Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1418/14.7TBPVZ-B.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: LIVRANÇA
PRESCRIÇÃO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Nº do Documento: RP201901291418/14.7TBPVZ-B.P2
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 870, FLS.180-185)
Área Temática: .
Sumário: I - A falta de correspondência entre o acordado quanto à data de vencimento de uma livrança não releva em termos de prescrição, mas somente em sede de preenchimento abusivo do título.
II - A falta de interpelação do avalista do incumprimento do devedor principal e do subsequente preenchimento da livrança não conduz à inexigibilidade do título cambiário, apenas relevando para a determinação do momento a partir do qual se inicial a contagem dos juros moratórios, por aplicação do disposto no art.º 610, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
III – O mero decurso do tempo não é susceptível, por si só, de criar no devedor cambiário a confiança de que não lhe seria mais exigido o cumprimento da obrigação por si assumida, numa situação de abuso de direito, nas sub-modalidades do venire contra factum proprium ou da suppressio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1418/14.7TBPVZ-B.P2
Comarca: [Juízo de Execução do Porto (J5), Comarca do Porto]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Vieira e Cunha
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
B…, Executada nos autos principais, veio deduzir oposição à execução, por embargos de executado, contra “C… – SUCURSAL EM PORTUGAL”, Exequente nos mesmos autos, alegando, em síntese, que, na qualidade de avalista das duas livranças exequendas, não foi interpelada pela Embargada para pagar eventuais montantes em dívida e, num segundo momento, para lhe ser dado conhecimento de que iria proceder ao preenchimento de tais livranças avalizadas em branco.
Afirma que, com estas ausências de interpelação, lhe foi retirada a possibilidade de, em devido tempo, sustar ou diminuir as consequências nefastas do incumprimento em que se colocou a subscritora das livranças. Bem como de ter conhecimento do montante exato em dívida (capital e juros) e da data em que se venceriam os créditos mutuados e, consequentemente, das garantias prestadas.
Defende que a interpelação dos avalistas é requisito essencial para que se verifique a validade dos títulos dados à execução, acarretando a sua omissão a inexigibilidade da obrigação exequenda.
Mais alega que cabia à Exequente ter exposto adequadamente os factos que fundamentavam o pedido exequendo, discriminando do “valor líquido” indicado no requerimento executivo e das quantias apostas nas livranças quais os montantes em dívida a título de capital, juros e demais despesas, o que não fez.
Defende que o requerimento executivo é ininteligível e não se encontra fundamentado no que respeita aos montantes reclamado, pelo que é inepto.
Alega igualmente que as livranças dadas à execução foram abusiva e injustificadamente preenchidas, porquanto a data de vencimento e a quantia nelas aposta violam os termos dos respectivos acordos de preenchimento.
Defende que a Embargada não tem direito a quaisquer juros remuneratórios relativamente ao prazo do empréstimo não decorrido nem a capitalização de juros.
Alega finalmente que deverão ser tidos por não devidos, por prescrição, os juros contabilizados para além dos últimos cinco anos que antecederam a data de vencimento dos referidos títulos.
A Exequente contestou a oposição deduzida, impugnando a totalidade dos factos alegados.
Contrapõe, com particular relevo, que é falso que a Embargante desconheça desde quando a mutuária deixou de pagar as prestações a que estava obrigada, porque tal facto lhe foi comunicado, até porque, pelo menos à data, era casada com o sócio gerente da mutuária e correspondência era-lhes pessoalmente dirigida.
Conclui pedindo que os presentes embargos de executado sejam julgados improcedentes, por infundados e não provados, com as legais consequências.
Proferiu-se despacho saneador, em que - entre o mais - se julgou improcedente a suscitada ineptidão do requerimento executivo, por alegadamente ser ininteligível, incompreensível e não estar fundamentado no que respeita aos montantes reclamados.
Realizado o competente julgamento, proferiu-se sentença, que julgou parcialmente procedentes, por parcialmente provados, os embargos e, em consequência, determinou o prosseguimento da ação executiva apenas para pagamento da quantia global de €394.108,26, acrescida dos juros moratórios vincendos. à taxa legal de 4 %, contados a partir de 11/11/2014, até integral pagamento.
Inconformada com esta decisão, a Embargante/Executada interpôs recurso, tendo sido proferido Acórdão nesta Relação que anulou a sentença, por ser indispensável a ampliação da matéria de facto para esta passar a incluir a factualidade vertida nos artigos 9.º a 15.º do Requerimento Inicial.
Enunciaram-se os novos Temas da Prova, reabriu-se a audiência de julgamento e proferiu-se nova sentença, com a seguinte parte decisória: “Assim, em face de todo o exposto, decide-se julgar parcialmente procedentes, por parcialmente provados, os embargos de executado deduzidos pela embargante B… e, em consequência, determinar o prosseguimento da acção executiva intentada pela embargada C…, SA, Sucursal em Portugal, mas apenas para pagamento da quantia global de €394.108,26 (€213.325,89 +180.782,37), acrescida dos juros moratórios vincendos, à taxa legal de 4 %, contados a partir de 11/11/2014, até integral pagamento.”
Inconformada com esta decisão, a Embargante/Executada interpôs recurso, pugnando pela revogação da mesma, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
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A Embargada/Exequente não apresentou contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
As questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
● Prescrição do direito de acção:
● Inexigibilidade das livranças por falta de comunicação do incumprimento da mutuária, da sua intenção de preenchimento da livrança e para proceder ao pagamento dos valores em dívida;
● Preenchimento abusivo das livranças.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos Provados (Factos elencados na decisão em recurso):
1) A exequente Banco C…, SA, Sucursal em Portugal, intentou contra os executados D…, Lda, E…, B…, F…, G…, H… e I…, a ação executiva de que estes autos são apenso, dando à execução as duas livranças cujos originais estão integrados no processo executivo, aqui dados por integralmente reproduzido;
2) As referidas livranças, com os nºs ……………… e ………………., foram subscritas, em branco, pela sociedade J…, Lda, e avalizadas, pelo menos, pela executada B…, para garantia do efetivo cumprimento das obrigações decorrentes da celebração dos contratos de compra e venda e mútuo com hipoteca e de mútuo com hipoteca e respetivos documentos complementares, ambos celebrados em 01/09/2005, constantes dos documentos apresentados como requerimento executivo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;
3) Através do primeiro dos referidos contratos (compra e venda e mútuo com hipoteca), a exequente (nessa altura denominada C…, com o nome comercial de “C1…”), concedeu à sociedade J…, Lda, um empréstimo no montante de €149.639,37, nos termos e condições constantes do documento complementar anexo, destinado a financiar a aquisição pela mesma da fração autónoma designada pela letra “E”, correspondente a um armazém industrial com a área de 750m2, do prédio sito na Rua …, em …, Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 502 e inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1.074, sobre a qual foi constituída hipoteca voluntária a favor da exequente;
4) Por sua vez, através do segundo dos mencionados contratos (mútuo com hipoteca), a exequente concedeu à referida sociedade J…, Lda, um empréstimo, no montante de €126.860,63, nos termos e condições constantes do documento complementar anexo, sendo o mesmo exclusivamente destinado a apoiar a realização de obras de beneficiação das instalações comerciais da mutuária e, em garantia, foi constituída a favor da exequente hipoteca voluntária sobre a referida fração autónoma designada pela letra “E”, do prédio sito na Rua …, em …, Póvoa de Varzim;
5) Em conformidade com o estipulado nas cláusulas segunda e sexta dos documentos complementares anexos aos dois aludidos contratos, as quantias mutuadas foram utilizadas de uma só vez, através de crédito na conta de depósito à ordem da mutuária, devendo ser reembolsada em 180 prestações mensais de capital e juros;
6) Na cláusula nona dos referidos documentos complementares, convencionou-se que as mencionadas obrigações seriam ainda garantidas pela emissão de livranças, subscritas pela mutuária J…, Lda, e avalizadas por D…, Lda, E…, B…, H…, I…, F… e G…, ali se estabelecendo que “Em caso de incumprimento de todas as obrigações e responsabilidades constituídas ou a constituir perante a C…, decorrentes do presente contrato, suas renovações e substituições e até integral pagamento, a C… fica desde já autorizada a preencher e a descontar a referidas livrança pelo valor que lhe for devido, conforme o preceituado neste Contrato, a fixar as datas de emissão e vencimento, a designar o local de pagamento, bem como a proceder ao débito na conta de Depósitos à Ordem da Mutuária do valor devido pelo correspondente imposto de selo”;
7) Na cláusula décima segunda dos mencionados documentos complementares, na parte que agora releva, estabeleceu-se: “Considerar-se-á como imediata e automaticamente vencido e consequentemente exigível, tudo quanto constitua o crédito da C…, se e quando ocorrer qualquer um dos seguintes factos: a) A Mutuária suspender ou deixar de satisfazer qualquer obrigação e/ou responsabilidade decorrente ou assumida no presente Contrato, quer tenha natureza pecuniária ou não (…) c) A Mutuária e/ou os Avalistas reconhecerem a sua incapacidade para solverem os seus débitos, entrarem em concordatas, acordos de credores ou em quaisquer outros processos preventivos ou preparatórios de falência ou insolvência, outros processos de recuperação de empresas e protecção de credores, apreensão de bens, expropriação, gestão controlada, intervencionada, directa ou indirectamente, pelo estado ou vier a ser declarada a sua falência ou insolvência, bem como se praticarem qualquer acto de natureza ou efeitos análogos (…) d) A Mutuária e/ou os Avalistas foram executados judicialmente”;
8) Na cláusula quarta dos aludidos documentos complementares, na parte que agora releva, estabeleceu-se: “1 – O presente empréstimo vencerá juros à taxa nominal anual inicial de 4,25 (quatro virgula vinte e cinco por cento). 2 – Sobre o capital mutuado incidem juros a uma taxa equivalente à taxa EURIBOR (…) a seis meses, à data da tomada de fundos, a arredondar para o ¼ percentual superior, acrescida de uma margem (spread) de 2,00% (…), ajustável no início de cada semestre, em função aos variações que venham a ocorrer no indexante (…) 3 – Fica desde já convencionado que a taxa aplicável em cada momento não poderá ser inferior a 4,25% (…) nominal anual, pelo que será esta a taxa a aplicar no caso de algum ajustamento periódico, nos termos previstos no número anterior, produzir como resultado uma taxa inferior (...) 8 – No caso de a C… considerar os seus créditos integralmente vencidos devido ao incumprimento da Mutuária, acrescerá à taxa de juro contratual, a título de cláusula penal, uma sobretaxa de 4,00% (…) ou aquela que estiver em vigor, que incidirá sobre o capital em dívida pelo período da mora (…) 9 - Todas as despesas inerentes ao presente Contrato, incluindo o Imposto de Selo e demais encargos legais, serão suportados pela Mutuária. A Mutuária compromete-se a indemnizar a C… das referidas despesas e encargos legais e fiscais, no prazo máximo de 15 (…) dias, a contar da data da comunicação que a C… dirigir à Mutuária nesse sentido, acompanhada dos respetivos documentos comprovativos”;
9) A subscritora J…, Lda, e os avalistas D…, Lda, E…, B…, H…, I…, F… e G…, subscreveram ainda a convenção de preenchimento constante do documento de fls. 26 a 28, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, aí se consignando, para além do mais “…livrança esta cujo montante, data de emissão e data de vencimento se encontram em branco, para que a C… os fixe, podendo completar o preenchimento do título, compreendendo o saldo que for devido, comissões, juros remuneratórios e de mora e de imposto de selo devido, e descontando-o quando o considerar oportuno, o que, desde já, e por esta, se autoriza, no caso de a sociedade J…, LIMITADA, não regularizar as obrigações provenientes do referido empréstimo”;
10) No âmbito dos referidos contratos, a mutuária J…, Lda, procedeu ao pagamento das prestações (rendas) vencidas até 02/09/2006, deixando por liquidar a totalidade das que se venceram posteriormente (cfr. extratos de fls. 84 a 103, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido);
11) Em 13/08/2007, a exequente remeteu à mutuária J…, Lda, a carta de fls. 125, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, comunicando-lhe que os aludidos empréstimos se encontravam por regularizar desde 02/10/2006, estando nessa altura em dívida as prestações de €13.539,00 e €11.518,00 e interpelando-a para proceder ao pagamento das quantias em dívida e respetivos juros, no prazo de cinco dias, sob pena de se considerarem automaticamente vencidos ambos os empréstimos e proceder à sua cobrança judicial;
12) Em 11/01/2008, a exequente intentou no extinto Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, ação executiva para pagamento de quantia certa contra a mutuária J…, Lda, nos termos documentados a fls. 69 a 76, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;
13) No âmbito da referida execução, a exequente procedeu à liquidação das respetivas obrigações, considerando a data de 09/01/2008, nos seguintes termos: a) Mútuo do montante inicial de €149.639,37: capital - €142.554,13; juros - €16.491,79; juros de mora - €2.727,56; despesas - €5.702,17; impostos - €568,77; impostos - €228,09; total - €163.272,52, e b) Mútuo do montante inicial de €126.860,63: capital - €120.858,07; juros - €9.742,93; juros de mora - €2.312,27; despesas - €4.834,32; impostos - €482,21; impostos - €193,37; total - €138.423,17;
14) A sociedade J…, Lda, foi declarada insolvente por sentença de 08/02/2012, proferida no processo nº 1159/11.7TYVNG, que correu os seus termos pelo extinto 1º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia;
15) Na sentença de verificação e graduação de créditos no âmbito do referido processo de insolvência, no acórdão proferido em sede de recurso, constante da certidão de fls. 107 a 118, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, depois de efetuadas as correções julgadas necessárias, foram considerados os seguintes créditos da exequente calculados até à data da declaração de insolvência (08/02/2012): 1º mútuo: capital – €142.554,13; juros remuneratórios €36.240,55; juros de mora €26.020,51; imposto de selo sobre juros €2.490,44; despesas (4% sobre o capital) €5.702,17; imposto de selo s/despesas €228,09 (€213.325,89), e 2º mútuo: capital – €120.858,07; juros remuneratórios €30.725,05; juros de mora € 22.060,15; imposto de selo sobre juros € 2.111,41; despesas (4% sobre o capital) € 4.834,32; imposto de selo s/despesas €193,37 (€180.782,37);
16) A executada B… foi surpreendida com os presentes autos de execução porquanto, até à citação efectuada no âmbito dos mesmos, jamais foi interpelada pela exequente para pagamento dos montantes em dívida;
17) Até à data da referida citação, a exequente nunca comunicou à executada B… os valores em dívida, bem como respectivas datas de vencimento, ou sequer, desde quando a mutuária deixou de pagar as prestações a que estava obrigada e qual o cálculo efectuado para chegar a tais valores, nomeadamente, as taxas de juros aplicadas;
18) A exequente não deu conhecimento à executada B… de que iria proceder ao preenchimento das referidas livranças, nem posteriormente a interpelou para efectuar o pagamento das quantias que nelas foram inscritas;
19) A acção executiva de que estes autos são apenso foi intentada através da remessa a juízo do requerimento executivo por transmissão eletrónica de dados efetuada em 21/08/2014, tendo a executada B… sido citada através de carta registada com aviso de receção recebida em 11/11/2014 (cfr. aviso de receção integrado no histórico eletrónico do processo executivo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido).
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IV – PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE ACÇÃO
Estamos em face de uma oposição à execução, mediante embargos, típico meio de defesa conferido ao executado em processo executivo.
Neste meio de defesa compete ao executado e embargante alegar e provar factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente ou que impeçam a execução do título.
Sendo os títulos executivos duas livranças, bastava à Exequente, como fez, alicerçar a sua pretensão executiva no teor dos próprios títulos. No entanto, uma vez que estamos no âmbito das relações imediatas, era legítimo à Executada/Embargante, como também fez, socorrer-se das vicissitudes da relação subjacente, para efeito de invocação de matérias de exceção.
Usando as palavras de Pinto Furtado[1], “Nas relações pessoais, quer dizer, directas ou inter partes dos sujeitos de determinada transmissão, não são invocáveis a literalidade ou a abstração do título de crédito, pois os seus subscritores só ficam vinculados e só têm os estritos direitos que se conformam com a relação fundamental. (,,,) assim, nas relações imediatas, o credor ficará a dispor de duas ações, correspondentes a outros tantos direitos: o correlativo da obrigação ex causa e o cartular que lhe foi concedido em função do cumprimento dessa obrigação.”
A Recorrente invoca, como primeiro fundamento de recurso, não poder concordar com a posição assumida pelo Tribunal a quo no sentido de dar como certa uma data comprovadamente errada, afastando, dessa feita, a aplicação da prescrição cambiária.
Defende que, uma vez que os contratos subjacentes foram resolvidos em agosto de 2007, mas as livranças em branco só vieram a ser preenchidas em 8/2/12 (cerca de 4 anos e meio depois) e dadas à execução em 21/8/14 (7 anos depois), há muito se encontrava prescrito o direito de acção por parte do Banco.
O tribunal recorrido entendeu, a este respeito, que “ (…) a prescrição do direito de acção só deverá ser analisada por referência à data de vencimento inscrita na livrança. Se esta não tem correspondência com o que foi estipulado pelas partes na convenção de preenchimento, essa discrepância não deverá relevar para o referido efeito, sendo apreciada apenas no âmbito da excepção de preenchimento abusivo.”
Em termos gerais, temos que a prescrição extintiva é o instituto de ordem pública por via do qual os direitos subjectivos se tornam inexigíveis, transformando-se em meras obrigações naturais, quando não são exercidos durante o lapso de tempo fixado na lei (cf. art.º 298.º, n.º 1, e 300.º do Código Civil[2]).
Como já expunha Manuel de Andrade[3], o fundamento específico da prescrição “reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo”, negligência que “faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica”.
Nos termos do art.º 70.º § 1, ex vi do art.º 77.º, ambos da Lei uniforme Relativa a Letras e Livranças[4], todas as acções contra o subscritor e avalista de livranças prescrevem em três anos, desde a data de vencimento inscrita nas mesmas.
Nos presentes autos, estamos em face de duas livranças entregues em branco, para garantia do efectivo cumprimento das obrigações decorrentes da celebração de contratos de compra e venda e mútuo com hipoteca, configurando, em termos de negócio subjacente, a assunção de uma dívida de prazo incerto.
Como se sabe, a livrança em branco deve ser preenchida pelo seu titular, de acordo com o respectivo pacto de preenchimento.
O prazo de prescrição começa a correr a partir da data inscrita no título.
Assim, sendo o pacto de preenchimento um acordo firmado entre os sujeitos da relação extracartular que define em que termos vai ser preenchido o título cambiário, acompanhamos a posição do tribunal recorrido ao afirmar que a falta de correspondência entre esse pacto e o teor do título não releva em termos de prescrição, mas diversamente em sede de preenchimento abusivo do mesmo.
Improcede, pois, este fundamento de recurso.
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V – INEXIGIBILIDADE DAS LIVRANÇAS POR FALTA DE COMUNICAÇÃO DA EXEQUENTE
Nas alegações de recurso, a Recorrente/Embargante sustenta que, em primeiro lugar, em face do incumprimento da mutuária e consequente resolução dos contratos de mútuo, a embargada, ao contrário do efectuado junto da mutuária, não lhe comunicou tal facto, não lhe dando conhecimento dos valores em dívida; em segundo lugar, o comportamento da embargada de ignorar a existência da ora recorrente, persiste quando, volvidos cerca de cinco anos do referido incumprimento da mutuária, a embargada, procede unilateralmente ao preenchimento das livranças em branco objeto dos presentes autos sem, contudo, previamente, lhe comunicar os elementos de que iria inscrever na mesma e, em terceiro lugar, após o preenchimento das referidas livranças, a embargada, manteve a referida atitude, não a interpelando para proceder ao respetivo pagamento.
Defende que, no que concerne ao primeiro e segundo momentos, resulta a inexigibilidade das livranças perante si, com a consequente extinção da ação executiva. Já no que respeita à falta de interpelação da embargante após o preenchimento das livranças dadas à execução para o seu pagamento, entendemos, em conformidade com a jurisprudência dominante, relevar somente para efeitos de contagem de juros moratórios.
É certo que há uma corrente jurisprudencial que entende que a falta de comunicação por parte da Exequente do incumprimento por parte da devedora principal e dos valores em dívida, bem como a falta de interpelação para proceder ao respectivo pagamento constitui causa de inexigibilidade da obrigação exequenda.
Veja-se, neste sentido e a título meramente exemplificativo, designadamente os Acórdãos citados nas alegações de recurso da Relação de Lisboa de 11/10/2016, tendo como relator Luís Espírito Santo, de 08/11/2012, tendo como Relator Vítor Amaral, e de 20/01/2011, tendo como Relatora Maria Manuela Gomes, e da Relação de Évora de 27/02/2014, tendo como Relator Mata Ribeiro[5]
No entanto, também neste particular acompanhamos a posição defendida na decisão recorrida, no sentido de que estas faltas de interpelação apenas relevam para a determinação do momento a partir do qual se inicia a contagem dos juros moratórios.
Desde logo, há que ponderar que o aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário de um título de crédito garante o pagamento do mesmo por parte de um dos seus subscritores, na exacta medida da responsabilidade do avalizado (cf. art.º 30.º da LULL, aplicável às livranças ex vi do seu art.º 77.º).
O objecto específico do aval é o de garantia do cumprimento pontual e integral do direito de crédito cambiário.
Tratando-se de um negócio cartular, sendo a responsabilidade do avalista literal e autónoma. Isto é, o avalista assume a responsabilidade abstracta pelo pagamento do título de crédito, independentemente da validade do mesmo. Assim, o aval trata-se, em princípio, de negócio completamente autónomo em relação ao negócio subjacente, não sendo o avalista sujeito da relação jurídica fundamental.
Ou seja, o aval é um negócio exclusivamente cambiário e que “nasce” somente com o preenchimento do título de crédito.
Consequentemente, não cabe nesta situação específica a aplicabilidade da estatuição do art.º 782.º do C Civil, tipicamente aplicável ao fiador, que determina que “A perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados”, por se tratar de estatuição relativa ao negócio principal.
Consequentemente, aderimos à tese exposta no Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 28/09/17, tendo como Relator Tomé Gomes[6], no sentido de que: “A falta de interpelação do avalista da subscritora, no âmbito de uma livrança em branco, com vista ao seu preenchimento quanto à data do vencimento e ao montante, só releva se a necessidade dessa interpelação resultar do respectivo pacto de preenchimento.”
Ora, no caso dos autos, as partes do negócio subjacente fizeram consignar, na cláusula nona dos referidos documentos complementares, que obrigações seriam ainda garantidas pela emissão de livranças, subscritas pela mutuária J…, Lda., e avalizadas por D…, Lda., E…, B…, H…, I…, F… e G…, ali se estabelecendo que “Em caso de incumprimento de todas as obrigações e responsabilidades constituídas ou a constituir perante a C…, decorrentes do presente contrato, suas renovações e substituições e até integral pagamento, a C… fica desde já autorizada a preencher e a descontar a referidas livrança pelo valor que lhe for devido, conforme o preceituado neste Contrato, a fixar as datas de emissão e vencimento, a designar o local de pagamento, bem como a proceder ao débito na conta de Depósitos à Ordem da Mutuária do valor devido pelo correspondente imposto de selo”.
No mesmo sentido, a subscritora J…, Lda., e os avalistas D…, Lda., E…, B…, H…, I…, F… e G…, subscreveram ainda a convenção de preenchimento constante do documento de fls. 26 a 28, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, aí se consignando, para além do mais “…livrança esta cujo montante, data de emissão e data de vencimento se encontram em branco, para que a C… os fixe, podendo completar o preenchimento do título, compreendendo o saldo que for devido, comissões, juros remuneratórios e de mora e de imposto de selo devido, e descontando-o quando o considerar oportuno, o que, desde já, e por esta, se autoriza, no caso de a sociedade J…, LIMITADA, não regularizar as obrigações provenientes do referido empréstimo”.
Além disso, a Embargante não alegou, e muito menos provou, que resultasse deste pacto de preenchimento a necessidade das interpelações referidas.
Assim sendo, de acordo com as directrizes fixadas pelas partes contratuais, o preenchimento das livranças em branco não dependia de qualquer prévia interpelação dos avalistas, tendo ficado expressamente determinado que a Exequente poderia unilateralmente preencher e descontar as mesmas “pelo valor que lhe for devido” e “quando o considerar oportuno”.
Deve, pois, entender-se que a falta de interpelação da Recorrente ficou suprida pela sua citação, para os termos do processo executivo, conforme decorre dos art.º 805.º, n.º 1, do C Civil e art.º 610.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil[7].
Por aplicação desta última disposição legal, a consequência devida é a referida na decisão recorrida: a dívida somente se pode considerar vencida desde a citação.
Por inerência, julga-se, da mesma forma, improcedente este fundamento de recurso.
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VI – PREENCHIMENTO ABUSIVO DAS LIVRANÇAS
Como derradeiro fundamento, a Recorrente/Embargante invoca o preenchimento abusivo das livranças.
Sustenta, nesse sentido, que a possibilidade conferida ao Banco/Recorrido de preenchimento da livrança em branco se encontra balizado pelos limites impostos pela boa fé contratual.
Alega que, sendo a efectiva data de vencimento não a que consta nas livranças mas sim 13/08/2007 (data em que a Embargada já se encontrava em condições de as preencher), existe clara violação do pacto de preenchimento, tendo a Embargada actuado em manifesto abuso de direito aquando do respectivo preenchimento.
Como já ficou referido acima, estamos em face de duas livranças entregues em branco, para garantia do efectivo cumprimento das obrigações decorrentes da celebração de contratos de compra e venda e mútuo com hipoteca.
Ficou já igualmente definido que, de acordo com as directrizes fixadas pelas partes, a Exequente poderia unilateralmente preencher e descontar as livranças “pelo valor que lhe for devido” e “quando o considerar oportuno”.
O pacto de preenchimento subjacente à emissão de uma livrança em branco caracteriza-se por ser “o acordo mediante o qual as partes fixam as condições de preenchimento daquela por parte do credor em caso de incumprimento do negócio causal.”[8]
Em termos factuais, é pacífico que os contratos subjacentes foram resolvidos em Agosto de 2007, mas as livranças em branco só vieram a ser preenchidas em 08/02/12 e dadas à execução em 21/08/14 – sete anos depois.
Tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça constante do Apenso A destes autos, transitado em julgado, e versando sobre esta questão, “Consideramos, portanto, que, no caso, foi o credor, portador dos títulos, que se constituiu em mora, por não ter praticado os actos necessários ao cumprimento da obrigação (art.º 813.º do C Civil). É que o credor tem sempre de cooperar, quando mais não seja para receber ou aceitar a prestação, sendo que a lei lhe impunha, no caso dos autos, o dever de apresentar as livranças a pagamento (art.º 38.º-I).”
Neste Acórdão, a única questão a apreciar consistia em saber se são devidos juros moratórios desde a data de vencimento aposta nas livranças exequendas ou, tão só, desde a data de citação dos avalistas-executados para a acção executiva.
Nos presentes autos, a dúvida reside em saber se poderemos retirar alguma consequência jurídica desta actuação negligente da Exequente.
Em tese geral, tal actuação poderia qualificar-se como um abuso de direito, sob a modalidade de venire contra factum proprium ou da suppressio.
Prescreve, para este efeito, o art.º 334.º do C Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Quanto à noção de abuso de direito, deixa-se aqui, por incisiva e clara, a definição de Jorge Coutinho de Abreu[9]: "Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem." Ou, usando uma expressão concisa de Cunha de Sá[10], o abuso de direito traduz-se no dever de não abusar do direito próprio.
Especificamente quanto às sub-figuras do venire contra factum proprium e da suppressio, e apelando aos ensinamentos de Menezes Cordeiro[11], a primeira identifica-se com o exercício de uma posição jurídica em contradição com um comportamento assumido anteriormente pelo exercente e a segunda com a situação do direito que, não tendo sido, em determinadas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não poderá mais sê-lo, por, de outra forma, se contrariar a boa fé.
No direito cambiário, tal como em muitos outros ramos do direito, a boa fé apela para a sua vertente objectiva de regra de conduta com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte. Por outro lado, o fim económico e social do direito, no âmbito dos direitos de crédito, consiste na satisfação do interesse do credor mediante a realização da prestação devida na medida em que a mesma seja efectivamente devida.
No caso dos autos, apenas temos como certo que as livranças foram dadas à execução sete anos depois da resolução dos contratos. Bem como que, durante esses longos anos, a Exequente nunca efectuou qualquer interpelação à Embargante nem lhe solicitou qualquer pagamento.
No entanto, a Embargante não produziu qualquer alegação, e subsequente prova, no sentido de que esta actuação da Exequente e/ou o decurso dos anos lhe fez criar justificadamente a expectativa de que o cumprimento da obrigação cartular não viria mais a ser exigido.
Até por que, entretanto, a devedora principal, foi, entretanto, declarada insolvente, tendo decorrido o inerente incidente de reclamação de créditos.
Assim, a avalista deveria contar que, a qualquer momento, a credora poderia vir a exercer o respectivo direito cambiário contra si.
Tal como se decidiu no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/17, tendo como Relatora Rosa Tching[12] que “O abuso de direito na sua vertente de venire contra factum proprium, pressupõe que aquele em quem se confiou viole, com a sua conduta, os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. (…) O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da acção executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no art.º 334.º do Código Civil, na modalidade de venire contra factum proprium.”
A nossa conclusão é, da mesma forma, a de que o mero decurso do tempo não é susceptível, por si só, de criar no devedor cambiário a confiança de que não lhe seria mais exigido o cumprimento da obrigação por si assumida.
A conclusão final é, pois, a da total improcedência do presente recurso.
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VII - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso da Recorrente/Embargante, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas a cargo da Recorrente/Embargante - art.º 527.º do CP Civil.
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Notifique e registe.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 29 de Janeiro de 2019
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
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[1] In Títulos de Crédito (Letra, Livrança, Cheque), 2000, Almedina, pág. 68 e ss.
[2] Doravante apenas designado por C Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[3] In Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 1974, Almedina, pág. 445/446.
[4] Doravante apenas designado por LULL, por questões de operacionalidade e celeridade.
[5] Proferidos, designadamente, no Processo n.º 4233/10.3TBVEX-A.L1-7, no Processo n.º 5930/10.9TCLRS-A.L1-6, no Processo n.º 1847/08.5TBBRR-A.L1-6 e no Processo n.º 1470/11.7TBSTB-A.E1 e disponíveis em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[6] Proferido no Processo n.º 779/14.2TBEVR-B.E1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[7] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/03/2018, tendo como Relatora Fernanda Isabel Pereira, proferido no Processo n.º 3555/15.1T8GMR-A.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[9] In Do abuso de Direito, Almedina, 1999, pág. 43.
[10] In Abuso do Direito, 1997, p. 640.
[11] In Da Boa Fé n Direito Civil, 1984, Almedina, pág. 742 e ss.
[12] Proferido no Processo n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.