Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1442/22.6SPPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
MOTOCICLO
CRIMES RODOVIÁRIOS
PENA DE MULTA
ADMOESTAÇÃO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PRESSUPOSTOS
INAPLICABILIDADE
PREVENÇÃO GERAL
Nº do Documento: RP202305031442/22.6SPPRT.P1
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A pena de admoestação é uma pena de substituição de uma pena de multa e consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal, revestindo um carácter meramente simbólico.
II – Trata-se da mais benévola de todas as penas do vigente sistema penal, pois, ao contrário das restantes, não comporta para o condenado qualquer sacrifício efectivo, seja da sua liberdade, seja do seu património, pelo que só deve ser aplicada em casos de notória pouca gravidade.
III – Em regra, não será aplicada se o agente tiver sido condenado em qualquer pena, incluindo a admoestação, nos três anos anteriores ao facto.
IV – Mesmo verificados os demais pressupostos legalmente previstos, sendo o critério de aplicação da admoestação exclusivamente preventivo, atentas as necessidades preventivas gerais, não se mostra adequado aplicá-la estando em causa a prática de um crime de condução, de motociclo, sem habilitação legal, uma vez que os crimes rodoviários, embora pouco graves em termos de moldura penal abstracta, pela sua particular danosidade, no actual contexto social, colocam imperativos acrescidos de prevenção geral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1442/22.6SPPRT.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
Submetido a julgamento em processo sumário, o arguido AA, pela prática, em 23.11.2022, de um crime de condução de veículo motociclo sem habilitação legal para o efeito, p. e p. pelo art.º 3.º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 03/01, na pena de admoestação.
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Inconformado com a sentença, apenas no que concerne à determinação e fixação da medida concreta da pena, dela interpôs recurso o Ministério Público.
Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. A acentuada gravidade objectiva e a acutilante ilicitude material dos factos, bem como, a intensidade da culpa do arguido não se mostra compatível com a pena que lhe foi aplicada.
2. A sentença recorrida por não se adequar ao caso concreto dos autos, violou o disposto no artigo 71º, do Código Penal Penal, por demasiada benevolência.
3. Na determinação de medida concreta da pena deverá o julgador ter por norte e linhas de força, as seguintes matrizes: - A culpa do agente, referenciada no facto, que impõe uma retribuição justa e equilibrada, - Exigências decorrentes do fim preventivo especial ligadas à reinserção integral do agente e - Exigências decorrentes do fim preventivo geral ligadas à contenção da criminalidade e à defesa dos valores socialmente dominantes e comunitariamente instituídos. - cfr. artigo 71º, do Código Penal.
4. Segundo o artigo 40º, a aplicação das penas tem como finalidades a prevenção geral positiva (“protecção dos bens jurídicos”) e a prevenção especial (“reintegração do agente na sociedade”).
5. A pena tem como finalidade o reforço da consciência jurídica da comunidade e um reforço do seu sentimento de segurança face às violações da lei por alguns dos seus elementos. Pretende a pena a estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida. Mantém-se, através da pena, o crédito social que merecem as normas violadas, normas essas que mantêm em pleno a sua eficácia e se encontram em plena vigência apesar do desrespeito às mesmas.
6. Ora, atendendo aos factos dados como provados e não tendo o arguido qualquer motivo para a prática dos factos, encontrar-se em Portugal em situação irregular, não se encontrar inscrito em escola de Condução, referindo nas suas declarações que cometeu os factos porque se encontrava atrasado, teremos que considerar que a pena aplicada ao arguido não foi justa, nem equilibrada.
7. Dispõe o artigo 60º, do Código Penal que: “1 Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação. 2 A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 3 Em regra a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação. 4 A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal.”
8. Os factos cometidos pelo arguido não são, de forma alguma, de escassa gravidade, e, por outro lado, o tipo de crime em causa, atentas as necessidades urgentes de travar o aumento do mesmo, que se tem verificado, tem vindo a provocar na sociedade um sentimento generalizado de repúdio, a acrescer aos perigos que o cometimento do mesmo provocam.
9. Por tal facto a aplicação da pena de admoestação, in casu, colocaria precisamente em causa as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, ferindo o sentimento jurídico da comunidade.
10. Daí estar arredada a sua aplicação na situação vertente, em substituição da pena de multa.
11. Realçamos, que os factos cometidos pelo arguido não são, de forma alguma bagatelares, nem de escassa ou diminuta gravidade, e, porque são muito elevadas as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir, impõe-se a efectiva aplicação da pena de multa.
12. Mais, a confissão dos factos assume diminuto relevo atenuativo uma vez que o arguido foi detido em flagrante delito, por outro lado, o facto de não ter antecedentes criminais não corresponde a bom comportamento anterior, tendo apenas se provado que o arguido não tem averbada qualquer condenação criminal em Portugal (já que é cidadão brasileiro).
13. Por último, as circunstâncias que rodearam o crime de condução de veículo sem habilitação legal, que foram declaradas pelo arguido, encontrar-se atrasado, encontrando-se na posse do veículo que se encontra registado em nome de terceiro, ficando o mesmo na sua casa.
14. Assim, visto o preceituado nos artigos 71º, 40º e 47º, todos do Código Penal, considerando as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste domínio, o dolo directo, a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais em Portugal, a confissão integral, a sua situação pessoal, económica e financeira e os seus encargos pessoais, afigura-se-nos adequada e proporcional a pena de 80 (setenta) dias, à taxa diária de € 7,00 (sete euros).
15. Pelo exposto, a sentença deve ser revogada no que concerne ao teor da pena aplicada ao arguido e substituída por uma que condene o arguido em oitenta dias de multa à taxa diária de seis euros.
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O arguido apresentou resposta, pugnando no sentido de que deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida.
Remata com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O crime aqui em causa é o crime de condução sem habilitação legal, sendo que tal crime tutela bens jurídicos como a segurança (rodoviária), a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de outrem.
2. Dos autos não resulta provado que o Arguido causou perigo ou dano quer para si quer para terceiros. Aliás, o Arguido não chegou a sair da rua onde reside.
3. O Arguido apenas utilizou o motociclo por estar apavorado com a possibilidade de perder o emprego, tendo demonstrado um arrependimento profundo e sincero.
4. Da personalidade resulta que o Arguido é um jovem (com apenas 20 anos de idade), encontra-se bem enquadrado na sociedade, estudou tendo concluído o 12º ano, trabalha, reside com a progenitora e um irmão mais velho e sempre se manteve afastado da prática de crimes.
5. O Arguido compreendeu e interiorizou o desvalor da sua conduta isolada e irreflectida.
6. Da factualidade presente nos autos, salvo o devido respeito, inexistem factos susceptíveis de consubstanciar um juízo censurável ao ponto de justificar-se a aplicação de uma decisão diversa da proferida, pelo que não se vislumbra necessidade de aplicação de uma pena mais severa do que a aplicada.
7. Com efeito, encontram-se preenchidos os requisitos para aplicação da pena de Admoestação: a moldura penal, a ausência de dano, o juízo de prognose favorável neste caso em concreto (designadamente os contornos do presente caso: a fiscalização ocorreu na rua onde reside e tinha acabado de sair de casa, não ofereceu resistência, demonstrou-se profundamente arrependido dado tratar-se de um acto isolado e irreflectido, não colocou em causa os bens protegidos pelo crime em causa, a sua inserção na sociedade, o facto de ser primário e ainda o facto de nunca ter beneficiado de uma suspensão provisória do processo – apesar de in casu preencher os requisitos para o efeito!) e a ausência de condenação anterior.
8. Por tudo isto, deverá ser mantida a decisão recorrida por ter observado os requisitos legais e, acima de tudo, por se reputar como a sanção mais adequada e suficiente para satisfazer as finalidades da punição.
Termos em que deve a Douta Sentença recorrida manter-se inalterada.
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O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.
Cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Objeto do recurso
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, a única questão suscitada e a decidir prende-se em saber se a pena de admoestação aplicada ao arguido se mostra desadequada no caso concreto.
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Decidindo
O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo motociclo sem habilitação legal, previsto e punível pelas disposições conjugadas do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de admoestação.
O Ministério Público não questiona a decisão proferida em termos factuais nem o respetivo enquadramento jurídico, circunscrevendo a sua discordância apenas quanto à condenação do arguido em pena de admoestação, considerando adequada e proporcional, dadas as elevadas exigências de prevenção geral, o dolo directo, a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais em Portugal, a confissão integral, a sua situação pessoal, económica e financeira e os seus encargos pessoais, uma pena de multa que se situe sensivelmente nos 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros).
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.º 428.º do CPP, este Tribunal conhece de facto e de direito. Considerando a questão suscitada no recurso, apenas haverá que conhecer de direito.
A pena de admoestação, prevista no art.º 60.º do Código Penal, é uma pena de substituição de uma pena de multa[1] e consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal. Resumindo-se a uma mera advertência, ainda que solene, reveste carácter puramente simbólico, sendo … despida, se não de natureza aflitiva ( que ainda pode ser vista no carácter público da censura) em todo o caso de execução fáctica e real; e sobretudo, mostra-se estranha à cominação de à ameaça comum de mal futuro (que existe, v. g., na suspensão da execução da prisão) para a hipótese de com ela se não alcançar uma efectiva prevenção da reincidência [2]. Em suma, trata-se da mais benévola de todas as penas do vigente sistema penal, pois, ao contrário das restantes, não comporta para o condenado qualquer sacrifício efectivo, seja da sua liberdade, seja do seu património, (…) pelo que só deve ser aplicada em casos de notória pouca gravidade[3].
Os pressupostos de que depende a sua aplicação são os seguintes:
a) que a pena concreta aplicada seja de multa em medida não superior a 240 dias;
b) que o dano tenha sido reparado;
c) que o tribunal conclua, através de um juízo de prognose favorável, que com a admoestação se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Em regra, não será aplicada se o agente tiver sido condenado em qualquer pena, incluindo a admoestação, nos três anos anteriores ao facto.
No caso concreto, considerando a pena de multa aplicada ao arguido (80 dias) e a inexistência de danos a reparar, mostram-se verificados aqueles dois primeiros pressupostos. A inexistência de condenações anteriores também não constitui obstáculo à sua aplicação. Todavia, sendo o critério de aplicação da admoestação exclusivamente preventivo[4], atentas as necessidades preventivas gerais, não se mostra adequado aplicá-la no caso concreto em substituição da pena de multa. Com efeito, os crimes de rodoviários, embora pouco graves em termos de moldura penal abstracta, pela sua particular danosidade, no actual contexto social, colocam imperativos acrescidos de prevenção geral. Como refere o citado Ac. TRE de 22.10.2019, o crime por cuja prática o arguido foi condenado suscita fortes exigências de prevenção geral, não só pela frequência com que ocorre, mas sobretudo porque ainda se mostra deficientemente interiorizada pelos membros da nossa sociedade a ideia de que a exigência da carta de condução, para poder conduzir determinadas categorias de veículos, não é um mero formalismo burocrático, complicado e dispendioso, mas antes constitui um instrumento indispensável a garantir, na medida do possível, que uma actividade, que é, por natureza, geradora de perigo, só é exercida por quem reúne efectivamente as condições necessárias para o efeito.
Consequentemente, não se mostram reunidos os pressupostos de aplicação da pena de admoestação ao arguido.
Encontra-se devidamente fixada pelo Tribunal a quo a medida da pena de 80 dias de multa, medida essa que, aliás, não foi questionada.
Nos termos do previsto no n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal, considerando a situação económica e financeira do arguido (reside em Portugal há três anos, tem o 12.º ano de escolaridade, é solteiro, reside com a sua mãe e um irmão e trabalha como gestor de contatos, auferindo €635,00 por mês), fixa-se a taxa diária da multa em € 7,00.
Deve, pois, ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a condenação na pena de admoestação e condenando-se o arguido na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 7,00 euros, o que perfaz a quantia global de € 560,00.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência:
a) revogam a sentença recorrida na parte em que determinou a substituição da pena de 80 (oitenta) dias de multa por admoestação;
b) condenam o arguido na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz a quantia global de € 560,00 (quinhentos e sessenta euros).
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Sem custas.
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Porto, 3 de maio de 2023
José António Rodrigues da Cunha
William Themudo Gilman
Liliana de Páris Dias
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[1] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª edição atualizada, pág. 325;
[2] Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 385.
[3] TRE de 22.10.2019, relatado pelo Desembargador Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt.
[4] Paulo Pinto de Albuquerque, Loc. cit;