Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12995/20.3T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: PENA DE PROIBIÇÃO DE CONDUÇÃO DE VEÍCULOS MOTORIZADOS
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
PRINCÍPIO DA LEALDADE
Nº do Documento: RP2023011112995/20.3T9PRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Não tendo o arguido, nesse prazo, em seu poder a carta de condução, por estar apreendida, ele não comete o crime de desobediência pelo facto de não ter procedido à entrega dessa carta, como lhe havia sido ordenado, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença que o condenou na pena de proibição de condução de veículos motorizados.
II – É certo que o arguido deveria ter procedido a essa entrega por sua iniciativa logo que a carta de condução lhe foi devolvida, já depois de decorrido esse prazo de dez dias; no entanto, esta falta não está coberta pela cominação de desobediência imposta na sentença em causa, a qual tem de ser interpretada nos seus precisos termos, sob pena de atentarmos contra o princípio da legalidade; não pode confundir-se a consumação do crime de desobediência com o cumprimento da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 12995/20.3T9PRT.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 1, Comarca do Porto, com o nº 12995/20.3T9PRT foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo a final sido proferida sentença que absolveu o arguido da prática do crime de desobediência p. e p. no artº 348º nº 1 al. b) do Cód. Penal, que lhe fora imputado na acusação.
Inconformado, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1 - O Tribunal a quo ao dar como não provado a matéria constante nas alíneas a, b, c, d, fez incorreto julgamento das provas produzidas em audiência.
2 – Existe contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados (Acórdão do S.T.J. de 13 de Outubro de 1999, C.J., Tomo III, p. 186).
3 – Perante a análise da prova produzida e o conjunto de factos dados como provados e não provados, bem como da motivação, desde logo se pode afirmar evidente contradição:
Em resumo podemos extrair dos factos provados que:
- O arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 6 meses, tendo sido advertido para entregar a carta com a cominação que se não o fizesse cometia um crime de desobediência;
- Sabia que era o único e exclusivo destinatário da ordem emanada pelo tribunal, cujo teor compreendeu e que tinha a obrigação de entregar a carta de condução no prazo estipulado, para cumprir a sanção.
- Não procedeu à entrega da carta nos 10 dias contados a partir do transito, em 10/12/2019.
- Que a carta se encontrava apreendida no processo de contraordenação.
- Que o arguido levantou a carta de condução no dia 3/07/2020 às 14h46m.
- Mas será que foi nesta data – 10/12/2019 -, que o arguido cometeu o crime de desobediência?
- Não cremos que assim seja, porque o arguido não podia entregar a carta de condução porque não a tinha em seu poder.
- Porém, a obrigação que sobre si impendia, e que o mesmo tinha perfeito conhecimento, deveria ter sido cumprida assim que procedeu ao seu levantamento no Comando Territorial da GNR do Porto, no dia 3/07/2020, pelas 14h46m.
- E, é precisamente a partir desta data que o arguido incumpre a ordem emanada pelo Tribunal.
- Na verdade, é a partir dessa data que a carta de condução está em seu poder e que o arguido deveria ter cumprido a ordem do tribunal, que o mesmo compreendeu e, só em 30/11/2020 é que a carta lhe foi apreendida pela PSP, cfr. documentos de fls. 43 e 44 dos autos.
- Na sentença de que ora se recorre, ao dar como provado os pontos 1 a 7, não podia a Mma. Juiz dar como não provado as alíneas a) a d).
E o que faz a Mma Juiz? Entendeu que o arguido na data de 9/12/2019, não tinha a carta de condução em seu poder e, assim não a podia entregar!
- Mas, o que acontece quando o arguido em 3/07/2020, tem a carta de condução em seu poder? - Não a entrega, tendo a mesma que ser apreendida pela PSP.
4 - A douta sentença, para além do vício supra apontado, em que apresenta, na apreciação da prova produzida, várias contradições sustentadas em considerações genéricas e abstratas, que em nada se compagina com a prova efetivamente produzida em sede de audiência e discussão de julgamento, sendo também patente o erro notório na apreciação da prova.
5 – Temos por verificado o erro notório na apreciação da prova, quando existe “desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido)”, sendo que tal erro é de “tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser demonstrado a partir do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum”.
6 - Na verdade, segundo o nosso modesto entendimento, os meios de prova, carreados nos autos e produzidos em sede de audiência e discussão de julgamento, não foram devidamente apreciados na sua globalidade.
7 – A sentença dá como provado que o arguido foi advertido para proceder à entrega no prazo de 10 dias a contar do transito em julgado, e também que sabia que era o único e exclusivo destinatário da ordem emanada pelo tribunal, cujo teor compreendeu.
8 - Mas, como pode a sentença na motivação afirmar que o arguido não tinha intenção de desobedecer à ordem do tribunal se, quando ele foi levantar a sua carta de condução em 3/07/2020, não a entregou no tribunal, acabando por lhe ser apreendida em 30/11/2020?
9 - Como pode a Mmª Juiz concluir que o arguido não sabia estar a cometer um ilícito criminal, se dá como provado que:
“2. Foi ainda advertido para, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito da sentença, proceder à entrega da carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto de polícia sob pena de, não o fazendo, incorrer num crime de desobediência.
(…).
5. O arguido bem sabia que era o único e exclusivo destinatário da ordem emanada pelo tribunal, cujo teor compreendeu, e que impendia sobre si a obrigação de entregar a carta de condução, no prazo de 10 dias, no referido processo ou outra entidade, a fim de cumprir a medida de inibição da faculdade de conduzir.”
10 - E quando acrescenta, “desde logo porque não a tinha na sua posse”, está a confundir os factos.
a) O arguido não podia entregar a carta no dia 10/12/2019, porque não a tinha, mas a sua obrigação iniciou-se quando a foi levantar no dia 3/07/2020.
b) E, é a partir dessa data que comete o crime!
11 - Refere a Mma. Juiz que as dúvidas sérias sobre tais factos teriam que ser resolvidas a favor do arguido, em nome do principio in dubio pro reo.
12 - Mas que dúvidas subsistiram se a Mma Juiz deu credibilidade às declarações do arguido!
13 - Por não se fazer prova se que foi comunicado ao tribunal que a carta estava apreendida?
a) Mas se no primeiro processo não se sabia da apreensão, como poderia o arguido pensar que o Tribunal ia “buscar a sua carta à GNR”, sabendo que era sobre si que pendia a obrigação de entregar a sua carta??
b) Na verdade, a carta de condução já estava apreendida quando o arguido foi julgado, mas ele nunca transmitiu tal facto ao tribunal, pois caso contrário estaria espelhado na sentença.
14 - Analisando todos os factos provados e não provados, as declarações do arguido, os documentos e a motivação da sentença de que ora se recorre, resulta um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, tendo em conta a matéria de facto provada.
15 - A decisão recorrida decidiu em patente oposição às regras básicas da experiência comum, sendo evidente para a generalidade das pessoas uma conclusão contrária à exposta pelo Tribunal.
16 – Assim, analisada devidamente toda a prova constante dos autos e produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com as regras de experiência comum, deverá, salvo melhor entendimento, nos termos do disposto no artigo 431º, alínea a) do CPP, ser modificada a decisão fáctica da sentença recorrida nos seguintes termos:
i. deverão ser eliminados da matéria de factos dados como não provados os seguintes factos:
“a) na data referida no item 3) ou mesmo na data da sentença referida em 1), o arguido tivesse na sua posse a sua carta de condução;
b) não obstante a advertência referida em 1-2) e ter entendido essa ordem, o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, como podia e devia;
c) ao não entregar a carta de condução na data referida em 3), o arguido agiu deliberadamente, com intenção de desobedecer à ordem de entrega, cujo conteúdo entendeu e assim subtrair-se ilegitimamente ao cumprimento da pena acessória, não obstante saber que essa injunção fora emanada pela entidade judicial competente;
d) ao não entregar a carta de condução na data referida em 3), o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
ii. Os quais deverão ser incluídos na matéria de facto dada como provada, passando a constar como provados os seguintes factos (os quais evidenciaremos sublinhando e colocando a negrito, as alterações que entendemos):
1. Nos autos de processo comum singular n.º 60/18.8GTPRT, que correu os seus legais termos no J2 da Instância Local Criminal do Porto, por sentença datada de 05/06/2019 e transitada em julgado em 27/11/2019, foi o arguido condenado, para além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses.
2. Foi ainda advertido para, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito da sentença, proceder à entrega da carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto de polícia sob pena de, não o fazendo, incorrer num crime de desobediência.
3. O arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução no prazo fixado por lei, ou seja, 10 dias após o trânsito em julgado da sentença.
4. A carta veio a ser apreendida ao arguido, em 30/11/2020, conforme consta de fls. 44 dos presentes autos, o que para os devidos efeitos se dá por integralmente reproduzido.
5. O arguido bem sabia que era o único e exclusivo destinatário da ordem emanada pelo tribunal, cujo teor compreendeu, e que impendia sobre si a obrigação de entregar a carta de condução, no prazo de 10 dias, no referido processo ou outra entidade, a fim de cumprir a medida de inibição da faculdade de conduzir.
6. Na data referida em 3), a carta de condução do arguido encontrava-se apreendida no auto de contraordenação ..., por falta de pagamento.
7. A referida carta de condução, apreendida no processo referido no item que antecede, foi devolvida ao arguido pela GNR-Comando Territorial do Porto, em 03/07/2020, às 14.46 horas.
8. A partir de 3/07/2020, o arguido passou a ter na sua posse a sua carta de condução;
9. Não obstante a advertência referida em 1-2) e ter entendido essa ordem, o arguido após levantar a carta de condução, não procedeu à sua entrega, como podia e devia;
10. Ao não entregar a carta de condução, o arguido agiu deliberadamente, com intenção de desobedecer à ordem de entrega, cujo conteúdo entendeu e assim subtrair-se ilegitimamente ao cumprimento da pena acessória, não obstante saber que essa injunção fora emanada pela entidade judicial competente;
11. Ao não entregar a carta de condução, o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
Mais se provou:
12. Anterior 8.
iii. E como factos não provados os seguintes:
a) que o arguido tenha comunicado ao Tribunal que a carta se encontrava apreendida à ordem do processo de contraordenação ..., por falta de pagamento.
b) não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos dados como provados, com interesse para a boa decisão da causa.
17 – A alterar-se a matéria de facto nos termos por nós pugnada deverá afirmar-se verificado o preenchimento dos diversos elementos (objetivo e subjetivo) do tipo-de-ilícito imputado ao arguido e, assim, se imporá a condenação do arguido pelo crime em causa – crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º, nº 1, do CP.
18 – Afigura-se-nos ser justa, necessária, adequada e proporcional a aplicação ao arguido da pena de multa de 60 dias à taxa diária de 6€.
19 - Assim, a douta sentença violou, para além do preceito incriminador mencionado na conclusão 17ª, o disposto nos artigos 125º e 127º, do Código de Processo Penal.
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Na 1ª instância, apesar de devidamente notificado, o arguido não apresentou resposta às motivações de recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: transcrição
1. Nos autos de processo comum singular n.º 60/18.8GTPRT, que correu os seus legais termos no J2 da Instância Local Criminal do Porto, por sentença datada de 05/06/2019 e transitada em julgado em 27/11/2019, foi o arguido condenado, para além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses.
2. Foi ainda advertido para, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito da sentença, proceder à entrega da carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto de polícia sob pena de, não o fazendo, incorrer num crime de desobediência.
3. O arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução no prazo fixado por lei, ou seja, 10 dias após o trânsito em julgado da sentença.
4. A carta veio a ser apreendida ao arguido, em 30/11/2020, conforme consta de fls. 44 dos presentes autos, o que para os devidos efeitos se dá por integralmente reproduzido.
5. O arguido bem sabia que era o único e exclusivo destinatário da ordem emanada pelo tribunal, cujo teor compreendeu, e que impendia sobre si a obrigação de entregar a carta de condução, no prazo de 10 dias, no referido processo ou outra entidade, a fim de cumprir a medida de inibição da faculdade de conduzir.
Mais se provou:
6. Na data referida em 3), a carta de condução do arguido encontrava-se apreendida no auto de contraordenação ..., por falta de pagamento.
7. A referida carta de condução, apreendida no processo referido no item que antecede, foi devolvida ao arguido pela GNR-Comando Territorial do Porto, em 03/07/2020, às 14.46 horas.
8. O arguido:
a) é casado e tem 44 anos de idade;
b) trabalha como técnico de refrigeração na empresa “R...”, sita em Matosinhos, auferindo €800,00 mensais;
c) a esposa trabalha como técnica auxiliar numa instituição relacionada com a toxicodependência, auferindo cerca de €700,00 mensais;
d) reside em casa própria, pagando de empréstimo que contraiu para aquisição da mesma, €400,00 mensais;
e) não tem filhos a cargo;
f) tem como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade;
g) durante o primeiro confinamento trabalhou como voluntário no quartel/hospital das Forças Armadas, na área do Covid, tendo-se isolado da restante sociedade e família, motivo pelo qual só levantou a carta na data referida em 7);
h) Já respondeu pela prática:
h.1- em 14/08/18, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo sido condenado por sentença de 05/06/19, transitada em julgado em 27/11/19, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €6,00, no total de €540,00 e 6 meses de inibição de conduzir; a sanção acessória foi extinta em 30/05/21 (Proc. processo comum singular n.º 60/18.8GTPRT, do Juízo Local Criminal do Porto -antiga Instância Local Criminal –J2).
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Foram considerados não provados os seguintes factos: transcrição
a) na data referida no item 3) ou mesmo na data da sentença referida em 1), o arguido tivesse na sua posse a sua carta de condução;
b) não obstante a advertência referida em 1-2) e ter entendido essa ordem, o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, como podia e devia;
c) ao não entregar a carta de condução na data referida em 3), o arguido agiu deliberadamente, com intenção de desobedecer à ordem de entrega, cujo conteúdo entendeu e assim subtrair-se ilegitimamente ao cumprimento da pena acessória, não obstante saber que essa injunção fora emanada pela entidade judicial competente;
d) ao não entregar a carta de condução na data referida em 3), o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
e) não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos dados como provados, com interesse para a boa decisão da causa.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: transcrição
A convicção do tribunal, relativamente aos factos dados como provados e não provados, fundou-se na análise crítica e conjugada, do conjunto da prova documental junta aos autos e produzida em audiência de julgamento, apreciada nos termos do art. 127.º, do C.P.P..
a) o arguido:
Depôs de forma que se afigurou credível.
Confirmou a condenação a que se referem os autos e que não entregou a carta de condução; sabia que tinha que entregar a carta 10 dias depois do trânsito da sentença.
Referiu que não entregou a carta porque estava apreendida na esquadra ..., desde há um ano; enquanto não pagasse a multa não podia levantar a carta; na data da leitura da sentença a carta já estava apreendida.
Tinha uma guia de substituição que lhe foi entregue, conforme referiu no tribunal.
Referiu que a coima – processo à ordem do qual a carta se encontrava apreendida - prescreveu em Fevereiro de 2019; pensou que o Tribunal ia pedir a carta ao quartel do ...; quando foi levantar a carta já estavam em pandemia.
Prestava serviço como voluntário no quartel/hospital das Forças Armadas, na ..., na área Covid; isolou-se de todos e da própria família.
Em Novembro de 2020 é que foi entregar a carta; em Agosto o defensor disse que os tribunais estavam fechados; tinha a carta em casa, não a usava.
Segundo o mesmo, entregou a carta voluntariamente na esquadra 1..., não foi apreendida.
Referiu ainda que o seu defensor informou o Tribunal que a carta de condução estava apreendida no ...; não a levantou porque não tinha dinheiro para pagar a multa.
Foi confrontado com o auto de apreensão de fls. 44 e termo de fls. 25.
Acabou por deixar caducar a guia; quando a sentença dos autos transitou, já estava caducada a guia; na data do julgamento a guia ainda não tinha caducado.
Depôs quanto à sua situação pessoal.
No que concerne à prova documental, tiveram-se em conta: certidão da sentença de fls. 4 a 9, com nota de trânsito em julgado; informação de fls. 11 de 07/09/20, da GNR Porto, do qual resulta que a carta de condução do arguido lhe foi entregue em 03/07/2020, por já ter decorrido mais de dois anos após a data da infração e que a mesma esteve apreendida, por falta de pagamento, no auto de contraordenação que aí se identifica; teor de fls. 12-13; informação de fls. 17 e 25, da qual resulta que a carta foi entregue pelo arguido na PSP do Porto em 30/11/20; certidão de fls. 42-44.
No que respeita às circunstâncias pessoais do arguido, tiveram-se em conta as declarações do arguido e o C.R.C. de fls. 94-95.
Os factos não provados resultaram de não se ter feito prova nesse sentido, atento o conjunto da prova produzida e supra analisada.
Analisando o conjunto da prova produzida, entende-se que resultou provado que o arguido não entregou a carta de condução como lhe foi determinado pela decisão que o condenou em proibição de conduzir, a que se referem os autos (item 1) dos factos provados), na data da imposta pela decisão a que se referem os autos.
No entanto, tal como referiu o arguido e resultou dos documentos juntos aos autos, na data em que o arguido deveria proceder à entrega, a carta de condução do arguido encontrava-se apreendida no auto de contraordenação ..., por falta de pagamento.
Apurou-se ainda que a referida carta de condução, apreendida no processo de contraordenação referido, apenas foi devolvida ao arguido em 03/07/2020, às 14.46 horas.
Assim sendo, tem que concluir-se que na data em que o arguido tinha que entregar a carta, não o podia fazer, em virtude da mesma se encontrar apreendida.
Referiu ainda o arguido que o seu advogado comunicou que a carta se
encontrava apreendida e pensou que o Tribunal ia solicitar a entrega da carta ao
posto da PSP onde segundo o arguido se encontrava apreendida.
Por outro lado, referiu ainda que só foi levantar a carta em 03/07/2020 por estar a trabalhar como voluntário no quartel/hospital dos Bombeiros, na área Covid, isolado da restante população e da própria família, o que se revela coerente com a situação vivida à época para os profissionais/voluntários da área da saúde.
Assim, não obstante não se ter feito prova concreta da referida comunicação ao tribunal de que a carta de encontrava apreendida à ordem do processo de contraordenação, entende-se que face à prova produzida, não se poderá concluir que o arguido ao não entregar a carta de condução tivesse qualquer intenção de desobedecer à ordem de entrega da carta de condução e/ou tivesse agido em conformidade com tal intenção e sabendo que estava a cometer um ilícito criminal, desde logo porque não a tinha na sua posse.
Assim sendo e sendo certo que as dúvidas sérias sobre tais factos teriam que ser resolvidas a favor do arguido, em nome do princípio in dúbio pro reo, têm tais factos que ser dados como não provados.
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto à apreciação das seguintes questões, a saber:
- se a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação;
- se padece do vício de erro notório na apreciação da prova.

a) Do vício de contradição insanável da fundamentação:
Alega o recorrente que que, ao dar como provados os pontos 1 a 7 a Srª. Juíza não podia dar como não provadas as alíneas a) a d), pois apesar de não poder entregar a carta de condução em 09.12.2019 por não a ter em seu poder, poderia tê-la entregue em 03.07.2020, quando já tem a carta em seu poder.
Dispõe o art. 410.º nº 2 do C.P.Penal «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»

O vício de contradição insanável da fundamentação ocorre quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão de facto quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.
No caso em apreço, não se verifica o apontado vício, já que inexiste qualquer contradição entre os factos provados 1 a 7, por um lado, e os factos não provados constantes das alíneas a) a d).
Com efeito, a circunstância de se afirmar que o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, como havia sido expressamente advertido, nos 10 dias após o trânsito em julgado da sentença, a fim de cumprir a pena acessória de proibição de conduzir que lhe fora imposta no Proc. nº 60/18.8GTPRT, e que nesse período de tempo a carta de condução do arguido se encontrava apreendida no auto de contraordenação ..., tendo-lhe sido devolvida em 30.07.2020, em nada colide com o facto de não se ter considerado provado que, nesse mesmo período de tempo ou mesmo na data da sentença referida em 1), o arguido tivesse na sua posse a sua carta de condução; que, não obstante a advertência referida em 1-2) e ter entendido essa ordem, o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, como podia e devia; que, ao não entregar a carta de condução na data referida em 3), o arguido agiu deliberadamente, com intenção de desobedecer à ordem de entrega, cujo conteúdo entendeu e assim subtrair-se ilegitimamente ao cumprimento da pena acessória, não obstante saber que essa injunção fora emanada pela entidade judicial competente; e que, ao não entregar a carta de condução na data referida em 3), o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Aliás, a prova positiva dos primeiros factos, constantes dos pontos 1 a 7, teria de conduzir, necessariamente à não prova dos restantes, sendo de realçar que em ambos os conjuntos de factos está-se apenas a ter em consideração o período de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença e não, como pretende o recorrente, a data de 03.07.2020, quando a carta de condução é devolvida ao arguido.
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b) Do vício de erro notório na apreciação da prova:
Existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, é manifesto que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detetado pelo homem médio. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis[3].
Este vício do erro notório na apreciação da prova é um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, «na desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido)».
Alega o recorrente que na motivação da sentença se afirma que o arguido não tinha intenção de desobedecer à ordem do tribunal, quando ele foi levantar a sua carta de condução em 03.07.2020, não a entregou no tribunal, acabando por lhe ser apreendida em 30.11.2020.
E interroga-se como pode o tribunal concluir que o arguido não sabia estar a cometer um ilícito criminal, quando dá como provados os pontos 2 e 5 e quando acrescenta "desde logo porque não a tinha na sua posse" está a confundir os factos.
Conclui o recorrente que o arguido não podia entregar a carta no dia 10.12.2019 porque não a tinha, mas a sua obrigação iniciou-se quando a foi levantar no dia 03.07.2020 e é a partir dessa data que comete o crime.
Ora, é precisamente aqui que o recorrente incorre em erro, por vício de raciocínio, e não o tribunal a quo.
Depois de largo debate nos Tribunais da Relação, o S.T.J., no seu Acórdão n.º 2/2013, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 5, de 8 de Janeiro de 2013, fixou a seguinte jurisprudência: «Em caso de condenação, pelo crime de condução em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, do art. 292.º do CP, e aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69.º, nº 1, al. a), do CP, a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei (art. 69.º, nº 3 do CP e art. 500.º, nº 2 do CPP), deverá ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do art. 348.º, nº 1, al. b), do CP.»
No caso em apreço, como resulta dos autos e da matéria de facto que, por não impugnada, se tem como definitivamente assente, "no Processo Comum Singular nº 60/18.8GTPRT, que correu termos no J2 da Instância Local Criminal do Porto, por sentença data de 05.06.2019 e transitada em julgado em 27.11.2019, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. nos artºs. 292º e 69º nº 1 al. a) do Cód. Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses.
O arguido foi advertido para, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito da sentença, proceder à entrega da carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto de polícia sob pena de, não o fazendo, incorrer num crime de desobediência.
O comando dirigido ao arguido, sob cominação de incorrer em desobediência, foi o de, no prazo de 10 dias a contar do trânsito, entregar a sua carta de condução. Naquele prazo de 10 dias e não em qualquer outro.
A entrega tardia, por exemplo, no 20.º dia, tendo podido fazê-lo no prazo de 10 dias fixado, não obstaria ao preenchimento do tipo objetivo de crime.
Ocorre que, no referido prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da referida sentença condenatória, o arguido não tinha ao seu dispor o título de condução para o poder entregar, já que o mesmo se encontrava, então, apreendido no auto de contraordenação ... por falta de pagamento, só tendo sido restituído ao arguido em 03-07-2020.
Como é evidente, para a condenação pelo crime imputado não bastava a prova de que o arguido não entregou o seu título de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença proferida no processo nº 60/18.8GTPRT. Era necessário, igualmente, que se provasse que o arguido tinha o dito título de condução em seu poder e podia efetuar a respetiva entrega dentro daquele prazo, não o tendo feito.
Resultando da matéria de facto provada que o arguido, naquele período – que é o que nos importa -, não tinha em seu poder o seu título de condução, manifestamente, não lhe era possível cumprir a ordem de entrega do título de condução.
É certo que o arguido deveria ter procedido, por iniciativa própria, à entrega da sua carta de condução logo que a mesma lhe foi restituída em 03.07.2020, a fim de cumprir a pena acessória de proibição de conduzir que lhe foi imposta.
Contudo, a não entrega da carta de condução após 09.12.2019 (dez dias após o trânsito da sentença condenatória) não está coberta pela cominação de desobediência imposta nessa sentença, a qual tem de ser interpretada nos seus precisos termos, sob pena de atentarmos contra o princípio da legalidade. Com efeito, só releva para a consumação do crime o período de dez dias decorridos após o trânsito da sentença condenatória proferida no referido Proc. nº 60/18.8GTPRT.
O recorrente confunde a consumação do crime de desobediência - a qual só pode ocorrer se o destinatário não cumprir a ordem, estando em condições de o fazer, no aludido prazo de 10 dias que lhe foi concedido -, com o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir em que foi condenado.
É quanto basta para, com segurança, concluirmos que o arguido não podia deixar de ser, como efetivamente foi, absolvido, não padecendo a sentença recorrida de qualquer dos vícios invocados.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando consequentemente a douta sentença recorrida.
Sem tributação.
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Porto, 11 de janeiro de 2023
(Elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
Lígia Figueiredo
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 8.ª edição, pág. 80 e ss.