Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2054/15.6T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: PARTE QUE IMPUGNE
DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ANÁLISE CRÍTICA
Nº do Documento: RP201809242054/15.6T8MTS.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 680, FLS 472-479)
Área Temática: .
Sumário: I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II - A parte que impugne a decisão da matéria de facto não pode limitar-se a transcrever os depoimentos e concluir, sem mais, que com base neles se devem alterar determinados pontos factuais, a par disso terá de fazer a sua análise crítica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2054/15.6T8MTS.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível de Matosinhos-J4
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B..., S.A, que, por fusões várias, alterou a sua denominação para C..., S.A., com sede na Rua ..., nº ..., Paredes, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, na forma única, contra D..., residente na Rua ..., nº ...., ..., Matosinhos, E... e F..., ambos residentes na Rua ..., nº ..., .º drtº, ..., Matosinhos, peticionando a condenação dos réus no pagamento à autora de 3.599,08€, a título de indemnização pelo incumprimento do contrato de compra e venda de café celebrado entre autora e réus, acrescido de juros de mora comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento, bem como de 2.962,59€, a título de devolução da contrapartida concedida pela autora, acrescido de juros de mora, que liquidou em 2.176,75€.
Alegou, para o efeito e resumidamente, que a autora, no âmbito da sua actividade de produção, torrefacção, comercialização, distribuição e venda de cafés, celebrou um contrato com os réus, através do qual a 1ª ré, na qualidade de exploradora do estabelecimento “G...”, se comprometeu a adquirir à autora, em regime de exclusividade, mensalmente a quantia de 37,50 kg de café da marca ..., lote ..., até perfazer a quantidade global de 1800 kg.
Porém, segundo a autora, a 1ª ré incumpriu o contrato, uma vez que adquiriu apenas 1231 kg de café, faltando consumir 569 kg.
Por seu lado, os 2º e 3º réus intervieram no referido contrato na qualidade de fiadores da 1ª ré, tendo renunciado ao benefício de excussão prévia.
Acrescentou ainda a autora que, em cumprimento do mesmo contrato, concedeu à 1ª ré a quantia de 9.372,66€, bem como uma máquina de café, um moinho de café e uma máquina de lavar, equipamentos que já lhe foram restituídos.
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Citados para contestar, os réus defenderam-se por impugnação e por excepção peremptória.
Em primeiro lugar, aduziram a nulidade do contrato celebrado com a autora, com fundamento na estipulação de cláusulas abusivas, pois, segundo referem, a autora sabia que o estabelecimento da 1ª ré carecia de capacidade para consumir os 37,50 kg de cafés mensais, motivo pelo qual demoraria cerca de 7 anos a consumir a quantidade de 1800 kg, o que implicaria uma violação das normas da União Europeia sobre restrição da concorrência, uma vez que estava em causa um contrato de exclusividade.
Acrescentaram igualmente que a autora não resolveu o contrato em litígio, razão pela qual a duração do mesmo perdurou para além do prazo de 5 anos inicialmente fixado, devendo o mesmo ser enquadrado no processo de insolvência relativo à 1ª ré. Por outro lado, a fiança dos 2º e 3º réus foi constituída pelo prazo inicial, não podendo estes ser demandados, após o decurso desse prazo, na qualidade de fiadores.
Para além disso, alegam os réus que a 1ª ré consumiu efectivamente 1518 kg de café e não 1231 kg, conforme aduzido pela autora.
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Notificada para se pronunciar em relação à excepção suscitada pelos réus, veio a autora esclarecer que o contrato celebrado com os réus não viola normas europeias nem nacionais relacionadas com concorrência, uma vez que o contrato foi celebrado por 5 anos e a autora tem pouco peso no mercado nacional de venda de café.
Acrescentou ainda que os consumos mínimos fixados no contrato foram acordados livremente entre ambas as partes e de acordo com as contrapartidas oferecidas.
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Por despacho a fls. 421-423, foi extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, relativamente à ré D..., com fundamento na sua declaração de insolvência, por sentença transitada em julgado.
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Foi realizada a audiência de discussão e julgamento de acordo com o formalismo legal.
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A final, foi proferida decisão que julga a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, condenou os réus no pagamento à autora da quantias de:
a) 3.599,08€ (três mil, quinhentos e noventa e nove euros e oito cêntimos), acrescidos de juros de mora comerciais, à taxa legal supletiva em vigor, vencidos desde a citação e até efectivo e integral pagamento; e
b) 1.468,38€ (mil, quatrocentos e sessenta e oito euros e trinta e oito cêntimos), acrescidos de juros compensatórios à taxa legal, acrescida de 5%, desde 6 de Julho de 2007 e até efectivo e integral pagamento.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os Réus E... e F... interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
1 – No entender dos Recorrentes, houve erro notório na apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente no que concerne à prova por declarações de parte e à prova testemunhal, não se conformando com as matérias dadas como não provadas, na sentença ora recorrida, mais concretamente os factos seguintes: “a) A autora tinha perfeito conhecimento das características do estabelecimento comercial da 1ª ré, bem como dos consumos de café que tal estabelecimento viria a efectuar.”
2 – Quer das declarações de parte prestadas pelo réu F..., quer do depoimento da testemunha H..., ouvidos em sede de audiência de julgamento, resulta evidente e à saciedade que aquelas matérias dadas como não provadas, na sentença ora recorrida, sob a alínea a), deveriam ter sido dadas como provadas.
4 – Portanto, tais depoimentos, conjugados com toda a documentação carreada para os autos pelos ora Apelantes, deveriam ter conduzido a que o Tribunal a quo tivesse dado como provadas as referidas matérias dadas como não provadas, na sentença ora recorrida, supra transcritas, aditando-se aos “Factos Provados”, os factos seguintes: “21- A autora tinha perfeito conhecimento das características do estabelecimento comercial da 1ª ré, bem como dos consumos de café que tal estabelecimento viria a efectuar.”
5 – Das alterações a efectuar às matérias de facto dadas como não provadas resultará que deverão ser dadas como assentes as matérias constantes da supra referida alínea a).
6 – Assim, decorrerá, forçosamente, dessas alterações, que deverá ser julgada totalmente provada e procedente a excepção da nulidade do contrato, em causa nos presentes autos, invocada na contestação, com todas as legais consequências daí resultantes.
7 – Resulta, assim, do supra exposto, que a sentença recorrida produziu uma errada interpretação do artigo 4º, nº.s 1 e 2 e do artigo 5º, nº 1, da Lei nº 18/2003, de 11 de Junho.
8 – E, concomitantemente, pelas mesmas razões, a sentença recorrida produziu uma errada interpretação da legislação comunitária aplicável ao caso em apreço, ou seja o Regulamento (CE) nº 2790/1999 da Comissão, de 22/12/1999, relativo à aplicação do nº 3 do artigo 81º do Tratado CE a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas, J.O. L 336, de 29.12.1999, aplicável ex vi artigo 5º da Lei nº 18/2003, de 11 de Junho.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da fundamentação factual.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1- Encontra-se registado na Conservatória do Registo Comercial, através da Ap. ./20071228, Insc. 9, relativa à fusão, alteração ao contrato de sociedade e designação de membro(s) de órgão(s) social(ais), a transferência global do património da sociedade incorporada I..., S.A. para a sociedade incorporante I1..., S.A..
2- Encontra-se registado na Conservatória do Registo Comercial, através da Ap. ./20090504, Insc. 16, relativa a cisão/fusão (online), o destaque de parte do património da sociedade I1..., S.A. com vista à sua incorporação, por fusão, na sociedade I2..., S.A..
3- Encontra-se registado na Conservatória do Registo Comercial, através da Ap. ./20090526, Insc. 17, relativa a alterações ao contrato de sociedade (online), a alteração da firma da I2..., S.A. para B..., S.A..
4- Encontra-se registado na Conservatória do Registo Comercial, através da Ap. ./20151231, Insc. 20, relativa a fusão (online), a transferência global do património da sociedade incorporada B..., S.A. para a sociedade incorporante C..., S.A..
5- A autora é uma sociedade comercial que se dedica à indústria do café e do chá, produção, torrefacção, comercialização, distribuição e venda de cafés e actividades conexas.
6- A 1ª ré explorou o estabelecimento comercial denominado “G...”, que se situava na Rua ..., nº ...., ....
7- No exercício das respectivas actividades, a autora e a 1ª ré celebraram, em 21 de Junho de 2007, um acordo, denominado “Contrato de Compra Exclusiva”, através do qual a autora se obrigou a fornecer à 1ª ré, directamente ou através dos seus distribuidores, os produtos objecto da sua actividade comercial, enquanto a 1ª ré se vinculou a adquirir à autora esses mesmos produtos, em regime de exclusividade.
8- Os 2º e 3º réus intervieram no acordo mencionado no ponto anterior na qualidade de fiadores.
9- Do acordo referido no ponto 7 constam as seguintes cláusulas:
“3ª
1. Pelo presente contrato o FORNECEDOR obriga-se a fornecer, directamente ou através do distribuidor mencionado no nº 1 da cláusula 6ª, ou indicado nos termos do nº 3 da mesma cláusula, e o REVENDEDOR a comprar-lhe, ininterruptamente durante o período de vigência deste contrato, café torrado da marca ... e lote ..., comprometendo-se a atingir, com as suas compras, 37,5 quilos por mês.
2. No caso de as compras do REVENDEDOR não atingirem, durante seis meses seguidos ou doze meses interpolados, a quantidade prevista no número anterior, poderá o FORNECEDOR resolver o presente contrato, com efeitos imediatos, mediante comunicação escrita remetida ao REVENDEDOR, ficando essa resolução sujeita aos efeitos consignados nos nºs 2, 3 e 4 da cláusula 9ª.
(…)

1. Como contrapartida das obrigações de compra, promoção e venda, em regime de exclusividade, o FORNECEDOR pagará ao REVENDEDOR a quantia de €7.746,00, acrescida de IVA à taxa em vigor.
2. Ainda como contrapartida das obrigações referidas no nº antecedente, o FORNECEDOR empresta ao REVENDEDOR, a título inteiramente gratuito, os seguintes equipamentos, adiante designados abreviadamente por EQUIPAMENTO, para utilização na venda dos produtos das marcas do FORNECEDOR no estabelecimento indicado na cláusula 2ª:
1 Máquina de Café ...
1 Moinho de Café ...
1 Máquina de Lavar ...
(…)

1. Sem prejuízo do disposto no nº 2 da cláusula 3ª, no caso de incumprimento ou mora no cumprimento de qualquer das obrigações decorrentes deste contrato, que não seja remediada dentro do prazo de 15 dias a contar da recepção da comunicação escrita que, para o efeito dirigir ao contraente faltoso, poderá o outro contraente resolver o contrato.
2. A resolução não terá efeito retroactivo.
3. O incumprimento dará lugar ao pagamento, pelo contraente faltoso, de uma indemnização que, por acordo, se fixa em €3.599,08.
4. Para além da indemnização prevista no número anterior, o incumprimento, por parte do REVENDEDOR, dará lugar a:
a) Devolução da contrapartida concedida pelo FORNECEDOR, nos termos do nº 1 da cláusula 7ª, deduzida da parte proporcional à quantidade de café já adquirida pelo REVENDEDOR face à quantidade prevista na cláusula seguinte. A contrapartida a devolver será acrescida de juros calculados à taxa máxima legal, permitida pela aplicação conjugada dos artigos 559º, 559º-A e 1146º do Código Civil e computados, desde a data do pagamento previsto no nº 1 da cláusula 7ª e até à data da efectiva devolução;
b) Devolução imediata pelo REVENDEDOR ao FORNECEDOR do EQUIPAMENTO, conforme previsto no nº 1 da cláusula 8ª.
10ª
O contrato terá início na presente data e durará até que hajam sido adquiridos, pelo REVENDEDOR ao Distribuidor referido na cláusula 6ª, 1.800 quilos do café discriminado na cláusula 3ª, nº 1, não podendo, contudo, a vigência do contrato ser superior a cinco anos.
(…)
12ª
Os FIADORES responsabilizam-se solidariamente com o REVENDEDOR pelo cumprimento de todas as obrigações que se encontram previstas no presente contrato, bem como pelas consequências do não cumprimento dessas obrigações, renunciando ao benefício da excussão prévia”.
10- A 6 de Julho de 2007, como contrapartida das obrigações de compra, promoção e venda em regime de exclusividade, a autora concedeu à 1ª ré a quantia de 7.746,00€, acrescida de IVA à taxa em vigor, no montante global de 9.372,66€.
11- Como contrapartida das obrigações de compra, promoção e venda em regime de exclusividade, a autora cedeu à 1ª ré, a título gratuito, uma máquina de café ..., um moinho de café ... e uma máquina de lavar ....
12- A máquina de café, o moinho de café e a máquina de lavar foram restituídos à autora.
13- Entre 21 de Junho de 2007 e 20 de Junho de 2012, a 1ª ré adquiriu à autora 1231 kg de café, para consumo no estabelecimento que explorava, referido no ponto 6.
14- No dia 20 de Junho de 2012, a autora enviou uma carta à 1ª ré com o seguinte teor:
“(…) Assim, se não se verificar a aquisição da quantia mínima mensal de café referida na cláusula 3ª nº 1, no prazo de 15 dias, a contar da recepção desta carta, procederemos à resolução do referido contrato, por incumprimento definitivo do mesmo e com as consequências nele previstas, nomeadamente a vossa obrigação de pagamento das indemnizações convencionadas na cláusula 9ª, que se liquidam nos seguintes montantes:
a) € 2.962,59, correspondente à indemnização prevista no ponto 4) b) da cláusula 9ª acrescida de juros calculados à taxa máxima legal, no total de € 1.393,18, o que totaliza o montante de € 4.355,78;
b) € 3.599,08, correspondente à indemnização convencionada entre as partes, indemnização esta prevista no ponto 4) a) da cláusula 9ª;
c) Devolução imediata do equipamento propriedade da B..., S.A., devolução esta convencionada no ponto 4) b) da cláusula 9ª;
(…)
Deverá V. Exª contactar o n/ comercial para de forma, cordial, chegarmos a uma plataforma de entendimento que permita a manutenção da relação comercial que pretendemos duradoira.
Advertimos, desde já, que no caso de nada ser feito no prazo que é concedido a V. Exª consideramos, findo o aludido prazo, o contrato inteiramente resolvido para os efeitos e com as consequências melhor reproduzidas no referido contrato sem necessidade de outra interpelação”.
15- Após a recepção da carta mencionada no ponto anterior, a autora e a 1ª ré encetaram negociações com vista à celebração de um novo acordo, que contemplasse os kg de café não adquiridos pela 1ª ré, no âmbito do acordo anterior.
16- A 1ª ré e a autora não formalizaram a celebração de um novo contrato.
17- A autora aceitou que o café adquirido pela 1ª ré após 20 de Junho de 2012 fosse contabilizado para efeitos do contrato mencionado no ponto 7.
18- Entre 20 de Junho de 2012 e 30 de Setembro de 2013, a 1ª ré adquiriu à autora 287 kg de café, para consumo no estabelecimento referido no ponto 6, nas mesmas condições em que vinha adquirido nos termos do contrato indicado no ponto 7.
19- A 1ª ré adquiriu café à autora até encerrar o estabelecimento comercial mencionado no ponto 6.
20- A 1ª ré foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado a 15.07.2014.
Factos não provados
Não se provou que:
a) A autora tinha perfeito conhecimento das características do estabelecimento comercial da 1ª ré, bem como dos consumos de café que tal estabelecimento viria a efectuar.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões os recorrentes impugnaram a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, a Ré recorrente não concorda com a decisão sobre a fundamentação factual relativa a al. a) do elenco dos factos não provados.
Quid iuris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão aos Réus recorrentes, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por eles pretendidos.
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A al. a) dos factos não provados tem a seguinte redacção:
A autora tinha perfeito conhecimento das características do estabelecimento comercial da 1ª ré, bem como dos consumos de café que tal estabelecimento viria a efectuar”.
Entendem os recorrentes que o referido factos devia ter sido dado como provado.
Na motivação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido e no que ao citado ponto factual concerne discorreu do seguinte modo:
No que diz respeito à matéria constante da alínea a) dos factos não provados, nenhuma prova foi produzida nesse sentido. Pelo contrário, a testemunha J... afirmou que quando o estabelecimento vai abrir de novo não existe um critério objectivo para determinar os seus consumos”.
Para contrariar a referida fundamentação os recorrentes convocam as declarações de parte do Réu F... e o depoimento da testemunha H....
Acontece que a referida impugnação se circunscreve a uma simples e breve transcrição quer das declarações de parte do Réus quer do depoimento da indicada testemunha.
Todavia, isso não basta.
A lei impõe aos recorrentes que indiquem o porquê da discordância, isto é, em que é que os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta dos citados meios probatórios.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Trata-se, aliás, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Na verdade, transcrever os depoimentos não é fazer a sua análise crítica, esta pressupõe que se construa um raciocínio lógico e fundamentado que leve a extrair uma conclusão baseada naqueles, ou seja, o que se exige é que se analisem esses meios de prova, cotejando-os mesmo com a prova em sentido contrário, relativizando o sentido dessa prova e dizendo porquê, mas também relativizando as provas que convoca para sustentar o seu ponto de vista e de tudo isso extraindo o sentido que lhe merecer acolhimento.
O que se pretende que a parte faça?
Certamente que apresente um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, dizendo onde se encontram no processo e, tratando-se de depoimentos, identifique a passagem ou passagens pertinentes, e, em segundo lugar, produza uma análise crítica dessas provas, pelo menos elementar.
A razão pela qual se afirma que a parte deve produzir uma análise crítica mínima é esta: indicar apenas os meios probatórios, isto é, o depoimento da testemunha A ou B, ou o documento C ou D, é reproduzir apenas o que consta do processo, pelo que nada se acrescenta ao que já existe nos autos, nem se mostra a razão por que a resposta a uma dada matéria de facto deve ser diversa da que foi dada pelo juiz.
Para desencadear a reapreciação pelo Tribunal da Relação, a parte tem de colocar uma questão a este tribunal.
Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
Não basta pois identificar meios de prova.
A parte terá de elaborar e expor uma análise crítica da prova formalmente análoga à realizada pelo juiz e concluir no sentido que pretende.
Não é suficiente afirmar:
Da análise destes dois depoimentos, resulta-inequivocamente e à saciedade-que os mesmos foram espontâneos e coerentes, para além de convergirem entre si.
Portanto, tais depoimentos, conjugados com toda a documentação carreada para os autos pelos ora Apelantes, deveriam ter conduzido a que o Tribunal a quo tivesse dado como provadas as referidas matérias dadas como não provadas (…)”.
Como supra se referiu, embora o tribunal de recurso possa formar a sua própria convicção, mantêm-se vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, o que não é, manifestamente, o caso.
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Resulta, assim, do exposto que se deve manter no rol dos factos não provados o citado ponto factual.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pelos recorrentes e, com elas, o respectivo recurso, pois que, permanecendo inalterada a fundamentação factual, os recorrentes não impugnaram a decisão recorrida em qualquer outro dos seus segmentos.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelos Réus apelantes (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 24 de Setembro de 2018.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt