Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
917/21.9JAAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA
ARMA PROIBIDA
CRIME DE HOMICIDIO QUALIFICADO
MOTIVO TORPE
MOTIVO FÚTIL
DIMINUIÇÃO DA ILICITUDE
DIMINUIÇÃO DA CULPA
EMOÇÃO VIOLENTA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Nº do Documento: RP20230301917/21.9JAAVR.P1
Data do Acordão: 03/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (AUDIÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Comete o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 3º, nº 3, e 86º, nº1, al. c), da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, o arguido que, não estando legalmente autorizado a deter arma de fogo, a retirou da mão da vítima e de seguida, já sem o propósito de se defender, a apontou e disparou na direção da cabeça desta.
II - Não se verifica a circunstância qualificativa do homicídio, por motivo torpe ou fútil (art. 132.º, nº2, al. e), do Código Penal), quando a conduta do arguido insere-se no contexto de um desentendimento entre si e o assistente, em que este acaba por ter sido vítima do disparo efetuado pelo arguido com a arma de fogo que aquele trazia consigo e empunhou no decorrer da discussão, imediatamente após o arguido ter conseguido subtrair-lha durante a rixa.
III - Não há uma diminuição da ilicitude ou da culpa, que fundamente uma atenuação especial da pena, quando o agente, ao disparar, não procurou proteger qualquer bem jurídico do próprio e/ou de terceiro, antes intensificou o confronto com a vítima, prosseguindo a tiro contra a cabeça desta, quando prostrada no solo, já depois de a ver imobilizada por terceiro e após lhe ter sacado a arma de fogo que aquela empunhava.
IV - Nesse contexto, aquando do disparo efetuado pelo arguido, existe entre o facto injusto provocador da vítima e o facto ilícito provocado por aquele uma relação de desproporcionalidade que torna incompreensível a emoção violenta do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 917/21.9JAAVR.P1


Sumário:
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Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO
Após realização da audiência de julgamento no Processo nº 917/21.9JAAVR do Juízo Central Criminal de Aveiro - J5, foi em 28 de outubro de 2022 proferido acórdão, no qual se decidiu (transcrição):
1. Condenar o Arguido AA como autor dos seguintes crimes e respectivas penas:
2. Pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 131º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal, na pena de prisão de 6 (seis) anos e 3 (três) meses;
3. Pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3º, nº3, e 86º, nº1, al. c), da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de prisão de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses.
4. Em cúmulo jurídico das penas descritas em 2 e 3 condena-se o arguido AA na pena única de seis (6) anos e nove (9) meses de prisão.
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Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes
“Conclusões”, que se transcrevem:
1. Vem o ora Recorrente interpor recurso do acórdão proferido em 28 de outubro de 2022 que o condenou pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 131º, 132º, n.ºs 1 e 2 alínea e) do Código Penal na penaldeprisãode6 (seis)anos e 3(três)meses; e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 3º, nº 3 e 86º nº1 al. c) da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro na pena de prisão de 2(dois)anos e 6(seis) meses, fixando-se o cúmulo jurídico na pena única de prisão de seis (6) anos e nove (9) meses de prisão,.
2. Para tanto, vem impugnar ponto 3 da matéria de facto dada como provada e que assentou «3. Na sequência de tensão que se gerou, potenciada também pelo facto de os jovens terem já consumido várias bebidas alcoólicas, acompanhadas do consumo de substâncias estupefacientes, concretamente o arguido AA, BB e CC, levantaram-se com o intuito evidente de se envolverem em confronto físico com o DD e o amigo EE, o que acabou por suceder.»
3. Acontece que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não poderia o tribunal a quo ter retirado uma conclusão que pudesse justificar que tal facto fosse dado como assente.
4. Isto porque, é patente da descrição de todos os envolvidos na contenda que toda a situação se desenrola no seguimento da atuação do Ofendido, mormente das declarações do próprio ofendido, como transcritas nos pontos 9 e 10 da matéria recursiva e corroboradas pelas declarações das testemunhas BB e CC (pontos 14 e 19), todos confirmando que o Ofendido se fazia munir de arma de fogo de apontou na direção daqueles.
5. Daí que, inexistindo prova que pudesse contrapor-se à versão trazida pelos demais intervenientes, mal andou o Tribunal a quo em dar como provado aquele ponto (3) da matéria de facto dada como provada, motivo pelo que se impugna o ponto 3 da matéria de facto dada como provada, visto que tal ponto se considera incorretamente julgado, nos termos da alínea b) do n.º 3 doartigo412.ºdo C.P.P., em virtude de existir prova produzida nos autos que impõe decisão diversa da recorrida, devendo assim este ser dado como não provado.
6. No cumprimento do ónus da especificação a que se encontra obrigado o Recorrente, impugna o ponto 4 da matéria de facto dada como provada que prevê «4. Nesse quadro, tendo CC ficado na expectativa a escassos metros dos outros dois, BB colocou-se pelas costas do DD, enlaçando-o com um movimento semelhante ao golpe conhecido como “mata-leão”, por forma a conseguir manietar-lhe os braços, o que logrou.»
7. Acontece, igualmente, que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não poderia o tribunal a quo ter retirado uma conclusão que pudesse justificar que tal facto fosse dado como assente.
8. Isto porque nenhuma das versões trazidas pelas testemunhas são consonantes entre si, afirmando a própria testemunha BB que fez um “laço” ao Ofendido, à volta do pescoço, e afirmando a testemunha CC que aquele o agarrou pelos braços, de acordo com as declarações prestadas por ambos, constantes dos pontos 27 e 28 da matéria recursiva.
9. Acrescendo ainda a versão da testemunha EE, que além afirmou ter visto os 3 jovens a saltarem para cima do Ofendido.
10. Ora, conjugadas as declarações prestadas por todos os intervenientes, apura-se uma incerteza quanto à narrativa apresentada na acusação e que foi dada como provada pelo Tribunal a quo.
11. Apesar de umas versões serem mais plausíveis que outras, a verdade é que o Tribunal a quo não pode entre estas acolher uma como verdadeira, parecendo ter escolhido categoricamente qual das partes do testemunho merecia credibilidade, e que partes seriam dispensáveis para justificar a decisão recorrida.
12. Pois que quanto ao ponto4da matéria de facto dada como provada, efetivamente não pode permitir-se que o Tribunal a quo aí inclua as duas versões apresentadas por forma a “sanar” aquela matéria, tratando-se este de um ponto que se contraria entre si mesmo, numa tentativa de abarcar as duas versões mais convenientes, trazidas a juízo, por forma a sustentar a condenação do Recorrente.
13. Logo, tudo considerado, não poderia efetivamente o Tribunal a quo ter concluído pela prática daquele facto (relativo ao ponto 4 da matéria dada como provada) nos termos em que o fez.
14. Portanto, bem sabemos que o Tribunal de recurso sempre dirá que não poderá reverter a conclusão retirada pelo Tribunal recorrido, porquanto a livre apreciação da prova cabe verdadeiramente àquele, consequência da imediação da prova, sendo que se do raciocínio do Tribunal a quo não resultar nenhuma dúvida, não poderia suscitar-se o in dubio pro reo.
15. Todavia, deverá dar-se primazia à dúvida em sentido objetivo, querendo com isto dizer que, tal dúvida poderá ser detetada no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto da decisão proferida, conforme supra expôs o Recorrente.
16. Sendo a própria jurisprudência superior a afirmar que: “Faz todo o sentido afirmar-se que pode acontecer o tribunal recorrido considere, expressa ou implicitamente, não ter tido dúvidas, quando deveria tê-las, ocorrendo neste caso um vício na formação da convicção do Tribunal. Aqui deverá a questão ser analisada no âmbito de uma eventual violação do princípio da livre apreciação da prova do artigo 127.º CPP”, cfr. Ac. De Guimarães de 05.07.2021; processo 2/20.0GEBRG.G1.
17. Ora, em virtude de tudo quanto foi exposto relativamente àquele ponto da matéria de facto (4), resulta ainda uma clara violação do princípio da livre apreciação da prova, pois é claro e inequívoco que, face à prova produzida – tal como supra analisada – houve um claro vício na formação da convicção do Tribunal, que deu erradamente como provada matéria de facto, contrariando a dúvida que dali deveria obrigatoriamente ter subsistido.
18. Todos os depoimentos prestados trouxeram uma versão diferente dos factos, pelo que, para efeitos do 412.º n.º 3 alínea b) do CPP, impunha-se – e impõe-se – decisão diversa da recorrida, devendo ser dado tal facto como não provado.
19. O mesmo raciocínio se torna válido para a impugnação dos pontos 6, 8 e 11 da matéria de facto dada como provada, que se encontram intimamente relacionados com este ponto 4, pois acontece, igualmente, que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não poderia o tribunal a quo ter retirado uma conclusão que pudesse justificar que tal facto fosse dado como assente.
20. Dando aqui como provado o Tribunal a quo que o Recorrente «já na posse da aludida arma, encontrando-se então soerguido, apontou-a na direção da cabeça de DD e disparou, sem que, contudo, o tenha logrado atingir diretamente com o projétil disparado», sendo que das declarações do Recorrente, apesar daquele confessar que a arma disparou na sua mão, a verdade é que o próprio não tem perceção da trajetória que a bala tomou, conforme decorre das suas declarações transcritas no ponto 65 da matéria recursiva.
21. Restam assim as versões trazidas pelas testemunhas BB e CC, sendo que o primeiro estando mais próximo e de frente para o Recorrente não conseguiu perceber para onde foi direcionada a arma e o disparo; sendo que o segundo, estando atrás das costas do Recorrente afirma que aquele apontou a arma à cabeça do Ofendido, depois de todos terem caído ao chão.
22. Assim, e visto que a testemunha BB afirma lhe ter sido impossível observar para onde estaria direcionada a arma e que apenas ouviu o disparo, seria fisicamente impossível que o mesmo tivesse apontado e disparado em direção à cabeça do Ofendido, pois as lesões são na zona parietal do lado esquerdo, conforme relatado nos autos (relativo à informação clínica do Ofendido) e dado como assente na matéria provada, caso as lesões fossem fruto do disparo, a bala teria, obrigatoriamente, que atingir igualmente a testemunha BB, que se encontrava imediatamente atrás daquele.
23. Note-se que as declarações da testemunha CC acabam por ser, de certa forma, conduzidas de forma a que o mesmo concretize algo que o próprio diz não ter noção porque não estava mesmo perto.
24. Aqui chegados, entende o Recorrente que não pode – ou não podia -, tendo em consideração toda a prova produzida, o Tribunal a quo dar como provado o facto de que o ora Recorrente apontou na direção da cabeça do ofendido, visto que tal facto assenta tão somente numa parte específica do depoimento prestado pela testemunha CC, sendo que quanto ao demais teor daquilo por ele dito, não relevou ou considerou o Tribunal a quo, por não ser incriminador quanto à atuação do Recorrente.
25. Neste seguimento, não poderia também o Tribunal a quo formular, no ponto 8 da matéria de facto dada como provada, que aquelas lesões foram “consequências das agressões do arguido”, pois até então a única atuação do Recorrente alvo de censura jurídico-penal foram as ofensas à integridade física do Ofendido (relativamente à questão dos murros desferidos, factos por aquele confessados).
26. Mas por forma a melhor se compreender a impugnação deste ponto, terá que se fazer uma análise (e impugnação) conjunta com o ponto 11 da matéria de facto dada como provada onde, assustadoramente, o Tribunal a quo entende provado que as lesões sofridas pelo Ofendido são resultado do disparo (referido no ponto 6) alegadamente efetuado pelo Recorrente, com uma trajetória descendente.
27. Veja-se que, o Tribunal a quo, para dar como provado o ponto 11, que agora se impugna, baseia-se na prova produzida decorrente dos esclarecimentos prestados pela Dr.ª FF, constando da motivação da decisão recorrida que «(...) houve gases que passaram para o encéfalo do Ofendido, facto que afasta outra origem das lesões que não o disparo efetuado por aquele, nomeadamente uma queda, ou golpe com objeto contundente».
28. Contudo, não é isso que decorre dos esclarecimentos prestados por aquela perita médica.
29. Na verdade, foi aquela por diversas vezes questionada acerca do objeto que poderia ter causado aqueles danos, bem como se a mesma observou diretamente a lesão para poder apurar, e com que grau de certeza, as conclusões que foram exclusivamente formuladas pelo Tribunal a quo na decisão recorrida.
30. Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo fundamentou a matéria de facto tendo por base uma errónea interpretação dos esclarecimentos prestados pela senhora perita, visto que em momento algum veio aquela afirmar, sem qualquer margem de dúvida, que aquelas lesões foram consequência do embate de um projétil.
31. Na verdade, a mesma foi perentória em afirmar que o único contacto que teve com a lesão foi através de fotografia e que desse modo lhe seria de todo impossível sequer verificar as características concretasda lesão e até mesmo o sentido em que a mesma teria sido feita.
32. Ou seja, ainda que se admitindo tratar de uma lesão causada por disparo de arma de fogo, não pode o Tribunal a quo simplesmente substituir-se ao conhecimento técnico-científico da perita e afirmar, perentoriamente que a lesão foi provocada por uma trajetória descendente.
33. Em momento algum tal conclusão é corroborado por qualquer elemento de prova dos autos, muito menos pela perita em questão, sendo que mesmo confrontada com a possibilidade de ter-se tratado de um disparo tangencial, foi a própria a afirmar que só poderia ocorrer o resultado morte, mais concretizando que a lesão não é compatível com uma lesão típica de disparo de arma.
34. Ainda assim, após insistência do douto Tribunal, a perita admite meramente como possível essa hipótese, mas não garantindo, em momento algum, que seria a causa daquelas lesões, pois se reitera: a perita não esteve em contacto com aquela lesão, sendo a sua opinião técnica baseada meramente em fotografias da lesão.
35. O juízo técnico e científico inerente a uma prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, ficando o Tribunal sempre dependente do juízo pericial, devendo justificar fundamentadamente quando decide contra esse entendimento técnico especializado.
36. Veja-se a este respeito a jurisprudência superior da Relação de Évora de 03-06-2014; processo 1861/10.0TAPTM.E1:«Mas esta probabilidade mantém-se apenas como uma latência.
Em suma, a prova pericial é uma prova não absolutamente mas relativamente subtraída à livre apreciação do julgador (art. 163º do Código de Processo Penal); (...) na expressão conhecida de Cavaleiro Ferreira, “provável e provado são expressões antitéticas sob o ponto de vista jurídico”.
O tribunal deveria, pois, ter aqui permanecido na dúvida, resolvendo-a a favor do arguido de acordo com o princípio do in dubio pro reo.»
37. Assim, por todo o exposto, e com apoio jurisprudencial superior, mal andou o Tribunal a quo ao dar como provado que tais lesões foram consequência do disparo tangencial efetuado pelo ora Recorrente, com trajetória descendente.
38. Sempre se impondo que quando a estes pontos impugnados (6, 8 e 11) sempre se imporia a manutenção da dúvida, para o Tribunal a quo o que, forçosamente, resultaria numa absolvição do Recorrente.
39. Ora, e novamente, entende o Recorrente que no caso concreto deveria o Tribunal a quo ter concluído pela dúvida, devendo tê-lo absolvido (quanto àquele ponto) em consequência disso mesmo, isto porque, sempre poderá ser considerada a dúvida em sentido objetivo, remetendo-se para a mesma conclusão, conforma impugnação dos pontos supra da matéria de facto.
40. Os depoimentos prestados trouxeram uma versão diferente dos factos, ou completamente contrária àquilo que o Tribunal a quo verteu na sua fundamentação, pelo que, para efeitos do 412.º n.º 3 alínea b) do CPP, impunha-se – e impõe-se – decisão diversa da recorrida, devendo ser dado tal facto como não provado.
41. No cumprimento do ónus da especificação a que se encontra obrigado o Recorrente, impugna os pontos 15 a 17 da matéria de facto dada como provada e que ora se transcreve:
«15. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de desferir repetidos murros na cabeça do ofendido e, seguidamente, efectuando um disparo com arma de fogo na direção da cabeça do mesmo, tirar a vida ao ofendido, o que apenas não conseguiu por razões alheias à sua vontade, nomeadamente porque esta foi socorrida e intervencionada clinicamente em tempo útil.
16. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não está legalmente autorizado a deter armas de fogo.
17. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei»
42. Sendo que quanto a esta matéria sempre se terão a tecer considerações relativamente ao conhecimento (ou falta dele) de elementos do tipo que poderiam influir no conhecimento do Recorrente acerca da ilicitude da sua atuação.
43. Como decorre claramente das declarações do Recorrente, bem como das declarações prestadas pela testemunha BB e CC, o Recorrente em algum momento teve a consciência de que a arma em questão se trataria de uma arma de fogo verdadeira.
44. Aliás, é mesmo afirmado pela testemunha CC, como já supra se transcreveu no ponto 75 da matéria recursiva e se dá aqui integralmente reproduzido, que aquele estava convencido de que se tratava de uma arma de airsoft, sendo essa a mesma convicção da testemunha BB, cfr. Ponto 124 da matéria recursiva.
45. Ou seja, todos aqueles que intervieram (e assistiram) àqueles factos, percecionaram perfeita e claramente que o ora Recorrente em momento algum equacionou poder tratar-se de uma arma verdadeira.
46. E, apesar do Tribunal a quo fundamentar a sua decisão dizendo no mais que «para além de as armas daquela tipologia possuírem uma boca de cano colorido, e um peso não confundível com uma arma de fogo real (...) o Arguido teria que saber, como sabia, que a arma que empunhou para desferir o disparo retratado nos factos provados era uma arma de fogo real», não pode colher este entendimento, porque o Recorrente nunca tinha, até aquele momento, envergado uma arma de fogo, real ou não, pelo que seria impossível que o mesmo soubesse sequer se o peso entre aquelas diverge ou não, cfr. Ponto 131damatériarecursiva.
47. No mais, numa situação extrema daquele tipo, os níveis de adrenalina são tão elevados, que o Recorrente nunca estaria em condições de perceber o peso daquele objeto, muito menos não tendo qualquer termo de comparação para aferir a sua veracidade.
48. Contudo, face a todo o supra exposto, e a toda a prova produzida que imporia decisão diversa quanto à matéria de facto provada quanto aos factos impugnados, nunca poderia a factualidade vertida nos pontos 15 a 17 ser dada como provada, por se limitarem a factos conclusivos, consequência da anterior matéria assente.
49. Assim, ainda quanto a este ponto da matéria de facto, e numa perspetiva mais jurídica que fatual, o dolo do tipo não se basta com aquele conhecimento dos elementos típicos, mas exige ainda que “a prática do facto seja presidida por uma vontade dirigida à sua realização” (cfr. Figueiredo Dias, ob. Cit., pág. 366).
50. Assim, quanto à utilização e disparo da arma sempre se dirá que
«O erro excluirá o dolo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correta orientação da consciência-ética do agente para o desvalor do ilícito. Caso em que estaremos perante uma deficiência da consciência-psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, confirma o tipo específico de censura da negligência.
(...) sendo que o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artigo 17.º C. Penal, caso em que o afastamento da culpa ocorre quando a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável», cfr. Ac. Relação do Porto de 25-02-2015; processo 120/08.3GCBGC-A.G1.P1.
51. Ora, desconhecendo o Recorrente que se tratava de arma de fogo, e estando convencido tratar-se de uma arma falsa, o mesmo deveria tão somente ter sido condenado a título de negligência, sendo que quando a lei não o preveja, sempre deverá o Recorrente ser absolvido.
52. Contudo, admitindo-se a prática daquele ilícito, ainda que por mera hipótese académica, foi o Recorrente condenado numa pena de 2 anos e 6 meses de prisão, apesar de se encontrar prevista igualmente a pena de multa para aquele ilícito.
53. Ora, prevê o artigo 70.º do Código Penal que « Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.», rematando ainda a jurisprudência superior, mormente o Ac. Da Relação de Coimbra de 10.07.2018; processo 41/18.1PBCLD.C1, que «I – São elementos fundamentais da operação da escolha e determinação da pena a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente, portanto, fins de prevenção – geral e especial – por um lado, e a sua limitação pela medida da culpa do agente, por outro. II – Em síntese, pode dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84)»
54. Pelo que, no caso em apreço, o Recorrente não tem qualquer inscrição no seu CRC, sendo este o seu primeiro contacto com o sistema judiciário e prisional – em virtude da prisão preventiva no âmbito dos presentes autos – encontrando-se socialmente inserido em comunidade com valores positivos e sem ligação à prática de ilícitos.
55. Como logrou explanar-se, o Recorrente apenas percebeu a gravidade dos factos e que se tratava efetivamente de uma arma verdadeira, quando aquela disparou, e atendendo a toda a sua conduta após os factos, não parece ser de aplicar, quanto a este crime, uma pena detentiva da sua liberdade, por tudo quanto exposto.
56. Além das exigências de prevenção geral e especial já se encontrarem perfeitamente atenuadas, até porque o Recorrente já interiorizou o desvalor da sua conduta, ainda que no momento da prática dos factos não tivesse a consciência da sua ilicitude, e não se sendo a mesma exigível.
57. Ora, atendendo aos limites máximos e mínimos previstos para aquele ilícito, julgamos que mal terá andado o Tribunal a quo em fixar a pena nos 2 anos e 6 meses, ultrapassando em muito o mínimo legal da sanção de prisão (1 ano), e olvidando-se por completo à possibilidade de aplicar pena de multa.
58. Neste sentido, no que ao crime de detenção de arma proibida concerne, entende o Recorrente que se encontram reunidos todos os elementos que permitam a aplicação de uma pena de multa próxima do mínimo legal, visto que dessa forma se acautelarão todas as exigências de prevenção geral e especial, limitada pela medida da culpa.
59. Aqui chegados, importa fazer a análise dos elementos do tipo, passando a analisar-se as previsões dos artigos 131.º, e 132.º n.ºs 1 e 2 al. e) do C. Penal.
60. Ora, aqui, por maior que seja o esforço do Recorrente em tentar alcançar o raciocínio do Tribunal a quo, a verdade é que não consegue compreender a subsunção do caso concreto à sobredita alínea.
61. Isto porque, como resulta claramente da impugnação ampla da matéria de facto, não pode atender-se àqueles factos, por se impor uma diferente decisão, em virtude da prova produzida, mormente a supra transcrita e explorada.
62. O Recorrente temeu efetivamente pela sua integridade e dos demais amigos que o acompanhavam, tendo todos agido em consequência do temor que sentiram ao verem uma arma empunhada na sua direção: uns afastando-se do perigo, e outros enfrentando-o para se protegerem.
63. Não podendo o Recorrente deixar de tecer uma breve consideração ao facto de que, na verdade, a sua atuação não é individual e dependente só dassuaspróprias ações, visto que o Recorrente só agiu conforme explanou, em virtude da atuação da testemunha BB.
64. Pois que se aquele não tivesse intervindo ativamente naquelas circunstâncias de tempo e lugar, limitando os movimentos do Ofendido, sozinho o Recorrente nunca teria sequer conseguido afastar o perigo através da remoção da arma.
65. Feito o apontamento, entende o ora Recorrente que, ainda que considerando aquele ilícito em si, nunca se trataria de um crime na forma qualificada, mas tão somente na sua forma simples, pelo que, a moldura penal abstrata aplicável se fixaria entre os 8 e os 16 anos.
66. Ora, chamando à colação a forma tentada daquele ilícito, por via dos artigos 22.º e 23.º do Código Penal, impõe-se a atenuação especial da pena, sendo que para o efeito, de acordo com o disposto no artigo 73.º do Código Penal, em virtude desta atenuação especial, o limite máximo é reduzido de um terço, e o mínimo é reduzido a um quinto (por ser superior a 3 anos).
67. Pelo que se fixa a moldura penal abstrata entre 1 ano, 7 meses e 6 dias e os 10 anos e 8 meses.
68. Face a uma moldura penal abstrata bem mais baixa que aquela que foi considerada nos presentes autos, julgamos excessiva a aplicação de uma pena de prisão de 6 anos e 3 meses, por se encontrar bem acima do meio daquele leque temporal.
69. Pelo que, reiterando o supra aduzido, somos a concluir que, sempre deveria o Tribunal a quo ter condenado o aqui Recorrente numa pena próxima do mínimo legal.
70. Nesse sentido, urge atender aos critérios que são tidos em consideração pelo Tribunal de julgamento para a determinação da medida da pena, que se encontram devidamente ilustrados no artigo 71.º do Código Penal.
71. Assim, importa considerar, em primeiro lugar, que tal determinação não pode ultrapassar a medida da culpa do agente (artigo 40.º CP), devendo ter ainda em linha de conta as exigências de prevenção.
72. Já quanto às circunstâncias atendíveis em concreto, facto é que a execução daqueles factos teve por base uma comparticipação que nunca foi considerada em termos processuais nos presentes autos, tendo ainda assim o Recorrente agido sob uma circunstância de erro (relativamente à perigosidade da arma), não podendo dar-se como provado que o disparo tenha sido dirigido à vítima, considerando-se, para estes efeitos, que se tratou de um disparo acidental.
73. Sendo que anteriormente a esta situação o Recorrente nunca havia tido qualquer problema com a justiça, tendo sido este o primeiro contato com o meio jurisdicional e prisional, manifestando um enorme desgosto, apesar da interiorização da sua conduta.
74. No mais, o Recorrente, pese embora se tenha afastado do local, de imediato acionou as entidades competentes, tendo-se apresentado voluntária e quase imediatamente junto da Polícia Judiciária, ciente das suas responsabilidades.
75. Tendo ainda, em sede de audiência de discussão e julgamento - ainda que confrontado com o facto do Ofendido não ter memória de si – apresentado o seu sincero pedido de desculpas e disponibilizando-se para apoiar a vítima.
76. Neste sentido, parece-nos que, aplicando uma pena próxima ao mínimo legal e suspensa na sua execução (ainda que sujeita a regime de prova), estariam satisfeitas todas as exigências de prevenção geral e especial, bem como validade apreciadas todas as circunstâncias citadas.
77. De todo o modo, caso se entenda manter a qualificação jurídica por que veio aquele condenado, ainda assim, sempre poderiam lançar mão da previsão do artigo 72.º do Código Penal que concebe:
«1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. 2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta. 3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.»
78. Ora, atendendo a que, no caso em apreço, é o próprio Ofendido que se encontra munido de arma de fogo, não poderia aquele ingerir bebidas alcoólicas e, ainda assim,-lo, colocando-se também ele nunca situação em que incorreria em responsabilidade penal.
79. Assim, munido da arma e não evitando bebidas alcoólicas, empunhou a arma na direção do Arguido e demais testemunhas que sentiram receio pela sua integridade, por desconhecerem o Ofendido, pois nunca o tinham visto ali, agindo por impulso, como já supra se explanou, uns afastando-se e outros defendendo-se, como foi o caso do Recorrente e da testemunha BB.
80. Ainda assim, não é, nem pode ser de desconsiderar todas estas circunstâncias que levaram a que os factos ocorressem, e resultassem nas lesões sofridas pelo Ofendido, visto que o Recorrente não agiu por um simples capricho ou por um qualquer sentimento e impunidade.
81. Agiu, outrossim, convencido de que estava a ser ameaçado, e receando pela sua integridade, pelo que tal factualidade deveria então ser atendida nos termos daquela previsão leal, operando, simultaneamente uma nova atenuação da pena, não em virtude da forma tentada do crime, mas sim força das circunstâncias autonomamente previstas neste artigo.
82. Deste modo, passaríamos a balizar a moldura penal abstrata entre 1 mês de prisão e os 11 anos e 3 meses de prisão.
83. Ora, operando todo o raciocínio supra – válido aqui em toda a sua extensão -, culmina o Recorrente com o mesmo parecer, de que aplicando uma pena próxima ao mínimo legal e suspensa na sua execução (ainda que sujeita a regime de prova), estariam satisfeitas todas as exigências de prevenção geral e especial, bem como validade apreciadas todas as circunstâncias citadas.
Pelo exposto:
- Impugnam-se os pontos 3, 4, 6, 8, 11 e 15 a 17 da matéria de facto dada como provada, por impugnação ampla da matéria de facto, uma vez que tais pontos se considerarem incorretamente julgados, nos termos do art. 412º, nº3 do CPP, em virtude de existirem nos autos elementos probatórios que impõe decisão diversa da recorrida, devendo assim os mesmos serem dados como não provados.
NORMAS VIOLADAS OU INCORRETAMENTE APLICADAS
- Foi o artigo 127º do Código Penal incorretamente aplicado;
- Violou o Acórdão Recorrido o artigo 40º do Código Penal;
- Violou o Acórdão recorrido o artigo 71º do Código Penal
- Violou o Acórdão recorrido o artigo 32º da CRP do Código Penal
Nestes termos e nos demais de direito que certa e Doutamente Vexa (s) suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, devendo o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que como não provados os pontos 3, 4, 6, 8, 11 e 15 a 17 e em consequência:
a) Absolva o ora Recorrente do crime de homicídio qualificado na forma tentada;
b) Absolva o ora Recorrente do crime de detenção de arma proibida;
Caso assim não se entenda, e apenas por uma questão de mero patrocínio, sempre deverá o Acórdão recorrido ser substituído por outro que:
a) Condene o ora Recorrente pelo crime de homicídio simples na forma tentada p. e p. 22.º, 23.º e 131.º CP - (ou qualificada, na forma tentada especialmente atenuada artigo 72.º CP) e em consequência altere a pena aplicada por uma mais próxima do limite mínimo legal, suspensa na sua execução, mas sujeita ao regime de prova;
b) Condene o ora Recorrente pelo crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 3.º n.º 3 e 86.º n.º 1 al. c) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, em pena de multa, no cumprimento do artigo 70.º Código Penal”.
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O recurso foi regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que foi realizada audiência – mantendo os sujeitos processuais as posições já assumidas nos autos.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência dos recorrentes com a decisão impugnada,
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são:
1ª Da impugnação ampla da matéria de facto (art.412º, nº3, do CPP): pontos 3, 4, 6, 8, 11, 15, 16 e 17 dos factos provados;
2ª Do preenchimento do crime de detenção de arma proibida (erro sobre o preenchimento do tipo (arma real/falsa)
3ª Do preenchimento pelo arguido, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada.
3.1. Da atenuação especial da pena pelo crime de homicídio: ameaça/provocação da vítima;
4ª Da escolha e medida concreta da pena (prisão/multa) no crime de detenção de arma proibida;
4.1. Da medida concreta da pena de prisão pelo crime de homicídio e suspensão da sua execução (ainda que sujeita a regime de prova),
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Cumpre apreciar, tendo em conta
a fundamentação de facto, que é a seguinte (transcrição):
Factos provados
1. Na tarde do dia 19 de novembro de 2021, o ofendido DD e o seu amigo EE deslocaram-se ao Café ..., situado na Rua ..., na povoação de ..., concelho de Albergaria-a-Velha.
2. Após terem consumido algumas bebidas alcoólicas no interior do referido estabelecimento, quando saíram interagiram com um grupo de jovens que se encontrava numa das mesas da esplanada, trocando entre eles alguns impropérios, que rapidamente se tornaram provocações insultuosas mútuas.
3. Na sequência de tensão que se gerou, potenciada também pelo facto de os jovens terem já consumido várias bebidas alcoólicas, acompanhadas do consumo de substâncias estupefacientes, três deles, concretamente o arguido AA, BB e CC, levantaram-se com o intuitivo evidente de se envolverem em confronto físico com o DD e o amigo EE, o que acabou por suceder.
4. Nesse quadro, tendo CC ficado na expectativa a escassos metros dos outros dois, BB colocou-se pelas costas do DD, enlaçando-o com um movimento semelhante ao golpe conhecido como “mata-leão”, por forma a conseguir manietar-lhe os braços, o que logrou.
5. Assim se encontrando manietado o DD, acto contínuo, o arguido, encontrando-se de frente para o ofendido DD desferiu violentamente vários murros na parte lateral esquerda da cabeça dele, deixando-o atordoado, enquanto simultaneamente lhe retirou a arma de fogo – pistola marca HK, modelo P30, calibre 9 mm, com n.º de série ... que este, então, por motivos concretamente não apurados, trazia consigo.
6. Este envolvimento físico acabaria por provocar a queda do BB e do ofendido DD, sendo que, quando este se encontrava já prostrado no solo, depois de atingido com os murros na cabeça, o arguido AA, já na posse da aludida arma, encontrando-se então soerguido, apontou-a na direcção da cabeça de DD e disparou, sem que, contudo, o tenha logrado atingir directamente com o projétil disparado.
7. De seguida, o arguido abandonou o local na companhia dos amigos e atirou a arma para um terreno nas imediações, colocando-se em fuga utilizando uma viatura automóvel de marca Volkswagen.
8. Como consequências das agressões do arguido, o ofendido DD sofreu traumatismo craniano, com ferida de cerca de 7cm de comprimento na zona parietal do lado esquerdo, com perda e exposição de massa encefálica, com hemorragia de cerca de 1 litro, acabando por ser transportado para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) – Urgência Cirurgia Geral.
9. Nessa sequência, foram observadas múltiplas fracturas recentes em topografia frontal, temporal e occipital e parietal à esquerda, com desalinhamento em topografia parietal, importante solução de continuidade na calote parietal esquerda com múltiplas áreas espontaneamente hiperdensas nas partes moles epicranianas parietais esquerdas e intracranianas frontoparietais esquerdas.
10. As lesões traumáticas apresentadas denotam ter sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, sendo que do evento resultou, em concreto, perigo para a vida do examinado.
11. Mais, as lesões sofridas por DD são resultado do disparo referido em 6 dos factos provados, no caso em concreto da pistola da marca HK, modelo P30, 9mmx19, com o nº de série ... pertencente à própria vítima, efectuado pelo arguido, no momento em que o ofendido já se encontrava no chão, com uma trajectória descendente (de cima para baixo).
12. A que acrescem outras lesões ainda não estabilizadas a nível médico-legal, dado que a situação da vítima ainda não se encontrava, nem se encontra, estabilizada devendo ser submetido a novo exame após a data da alta das Consultas de Neurocirurgia do CHUC e Fisiatria no Centro de Reabilitação ..., permanecendo com lesões definitivas ainda não concretamente apuradas.
13. O ofendido, em virtude dos factos supra descritos, esteve internado no Serviço de Reabilitação Geral de Adultos do CMRRC – ... desde o dia 22 de março de 2022 ao dia 08 de abril de 2022, pelo motivo de internamento: reabilitação de sequelas secundárias a traumatismo directo por agressão infligida pelo arguido.
14. O arguido não é titular de licença de uso e porte de arma.
15. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de desferir repetidos murros na cabeça do ofendido e, seguidamente, efetuar um disparo com arma de fogo na direção da cabeça do mesmo, tirar a vida ao ofendido, o que apenas não conseguiu por razões alheias à sua vontade, nomeadamente porque esta foi socorrida e intervencionada clinicamente em tempo útil.
16. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não está legalmente autorizado a deter armas de fogo.
17. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Do relatório social do Arguido consta:
“I – Dados relevantes do processo de socialização
AA cresceu com os pais e um irmão (já autonomizado), na morada designada, sendo o pai operário fabril em alumínios (empresa própria, deste: designada de A... – sita em Albergaria-a-Velha) e a mãe é auxiliar de serviços gerais no Agrupamento de Escolas .... Neste contexto, o arguido desenvolveu laços de pertença e de afeto consistentes com os restantes elementos da família.
Na escola, foi um aluno pouco motivado, mas sem quaisquer problemas de comportamento, acabando por desistir no 6º ano de escolaridade.
Dedicou-se a trabalhar com o pai, na firma de caixilharias em alumínio, sendo o único funcionário desta empresa familiar, exercendo atividade laboral em serralharia de alumínios com regularidade.
Em idade própria, juntou-se como uma companheira, GG, funcionária do Hipermercado ... local, com qual vive em união de facto, na presente morada.
O arguido ocupava, em liberdade, os seus tempos livres em promoção musical, tendo hábitos de vidas regrados, essencialmente junto da família.
II - Condições sociais e pessoais
AA reside com a companheira (22 anos) e pais (ambos com 54 anos), na casa que é propriedade destes. A mesma tem dois pisos, com pátio, pequeno quintal e jardim nas frentes, encontrando-se subdividida em 3 quartos, sala, 2 wc e garagem.
A companheira tem um vencimento que ronda o ordenado mínimo mensal, a mãe e o pai obterão receitas mensais superiores, na globalidade, a cerca de €1.500,00 mensais.
O agregado reside numa moradia que se encontra devidamente paga, sendo as despesas inerentes a consumos de energia e comunicações.
No meio social, o arguido é reconhecido como uma pessoa trabalhadora e dedicada à família, sendo, todavia, este primeiro processo motivo de grande preocupação para as pessoas que lhe são próximas.
III – Impacto da situação jurídico-penal
AA encontra-se detido no EP ..., onde mantém visitas regulares da família.
O presente processo é o primeiro confronto do arguido com o Sistema da Administração da Justiça Penal, sentindo o arguido intimidação quanto às consequências que possam advir do mesmo.
No que concerne à natureza dos factos subjacentes ao mesmo, o arguido expressou-nos, em abstrato, juízo de censura. Para além disso, apresenta um raciocínio crítico de perceção quanto a eventual dano que supostos factos de idêntico teor possam provocar em eventuais vítimas.
No caso de condenação, encontra-se recetivo a uma eventual medida probatória, com acompanhamento destes Serviços da DGRSP.
IV – Conclusão
AA evidencia um padrão comportamento adequado à norma, eventualmente isento de conotação desviante, baseado em hábitos de trabalho regulares e orientação para a família, não obstante a ocorrência dos factos descritos no presente processo.
Assim, estamos em crer que, em caso de condenação, o arguido reunirá condições para cumprir eventual medida probatória com execução na comunidade, a qual necessariamente deverá contemplar acompanhamento, reforçando a consciência do desvalor da sua eventual conduta, obviamente, com a manutenção de entrevistas individuais e outras ações inerentes ao acompanhamento desta DGRSP.”
Certificado de registo criminal
18. O Arguido não apresenta antecedentes criminais.
19. O Arguido antes de ser preso auferia um salário mensal de cerca de 685€; não tem filhos e frequentou o 6º ano de escolaridade.
20. O Centro de Saúde do Baixo Vouga despendeu o valor de 106,00€ de assistência médica a DD, em virtude da agressão perpetrada pelo Arguido e acima descrita.
*
Factos não provados.
Não se provaram quaisquer outros enunciados de facto relevantes para a bondade da decisão, quer por resultarem em contrário aos acima constantes, quer por se traduzirem em juízos conclusivos, ou conceitos de direito.
Com efeito, não se provou que:
a) No facto provado em 5 o Arguido tenha segurado nas mãos um objecto metálico de características concretamente não apuradas.
*
Motivação da decisão de facto.
A motivação da decisão de facto tem como objectivo primacial o de aprimorar junto dos sujeitos processuais, de forma contundente, a força persuasiva do julgamento da matéria de facto. Ademais, é uma tarefa regida pelo princípio da livre apreciação da prova, tal como se encontra sufragado no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Nos termos do artigo 124º do CPP para a decisão de facto apenas relevam os factos juridicamente relevantes que se prendam com a existência ou inexistência de crime, a punibilidade ou não punibilidade do Arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis. Sendo que caso exista um pedido cível constituem igualmente objecto de cognição do Tribunal os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil.
Vale por dizer que qualquer outra alegação, seja da acusação, da(s) contestação(ões), do(s) pedido(s) cível(eis), ou resultante da audiência da causa, que não se prenda com aquele reduto fáctico será, a nosso ver, despicienda a nível de consagração na fundamentação de facto da sentença a proferir – cfr. art. 374º, nº2, do CPP.
No caso vertente, antes de mais, cumpre evidenciar que o Arguido, motu proprio, confirmou ter efectuado o disparo de arma de fogo a que se alude na matéria de facto provada e no circunstancialismo ali descrito. Sendo que, de acordo com as declarações que prestou, premiu o gatilho “por impulso”, estado convicto de que se trataria de uma arma “air-soft”.
DD, em depoimento isento e coerente, fruto das lesões que sofreu, referiu não se lembrar do circunstancialismo em que aquelas ocorreram, tendo, apenas, esclarecido o seu trajecto hospitalar e de recuperação, o qual ainda não cessou, na medida em que mantém fisioterapia, terapia ocupacional e de fala. Ademais, acrescentou não se lembrar porque motivo é que, na altura dos factos, se encontrava armado.
No que respeita à dinâmica dos factos, atendemos ao depoimento de CC. Com efeito, em depoimento sentido pelo circunstancialismo daqueles, mas de forma directa, foi peremptório em afirmar que houve o desentendimento referido na matéria de facto provada, que o Arguido, no decurso do mesmo, advertiu que DD estava armado. Aliás, o mesmo tinha puxado a culatra da arma. E por esse facto “saiu disparado em direcção ao mesmo”. Após ter desarmado o Ofendido, com recurso a murro, e se ter apropriado da arma, o Arguido apontou-a em direcção à cabeça daquele e disparou.
Esta dinâmica não foi infirmada por EE, o qual referiu que o Arguido e demais jovens “saltaram para cima do DD e ouviu uma detonação”.
Na mesma esteira, BB confirmou que houve o apontado desentendimento, durante o qual o Arguido, CC, e a sua pessoa, se dirigiram a DD, o qual puxou e destravou a arma. Nessa altura, estando todos de pé, efectuou um movimento tipo “mata-leão” ao Ofendido, o Arguido desferiu “três murros” neste, o qual não ofereceu resistência, e agarrou-lhe na arma. Então, ocorreu o disparo.
O depoimento de HH não infirmou aquela factualidade, nem as declarações de EE, o qual, após ouvir a detonação, entrou em pânico e fugiu do local, tal como os demais.
No que respeita ao mais, inexistem dúvidas de que o disparo de arma de fogo efectuado pelo Arguido atingiu DD. Porém, não o atingiu directamente, tal como resultou do relatório pericial de fls. 793, em conjugação com os esclarecimentos prestados por FF, mas de forma tangencial relativamente aos tecidos atingidos. Aliás, tal como evidenciado pela Exma. Perita Médica, houve gases que passaram para o encéfalo do Ofendido, facto que afasta outra origem das lesões que não o disparo efectuado por aquele, nomeadamente uma queda, ou golpe com objecto contundente. Aliás, de notar que não se demonstrou que o Arguido tenha empunhado uma soqueira, ou qualquer outro objecto contundente, e com estes tenha desferido qualquer golpe, com excepção dos já referidos “murros” (veja-se que o Arguido não apresentava lesões nas mãos – cfr. relatório pericial de fls. 244). Vale por dizer que o disparo realizado por AA provocou no Ofendido as lesões crânioencefálicas descritas nos respectivos relatórios periciais. As quais, como aquela Perita evidenciou (cfr. também fls. 799), ainda não se mostram completamente consolidadas.
De outro prisma, resulta à saciedade que o Arguido efectivamente apontou a arma de fogo à cabeça daquele e premiu o gatilho, que, note-se, tal como esclarecido por II, Inspector da Polícia Judiciária, e também instrutor de tiro, apresenta um peso ou resistência bastante considerável, o que permite afastar um disparo acidental, tal como referido pelo Arguido, ao afirmar que “abanou” a arma e esta disparou.
Por outro lado, não se olvida que o Arguido referiu que a apontada arma se trataria de uma arma air-soft. Contudo, as próprias declarações do mesmo, e dos demais intervenientes na altercação, bem como a dinâmica desta, infirmam tal alegação.
Na verdade, para além de as armas daquela tipologia possuírem uma boca de cano colorida, e um peso não confundível com uma arma de fogo real, tal como o Sr. Inspector II afirmou, o facto é que o Arguido e BB pretenderam, desde logo, desarmar o Ofendido. Assim, caso fosse uma arma não letal, não existiria tal premência.
Ademais, quer BB, quer CC, reputaram tal arma como verdadeira, como efectivamente era, não subsistindo razões para que o Arguido pensasse de forma diferente. Aliás, HH referiu que aquele reputou o Ofendido, e amigo deste (EE), como sendo polícias. Ou seja, mais uma razão para não considerar a referida arma como “air-soft”.
Por tudo isto, o Arguido teria que saber, como sabia, que a arma que empunhou para desferir o disparo retratado nos factos provados era uma arma de fogo real. Mas, hipótese que se coloca para mero efeito de raciocínio, sem conceder, mesmo que tivesse essa dúvida, que não tinha, nunca seria de disparar uma arma em direcção à cabeça de um terceiro enquanto tal dúvida persistisse…
Assim, do desenho traçado por todos os elementos probatórios constantes nos autos, dúvidas não subsistem de que o Arguido pretendeu objectivamente atentar contra a vida de DD, facto a que não poderia estar alheio pelas características letais da arma que disparou.
Vale por dizer que o Tribunal não ficou com qualquer dúvida de que o Arguido claramente visou atingir a vida daquele, o que não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade.
De outro vector, o Arguido sabia que não estava legalmente autorizado a empunhar uma arma de fogo, face à ausência de licença administrativa para o efeito, facto que é do conhecimento do cidadão médio comum.
Como tal, os factos atinentes aos elementos subjectivos dos crimes alicerçaram-se nas regras da experiência comum, em conjugação com a experiência de vida que o Arguido possui, a qual, claramente, inculca a noção dos crimes em causa.
O certificado de registo criminal foi preponderante para fixar a ausência de antecedentes criminais; e o relatório social para atestar as condições pessoais de vida do
Arguido, o qual também as pormenorizou, tal como as testemunhas JJ, KK e GG.
Os factos provados de 8 a 13 estribaram-se nos relatórios periciais e informações clínicas constantes dos autos e infra descritas, os quais permitiram aquilatar a sua veracidade. Sendo que a não estabilização das lesões sofridas por DD ancorou-se no relatório pericial de fls. 793, em conjugação com os esclarecimentos prestados por FF. Bem como do depoimento prestado por LL.
Por último, como já se referiu, foram devidamente ponderados os seguintes elementos probatórios:
§ Auto de inspecção judiciária de fls. 4 e segs. relativamente aos vestígios encontrados no local dos factos;
§ Documento fotográfico de fls. 13;
§ Reportagem fotográfica de fls. 14 e segs.;
§ Informações clínicas de fls. 77 e segs.;
§ Auto de apreensão de fls. 25, relativamente à arma Heckler&Koch, modelo P30, de 9mm, e munições aí descritas;
§ Autos de apreensão de fls. 130 e 140;
§ Auto de exame directo de fls. 159 relativo à arma Heckler&Koch P30 descrita nos factos provados;
§ Termo de entrega de fls. 166;
§ Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 224v de DD;
§ Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 244 de AA;
§ Elementos clínicos de fls. 264 e segs.;
§ Auto de exame directo a arma de fls. 293;
§ Reportagem fotográfica de fls. 304 e segs.;
§ Relatório de exame pericial de fls. 401 e segs., relativamente a vestígios deixados no local;
§ Relato de diligência externa de fls. 450;
§ Auto de busca e apreensão de fls. 462 (relativo a AA);
§ Ficha CODU de fls. 650 da qual resulta que foram usados os números ... (às 17h32m) e ... (às 17h41m) para solicitar auxílio, bem como a ficha de observação médica emitida pelo Médico ao serviço da VMER;
§ Reportagem fotográfica de fls. 658 e segs.;
§ Relatório de exame pericial de fls. 664 – veículo de matrícula ..-GJ-..;
§ Auto de transcrição de chamadas de fls. 753 e segs.;
§ Reportagem fotográfica a ferimentos de DD, de fls. 759;
§ Informação clínica do CMRRC – ..., de fls. 764;
§ Relatório Pericial de Balística de fls. 771;
§ Relatório Pericial de Criminalística Biológica, de fls. 786;
§ Relatórios Periciais de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, de fls. 793;
§ Informação clínica de fls. 906 e 919 e segs.;
§ Relatório Pericial de fls. 941;
§ Certidão de dívida de fls. 985, da qual resulta que o Centro de Saúde do Baixo Vouga despendeu o valor de 106,00€ de assistência médica a DD, em virtude da agressão perpetrada pelo Arguido e descrita nos factos provados.
§ Documentos de fls. 1038v.”
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Passando para a análise das questões suscitadas:
3. Da impugnação ampla da matéria de facto (art.412º, nº3, do CPP): pontos 3, 4, 6, 8, 11, 15, 16 e 17 dos factos provados;
Ao abrigo do disposto no art.412º, n.º 3, do Código Processo Penal, convocando o princípio de livre apreciação da prova consagrado no art 127.º Código de Processo Penal, e o princípio in dubio pro reo, previsto no art.32º da C.R.P., o arguido impugnou a decisão sobre os pontos 3, 4, 6, 8, 11, 15, 16 e 17 dos factos provados.
Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos:
1º no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do Código Processo Penal (diploma a que pertencem as disposições que, doravante, vierem a ser citadas sem indicação de origem), cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento, a chamada revista alargada;
2º) na impugnação ampla, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nºs 3, 4 e 6, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Vejamos, pois, este modo de sindicância da matéria de facto, invocado pelo recorrente arguido.
Nos termos do art. 428º, nº 1, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o art.412º, nº 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
As provas que devem ser renovadas.”.
No nº 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
E no nº 6 “No caso previsto no nº 4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa”.
Quanto a esta última modalidade de impugnação impõe-se pois ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa.
Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Posto isto, cabe referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso [1].
Com efeito, o recurso da matéria de facto não representa um novo julgamento (o que só ocorre nos casos restritos de renovação da prova em segunda instância, nos termos do art.430º).
A impugnação da matéria de facto constitui um meio de reparar eventuais vícios de julgamento em primeira instância, tendo sempre em atenção que neste último o tribunal dispõe da oralidade e da imediação como princípios basilares na recolha dos elementos probatórios e, por isso, em melhores condições de avaliar a validade e a credibilidade de um documento, ou de um depoimento, quer de um declarante, quer de uma testemunha, quer mesmo de um arguido.
O juízo de credibilidade das provas oralmente produzidas depende logicamente do carácter, da postura e da integridade moral de quem as presta, não sendo tais qualidades apreensíveis mediante leitura, exame e análise das peças processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas.
Daí que, por regra, o tribunal de recurso deva adotar o juízo valorativo formulado pelo e no tribunal a quo [2].
Retomando o caso dos autos, com os olhos balanceados entre as especificações exigidas pelo art.412º, nº3, e a alegação recursiva, o recorrente dá cumprimento àquelas.
Aqui chegados, recordam-se os factos provados sujeitos a impugnação probatória do recorrente, em torno da questão de saber se a prova produzida e/ou examinada em julgamento, designadamente aquela especificada pelo recorrente, impõe decisão diversa.
Vejamos, então, os pontos 3, 4, 6, 8, 11, 15, 16 e 17 dos factos provados.
Ouvidas as declarações dos cinco intervenientes, com conhecimento direto sobre os factos, resulta das mesmas que a vítima DD (assistente) e o seu companheiro de ocasião, a testemunha EE , nada esclareceram sobre a dinâmica dos factos, afirmando não se recordarem ou nada saberem explicar sobre a motivação e desenrolar dos mesmos, o que também se percebe num claro comprometimento com a posse e exibição da arma por parte da vítima nas referidas circunstâncias.
Na verdade, nenhuma razão existe para a testemunha EE afirmar pouco mais do que nada saber, recordar ou explicar, nem a vítima ignorar totalmente o sucedido, numa amnésia que não o impediu de discorrer fluentemente sobre o funcionamento e características da sua arma e respetivo carregador.
Daí que, na medida em que se mostre plausível, o tribunal a quo devesse atender, à luz da livre apreciação da prova (art.127º, do Código Processo Penal), ao depoimento do arguido e dos seus dois companheiros de ocasião, conjugado com as regras da experiência comum e a prova pericial (relatório e esclarecimentos médico-legais da perita, Dra FF)).
Neste sentido, o arguido AA e os seus companheiros de ocasião, BB e e CC foram consensuais quanto ao facto de os três apenas se terem levantado após a vítima tirar a arma debaixo da camisola, puxar a culatra atrás e mantê-la empunhada, embora o último negasse que a tivesse chegado apontar na direção de qualquer deles, ao contrário daqueles outros que afirmaram tê-la apontado para si.
Contudo, os três concordaram que a reação imediata do arguido e da testemunha BB se dirigiu apenas à vítima, o que se compreende em razão deste empunhar a arma, e não também à testemunha EE, sendo que este excluiu ter sido alvo da reação daqueles.
Os três concordaram ainda que a testemunha CC, não obstante se ter levantado da cadeira, ficou ligeiramente recuado a observar os restantes.
Dito isto, impõe-se corrigir o ponto 3. de modo a ler-se que na sequência de tensão que se gerou, potenciada também pelo facto de os jovens terem já consumido bebidas alcoólicas e substâncias estupefacientes, o assistente retirou da cintura a pistola apreendida, marca HK, modelo P30, calibre 9 mm, com n.º de série ..., e empunhou-a.
Nesse instante o arguido AA e as testemunhas BB e CC levantaram-se.
De imediato, enquanto o arguido e a testemunha BB avançaram para o assistente, a fim de o confrontarem fisicamente, a testemunha CC ficou recuado a escassos metros daqueles. Nesse momento, a testemunha BB colocou-se pelas costas do assistente, enlaçando e apertando com força o pescoço deste com os seus braços, por forma a conseguir imobiliza-lo, o que conseguiu.
Do referido depoimento do arguido e das testemunhas CC e BB, este último especialmente a partir das declarações prestadas em fase de inquérito logo no dia 24.11.2021 a fls.200 ss (validamente lidas em julgamento a fls.1176 verso), mais resultou que ato continuo, o arguido, encontrando-se de frente para o assistente, agarrou-lhe a mão que empunhava a arma e com outra das mãos desferiu-lhe violentamente três murros na parte lateral esquerda da cabeça, o que provocou a queda no chão da testemunha BB e do assistente.
A mesma dinâmica da atuação do arguido é corroborada no essencial pelas testemunhas BB e CC na reconstituição de facto de fls.674 ss e 685ss.
Nesse momento, o arguido retirou ao assistente a arma de fogo que trazia consigo e, quando este se encontrava prostrado no solo, o arguido, encontrando-se então soerguido, apontou-a na direção da cabeça do assistente e efetuou um disparo, atingindo-o com o projétil na zona parietal do lado esquerdo.
Repare-se que a testemunha BB, em declarações no inquérito no dia 24.11.2021 a fls.203-4 (validamente lidas em julgamento), afirmou ter visto o arguido apontar a arma ao assistente, com este tombado no chão, e disparar, logo vendo sair sangue da cabeça da vítima. Já a testemunha CC confirmou e repetiu, inclusivamente a instâncias da defesa, que o arguido apontou e disparou na direção da cabeça da vítima, onde – diga-se – a atingiu.
Naturalmente que a circunstância da testemunha BB se encontrar muito próximo da vítima não significa que estivesse necessariamente, como felizmente não estava, na trajetória da bala, donde não ter sido alvejado.
A deformação/achatamento completo do pedaço de chumbo (projétil) encontrado na estrada, a escassos metros do local onde ficou prostrada a vítima, confirma o impacto daquele no chão (superfície dura), tudo como se observa no relatório de inspeção ao local e balístico de fls.450-8 e fl.771 ss, sendo que o invólucro daquele foi encontrado junto da vítima (foto fls.410-1).
A propósito o arguido afirmou que o BB contornou a vítima pelo lado esquerdo 9´32´´, posicionando-se nas costas daquela 4´50´´, enquanto a vítima permanecia com a arma apontada ao arguido 5´, tendo o BB feito um mata leão à vítima e na envolvência ficam em desequilíbrio para trás 6´28´´ , enquanto o arguido agarra com a sua mão na mão da vítima 6´37´´ que tinha a arma e afasta-a para o lado 9´44´´ e dá-lhe um soco na cara lado esquerdo 18´30´´ e tenta tira-lhe arma, mas não conseguiu, continuando o BB a fazer o mata leão 10´, eles desequilibram-se e caiem para trás no chão e o arguido tira a arma à vítima, 10´06´´ .
No essencial este relato coincide com a narração da testemunha BB, esclarecendo este quer em julgamento quer em inquérito a fls.200 ss (lidas em julgamento) que foram pelo menos três murros aqueles que o arguido desferiu na vítima naquele momento.
Com efeito, referiu a testemunha BB que o arguido AA foi pelo lado direito e agarrou-lhe a arma e disse isso é air soft 14´19´´ a 14 ´53´´. Enquanto isso o BB foi pelo lado esquerdo e laçou o pescoço da vítima pelas costas com o seu braço direito e apertou-o para o segurar 15´18´´ a 15´33´´ e 17´30´´, sem que a vítima tivesse resistido e oferecido dificuldade à testemunha para o segurar 16´12´´, insistindo a testemunha para o AA lhe tirar a arma, ao que o AA lhe deu três murros na cara 16´46´´ a 17´.
Estava a tentar tombar a vítima no chão, já depois do arguido lhe ter dito que tinha a arma consigo, quando ouviu um disparo e viu clarão à sua frente 18´00´´ a 18´22´´.
Confrontado com as declarações de fls.200 ss de 24.11.2021 (lidas em julgamento) confirmou o respetivo teor e disse que tudo se passou como então declarou 1´30´´
Terminou reiterando que a vítima não ofereceu resistência ao mata-leão 14´
Também a testemunha CC confirmou o momento e posição do arguido e da vítima quando aquele lhe desferiu um murro, tendo esta tombado no chão e o arguido sacado a arma, após o que a apontou à cabeça da vítima e disparou.
De qualquer modo, a testemunha CC acrescentou que a vítima não chegou apontar a arma a ninguém, mas apenas a mostrou após tirá-la da cintura, pois nem teve tempo para a apontar dada a curta distância de todos e a reação imediata do AA e BB sobre ele.
De resto, a perita médico legal, Dra FF foi repetidamente instada, na sequência do relatório pericial por si elaborado de fls.901-904, sobre a compatibilidade da lesão ter sido produzida por arma de fogo 5´40´´.
Referiu que a lesão visível nas fotos de fls. 759-761 não é tipicamente resultante do disparo de projétil de uma arma de fogo 6´, referindo-se a um disparo direto e não tangencial.
A imagem típica da lesão resultante de um impacto direto de projétil é uma imagem estrelada com queimadura no rebordo 19´20´´ a 19´50´´ e isso não era visível nas fotos - disse.
Esclareceu mesmo que em resultado da curta distância do disparo e da energia da arma (identificada no seu relatório a fls.903 verso), a vítima não sobrevivia se tivesse sofrido o disparo de um projétil direto na cabeça.
Daí que a lesão retratada nas fotos, acrescentou, a ter sido provocada pelo projétil, o disparo terá sido tangencial, até porque não tinha qualquer projétil no interior e nunca sobrevivia porque a arma tem muito energia associada ao disparo 6,44´´ a 7´40´´.
Foi, portanto, neste sentido que a perita explicou que a morfologia da lesão não tem nada a ver com a morfologia das lesões típicas do disparo direto da arma de fogo. A gravidade da lesão indicia ter sido provocada por objeto pesado ou com uma energia muito intensa 8´20´´.
Daí ter excluído a possibilidade de a lesão resultar de murros desferidos por alguém, ainda que utilizando uma soqueira 11´32´´ ou mesmo com impacto da própria arma até porque esta não tinha vestígios de sangue nem cabelos da vítima ou outros vestígios biológicos da vítima. A arma estava limpa de vestígios 12´14´´ a 12.45´´. Afirmou também ser impossível esta lesão resultar de uma queda (embate da cabeça no chão) 14´45´´ e 15´09´´.
O impacto foi tão grande que fraturou o crânio, projetando fragmentos de ossos para o interior do crânio e com afundamento deste. Os murros não provocam este tipo de lesão 13´08´´ a 13´29´´ e 15´09´´
Em conjugação com a informação balística sobre as características e energia da arma, a energia que anima um projétil tangencial podia causar por si só essa lesão 15´51´´.
Repare-se que a perita em causa sempre admitiu essa possibilidade com forte probabilidade, desde logo no seu relatório, a margem de quaisquer sugestões afirmadas pelo recorrente, mas que não existiram.
Neste caso houve gases, coleções gasosas na terminologia do relatório clínico dos CHUC de 19.11.2021 de fls.78, que passaram para o interior do encéfalo 20´05´´ (pneumoencéfalo), os quais – explicou - podem ou não ser provocados pelo disparo, pois a lesão traumática deixa entrar ar mesmo quando não provocada por projétil 20´23´´. Há entrada de ar numa ferida aberta 20´33´´ que pode resultar do disparo tangencial 21´
Tudo visto, sem que a prova produzida e examinada em julgamento permita concluir pela existência de outra causa minimamente plausível, nenhuma dúvida séria e fundada oferece a imputação da lesão retratada nas fotos ao disparo confessadamente efetuado pelo arguido com a arma de fogo apreendida.
Pelo menos é essa a única convicção que encontra suporte bastante na prova, não se vislumbrando qualquer erro de julgamento do tribunal a quo sobre esse facto.
A morfologia da lesão é perfeitamente compatível com o disparo efetuado pelo arguido com a energia daquela arma, numa trajetória descendente na direção da cabeça da vítima prostrada no chão, como referido pelas testemunhas BB e CC.
Assim, em consequência direta e necessária do disparo efetuado pelo arguido, o assistente sofreu o traumatismo craniano com ferida de cerca de 7cm de comprimento na zona parietal do lado esquerdo, com perda e exposição de massa encefálica, com hemorragia de cerca de 1 litro, bem assim múltiplas fraturas visíveis em topografia frontal, temporal e occipital e parietal à esquerda, com desalinhamento em topografia parietal, importante solução de continuidade na calote parietal esquerda com múltiplas áreas espontaneamente hiperdensas nas partes moles epicranianas parietais esquerdas e intracranianas frontoparietais esquerdas.
Em face disto, haverão de se reformular os pontos 8º e 9º dos factos provados em consonância com o ponto 11º.
Com efeito, como sobredito, tais lesões traumáticas foram causadas pelo projétil disparado pelo arguido, sendo que do evento resultou, conforme referido no relatório médico legal e pela perita Dra FF 13´40´´ a 14´15´´ em julgamento, perigo concreto para a vida do assistente, havendo assim de se reformular o ponto 10º dos factos provados em consonância com o ponto 11º.
Atenta a gravidade das lesões, ao perigo concreto para a vida apenas não sobreveio a morte do assistente, por razões alheias à vontade do arguido, nomeadamente porque aquele foi socorrido e intervencionado clinicamente em tempo útil.
Indubitável é que o arguido disparou contra a cabeça da vítima, sendo irrelevante se o impacto foi ou não em cheio, dele resultando traumatismo e afundamento provocado pelo projétil.
É claro que o arguido afirmou julgar, até disparar, tratar-se de uma arma air soft. O arguido e os dois companheiros de ocasião esforçaram-se em julgamento por tentar convencer disso mesmo, a ponto que o cuidado e insistência na relatada invocação pelo arguido de se tratar de uma arma air soft (antes do disparo) e de uma arma real (após aquele) não é lógica, nem natural à luz das regras da experiência comum, no contexto e desenrolar daquele episódio violento.
Ademais, o arguido confirmou ter atuado impulsivamente ao disparar 13´30´´ a 14´, ora querendo convencer que ficou assustado quando viu a arma, ora querendo persuadir de estar convencido de se tratar de uma arma air soft.
Na verdade, tanto afirmou que estava convencido que era uma arma air soft 13,30 a 14´, como disse que, quando disparou a vítima estava tombada e o BB meio sentado atras daquele 17´ e disse hei…este gajo vem para aqui com uma arma verdadeira 19´37´´
Mas, não convence sobretudo a explicação dada pelo arguido quando quis convencer daquela primeira versão, afirmando pensar que era uma arma air soft 10´20´´ porque nunca pensou que alguém, em plena luz do dia, pudesse levar uma arma verdadeira para o café 10´38´´ a 11´30´´, mas sem adiantar qualquer explicação para não lhe ter ocorrido que era uma arma verdadeira.
Contudo, o raciocínio lógico dedutivo expresso na motivação do acórdão, quando infirma essa alegação, com o qual aqui se concorda inteiramente, é perfeitamente inteligível, congruente e consistente.
Finalmente, quanto aos elementos subjetivos dos crimes e consciência da sua ilicitude, como defendido no acórdão, os mesmos inferem-se das regras da experiência comum em face do comportamento do arguido.
No mais, sobre a dinâmica completa da agressão, descritos os depoimentos do arguido e das testemunhas BB e CC, conjugados com a prova pericial em especial a balística e a médico legal, o tribunal a quo fundamentou profusamente a factualidade dada como provada e não provada em termos que se concorda, com as correções aqui expostas, de modo a ultrapassar nessa parte a razoabilidade de uma qualquer dúvida séria e fundada a esse respeito.
A concatenação de toda a prova produzida e ouvida, incluída aquela especificada pelo recorrente, permite formar convicção segura de que os factos ocorreram nos precisos termos, sequência, circunstâncias e modo dado como provado, com a alteração factual aqui adiantada.
Alterações de facto não substanciais, por se tratar da concretização de factos já provados, sem desfavor do arguido ou por este alegados em julgamento e mesmo no seu recurso.
Aquele manancial probatório não permite censurar, entenda-se reparar, além das correções efetuadas, à luz do princípio da livre apreciação da prova (art.127º, do Código Processo Penal), a factualidade dada como demonstrada pelo tribunal a quo, a partir da análise critica vertida na sua decisão.
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Pelo exposto, procedendo em parte a pretensão recursiva, por constarem do processo todos os elementos de prova que lhe servem de base, nos termos do art.431º, al.s a) e b), do Código Processo Penal, corrigindo o apontado erro de julgamento, em conformidade com o explanado juízo probatório,
reformula-se a decisão de facto nos termos seguintes
(a itálico constam as alterações introduzidas, para mais fácil perceção e correspondência com as modificações introduzidas):
Factos provados
1. Na tarde do dia 19 de novembro de 2021, o ofendido DD e o seu amigo EE deslocaram-se ao Café ..., situado na Rua ..., na povoação de ..., concelho de Albergaria-a-Velha.
2. Após terem consumido algumas bebidas alcoólicas no interior do referido estabelecimento, quando saíram interagiram com um grupo de jovens que se encontrava numa das mesas da esplanada, trocando entre eles alguns impropérios, que rapidamente se tornaram provocações insultuosas mútuas.
3. Na sequência de tensão que se gerou, potenciada também pelo facto de os três jovens terem já consumido bebidas alcoólicas e substâncias estupefacientes, o assistente retirou da cintura a pistola apreendida, marca HK, modelo P30, calibre 9 mm, com n.º de série ..., e empunhou-a. Nesse instante o arguido AA e as testemunhas BB e CC levantaram-se.
4. De imediato, enquanto o arguido e a testemunha BB avançaram para o assistente, a fim de o confrontarem fisicamente, a testemunha CC ficou recuado a escassos metros daqueles. Nesse momento, a testemunha BB colocou-se pelas costas do assistente, enlaçando e apertando-lhe com força o pescoço com os seus braços, por forma a conseguir, como conseguiu, imobilizá-lo.
5. Ato contínuo, o arguido, encontrando-se de frente para o assistente, agarrou-lhe a mão que empunhava a arma e com outra das mãos desferiu-lhe violentamente três murros na parte lateral esquerda da cabeça, o que provocou a queda no chão da testemunha BB e do assistente. Nesse momento, o arguido retirou ao assistente a arma de fogo que trazia consigo.
6. De imediato, quando o assistente se encontrava prostrado no solo, o arguido, encontrando-se então soerguido, apontou a pistola na direção da cabeça do assistente e efetuou um disparo, atingindo-o com o projétil na zona parietal do lado esquerdo.
7. De seguida, o arguido abandonou o local na companhia dos amigos e atirou a arma para um terreno nas imediações, colocando-se em fuga utilizando uma viatura automóvel de marca Volkswagen.
8. e 9. Em consequência direta e necessária do disparo efetuado pelo arguido, o assistente sofreu o traumatismo craniano com ferida de cerca de 7cm de comprimento na zona parietal do lado esquerdo, com perda e exposição de massa encefálica, com hemorragia de cerca de 1 litro, bem assim múltiplas fraturas visíveis em topografia frontal, temporal e occipital e parietal à esquerda, com desalinhamento em topografia parietal, importante solução de continuidade na calote parietal esquerda com múltiplas áreas espontaneamente hiperdensas nas partes moles epicranianas parietais esquerdas e intracranianas frontoparietais esquerdas, acabando por ser transportado para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) – Urgência Cirurgia Geral.
10. Do evento resultou, em concreto, perigo para a vida do assistente.
11. As referidas lesões traumáticas são resultado do sobredito disparo com a pistola da marca HK, modelo P30, 9mmx19, com o nº de série ..., pertencente à própria vítima, disparo esse efetuado pelo arguido no momento em que o assistente já se encontrava no chão, com uma trajetória descendente (de cima para baixo).
12. O assistente sofreu outras lesões ainda não estabilizadas a nível médico-legal, dado que a situação da vítima ainda não se encontrava, nem se encontra, estabilizada devendo ser submetido a novo exame após a data da alta das Consultas de Neurocirurgia do CHUC e Fisiatria no Centro de Reabilitação ..., permanecendo com lesões definitivas ainda não concretamente apuradas.
13. O assistente, em virtude dos factos supra descritos, esteve internado no Serviço de Reabilitação Geral de Adultos do CMRRC – ... desde o dia 22 de março de 2022 ao dia 08 de abril de 2022, pelo motivo de internamento: reabilitação de sequelas secundárias a traumatismo directo por agressão infligida pelo arguido.
14. O arguido não é titular de licença de uso e porte de arma.
15. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de desferir repetidos murros na cabeça do assistente e, seguidamente, efetuar um disparo com arma de fogo na direção da cabeça do mesmo, tirar a vida ao assistente, o que apenas não conseguiu por razões alheias à sua vontade, nomeadamente porque este foi socorrido e intervencionado clinicamente em tempo útil.
16. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não está legalmente autorizado a deter armas de fogo.
17. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Do relatório social do Arguido consta:
“I – Dados relevantes do processo de socialização
AA cresceu com os pais e um irmão (já autonomizado), na morada designada, sendo o pai operário fabril em alumínios (empresa própria, deste: designada de A... – sita em Albergaria-a-Velha) e a mãe é auxiliar de serviços gerais no Agrupamento de Escolas .... Neste contexto, o arguido desenvolveu laços de pertença e de afeto consistentes com os restantes elementos da família.
Na escola, foi um aluno pouco motivado, mas sem quaisquer problemas de comportamento, acabando por desistir no 6º ano de escolaridade.
Dedicou-se a trabalhar com o pai, na firma de caixilharias em alumínio, sendo o único funcionário desta empresa familiar, exercendo atividade laboral em serralharia de alumínios com regularidade.
Em idade própria, juntou-se como uma companheira, GG, funcionária do Hipermercado ... local, com qual vive em união de facto, na presente morada.
O arguido ocupava, em liberdade, os seus tempos livres em promoção musical, tendo hábitos de vidas regrados, essencialmente junto da família.
II - Condições sociais e pessoais
AA reside com a companheira (22 anos) e pais (ambos com 54 anos), na casa que é propriedade destes. A mesma tem dois pisos, com pátio, pequeno quintal e jardim nas frentes, encontrando-se subdividida em 3 quartos, sala, 2 wc e garagem.
A companheira tem um vencimento que ronda o ordenado mínimo mensal, a mãe e o pai obterão receitas mensais superiores, na globalidade, a cerca de €1.500,00 mensais.
O agregado reside numa moradia que se encontra devidamente paga, sendo as despesas inerentes a consumos de energia e comunicações.
No meio social, o arguido é reconhecido como uma pessoa trabalhadora e dedicada à família, sendo, todavia, este primeiro processo motivo de grande preocupação para as pessoas que lhe são próximas.
III – Impacto da situação jurídico-penal
AA encontra-se detido no EP ..., onde mantém visitas regulares da família.
O presente processo é o primeiro confronto do arguido com o Sistema da Administração da Justiça Penal, sentindo o arguido intimidação quanto às consequências que possam advir do mesmo.
No que concerne à natureza dos factos subjacentes ao mesmo, o arguido expressou-nos, em abstrato, juízo de censura. Para além disso, apresenta um raciocínio crítico de perceção quanto a eventual dano que supostos factos de idêntico teor possam provocar em eventuais vítimas.
No caso de condenação, encontra-se recetivo a uma eventual medida probatória, com acompanhamento destes Serviços da DGRSP.
IV – Conclusão
AA evidencia um padrão comportamento adequado à norma, eventualmente isento de conotação desviante, baseado em hábitos de trabalho regulares e orientação para a família, não obstante a ocorrência dos factos descritos no presente processo.
Assim, estamos em crer que, em caso de condenação, o arguido reunirá condições para cumprir eventual medida probatória com execução na comunidade, a qual necessariamente deverá contemplar acompanhamento, reforçando a consciência do desvalor da sua eventual conduta, obviamente, com a manutenção de entrevistas individuais e outras ações inerentes ao acompanhamento desta DGRSP.”
Certificado de registo criminal
18. O Arguido não apresenta antecedentes criminais.
19. O Arguido antes de ser preso auferia um salário mensal de cerca de 685€; não tem filhos e frequentou o 6º ano de escolaridade.
20. O Centro de Saúde do Baixo Vouga despendeu o valor de 106,00€ de assistência médica a DD, em virtude da agressão perpetrada pelo Arguido e acima descrita.
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Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros enunciados de facto relevantes para a bondade da decisão, quer por resultarem em contrário aos acima constantes, quer por se traduzirem em juízos conclusivos, ou conceitos de direito.
Com efeito, não se provou que:
a) No facto provado em 5 o Arguido tenha segurado nas mãos um objecto metálico de características concretamente não apuradas.
b) O arguido AA e as testemunhas BB e CC levantaram-se com o intuitivo evidente de se envolverem em confronto físico com a testemunha EE, o que acabou por suceder.
c) A testemunha CC teve o intuito evidente de se envolver em confronto físico com o assistente DD, tendo ficado na expectativa;
d) A testemunha BB agiu por forma a manietar os braços do assistente, o que logrou;
e) O assistente ficou atordoado com os murros, instante exato em que o arguido lhe retirou a arma.
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4. Da impugnação da matéria de direito
Do crime de detenção de arma proibida (erro sobre o preenchimento do tipo (arma real/falsa)
O recorrente impugna ainda a matéria de direito, por entender, no pressuposto da alteração factual reclamada, que os factos provados não configuram a prática do tipo doloso de crime pelo qual o arguido foi condenado, a saber: em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3º, nº3, e 86º, nº1, al. c), da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.
Contudo, inalterada a correspondente matéria de facto, nenhuma dúvida suscita a subsunção jurídico penal da conduta do arguido ao tipo objetivo e subjetivo de crime de detenção de arma proibida, já que o arguido usou dolosamente, sem se encontrar autorizado, a pistola semiautomática examinada a fls.159 classificada como arma da classe B (artigos 3º, nº3, al.b), e 86º, nº1, al. c), da cit. Lei 5/2006).
O artigo 2.º, n.º 5, alínea s), da cit. Lei 5/2006 define o «uso de arma» como sendo o "ato de empunhar, apontar ou disparar uma arma".
Na verdade, os factos provados não inculcam a existência de qualquer erro do arguido sobre as características da arma que deteve e usou, o qual a existir seria relativo ao elemento objetivo do tipo (art.16º, nº1, do Código Penal) e não à culpa (art.17º, do Código Penal).
Com efeito, ficou provado que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de efetuar um disparo com arma de fogo, bem sabendo que não está legalmente autorizado a deter armas de fogo, ciente que tal conduta era proibida e punida por lei.
Daí não proceder nesta parte a pretensão recursiva do arguido.
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Do crime de homicídio qualificado, na forma tentada
O recorrente impugna ainda a matéria de direito, por entender, no pressuposto da alteração factual reclamada, que os factos provados não configuram a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado, a saber: em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelos artigos 22º, 23º, 131º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal.
Vejamos.
Exige-se, de acordo com o disposto no art.132º, nº1 e 2, do C. Penal, que a morte seja produzida em circunstâncias tais que revelem a especial censurabilidade ou perversidade do agente; circunstâncias meramente indiciadas por elementos ali elencados, quer relativos ao facto (ao modo de ser objectivo da acção), quer relativos ao agente (implicação pessoal do agente na acção) [3].
Trata-se de um método de combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão, em que a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.
Verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, mas cujo preenchimento não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação.
Do mesmo modo que a não verificação dessas circunstâncias ou elementos não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador [4].
Seja como for, o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador, que resulta, isso sim, de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art.132º, nº2.
Em conclusão, o especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da "especial censurabilidade ou perversidade" do agente».
Comprovadamente ao disparar com a arma de fogo na direção da cabeça da vítima, o arguido agiu, nas circunstâncias atrás descritas, com o propósito de pôr fim à vida daquela, o que apenas não conseguiu por razões alheias à sua vontade.
A questão que se coloca consiste então em saber se ocorre alguma circunstância típica que pela estrutura valorativa e o grau de gravidade do facto é suscetível de revelar um aumento significativo da culpa, especial censurabilidade ou perversidade a que conduzem os exemplos-padrão previstos no nº2, do art.132º do C.Penal.
Concretamente questiona-se se para os efeitos aqui considerados, a factualidade dada como provada evidencia que o arguido atuou determinado por motivo fútil (alínea e)).
Da qualificativa: ser determinado por qualquer motivo fútil
Esta circunstância prende-se com a especial motivação do agente: “o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixou ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana” [5].
Mas, bem pode acontecer que a motivação, ainda que correspondente a uma das descritas, não possa valer como especial censurabilidade ou perversidade designadamente por se ligar a um estado de afeto particularmente intenso (v.g. o ciúme obsessivo, real ou imaginado, ligado à paixão) [6] .
A jurisprudência dominante tem entendido o «motivo fútil» como aquele de importância mínima, que não tem relevo, que não chega a ser motivo, que do ponto de vista do homem médio se mostra manifestamente desproporcionado em relação ao crime cometido, que não pode razoavelmente explicar a conduta do aente [7].
Motivo fútil é o que não é ou nem sequer chega a ser motivo (cfr. Ac. STJ de 06.06.90, BMJ n.º 398, pág. 269), de tal forma que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana, o que não é manifestamente o caso dos autos, como acima se expressou. Motivo torpe é o motivo infame, indecoroso, repugnante, baixo, sórdido, ignóbil, asqueroso, profundamente imoral, que repugna à generalidade das pessoas.
No caso dos autos, salvo o devido respeito, não se poder concluir do ponto de vista do homem médio, quando interpretada a conduta do arguido no contexto emocional e circunstancial da sua atuação, pela existência de uma motivação insignificante, sem qualquer relevo.
Na verdade, o grau de ilicitude, ainda que elevado em face do meio utilizado e a parte do corpo atingida, é temperado pela circunstância da agressão ter sido despoletada no contexto de uma dada discussão, em que o assistente provocou a reação do agressor, retirando e empunhando a arma de fogo que trazia consigo.
Daí não se concordar com o acórdão recorrido, já que o motivo da atuação do arguido é potenciado pela atuação da vítima, não podendo dizer-se que o arguido tenha atuado por motivo torpe ou fútil (alínea e) do n.º 2).
A grande maioria dos homicídios é sempre desproporcional face ao motivo que a despoleta e não se pode correr o risco de tudo se considerar fútil ou traiçoeiro. O que se exige, para a qualificação da conduta homicida, é que tal desproporção seja manifesta, chocante até, tratando-se de uma insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais alta na brutal malvadez.
Donde, ainda que incompreensível, no contexto retratado na matéria de facto, o tema da discussão, refrega ou reação à vítima não pode ser considerado como tendo uma motivação repugnante e baixa, logo, suscetível de integrar a qualificativa, “motivo torpe”, tudo dependendo do contexto apurado.
No caso dos autos, a conduta do arguido insere-se no contexto de um desentendimento gerado entre si e o assistente nas circunstâncias supra descritas, após ingestão de bebidas alcoólicas por ambos num café, em que o assistente acaba por ter sido vítima do disparo efetuado pelo arguido com a arma de fogo que aquele trazia consigo e empunhou no decorrer da discussão.
A existência desse conflito, a sua natureza, dimensão e situação envolvente, retiram à conduta do arguido as características que permitiriam considerar que foi determinada por um motivo torpe ou fútil.
Não se questionando que a motivação para o comportamento do arguido (…“motivos do crime” são as razões subjectivas que impulsionaram o agente a cometer o crime, com violação das exigências da vida em sociedade), ao actuar como comprovadamente actuou, foi bastante censurável e desproporcionada à situação, o certo é que, naquele contexto global em que se inseriu, tal motivação não revela características que a façam considerar como tendo sido torpe ou fútil, sem prejuízo, claro está, ser isso ponderado na determinação da pena concreta (RP 19.01.2022, Paulo Costa, in www.dgsi.pt)”.
De resto, percorrida a descrição dos elementos subjetivos do crime de homicídio, nenhuma referência factual ali se encontra ao motivo fútil que serviu à qualificativa do tipo de ilícito.
Em suma, não se verifica a qualificativa do art.132º n.º 2 al.e) (motivo fútil), do C. Penal, devendo a conduta do arguido reconduzir-se ao tipo doloso de homicídio simples, na forma tentada, cuja moldura legal da pena de prisão se situa nos limites de 1 ano, 7 meses e 6 dias (mínimo) até 10 anos e 8 meses (máximo).
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Da atenuação especial da pena: ameaça/provocação da vítima
Nos termos do artigo 72.º, nº1, do Código Penal, o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes (nº2):
a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por provocação injusta ou ofensa imerecida.
Ora, não há diminuição da ilicitude ou da culpa, que fundamente uma atenuação especial da pena, quando o agente ao disparar não procurou proteger qualquer bem jurídico do próprio e/ou de terceiro, antes intensificou o confronto com a vítima, prosseguindo a tiro contra a cabeça desta, quando prostrada no solo, já depois de a ver imobilizada por terceiro, através do mata-leão, e sobretudo depois de lhe ter sacado a arma de fogo que aquela empunhava.
Para que o estado de exaltação do agente atue como atenuante especial é necessário que constitua emoção violenta compreensível, ou seja, natural e aceitável, desde que exista uma adequada relação de proporcionalidade entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado.
Aquando do disparo efetuado pelo arguido existe entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado uma clara relação de desproporcionalidade.
Na verdade, quando o arguido disparou, deixara de subsistir a ameaça grave a que fora sujeito, não sendo aceitável para o homem médio que aquele tenha disparado após ver a vítima imobilizada, prostrada no chão, sem a arma que lhe retirou.
No caso concreto não se vislumbra uma diminuição acentuada da ilicitude, diminuição acentuada da culpa nem uma diminuição acentuada da necessidade da pena e, portanto, das exigências de prevenção de modo a fundamentar a atenuação especial de qualquer das penas correspondentes aos crimes cometidos pelo arguido.
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Da escolha e medida concreta das penas
Feito o enquadramento jurídico da conduta do arguido importa, antes de mais, saber da adequação da pena de prisão aplicada ao crime de detenção de arma proibida, ante a alternativa da pena de multa e a preferência imposta pelo art.70º, do Código Penal.
O arguido não tem antecedentes criminais e beneficia de integração familiar e social.
Contudo, o arguido nenhuma consciência critica revelou em relação ao ilícito cometido, negando os factos que não podia deixar de confessar, o que aponta para a falta de interiorização sincera do desvalor da sua conduta, não obstante a elevadíssima gravidade daquela e as terríveis consequências que emergiram da mesma, sem que a situação clinica da vítima se encontre estabilizada até à data, apesar de decorridos dois anos sobre o evento.
Também as exigências de prevenção geral são muito elevadas em face da crescente ocorrência de fenómenos de extrema violência por parte de jovens em contextos semelhantes aos dos autos, incluindo, como foi o caso, a utilização desproporcionada de armas de fogo para matar quem já não se encontra num estado de se defender.
Por tudo isto, no quadro concreto descrito, considerando que a utilização da arma de fogo foi instrumental em relação ao homicídio, a mais grave das ações típicas que a punição do citado art.86º, nº1, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, visa prevenir, a opção pela pena de prisão não se mostra desadequada e desnecessária à consecução das finalidades da respetiva pena.
Repara-se que o arguido não mostrou apenas desprezo em relação à vida do assistente, mas também desapego quanto ao perigo para a integridade física de outros, senão mesmo a vida, atenta a proximidade da trajetória do projétil em relação ao corpo da testemunha BB.
Esta total indiferença e perversidade do arguido reforça sobremaneira, do ponto de vista da prevenção especial, o fator de risco associado à perigosidade abstrata deste tipo de crime de perigo comum, não merecendo censura a opção pela pena de prisão.
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Para a determinação da medida concreta da pena há que atender aos fatores elencados no art.71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada - vide Anabela Miranda Rodrigues, in “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes -, podendo tais factores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção.
Assim, o nº 2 do art.71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Retomando o caso em apreço, milita contra o arguido o dolo direto e intenso da sua atuação.
Os crimes de homicídio e detenção de arma proibida encontram-se estreitamente conexos, de modo que o desvalor da ação se mostra elevado em ambos, já que o arguido elegendo um instrumento particularmente perigoso para matar, chegou a disparar a arma de fogo com consequências particularmente danosas.
O desvalor de resultado no crime de homicídio tentado é bastante elevado, ante a comprovada extensão das lesões e sequelas provocadas no assistente, as quais ainda não se encontram consolidadas, apesar do tempo já decorrido.
Embora, no momento em que aconteceu, o disparo efetuado pelo arguido para a cabeça da vítima tenha sido desproporcionado à provocação desta, o mesmo foi despoletado no contexto de uma dada discussão, em que o assistente provocou a reação do agressor, retirando e empunhando a arma de fogo que a vítima trazia consigo.
Daí que no quadro da atuação do arguido, a motivação e os sentimentos revelados no seu comportamento, não sendo fúteis, tão pouco sejam desprezíveis em termos de condicionar o agir de outro modo.
No entanto, no momento do disparo, os factos revelam uma agressão cobarde, ante a especial vulnerabilidade da vítima, não obstante militar a favor do arguido a circunstância da arma ter sido levada à senda do conflito pela mão do assistente, a quem, aliás, pertencia.
A culpa é ponderosa em ambos os crimes, na medida em que o Arguido possuía condições para ter atuado de forma distinta, após ver imobilizado o assistente, prostrado no solo, sem a arma que lhe retirou das mãos.
As necessidades de prevenção geral são atualmente muito prementes neste tipo de criminalidade especialmente violenta.
A vida constitui certamente um dos bens jurídicos de maior relevância e frequentemente violado.
A favor do arguido depõe a sua idade, a ausência de antecedentes criminais e a inserção social e familiar de que beneficia.
Contudo, o arguido não revela consciência critica em relação aos ilícitos cometidos, já que procurou desculpar a sua atuação, após negar que sabia tratar-se de uma arma de fogo e ter disparado na direção da cabeça da vítima.
Daí que as necessidades de prevenção especial sejam consideráveis.
Sopesando todo o circunstancialismo e tendo presente o quanto se deixou dito quanto à medida da culpa e às razões de prevenção geral e especial, considerando a alteração de facto agora verificada quanto à dinâmica e contexto da agressão, temos por justa:
- a pena aplicada de 2 (dois) anos de prisão para o crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3º, nº3, al.b) e 86º, nº1, al. c), da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, numa moldura de 1 a 5 anos de prisão;
- a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão para o crime de homicídio tentado, na forma simples, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 131º, do Código Penal, numa moldura de 1 ano, 7 meses e 6 dias (mínimo) até 10 anos e 8 meses (máximo).
A medida concreta da pena deve imbuir-se do “vigor adequado à proteção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando-se o limite da culpa”, pois que, “se uma pena de medida superior à da culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins de prevenção constitui um desperdício” (cfr. o Ac. do TRC de 10/03/10, in www.dgsi.pt).
Face ao condicionalismo que a factualidade apurada permite efetuar no seio do citado art.71º, a pena de prisão aplicada a cada um dos crimes mostra-se necessária e proporcional às necessidades de prevenção geral e especial que urge acautelar, sem ultrapassar o limite da culpa do arguido no contexto motivacional e circunstancial da sua atuação.
A alteração de facto agora verificada quanto à dinâmica e contexto da agressão, associada a uma moldura abstrata mais branda quanto ao crime de homicídio tentado simples, justifica um ajustamento da pena de prisão, temperada pelo facto de a vítima ter empunhado primeiramente a arma e assim despoletado a reação do arguido, ainda que afinal esta se mostrasse desproporcionada.
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Posto isto, importa reformular a pena única emergente do cúmulo jurídico das mencionadas penas parcelares.
No que respeita à punição do concurso de crimes, dispõe o art. 77º, nº 1, que para determinação da medida concreta da pena única (dentro da moldura punitiva fixada nos termos do respectivo nº 2) são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Como se refere no Acórdão do STJ, de 21/11/2012, proferido no processo nº 86/08.OGBOVR.P1.S1: “(…) o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas. Com efeito, a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto. (…)”
Ou seja, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente.
Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele.
Ponderados os critérios legais enunciados e as circunstâncias concretas para determinação da pena única aplicada ao arguido que o tribunal a quo considerou, tendo ademais em conta que os crimes se mostram estreitamente conexos num evento isolado, que não estamos perante um padrão comportamental do arguido, que - aliás - é delinquente primário, beneficiando de integração familiar e social, atentos os bens jurídicos violados (bens jurídico eminentemente pessoais de elevada importância), a integrar o conceito de criminalidade violenta (art. 1º, al. j) do CPP), considerando ainda que o arguido não revelou arrependimento ou contrição, nem uma postura de autocritica, vista a imagem global do facto, cuja ilicitude se mostra elevada apesar do comportamento culposo desafiante do lesado, afigura-se adequada uma pena única de 6 (seis) anos de prisão.
Mal se compreenderia, pois, que fosse reduzida a medida concreta da pena única para valor ainda mais próximo do limite mínimo da moldura do concurso de penas, pois tal defraudaria as expectativas comunitárias na validade da tutela dos bens em questão (eminentemente pessoais) e interesses jurídicos que demandam uma pena que se destaque do mínimo fornecido pela sobredita moldura penal.
Em face do decidido, ficou a concreta questão da suspensão da execução da pena de prisão esvaziada de qualquer conteúdo, já que a aplicada pena de seis anos de prisão não é passível de ser substituída nos termos previstos no art. 50º do Código Penal, pelo que nesta parte carece de fundamento a pretensão recursiva.
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5. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido e em consequência:
1. corrigir os factos provados e não provados da decisão recorrida, nos precisos termos constantes da reformulação supra que aqui se dá por inteiramente reproduzida;
2. condenar o arguido pela prática, em autoria material:
a) de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3º, nº3, al.b), e 86º, nº1, al. c), da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
b) de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º e 131º, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
c) Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares condena-se o arguido na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
3. manter no mais, ressalvadas aquelas modificações, a decisão impugnada que, assim, se confirma.
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Sem custas (art.513º, nº1, a contrario, do Código Processo Penal).

Notifique.

(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 1.03.2023
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira
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[1] Ac STJ de 16.06.2005 in www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, conforme se escreve no Ac. do STJ de 10.01.2007 www.dgsi.pt, o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente.
[3] Quando a lei se refere a "especial censurabilidade" reporta-se àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas; quando se refere a "especial perversidade" reporta-se às qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (neste sentido, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, art. 132º, §7).
[4] Cfr. Figueiredo Dias, CJ 1987-IV-49, e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Almedina, pg.50.
[5] Cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, pg.32-33.
[6] Mas, não é incompatível com a exaltação, mesmo violenta, de que o agente esteja dominado no momento em que comete o homicídio - S.T.J. 15-5-1997 CJ, 2, 208.
[7] Cfr. S.T.J. 02-03-2000, BMJ 495º/100.
Como escreve Fernando Dias, in Direito Penal Especial, Quid Juris, 2005, pg.69, a circunstância de não ser aceitável que alguém mate seja por que motivo for, leva a uma análise cuidadosa deste elemento. Aqui, a “profunda rejeição sobre o comportamento do agente advém do facto de apenas para ele aquele motivo se revelar como justificante da prática do homicídio, sendo para o padrão médio de valores absolutamente inaceitável”.
Também o S.T.J. 9-12-98 BMJ 482º/68 defendeu existir motivo fútil quando se verifica uma desproporção manifesta entre a gravidade do facto e a intensidade ou natureza do motivo que impeliu o agente à ação.
E pode ler-se no Ac. S.T.J. de 7-12-99 CJ, 3, 234, que para “existir motivo fútil é necessário que, para além da desproporção ou inadequação, do ponto de vista do homem médio, em relação ao crime praticado haja insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais alta, na brutal malvadez, ou se traduz em motivos subjectivos ou antecedentes psicológicos, que pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a reacção homicida.