisão disciplinar do Conselho de Deontologia do Porto da Ordem dos Advogados. Tal conduta, em abstracto, é passível de lesar gravemente os interesses públicos e atribuições supra citados que a Ordem dos Advogados prossegue directa e imediatamente.
VII) Mais se suscita a inconstitucionalidade, por violação dos arts. 266.º 267.º, n.º 1 da CRP, da interpretação da normativa aplicada, decorrente dos arts. 68.º, n.º 1, al. a) do CPP e 358.º, al. b) do CP, no sentido de que as pessoas colectivas de direito público, por exemplo, as associações públicas, como é o caso das Ordens, carecem de legitimidade para se constituírem assistentes no processo penal, quando está em causa a prática de um crime de usurpação de funções, p.e p. art. 358.º b) CP em violação das suas atribuições e com ofensa de uma decisão disciplinar dos seus órgãos de suspensão do exercício de actos próprios da profissão (no caso concreto de Advogado).
VIII) A Ordem dos Advogados visa directa e imediatamente a referida intangibilidade, a que o cidadão, de uma forma mediata, tem direito, não podendo decorrer da sua natureza de associação pública a ilegitimidade para se constituir assistente, nomeadamente quando do crime em causa resultou a ofensa a uma decisão disciplinar de um órgão seu: o Conselho de Deontologia do Porto.
IX) No caso concreto, o despacho recorrido de indeferimento da constituição de assistente violou o disposto no art. 33.º do Regime das Associações Públicas Profissionais (Lei nº 6/2008, de 13/2) que estipula: “As associações públicas profissionais podem constituir-se assistentes nos processos penais relacionados com o exercício da profissão que representam ou com o desempenho de cargos nos seus órgãos, salvo quando e trate de factos que envolvam responsabilidade disciplinar.”
X) O despacho recorrido, ao afastar a aplicabilidade da isenção de custas prevista no art. 4.º, n.º 1, al. g) do RCP, expressamente invocada no requerimento de constituição de assistente da recorrente, violou, para além dessa norma, os arts. 1.º, n.º 1; 3º, alíneas a) e l); 9.º, n.º 3, al. b); 54.º, n.º 1, al. u), todos do EOA e arts. 7.º e 11.º da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto.
XI) Com efeito, a Ordem dos Advogados é uma pessoa colectiva de direito público, mais propriamente uma associação pública (cf. art. 1º EOA) – pessoa colectiva de tipo corporacional constituída para a prossecução de interesses públicos e dotada dos necessários poderes jurídico-administrativos – submetida a um regime específico de direito administrativo, e que corresponde a uma longa manus do Estado ou a uma forma de administração e prossecução de interesses públicos, que o próprio Estado lhe transferiu mediante devolução de poderes (cf. art. 267.º CRP).
XII) Nos presentes autos a OA intervém exclusivamente na defesa dos interesses públicos previstos no nos arts. 1.º, n.º 1; 3º, alíneas a) e l); 9.º, n.º 3, al. b); 54.º, n.º 1, al. u), todos do EOA e arts. 7.º e 11.º da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto – i.e., no seu Estatuto e na demais legislação aplicável.
XIII) Este tipo de intervenção da OA acautela, simultaneamente, a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (art. 3.º, al. a) EOA); a colaboração na noa administração da justiça (art. 3.º, al. a) EOA); o dever de zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado (art. 3.º, al. d) EOA), entre outros.
XIV) Por outro lado, a intervenção da OA acautela ainda os interesses públicos que subjazem à Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, concretamente identificados no respectivo procedimento legislativo como sendo os da melhor salvaguarda dos interesses e direitos dos cidadãos; salvaguardando e garantindo maior eficácia na administração da justiça; no combate à procuradoria ilícita, actividade ilegal que tem sido objecto de denúncia por todos os operadores de justiça; visando primordialmente a protecção dos direitos dos cidadãos e dos consumidores em geral; o interesse público e a realização da justiça; efectiva tutela dos direitos dos cidadãos, assegurando os princípios fundamentais do Estado de direito democrático; a administração da justiça.
XV) Tal intervenção prende-se ainda com a protecção do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva enquanto direito fundamental de todos os cidadãos, com assento constitucional no art. 20.º da CRP.
XVI) A legitimidade da Recorrente para actuação nas presentes matérias encontra-se expressamente prevista na lei (de que são exemplos o art. 5º EOA e o art. 7º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto).
XVII) Estão assim reunidas todas as condições objectivas e subjectivas para a aplicação da al. g) do nº 1 do art. 4.º do RCP e consequente reconhecimento de isenção de custas ao Requerente, pugnando-se pela revogação do despacho ora em crise e substituição por outro que isente a Ordem dos Advogados – Conselho Regional do Porto do pagamento de custas, com as legais consequências.
XVIII) Aliás, o despacho em crise é nulo por não especificar os fundamentos de facto e de direito que sustentaram a decisão de indeferimento de isenção de custas, violando o disposto no art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC aplicável por força do art. 4º do CPP.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento parcial do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se a recorrente deverá ser admitida a intervir no processo em causa como assistente;
- saber se o despacho recorrido é nulo, por não especificar os fundamentos do indeferimento da isenção de custas requerida pela ora recorrente;
- saber se a recorrente não deveria ter sido nesse despacho condenada em custas, por delas estar isenta.

III- É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:
«Requerimento de constituição de Assistente de fls. 6:
Imputa a ora requerente, Ordem dos Advogados, Conselho de Deontologia do Porto, à denunciada Carla Vieira a prática de um crime de usurpação e funções, p. e p. pelo artigo 358º, al. b) do Código Penal. Veio requerer a sua intervenção nos autos na qualidade de assistente, a que se opôs o MP.
Dispõe o artigo 68.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal que se podem constituir assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos.
Como escreve o Prof. Figueiredo Dias – em perfeita consonância com o actual CPP – a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas que têm legitimidade para intervirem como assistentes em processo penal - .Direito Processual Penal, Primeiro Volume, pág. 512.
Para efeitos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime mas unicamente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime relativamente ao qual se põe a questão da constituição de assistente.
Os titulares de interesses mediata ou indiretamente protegidos não podem ser englobados na abrangência do conceito de ofendido para os efeitos consignados no artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou um direito de que é titular um particular - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, 1994, pág. 303.
Daqui resulta que, nos casos de crimes públicos em que o interesse tutelado é exclusivamente público, a regra é a de que ninguém poderá constituir-se assistente, sendo que o direito de constituição como assistente só existirá se for conferido por lei especial, conforme expressamente dispõe o artigo 68.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
No caso em apreço estaria em causa a eventual prática do crime de usurpação de funções previsto no artigo 358.º do Código Penal.
Este crime pertence ao grupo dos chamados crimes contra o Estado que constitui o Título V do Livro II do Código Penal e, dentro dele, insere-se no Capítulo II que se ocupa “Dos crimes contra a autoridade pública” sendo entendimento pacífico que o bem jurídico protegido é o interesse do Estado “no respeito pelo desempenho regular das funções públicas ou profissionais que exigem título bastante para tal ou a conjugação de requisitos ou condições especiais de exercício” - No mesmo sentido de que é o Estado o titular do bem jurídico protegido podem citar-se, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 6/2/1985, BMJ 344, pág. 459, do Supremo Tribunal de Justiça de 7/2/1990, Processo n.º 40520, da Relação do Porto de 9/6/1999, CJ, Ano XIV, Tomo III, pág. 240, da Relação de Lisboa de 16/10/2001, Ano XXVI, Tomo IV, pág. 146, e da Relação do Porto de 17/1/2007, in www.dgsi.pt/jtrp.
Dito de outro modo, o bem jurídico protegido pelo tipo legal consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público - Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 441.
Trata-se de um crime através do qual o Estado “emprega a sua autoridade e define os pressupostos que lhe parecem garantir a competência no exercício das funções do Estado e de certas profissões que, pela sua importância, repercussão e melindre julga carecerem de formação especializada (…). Pune-se alguém que engana outrem quanto à sua habilitação legal para exercer actos próprios de funcionário ou de certa profissão, não por causa desse outrem (ao menos de modo imediato) mas porque o Estado entende que deve exigir uma fidelidade inquebrantável ao sistema de reconhecimento de competências (necessariamente formal) que ele próprio instituiu. No horizonte último do legislador não podem deixar de estar tantos bens jurídicos pessoais patrimoniais, supra individuais que devem ser acautelados. Mas a construção deste ilícito-típico faz-se – o Código já a isso nos habituou – em torno de um bem jurídico - meio que leva em certos casos a quase perder de vista os bens jurídicos-fim que o legitimam”- Idem, Ibidem, págs. 439 a 440.
Seguindo de perto o entendimento do Ac. da Relação de Coimbra, de 24.04.2013, citado na promoção de fls. 36, “uma vez que o bem jurídico especialmente protegido pela norma incriminadora é um interesse público, um interesse do Estado e só por este titulado”, o requerente carece de legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos, pelo que se indefere a requerida constituição como Assistente – no mesmo sentido veja-se o Ac. da Relação de Guimarães de 06-02-2017, ambos os acórdãos disponíveis em www.dgsi.pt.
Custas que se fixam em 2 UC´s.
Notifique.»
IV 1. – Cumpre decidir.
Estamos perante duas teses antagónicas, que podemos resumir do seguinte modo:
Considera o despacho recorrido que a recorrente não tem legitimidade para se constituir assistente (nos termos do artigo 68.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) no processo em apreço, onde está em causa a eventual prática de um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º, b), do Código Penal, pois este crime tem natureza pública, tutela um interesse exclusivamente público (o desempenho regular de profissões que exigem título bastante para tal ou a conjugação de requisitos ou condições especiais de exercício) e só o Estado é titular desse interesse. Esse artigo 68.º, n.º 1, não confere essa legitimidade aos titulares de interesses mediara ou indiretamente protegidos pela incriminação em causa.
Esta tese tem acolhimento generalizado na jurisprudência. Podem ver-se, neste sentido, e no que se refere à Ordem dos Advogados ou outras ordens profissionais, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 13 de novembro de 2018, proc. n.º 1721717.4T9LSB.L1-5, relatado por Luís Gominho; da Relação de Coimbra de 24 de abril de 2013, proc. n.º 1066/12.6TALRA.C1, relatado por Fernando Chaves; da Relação de Guimarães de 6 de fevereiro de 2017, proc. n.º 167/15.5T9PRT-A.G1, relatado por Fernando Chaves; da Relação de Évora de 17 de setembro de 2002, proc. n.º 1165/02-1, relatado por Manuel Nabais, e de 3 de junho de 2003, proc. n.º 628/03-1, relatado por Chambel Mourisco; e desta Relação de 17 de janeiro de 2007, proc. n.º 0644681, relatado por Pinto Monteiro, e de 20 de outubro de 2010, proc. n.º 1858/07.8TDPRT-A.P1, relatado por Luís Teixeira. (todos acessíveis em www.dgsi.pt). O acórdão da Relação de Évora de 23 de setembro de 2003, proc. n.º 1093/03-1, relatado por Alberto Borges, (também acessível em www.dgsi.pt) reconhece tal legitimidade à Ordem dos Médicos Veterinários, com base numa disposição do Estatuto respetivo, mas distingue essa legitimidade da da Ordem dos Advogados.
De acordo com a Ordem dos Advogados, ora recorrente, esta, que tem natureza de associação pública, também é titular do interesse público em causa, pois é sua missão prosseguir a integridade do sistema oficial de provimento e exercício da advocacia (como decorre dos artigos 1.º, n.º 1; 3.º, a) e l); 9.º, n.º 3, b); e 54.º. n.º 1, u), do seu Estatuto) e os factos em apreço dizem respeito à prática ilícita de atos próprios do exercício da advocacia por advogada com inscrição suspensa em virtude de decisão disciplinar. Alega que a interpretação seguida pelo acórdão recorrido é inconstitucional por violação dos artigos 266.º e 267.º da Constituição. Invoca o disposto no artigo 33.º do Regime das Associações Públicas Profissionais (Lei n.º 6/2008, de 13 de fevereiro), o qual estatui que: «As associações públicas profissionais podem constituir-se assistentes nos processos penais relacionados com o exercício da profissão que representam ou com o desempenho de cargos nos seus órgãos, salvo quando e trate de factos que envolvam responsabilidade disciplinar». E invoca também o disposto no artigo 7.º, n.º 4, da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, o qual estatui que ela tem legitimidade para se constituir assistente em caso de prática de crime de procuradoria ilícita, p. e p. pelo n.º 1 desse mesmo artigo.
Vejamos.
Para além da discutida questão de saber se a Ordem dos Advogados, pela sua missão e pela sua natureza de associação pública, é titular do interesse público protegido através da incriminação da usurpação de funções (artigo 358.º, b), do Código Penal) e se, portanto, a sua legitimidade para se constituir assistente estará coberta pela alínea a) do n.º 1, do artigo 68.º do Código de Processo Penal, há que ter em conta a ressalva de lei especial que consta desse n.º 1 desse artigo («além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito»).
Há que considerar, por isso, o artigo 49.º do Regime das Associações Públicas Profissionais (Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que revogou a, invocada pela requerente, Lei n.º 6/2008, de 13 de fevereiro, que continha já disposição idêntica no seu artigo 44.º), de onde decorre a legitimidade das associações públicas profissionais (entre as quais se conta a Ordem dos Advogados) para intervirem como assistentes em processos penais relacionados com o exercício da profissão que representam. E é isso que sucede no caso em apreço, relativo ao exercício da advocacia.
Não pode ignorar-se a jurisprudência acima referida (alguma, porém, anterior à referidas Leis n.º 6/2008, de 13 de fevereiro, e 2/2013, de 10 de janeiro), mas o citado artigo 49.º parece-nos incontornável.
Por outro lado, a Ordem dos Advogados também tem legitimidade ex vi de outra lei especial (o n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto) para se constituir assistente em caso de eventual prática de crime de procuradoria ilícita, p. e p. pelo n.º 1 desse mesmo artigo.
No caso em apreço, relativo à prática ilícita de atos próprios da advocacia, também poderemos estar perante tal crime de procuradoria ilícita, crime que se encontra numa relação de especialidade (concurso aparente) com o de usurpação de funções quando estas funções dizem respeito ao exercício da advocacia.
Assim, como reconhece o Ministério Público junto desta instância no seu douto parecer, ainda que não se reconheça a legitimidade da Ordem dos Advogados para se constituir assistente quanto ao crime de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º, b), do Código Penal, sempre se verificará tal legitimidade quanto ao crime de procuradoria ilícita, crime que, estando em causa a prática de atos próprios do exercício da advocacia, está numa relação de especialidade (concurso aparente) com tal crime de usurpação de funções. Pode ver-se, neste sentido, o acórdão da Relação de Évora de 4 de junho de 2019, proc. n.º 599/09.6TAOLH-B.E1, relatado por João Amaro (acessível em www.dgsi.pt).
Deverá, pois, ser concedido provimento ao recurso quanto a este aspeto.
IV 2. -
Não sendo indeferido o requerimento de constituição de assistente formulado pela Ordem dos Advogados, não haverá lugar a condenação em custas, pelo que poderia ficar prejudicado o conhecimento da suscitada questão da eventual isenção de custas da Ordem dos Advogados. No entanto, sendo deferido tal requerimento, como resultará do provimento do recurso quanto a este aspeto, haverá que considerar se será devida taxa pela constituição de assistente, ou não, por a Ordem dos Advogados estar isenta de custas no processo em apreço. Haverá, pois, que conhecer desta questão.
Vejamos.
Estatui o artigo 4º, n.º 1, g), do Regulamento das Custas Processuais (Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro) que estão isentas de custas as entidades públicas (e nestas se inclui a Ordem dos Advogados enquanto associação pública) quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias.
Alega o Ministério Público junto desta instância, no seu douto parecer, que não se verifica a previsão deste artigo porque a Ordem dos Advogados não intervém no processo em apreço na defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, ou na defesa de interesses difusos (no sentido de interesses gerais, de pessoas não determinadas), mas na defesa dos seus associados. Invoca, nesse sentido, o acórdão da Relação de Guimarães de 28 de outubro de 2019, proc. n.º 3598/18.3T9VCT.P1, relatado por Armando Azevedo (acessível em www.dgsi.pt). Neste acórdão, relativo à intervenção da Ordem dos Advogados em processo por crime de procuradoria ilícita, afirma-se que essa intervenção é movida pela defesa dos interesses dos associados dessa Ordem, e não por interesses difusos.
Na verdade, há que considerar o seguinte.
A intenção do legislador foi, de facto, reduzir ao máximo, as situações de concessão generalizada de isenção subjetiva de custas, anteriormente consagradas no Código das Custas Judiciais ou em legislação avulsa.
A isenção agora prevista no art.º 4.º, n.º 1, al. g), do Regulamento das Custas Processuais diz respeito a qualquer entidade pública quando atue, exclusivamente, no âmbito das suas atribuições para defesa daqueles direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos relacionados com aquelas áreas, quer pelo seu estatuto, quer quando a lei legitime a sua intervenção.
É claro que pode afirmar-se que todas as Ordens profissionais são colaboradoras das entidades estatais na prossecução e defesa de interesses coletivos. No caso da Ordem dos Advogados, integra-se, nas suas atribuições, a de colaborar na administração da justiça (art,º, 3º, al. a), do respetivo Estatuto). Contudo, mesmo aí será mero colaboradora, não lhe cabendo, legal ou estatutariamente, a defesa direta e imediata de interesses difusos, mas sim de direitos coletivos.
Na situação em causa nos autos, deve considerar-se que a Ordem dos Advogados atua diretamente na defesa de uma classe profissional (os advogados) e do cumprimento de uma sanção por ele própria imposta. Ainda que possa afirmar.se que está simultaneamente (ainda que de forma indireta) a defender a boa administração da justiça, o que a lei exige é que atue exclusivamente para defesa daqueles direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos relacionados com aquelas áreas e que essa atribuição (exclusiva) lhe seja atribuída pelo seu estatuto ou por lei que legitime a sua intervenção. Essa “lei que legitime a sua intervenção” não se confunde com a lei que lhe atribui a legitimidade para se constituir como assistente, mas que lhe permita intervir na defesa de interesses difusos.
Assim, não deverá a Ordem dos Advogados ser nestes autos declarada isenta de custas.
Deverá ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.

Não há lugar a custas (artigo 515.º, n,º 1, b), a contrario, do Código de Processo Penal)

V - Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pela Ordem dos Advogados, determinando que o douto despacho recorrido seja substituído por outro, que admita a sua intervenção nos autos como assistente com a condição do pagamento da taxa de justiça devida por tal constituição.

Notifique.

Porto, 25/11/2020
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato (segue declaração de voto)
Eduarda Lobo (Participação na realização da sessão por videoconferência)
(Atesta o seu voto de conformidade nos termos do Artigo 15º-A do DL. 20/2020 de 1/5 Pedro Vaz Pato)
Francisco Marcolino (Atesta o seu voto de conformidade nos termos do Artigo 15º-A do DL. 20/2020 de 1/5 Pedro Vaz Pato)
_________________
DECLARAÇÃO DE VOTO
Discordo da posição que fez vencimento, quanto à questão (secundária) da isenção de custas da Ordem dos Advogados, pelos motivos seguintes:
Mesmo que se considere que a intervenção da Ordem dos Advogados em processo relativo a crime de procuradoria ilícita é movida pela defesa dos interesses dos seus associados, e não pela defesa da profissão em geral e seus destinatários (o que será contestável), não parece oferecer dúvidas que a intervenção da Ordem dos Advogados como assistente ao abrigo do citado artigo 49.º do Regime das Associações Públicas Profissionais (Lei n,º 2/2013, de 10 de janeiro) é movida pela defesa da profissão em geral e seus destinatários. Estão em causa processos relativos ao exercício da profissão. Estão em causa as atribuições das associações públicas profissionais que decorrem das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 5.º do Regime respetivo; a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços e a defesa dos interesses gerais da profissão. Está em causa, quanto à Ordem dos Advogados, a atribuição desta que decorre da alínea d) do artigo 3.º do seu Estatuto (aprovado pela Lei n.º 195/2015, de 9 de setembro): zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado. Não está em causa a intervenção processual da Ordem dos Advogados em defesa dos seus associados por atos relativos ao exercício da sua profissão a que alude o artigo 5.º, n.º 2, desse Estatuto.
No caso em apreço, relativo à prática de atos próprios do exercício da advocacia por advogada com inscrição suspensa, não pode dizer-se que estejam em causa interesses dos associados da Ordem dos Advogados, mas interesses gerais relativos ao exercido de tal profissão, que são públicos e incluem os dos próprios destinatários dos serviços de advocacia (interesses difusos, portanto). E é isso mesmo que justifica a legitimidade da Ordem dos Advogados para se constituir assistente ao abrigo do disposto no artigo 49.º do Regime das Associações Públicas Profissionais.
Está, pois, verificada a previsão da citada alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais: a Ordem dos Advogados, enquanto associação pública, atua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo Estatuto, e a quem a lei especialmente atribui legitimidade processual nesta matéria.
Assim, entendo que deveria ser concedido provimento ao recurso também quanto a este aspeto.

Pedro Vaz Pato