Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6138/18.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
AMBIGUIDADE E OBSCURIDADE
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
INCAPACIDADE RELEVANTE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP202112156138/18.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeito de nulidade, a decisão é ambígua quando é equívoca, imprecisa, dúbia, podendo ter mais do que um sentido, contém plurissignificações argumentativas ou decisórias, deixando o intérprete sem saber o caminho que foi racionalmente seguido na fundamentação ou qual a deliberação efetivamente tomada; é obscura quando não é clara, é confusa, é difícil de entender, bloqueando qualquer compreensão analítica do seu substrato legal (i) ou da racionalidade do seu discernimento jurídico (ii), tendo repercussões tanto a nível declarativo (efeito imediato), como da sua consequência prática (efeito mediato).
II - A ambiguidade e a obscuridade só funcionam como causa de nulidade, se forem de tal modo graves que tornem a decisão ininteligível, ou seja, incompreensível.
III - A sentença não é nula por oposição entre os fundamentos e a decisão se ali o juiz considera o testamento anulável e, no dispositivo, declara (irregularmente) que é nulo.
IV - O ónus da prova dos factos determinantes da situação de incapacidade relevante para anulação do testamento ao abrigo do art.º 2199º do Código Civil cabe ao interessado que a invoca.
V - O testador pode padecer de doença normalmente incapacitante e não estar incapacitado de entender o sentido da sua declaração testamentária ou de ter o livre exercício da sua vontade no momento da feitura doo testamento, e mesmo na generalidade do seu desempenho pessoal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 6138/18.0T8VNG..P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – J 4

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
a) B…, casada, residente na Rua …, número …, da Freguesia …, Município de Vila Nova de Gaia;
b) C…, casado, residente na Avenida …, número …, terceiro esquerdo, da Freguesia …, Município de Ovar;
c) D…, divorciada, residente na Rua …, número …, da Freguesia …, Município de Vila Nova de Gaia, intentaram ação declarativa comum contra E…, casada, residente na Rua …, número …, da Freguesia …, Município de Vila Nova de Gaia, alegando essencialmente que F…, irmã da R. e tia dos AA., outorgou um testamento no dia 9 de maio de 2005, no Cartório Notarial de Espinho, sem que tivesse capacidade de compreensão dos seus atos de disposição do património, encontrando-se então também incapaz de expressar qualquer declaração de vontade e entender o sentido de tal ato.
Fez culminar o seu articulado com o seguinte pedido:
«a) - Ser anulado o testamento de F… outorgado em 09 de Maio de 2005, no Cartório Notarial de Espinho pelo Notário Licenciado G…, junto à presente p.i. como doc. nº 8, por a mesma F…, irmã da Ré e tia dos Autores, não estar capaz de expressar qualquer declaração de vontade e entender o sentido de tal acto;
b) - Ser a Ré E… condenada a reconhecer o pedido formulado em a), Com as legais consequências.
(…)».

Citada, a R. contestou a ação, impugnando parcialmente os factos, designadamente no que concerne à incapacidade da testadora, referindo que a F…, sob o ponto de vista psiquiátrico, nunca sofreu de qualquer deterioração mental psicótica esquizofrénica, bem como nunca perdeu a sua capacidade de formular juízos de valor estando sempre total e permanentemente capacitada para poder reger a sua pessoa e bens.
Concluiu pela improcedência do pedido.
Foi proferido despacho saneador, após o que se definiu o objeto do litígio, se especificaram os temas de prova, o tribunal se pronunciou sobre os meios de prova e designou data para a realização da audiência final.
Após várias vicissitudes, teve lugar a audiência final, em duas sessões, após as quais foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Pelo exposto julgo a acção totalmente procedente e, em consequência, declaro nulo o testamento de F…, outorgado em 09 de Maio de 2005, no Cartório Notarial de Espinho pelo Notário Licenciado G…, nos termos do artigo 2199º do C. Civil, condenando a ré a reconhecer tal anulação.
Custas pela ré.»
*
Inconformada com a decisão, a R.. interpôs recurso de apelação com vista à revogação da sentença, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1º Salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida não apreciou devidamente a prova, quer a produzida em audiência de julgamento, quer a vasta prova documental junta aos autos, nem subsumiu correctamente a matéria de facto provada nos autos às normas jurídicas aplicáveis.
2º Na apreciação da prova, o Tribunal A Quo inverteu o ónus da prova sem que se existisse fundamento legal para o efeito, valorando o documento junto aos autos pelos apelados intitulado “relatório clínico psiquiátrico” como se de um documento autentico ou de uma presunção legal se tratasse e imputando à Ré, aqui apelante, o ónus de fazer a prova da sua falsidade, quando na verdade tal documento está sujeito à regra geral da prova.
3º Violou assim o Tribunal A Quo o princípio geral pelo qual quem alega prova, pelo que só por aqui a douta sentença recorrida padece de vício insanável.
4º Acresce que, ainda que o ónus da prova coubesse á apelante, o que não se concede, foi feita prova cabal e inequívoca que o conteúdo de tal relatório médico não corresponde à verdade, encontrando-se infirmado quer por outros documentos juntos aos autos de entidades hospitalares, quer pelo depoimento de várias testemunhas, duas das quais médicas que acompanharam a falecida F… ao longo dos anos, inclusive vastos anos após a outorga do testamento.
5º Em modesta opinião, a douta Sentença é Nula por violação do disposto no art. 615º nº 1, al. c) do C.P.C., padecendo de ambiguidade e obscuridade quanto aos seus fundamentos, alicerçados na (errada) convicção do Tribunal.
6º Entre dois depoimentos de testemunhas com conhecimento directo dos factos e da pessoa em questão, que a acompanharam em consultas ao longo de vários anos, e percepcionaram o seu estado mental, e um depoimento de alguém que nunca contactou com a visada, e se limitou a opinar sobre um documento, pressupondo que o dele constava correspondia à realidade, o Tribunal considerou prevalente o depoimento deste, sem que houvesse fundamento que o justificasse.
7º Por outro lado, o Tribunal A Quo reconhece os depoimentos da médica de família e do advogado da falecida, como tendo conhecimento directo dos factos e que afirmaram que aquela tinha cabal entendimento e que em nenhum momento aparentou ter algum problema mental ou do foro psiquiátrico.
8º Mas por outro lado, alega contradição com o depoimento da médica cardiologista, na parte em que esta refere que a falecida padecia de uma 9º E concluindo que nenhum desses depoimentos teve a virtualidade de demonstrar conhecimento directo sobre a falsidade do relatório clínico!
10º A douta sentença é ainda nula porque os seus fundamentos estão em oposição com a decisão, uma vez que fundamenta a mesma com a anulabilidade do testamento, invocando inclusive o disposto no art. 2199º do Código Civil mas decidindo pela declaração de nulidade do testamento.
11º Verifica-se manifesta insuficiência da matéria de facto para que a decisão recorrida tenha sido proferida nos exactos termos que o foi.
12º Não podia o tribunal A Quo dar como provado o que consta de tal relatório clínico, quando é manifesto que do processo constam vários documentos que negam afirmações naquele constantes.
13º Consta do dito relatório que a falecida F… padeceu de actividade delirante que originou vários internamentos no Hospital …, quando os ofícios deste hospital juntos aos autos demonstram inequivocamente o contrário.
14º Ficou ainda demonstrado que até à data em que foi seguida quer pela médica de família, quer pela médica cardiologista, largos anos após a outorga do testamento, a falecida F… não padecia de perda de capacidade nem de deterioração mental, e muito menos se apresentou incapacitada de reger a sua pessoa e bens; aliás resultou demonstrado que, vários anos após a outorga do testamento, era uma senhora normal, que se apresentava sorridente, conversadora, sem qualquer sinal que evidenciasse qualquer perturbação mental aos olhos de (mais do que) um profissional de saúde.
15º Logo, tendo em conta a génese da doença invocada, que é degenerativa e evolutiva, caso à data do testamento a falecida F… fosse portadora do quadro clínico que consta do relatório de 2006, anos mais tarde o seu estado de saúde seria bem pior e, portanto, ainda mais facilmente detectável por uma qualquer pessoa (normal pai de família), quanto mais por médicos.
16º Da conjugação de toda a prova junta aos autos é manifesto que não se encontra demonstrado que á data do testamento a falecida F… padecia de doença mental esquizofrénica, e que, o seu estado de saúde mental era de uma pessoa perfeitamente capaz de reger a sua pessoa e os seus bens, sabendo o que queria, manifestando o que queria.
17º Ao dar como provado o contrário, não restam dúvidas da existência de erro notório na apreciação da prova.
18º Verifica-se assim um erro notório na apreciação da prova no que toca às alíneas j), k), l), m) e n) da douta decisão recorrida.
19º A douta Sentença recorrida violou o disposto nos arts. 342º e 2199º do Cód. Civil, 607º nº 4 e 5, 615º, nº 1, al. c) do CPC. (sic)
Pugnou assim pela revogação parcial da sentença e a sua substituição por outra decisão que julgue o testamento outorgado por F… válido e absolvendo-se a apelante do demais peticionado.
*
Os AA. oferecem contra-alegações que sintetizaram assim:
«1ª) – Nos antípodas do alegado pelos apelantes, inexiste qualquer erro notório ou contradição na apreciação da matéria de facto e, em menor medida, incorreta interpretação das normas legais constantes do artigo 640º, nº1, alíneas a), b) e c) do CPC.
2ª) - O Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” teve a possibilidade de aferir da produção imediata e oral da prova, não bastando agora à apelante alegar que se equivocou na sua apreciação, é preciso prová-lo, irrefutavelmente, o que a recorrente não faz, por não ter acontecido.
3ª) - Permita-se, com todo o respeito, devido e prestado, referir que o principio da reapreciação da matéria de facto em 2ª instância, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, não representa uma total desvalorização do julgamento em 1ª instância, sob pena de este passar a ser um mero ensaio, não se podendo, pois, julgar de novo, só se vai aferir se o Tribunal “a quo” decidiu bem.
4ª) - Essa sindicância do Tribunal de 2ª Instância terá necessariamente presente que a imediação e a oralidade asseguram a probabilidade da boa decisão da 1ª instância.
5ª) - Ainda mais quando se trata duma acção cuja procedência, normalmente, não se baseia numa prova directa, mas indirecta, numa prova por dedução, onde muito importa o comportamento presencial de quem depõe, daí, ainda mais, a importância da imediação e da oralidade, dos tiques, das pausas, dos olhares, dos comportamentos.
6ª) - Deve ser mantida a douta decisão recorrida que julgou com acerto e perfeita observância dos factos e da lei aplicável, julgando a acção procedente.
7ª) – Pois que, assim, e dada a matéria assente, provada e não apurada, terá de decidir-se como muito bem fez a Mª Juiz a quo.
8ª) – Nos presentes autos, ao contrário do alegado pela recorrente, não existiu qualquer inversão ao ónus da prova.
9ª) – O que aconteceu é que o documento junto à p.i. como doc. nº9 não foi alvo de qualquer pedido de falsidade por parte da recorrente, pelo contrário, é a própria Ré, no artigo 26º da Contestação, que confessa que o relatório clinico psiquiátrico emitido pelo Dr. H… em 21-07-2006, por um lado, existe, ou seja, não é falso, e por outro lado, que o mesmo foi subscrito pelo dito clínico.
10ª) – Aliás, e como bem refere o Tribunal a quo na sua Sentença, uma vez que a versão apresentada pela recorrente pressupunha que a declaração médica em causa não correspondesse à realidade, prova que não foi feita, mais, nenhuma das testemunhas ouvidas em Julgamento demonstrou conhecimento directo sobre uma eventual falsidade dessa declaração, pelo contrário, reitera-se, é a própria Ré que confessa a existência de tal declaração médica, o seu teor e a pessoa que a subscreveu, quer através do artigo 26º da Contestação, quer pelo próprio depoimento de parte que prestou em Julgamento.
11ª) – Ao contrário do alegado pela recorrente nas suas alegações e conclusões de recurso, a doença do foro psiquiátrico, doença genética, de que a falecida F… padecia e que a impedia de tomar decisões conscientes quanto à sua pessoa e bens, foi comprovados, para além do relatório médico psiquiátrico elaborado pelo Dr. H… em 21-07-2006, ainda pelos diversos relatórios clínicos feitos à mesma, os quais foram juntos aos autos pela USF …, através de comunicação de 05-02-2020, e, ainda, pelo depoimento das testemunhas arroladas pelos recorridos, especialmente o médico psiquiátrico I…, e, pelas contradições em que a recorrente entrou aquando da prestação do seu depoimento de parte.
12ª) - E, uma dessas contradições prende-se com o facto da recorrente confessar na sua Contestação da existência de tal relatório psiquiátrico de 21-07-2006, dizendo, inclusive, ter conhecimento que o mesmo foi usado no âmbito do processo de inventário nº4661/06.9TBVNG, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, mais dizendo em tal Contestação, no artigo 26º: Para tal, AA. e R., …. decidiram recorrer aos serviços do Dr. H…, o qual para o efeito, emitiu o relatório clínico psiquiátrico, datado de 21 de Julho de 2006…”, para depois, no seu depoimento de parte dizer que não conhecia o Dr. H…, nem conhecia qualquer relatório psiquiátrico.
13ª) - Mais, tal relatório clínico psiquiátrico foi junto a tal processo de inventário pelo aí mandatário da recorrente – Dr. J…, o que comprova que a dita F… não estava em condições de ser aí cabeça de casal, estando junto aos autos certidão judicial passada do processo de inventário nº4661/06.9TBVNG, onde, por um lado, se encontra junto o original de tal relatório clínico psiquiátrico e, por outro lado, também muito importante, que a sua junção foi feita pelo Advogado da aqui recorrente E…, conforme procuração forense por esta passada e aí junta.
14ª) – Ora, se foi a própria recorrente E…, por intermédio do seu advogado, que juntou a tal processo de inventário o referido relatório clinico psiquiátrico, como pode a mesma, em depoimento de parte, referir que não conhecia tal relatório e, mais, grave, não conhecer o Dr. H… (quando este médico prestava serviço na empresa onde aquela trabalhava)!
15ª) – Que tamanho descaramento, o da aqui recorrente E…!
16ª) - A testemunha a que a recorrente se refere que, notificada para comparecer em Julgamento, veio alegar ter 67 anos de idade e que, face à situação pandémica, pretendia a sua não comparência, trata-se de outra pessoa que não o malogrado Dr. H…, testemunha aquela que os AA. vieram a prescindir. Basta consultar os autos!
17ª) - Ainda, quanto ao relatório clinico psiquiátrico emitido pelo Dr. H…, é a própria recorrente que se contradiz quando, nas suas alegações, demonstra “estranheza” pelo facto de, nos registos clínicos existentes no Centro de Saúde …, devidamente juntos autos, referente à paciente F…, existir um “parecer médico de psiquiatria”, datado de 20 de Julho de 2006, o qual foi também emitido pelo dito Dr. H…, o qual refere e passamos a citar “…A doente F…, de 77 anos de idade, solteira, a residir com a irmã (bold nosso), E…, na R. … nº…, … – Vila Nova de Gaia, sob ponto de vista Psiquiátrico, sofre de deterioração Mental Psicótica Esquizofrénica (Estado de Defeito Ezquizofrénico), que na actualidade lhe determina uma total e permanente incapacidade de poder de cuidar de si mesma, necessitando de apoio por terceira pessoa.”.
18ª) - Ora, ao contrário de tal alegada “estranheza”, está a recorrente nas suas alegações a confirmar e a comprovar da existência e validade de tal relatório clinico psiquiátrico, isto porque, se a recorrente, nas declarações que prestou, por um lado referiu que não conhecia o relatório clinico psiquiátrico e o médico que o subscreveu, e, por outro lado referiu acompanhar a irmã F… nas consultas, é estranho, para não dizer outra coisa mais forte, que não tivesse, também, conhecimento de tal parecer médico de psiquiatria!
19ª) - Quando tal parecer de psiquiatria se encontra nos registos existentes no Centro de Saúde …, é óbvio que alguém o pediu!
20ª) – Ao contrário do que falsamente alega a recorrente, para além do relatório clinico psiquiátrico elaborado pelo Dr. H… em 21-07-2006, demonstrativo dos gravíssimos problemas psiquiátricos da falecida F…, outros relatórios clínicos existem, contemporaneamente àquele, que demonstram tais problemas, concretamente os vários relatórios clínicos juntos aos autos pela USF …, através de comunicação enviada via email em 05 de Fevereiro de 2020, para se constatar que a falecida F… padecia de problemas psiquiátricos muitos anos antes:
A) Do parecer médico psiquiátrico elaborado pelo malogrado Dr. H…, de 20 de Julho de 2006;
B) Do relatório médico elaborado pela Dra, K.. e pelo director do serviço de medicina do Centro Hospitalar L… em 11 de Agosto de 2006, o qual refere no ponto 1. “Doente que não sabe ler, com entendimento pobre”, e, no ponto 6. “Em Abril de 2005 terá tido surto psicótico, com necessidade de intervenção psiquiátrica (dizia que lhe “lançaram feitiço” para não caminhar….).”;
C) Do relatório da consulta externa efetuada pelo Dr. M… em 03-10-2013, no Hospital L…, o qual refere e passamos a citar “Historial precedente de acompanhamento em Psiquiatria, há vários anos, no Hospital …. Segundo a irmã, na altura terá feito Electroconvulsivoterapia. Mais recentemente, há cerca de 12 anos, a doente foi acompanhada em consulta de psiquiatria, em regime particular por, segundo a irmã, ideias de teor paranoide. Manteve acompanhamento durante 3 anos. Abandonou a consulta por dificuldades económicas. Portanto, provável quadro demencial em estado avançado, em doente com patologia psiquótica prévia.”.
21ª) – Alega a recorrente que a sua irmã F… era uma pessoa completamente normal, porém, a verdade é que os factos a desmentem e contradizem, isto porque, a título de exemplo, se era a recorrente a acompanhar a irmã F… nas consultas médicas e se era a mesma que falava com os médicos, como foi dito em Julgamento pela testemunha N… (cardiologista da falecida F…), era aquela com toda a certeza conhecedora do historial psiquiátrico da irmã.
22ª) - Para além da prova documental bastante vasta no sentido da versão apresentada pelos recorridos, sustentada e confirmada pelo Tribunal a quo, do que também ressalta da restante prova produzida em Julgamento são as várias contradições encontradas no depoimento de parte da recorrente, a qual para além de mentir sobre a existência do relatório clinico psiquiátrico e do seu autor – Dr. H…, não se coibiu, ainda, de dizer que não conhecia o Advogado Dr. O…, pessoa que diligenciou quanto à feitura do testamento, quando é o próprio causídico a referir nas suas declarações que a recorrente estava presente no cartório onde o mesmo foi feito.
23ª) – Ainda, continuando nas contradições da recorrente, alega a mesma no seu depoimento de parte que não tinha conhecimento de qualquer medicação prescrita à sua irmã F…, quando era ela própria que acompanhava esta última às consultas médicas, estando presente nas mesmas, falando com os médicos.
24ª) - Ao fim e ao cabo, o que a apelante pretende, salvo melhor opinião de V. Exas., e sem qualquer fundamento, é obter em seu proveito a modificação total da douta sentença recorrida.
25ª) – Pretende a apelante que os depoimentos testemunhais sejam agora valorados diversamente do que o foram pelo M. Juiz do Tribunal a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, porém, como dimana da Lei, tais elementos de prova são, consabidamente, sujeitos à livre apreciação pelo Tribunal (cfr. artigos 396º do Código Civil e 607º, nº5 do Código de Processo Civil).
26ª) - Sendo certo que em nossa modesta e humilde opinião, o M. Juiz do Tribunal a quo procedeu à correcta valoração da prova produzida, fazendo o exame crítico da mesma, apresentou a respetiva motivação de facto, na qual explicitou minuciosa e pormenorizadamente, não apenas os vários meios de prova (documentos, relatórios clínicos, depoimento de parte da Ré, depoimento das testemunhas) que concorreram para a formação da sua convicção, como os critérios racionais que conduziram a que a sua convicção acerca dos diferentes factos controvertidos se tivesse formado em determinado sentido e não noutro.
27ª) - Assim, o que a apelante tenta com o seu recurso quanto à alteração da matéria de facto, é, por um lado, distorcer o relatório clinico psiquiátrico acima referido, distorcendo o depoimento de algumas testemunhas da A., e, por outro lado, dar primazia ao depoimento das testemunhas arroladas pela Ré, essencialmente familiares, as quais, para além de pessoas interessadíssimas no desfecho do caso em apreço, mostraram, em julgamento, um depoimento parcial, incoerente e inconsistente e, portanto, salvo o devido respeito, de todo, não credíveis.
28ª- Ficou devidamente demonstrado na audiência de julgamento realizada que, na data em que o testamento (em causa nos presentes autos) foi outorgado, a aí testadora (F…) estava completamente incapaz de querer e entender o sentido negocial das declarações constantes do mesmo.
29ª) - Como já acima se referiu, o depoimento de parte da Ré padece de enormes contradições e incongruências, conforme atesta os excertos acima referidos, sendo as mais relevantes o facto da mesma, a instâncias, quer do aqui mandatário, quer do M. Juiz, afirmar perentoriamente não conhecer o Dr. H…, nem o relatório clinico psiquiátrico pelo mesmo elaborado em 21-07-2006, para, momentos mais tarde, a instâncias do seu advogado, acabar por dizer que, afinal, conhecia o Dr. H1… (e não Dr. H…, o que demonstra o conhecimento que a Ré tinha do mesmo), da empresa dos “telefones”, para a qual a mesma trabalhou e, referindo que afinal se lembrava de tal relatório.
30ª) - Face a tamanhas contradições, ficou manifesto que a Ré, agora recorrente, estava a mentir, como em boa gíria popular se costuma dizer “com os dentes todos”.
31ª) – Tais “falhas de memória” apenas foram ultrapassadas quando a inquirição passou a ser feita pelo mandatário da recorrente!
32ª) - Muito conveniente!
33ª) – A testemunha I…, médico psiquiatra, apesar de não ter contactado diretamente com a falecida F…, confrontado com o relatório psiquiátrico do seu colega – Dr. H…, ainda com os outros relatórios clínicos juntos aos autos, não teve quaisquer dúvidas em afirmar, sob juramento, que a falecida F…, à data do testamento, padecia de doença do foro psiquiátrico, doença genética, o que a impedia de tomar decisões conscientes quanto à sua pessoa e bens.
34ª) - A Autora B…, embora com interesse na causa, prestou o seu depoimento de forma muito natural e simples, confirmando o teor da petição inicial apresentada, designadamente confirmando os problemas psiquiátricos da sua falecida tia F…, problemas esses que impossibilitavam esta, à data do testamento em causa nos presentes autos, de tomar decisões conscientes quanto à sua pessoa e bens.
35ª- A testemunha Q…, prestou o seu depoimento de forma séria e espontânea, afirmando em Julgamento que a sua tia sempre teve problemas mentais, do foro psiquiátrico, não tendo noção da realidade. Mais afirmou que a sua tia tinha um discurso que não era compatível com a realidade.
36ª) - A tia F… vivia na casa que era dos pais, mas sempre foi a aqui ré, sua irmã, que vivia em casa ao lado, também dos pais daquela, e que até tinham ligação uma à outra, pelo interior, que cuidava daquela.
37ª) - Todas as pessoas da família sabiam que a tia F… não tinha capacidade para decidir quanto à sua vida, referindo a testemunha que a aqui ré não gostava que os outros elementos da família fossem visitar a tia F….
38ª) – Por que seria!
39ª) – A testemunha N…, enquanto médica cardiologista da falecida F…, do seu depoimento o que mais relevou foi o facto da mesma ter referido que, pelo menos desde 2009, era a dita F… sempre acompanhada, nas consultas, pela irmã, aqui recorrente, sendo que a comunicação era toda ela feita através da irmã E…, face aos problemas de surdez daquela F…, sendo que esta revelação contradiz o depoimento de parte da Ré, quando esta declara não ter conhecimento do historial clinico da sua irmã, dos medicamentos que a mesma tomava, o que facilmente se conclui não ser verdade, atento o facto da mesma sempre acompanhar a falecida F… nas consultas desta.
40ª) – A testemunha S…, declarou em julgamento conhecer ambas as partes desde criança, não estando de mal com nenhuma delas, advindo esse conhecimento do facto de ser vizinha das mesmas. Mais declarou que conhecia a falecida F…, uma vez que viviam na mesma rua, referindo ter tido sempre medo daquela, face aos comportamentos agressivos que a F… tinha com as demais pessoas, sem razão para tal.
41ª) – Concluindo, para os factos dados como provados na douta Sentença, muito contribuíram o relatório clinico psiquiátrico junto à p.i. como doc. nº9; os relatórios médicos pela USF … juntos aos presentes autos, via email, em 05-02-2020; o depoimento do médico Dr. I…, o qual, de forma isenta, foi convincente nos problemas do foro psiquiátrico de que a falecida F… padecia, resultando as suas conclusões de uma análise cuidada e aprofundada do relatório médico junto à p.i. como doc. nº9, bem como dos restantes relatórios clínicos da falecida F… também juntos aos autos, sendo o mesmo peremptório em afirmar que aquela padecia de doença do foro psiquiátrico, doença genética, o que a impedia de tomar decisões conscientes quanto à sua pessoa e bens; dos depoimentos isentos prestados pelas testemunhas apresentadas pelos recorridos e, por fim, importa ter presente o depoimento de parte da Ré E…, o qual, na opinião do Tribunal a quo, a que aderimos, “…apresentou uma versão contrariada por outros meios de prova, nomeadamente testemunhal, indicada pela própria, como seja o facto de não conhecer o médico subscritor da declaração de Julho de 2006 (quando, afinal, acabou por dizer que era o seu médico); ou o facto de não acompanhar a sua irmã aos médicos (o que foi contrariado pelas declarações das testemunhas médicas, que acompanhavam a irmã), e ainda a circunstância de dizer que nada sabia quanto ao testamento (quando a testemunha O… afirmou estar convencido que a ré esteve presente no Cartório Notarial).”.
42ª) - Agora, e quanto ao depoimento das testemunhas apresentadas pela recorrente, na sua maioria familiares directos, acabaram os mesmos por não se mostrar credíveis, quando em confronto, quer com a prova documental carreada para os autos, quer por estarem em contradição com uma das próprias testemunhas arroladas pela Ré, a testemunha N…, e não U… como por lapso de escrita é referido na Sentença, sendo que esta testemunha, médica cardiologista da falecida F…, conforme declarações que acima se transcreveu, afirmou em julgamento que a sua paciente ia sempre acompanhada pela irmã, a aqui recorrente E…, mais referindo que aquela sofria de doença congênita que lhe causava grande limitação auditiva, sendo que era a própria irmã que falava por ela, tendo tal testemunha referido em julgamento que a falecida F… lia os lábios, porém, julgando que não sabia ler nem escrever, precisando mesmo de ajuda para a comunicação.
43ª) - A Sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura.
44ª) - O objectivo da apelante é obter em seu proveito a modificação total da douta sentença recorrida, sem para tal ter fundamento.
45ª) - Ou pelo menos protelar algo irremediável e decidido pelo Tribunal a quo.
46ª) – A apelante tenta obter a subversão da decisão com base, essencialmente, em depoimentos de familiares directos, nitidamente, interessados no desfecho da causa.
47ª) – Para os apelados não restam dúvidas que deve ser mantida Decisão tomada em primeira instância, ou seja, em manter a anulação do testamento de F… outorgado em 09 de Maio de 2005, no Cartório Notarial de Espinho pelo Notário Licenciado G…, por a mesma F…, irmã da Ré e tia dos AUTORES, não estar capaz de expressar qualquer declaração de vontade e entender o sentido de tal acto, bem como a condenação da ré a reconhecer talo anulação.
48ª) - O Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” decidiu bem, quer de Facto, quer de Direito.
49ª) – Pelas razões supra expostas, temos como certo e estamos crentes, assim doutamente se entenderá, que muito bem andou e julgou o M. Juiz do Tribunal a quo, devendo manter-se na íntegra a douta decisão por este proferida.
50ª) – Por fim, relativamente à nulidade requerida pela recorrente quanto à questão do Sr. Juiz do Tribunal a quo ter feito constar do dispositivo a palavra “nulo”, entendem os aqui recorridos, salvo douta melhor opinião de V. Exas., que, quando o Tribunal a quo se referiu a “nulo” queria referir-se a “anulado”, resultando tal discrepância certamente a um mero lapso de escrita.
51ª) - Não obstante isso, é perfeitamente tangível e inteligível, por força não só do pedido dos AA., assim como de todo o teor da Sentença proferida que, o que está e esteve sempre em causa, foi e é, pura e simplesmente, a anulação do testamento.
52ª) - E porque para os recorridos tal não passou de um mero lapso de escrita, em 10 de Setembro de 2021 apresentaram junto do Tribunal de 1ª Instância um pedido de Aclaração/Reforma de Sentença, porque para aqueles o que pode estar em causa é uma simples inexatidão ou lapso de escrita, passível de ser corrigido pelo Sr. Juiz do Tribunal a quo, nos termos e ao abrigo das disposições legais elencadas nos nºs 1 e 2 do artigo 614º C.P.C.
53ª- Porém, caso tal lapso de escrita não seja retificado pelo Tribunal a quo, desde já se requer a V. Exas. se dignem proceder à substituição/rectificação de tal vocábulo “nulo” por “anulação”, embora os recorridos continuem a entender que a Sentença aqui em questão é completamente inteligível, só tendo feito tal pedido de reforma/aclaração por mera cautela, o que, novamente, por mera cautela, se requer agora a V. Exas.» (sic)
Defenderam assim a confirmação do julgado, em matéria de facto e em matéria de Direito.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da R., acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil[1]).

Estão para decidir as seguintes questões:
1. Nulidade da sentença;
2. Erro de julgamento na decisão proferida em matéria de facto;
3. Ónus da prova e insuficiência da matéria de facto.
*
III.
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:[2]
a. Os Autores B…, C… e D… são os únicos filhos de V…;
b. Por sua vez o referido V… era filho de W… e de X…;
c. No dia 08 de Outubro de 2005 faleceu o acima referido V…, no estado de casado com Y…, deixando como herdeiros, para além da sua referida esposa, os três filhos, os aqui Autores;
d. No dia 09 de Setembro de 2016 faleceu F…, no estado de solteira, maior, sem descendentes e sem ascendentes vivos, com última residência à Rua …, nº…, da freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia;
e. A dita F… nasceu a 01 de Novembro de 1928, sendo filha de W… e X…;
f. Sendo, assim, irmã do acima referido V…;
g. A falecida F… deixou testamento, outorgado no dia 09 de maio de 2005, no qual fez as seguintes disposições:
1. Legou a seu irmão V…, um terreno para construção, sito na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz sob o artigo 1834º;
2. Instituiu herdeira de tudo aquilo de que tiver livre disposição à data da sua morte a aqui Ré, E…;
h. Testamento esse que os autores apenas tiveram conhecimento mais de dois meses após o falecimento da sua tia F…;
i. À data do falecimento, a referida F… contava com 87 anos de idade;
j. Pelo menos desde há mais de doze anos, com referência à data da propositura da presente ação, que a F…, sofria de deterioração mental psicótica esquizofrénica, com perda da capacidade de formulação de juízos de valor;
k. A referida anomalia psíquica tornava-a incapaz de reger quer a sua pessoa, quer os seus bens;
l. A F… esteve até ao seu falecimento, e durante vários anos, totalmente dependente da ré, quer para a prestação de cuidados físicos, quer para tomar decisões quanto aos seus bens e património:
m. À data do testamento que se discute na presente ação, a F…, por força da anomalia de que padecia não se encontrava capaz de querer e entender as declarações que se mostravam contidas no aludido testamento;
n. Situação que era do perfeito conhecimento da ré;
o. A F… só passou a viver com a ré nos três últimos anos da sua vida.
*
O tribunal recorrido considerou não provada a seguinte matéria:[3]
p. Que o que se mostra referido no relatório clinico aludido em sede de petição inicial, datado de 21 de julho de 2006, não correspondia à realidade;
q. Que o aludido relatório foi elaborado a solicitação dos autores e da ré, com o único intuito de não submeterem a F… às funções de cabeça de casal no âmbito do inventário melhor identificado em sede do artigo 29º da petição inicial.
*
IV.
Discussão das questões do recurso
1. Nulidade da sentença
São dois os fundamentos de nulidade da sentença invocados, ambos com assento no art.º 615º, nº 1, al. c):
- Ambiguidade e obscuridade quanto aos seus fundamentos; e
- Contradição entre os fundamentos e a decisão;
Vejamos.
As causas de nulidade da sentença (ou de um despacho) estão taxativamente expressas nos art.ºs 613º, nº 3 e 615º, nº 1, designadamente em conjugação com os art.ºs 666º, nº 1 e 679º. Correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvida sobre a sua autenticidade, e devem ser arguidas de harmonia com aquele primeiro preceito legal, umas vezes, no próprio tribunal em que a decisão foi proferida, e, outras vezes, em via de recurso, no tribunal ad quem. Constituem vícios intrínsecos da decisão, que, por serem considerados graves, comprometem a sentença ou o despacho qua tale, considerando-os peças imprestáveis, insuscetíveis de cumprirem minimamente o fim a que se destinam.
Dispõe a al. c) do nº 1 do art.º 615º que a sentença (ou o despacho – art.º 613º, nº 3) é nula quando os fundamentos estão em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A decisão é ambígua quando é equívoca, imprecisa, dúbia, podendo ter mais do que um sentido, contém plurissignificações argumentativas ou decisórias, deixando o intérprete sem saber o caminho que foi racionalmente seguido na fundamentação ou qual a deliberação efetivamente tomada; é obscura quando não é clara, é confusa, é difícil de entender, bloqueando qualquer compreensão analítica do seu substrato legal (i) ou da racionalidade do seu discernimento jurídico (ii), tendo repercussões tanto a nível declarativo (efeito imediato), como da sua consequência prática (efeito mediato).
De acordo com o referido normativo, a ambiguidade e a obscuridade só funcionam como causa de nulidade, se forem de tal modo graves que tornem a decisão ininteligível, ou seja, incompreensível. Se assim não for, a decisão pode estar viciada, a merecer correção, mas o vício pela sua menor gravidade, não justifica a nulidade.
Diz-nos a recorrente que a sentença padece de ambiguidade e obscuridade quanto aos seus fundamentos, alicerçados na (errada) convicção do tribunal.
Não vemos onde esteja, no caso, a ambiguidade ou a obscuridade. A sentença é clara e precisa, tem um sentido unívoco, sendo perfeitamente inteligível, quer nos seus fundamentos, quer na sua parte dispositiva.
A discordância da recorrente com a fundamentação da decisão, seja em matéria de facto, seja em matéria de Direito, seja ainda em relação ao modo como o juiz formou a sua convicção, o juízo crítico que fez da prova, não constitui fundamento de nulidade da sentença. A sentença não é ininteligível por o juiz decidir erradamente a matéria de facto ou a matéria de Direito, ou ter analisado as provas incorretamente.
A sentença é unívoca¸ o intérprete normal e razoável compreende-a bem, só que discorda da sua decisão. É esta, verdadeiramente, a discordância da R.
Improcede a primeira causa de nulidade invocada.

A outra nulidade suscitada é a oposição entre os fundamentos e a decisão (al. c) do nº 1 ainda do art.º 615º).
A nulidade resultará dos próprios termos da sentença e está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos art.ºs 154° e 607°, n.ºs 3 e 4, de fundamentar as decisões e, por outro lado, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Esta oposição é a que se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir.[4]
Trata-se de um vício que compromete a decisão desde logo na sua construção. A decisão perde a sua justificação ao apoiar-se ostensivamente numa base que, na realidade, não a sustenta. Os fundamentos constantes dela conduziriam, logicamente, não ao resultado expresso e querido pelo juiz subscritor, mas a um resultado oposto ou, pelo menos, bastante diferente, de tal modo que a decisão não é um ato considerado racionalmente sustentado; antes revela uma distorção do raciocínio que se impõe entre as premissas de facto e de Direito e a conclusão. A fundamentação há de apontar num sentido enquanto o segmento decisório segue caminho oposto ou, pelo menos, uma direção claramente diferente.
A apelante argumenta que a contradição relevante entre os fundamentos e a decisão reside no facto de o tribunal ter enquadrado a situação no art.º 2199º do Código Civil que, prevendo para incapacidade acidental do testador, estipula que o ato é anulável, mas decidiu declarar nulo esse mesmo ato.
Tem, em parte, razão. A anulabilidade e a nulidade dos atos jurídicos têm regimes diferente, sendo esta mais grave do que aquela, desde logo por, ao contrário da primeira, não carecer de arguição para dever ser apreciada pelo tribunal (opera ipso iure ou ipsa vi legis), é insanável pelo decurso do tempo ou mediante confirmação (art.º 286º e 288º do Código Civil. Já o negócio anulável é, em princípio, apesar do vício, tratado como válido. É sanável mediante confirmação e, caso não seja anulado a pedido de quem tenha legitimidade para o efeito e no prazo legal previsto, passa a ser definitivamente válido (art.ºs 287º e 288º do Código Civil).
Porém, são os mesmos os efeitos da declaração de nulidade e da anulação do ato: “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”. Não se produzem os efeitos jurídicos a que o negócio tendia.[5]
Não obstante o tribunal não tenha usado no dispositivo da sentença o termo ou a expressão correta de anulação do testamento, à luz do art.º 2199º do Código Civil, quando a usou na fundamentação da sentença, a troca pela expressão imprópria “declaro nulo o testamento” está longe de significar uma contradição relevante entre os seus fundamentos e a decisão, desde logo porque, uma vez declaradas, tais forma de invalidade produzem os mesmos efeitos jurídicos e nunca, jamais, um resultado oposto ou distorção do raciocínio que se imponha entre as premissas de facto e de direito e a conclusão.
A utilização, no caso, da expressão “declaro nulo o testamento” não passa de uma simples e consequente falta de rigor, uma mera irregularidade retificável. Não é uma nulidade.
O tribunal a quo já reformou a sentença em conformidade, o que deixa prejudicada a decisão sobre esta nulidade.
*
2. Erro na decisão proferida em matéria de facto
A recorrente pretende que seja dada como não provada a matéria dos pontos j), k), l), m) e n) da matéria dada como provada.
Deu cumprimento ao ónus de impugnação especificada previsto no art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a).

Entende-se atualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no art.º 662º, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do novo Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes[6], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelo recorrente e, se necessário, outras provas, como sejam as que o recorrido indicar e as referenciadas na motivação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Ex.mo Juiz, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efetivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, se necessário, a decisão em matéria de facto.
A indicação de meios de prova, designadamente testemunhal, ou de passagens diferentes dos depoimentos das mesmas testemunhas pela recorrente no seu recurso, na motivação da sentença e pelos AA. recorridos nas contra-alegações, levam-nos a ouvir toda a prova gravada, prevenindo qualquer vício de descontextualização e reforçando a possibilidade de uma melhor e mais bem fundada perceção da realidade, com enormes vantagens para a justa reapreciação da matéria impugnada, o que faremos a coberto dos poderes oficiosos previstos pela al. b), in limine, do nº 2 do art.º 640º.
Ensina Vaz Serra[7] que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto. Mas terá que haver sempre um grau de convicção indispensável e suficiente que justifique a decisão, que não pode ser, de modo algum, arbitrária, funcionando aquela justificação (fundamentação) como base de compreensão do processo lógico e convincente da sua formação.
Vejamos então!
A importância que a prova pericial tem para a demonstração de factos da natureza e especificidade dos que estão impugnados justifica uma prévia referência genérica à força probatória desse meio de prova.
Segundo o art.º 388º do Código Civil, esta prova “tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.
Segundo o Prof. Manuel da Andrade[8], a perícia consiste num meio de prova que se traduz na “percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas”.
Se é certo que a prova pericial, em processo civil, se encontra submetida ao regime da liberdade de apreciação da prova pelo tribunal, ínsito nos art.ºs 389º do Código Civil e no art.º 607º, nº 5, do Código de Processo Civil, podendo o juiz decidir de modo diferente das conclusões periciais, impõe-se-lhe um dever de fundamentação especialmente prudente quando a perceção do facto implique conhecimentos especiais de perícia. Ou seja, nestas situações, a liberdade de julgamento está vinculada não apenas ao dever de fundamentação, mas também à necessidade de afastar, motivando a dissensão das conclusões periciais baseadas e conhecimentos de ciência com base na credibilidade de outras provas. O juiz não necessita de demonstrar razões técnicas que o levam a divergir do juízo pericial/científico, mas há de indicar as provas concretas e, designadamente, as produzidas em audiência por testemunhas que têm conhecimentos especiais ou técnicos ou por documentos juntos aos autos, que fundaram o seu juízo divergente daqueloutro constante da perícia anteriormente efetuada, prosseguindo sempre o fim último do processo civil que é a procura da verdade e a justa composição do litígio.
Importa chamar à colação também o que escreveu o Prof. Alberto dos Reis[9]: “Claro que os fundamentos invocados pelos peritos para justificar as suas conclusões e os trâmites que eles houverem seguido no desempenho do seu cargo estão sujeitos à censura do juiz, que formará a sua convicção segundo a competência ou incompetência efectiva do perito e a seriedade, diligência e rectidão que ele revelar no desempenho do encargo, ou segundo os defeitos que o laudo apresentar. Mas, por que todo o arbitramento pressupõe a insuficiência de conhecimentos do magistrado, é vão imaginar-se que este se substitua inteiramente ao perito para refazer, por si, o trabalho analítico e objectivo para o qual não dispõe de meios subjectivos.
Daí que muitas vezes o litígio é decidido, substancialmente, pelo parecer do perito.
(...)
Quer dizer, a máxima de que o magistrado é o perito dos peritos, não passa, a maior parte das vezes, de máxima abstracta. Por mais que se afirme a hegemonia da função jurisdicional em confronto com a função técnica e se queira defender o princípio da livre apreciação da prova, não é raro que o laudo pericial desempenhe papel absorvente.
(…)
Pode realmente, num ou noutro caso concreto o laudo dos peritos ser absorvente e decisivo, como adverte Mortara; mas isso significa normalmente que as conclusões dos peritos se apresentam bem fundamentadas e não podem invocar-se contra elas quaisquer outras provas; pode significar também que a questão de facto reveste feição essencialmente técnica, pelo que é perfeitamente compreensível que a prova pericial exerça influência dominante.
Portanto, embora a prova pericial esteja sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (art.º 389º do Código Civil), o juiz deve ser especialmente prudente na análise crítica que dela faz em conjugação com as outras provas e com as regras da experiência, mas sempre consciente que lhe compete a si, e não aos peritos, julgar, sendo dele o respetivo esforço dedicado e fundamentado ao abrigo do art.º 607º, nºs 4 e 5).
A dúvida sobre a realidade de um facto resolver-se contra a parte a quem o facto aproveita (art.º 414º).
Ainda a propósito da livre apreciação a prova, refere-se, com pertinência, no acórdão da Relação de Lisboa de 17.10.2017[10]: “Mesmo que não tenha existido nenhum depoimento de que resulte a comprovação positiva de determinado facto, o tribunal pode relevar outros factos indiciários para formar a sua convicção sobre a verificação daquele, como consequência lógica, plausível e provável, valorando esses indícios de acordo com as regras da experiência comum e em função da sua livre convicção”.
Retomando o caso concreto, a prova produzida evidencia duas versões antagónicas relativamente à matéria impugnada: No essencial, uma delas vai no sentido de afirmar os factos dados como provados e impugnados no recurso, a outra nega essa matéria.
Nenhuma dessas versões assenta verdadeiramente em prova pericial, mas ambas têm sustentação em prova documental e testemunhal de especialistas: médicos relativamente a factos relativos à saúde da falecida F….
A informação clínica documentada no processo é a que mais contribui para convicção formada pelo tribunal recorrido, com especial relevo para o relatório psiquiátrico que constitui o documento nº 9, junto com a petição inicial (pág. 30 na forma eletrónica do processo[11]).
Trata-se de um relatório elaborado pelo psiquiatra Dr. H…, datado de 21 de julho de 2006 onde se concluiu o seguinte:
«
CONCLUSÃO:
A doente F… sob ponto de vista da Psiquiatria sofre de Deterioração Mental Psicótica Esquizofrénica (Estado de Defeito Esquizofrênico), com perda da capacidade de formulação de juízos de valor estando total e permanentemente incapacitada para poder reger a sua pessoa e bens, necessitando de apoio por terceira pessoa.
».
Depois de se referir ali que desde os 19 anos de idade que começaram a evidenciar-se as alterações de natureza psicótica, referiu-se mais adiante que:
«

»
Tanto quanto se anunciou da audiência, o médico subscritor já faleceu. A testemunha Dr. I…, também é psiquiatra, não conheceu a F…, e o seu depoimento foi centrado na interpretação daquele e de outros documentos clínicos com que foi confrontado, como sejam os registos pessoais da F… do Hospital L… juntos aos autos a 28.1.2020, designadamente a pág.s 128 e seg.s, onde se noticia uma possível --- do registo consta “teve crise psicótica (?) com necessidade de intervenção psiquiátrica (ideação que lhe lançaram bruxedo p/ não caminhar …”)[12] --- crise psicótica da falecida em 11.4.2005. Foi medicada e, meses mais tarde, foi ali registado “já sem surto psicótico … mais calma, colabora, sorri”.
Aqueles registos identificam sobretudo doenças de ordens diferentes (cardiologia e ortopedia), com realização de exames e acompanhamento hospitalar.
Interpretando aquele documento nº 9, a referida testemunha explicou que, pelos seus dizeres, a doente teria uma doença psiquiátrica do foro genético verdadeiramente incapacitante e evolutiva, com progressivo aumento de surtos, que a terá deixado incapacitada por volta dos 40 e tal anos de idade. De um modo geral, nos doentes, dá origem a reforma antecipada. Com quase 80 anos, quando fez o tratamento, já teria um défice cognitivo sério. Referiu ainda que, mesmo com um tratamento muito adequado ou afinado, a deterioração cognitiva dá-se sempre. Concluiu a testemunha que a F… já estaria totalmente dependente em 2005, sem capacidade para entender o que é um testamento nem vontade livre e esclarecida para testar. Nem conseguia desempenhar as tarefas mais elementares do seu dia-a-dia, como seja confecionar as suas refeições, ir às compras e pagar, fazer a sua higiene pessoal e avaliar o dinheiro, atenta a medicação que então tomava. Não estava capaz de fazer nada, referiu. Isto --- reafirma-se --- analisando aquele documento, não conhecendo a testemunha a F….
Na informação clínica que prestou no e.mail de 5.2.2020, o médico Z…, Coordenador USF …, da ARS do Norte, referiu:
«Existem nos arquivos da USF … registos que iniciam no ano de 1984. Anexamos todo esse espólio em formato digital.
Não existe qualquer registo da adolescência e infância da utente em questão (nascida em 1928).
As referências a doença mental surgem apenas em 2006, nos registos da Médica de Família e nos relatórios em arquivo recebidos de Medicina interna e psiquiatria.
A medicação que era renovada pela Médica de Família encontra-se também em anexo, registos informáticos disponíveis desde 2004.
Pode ser identificada como medicação "psiquiátrica":
Sertralina, 50 mg,
Quetiapina, 50 mg,
Alprazolam 0,25 mg.
Segundo registos, seria seguida em Psiquiatra privado.»
Continuando…
O Dr. H… referiu no seu citado relatório que a patologia psiquiátrica se iniciou pelos 19 anos de idade e com internamentos no Hospital …. Fala em tratamentos intensivos e contínuos naquele hospital. Porém, este mesmo hospital e o Hospital AB… (informação junta a 19.6.2020) negaram a existência de quaisquer dados clínicos relativamente à F….
O referido relatório psiquiátrico do Dr. H… terá servido para justificar, em Juízo, o interesse na não nomeação da F…, dando lugar à sua irmã, aqui R.., E…, para o exercício do cargo de cabeça-de-casal no inventário aberto por morte de uma tia de ambas (que não deixara filhos), podendo o verdadeiro motivo ser a idade da F… (mais velha) e a debilidade daí adveniente, que obstariam ao exercício adequado essa função, para alem de que apenas sabe assinar o seu nome, sem saber ler nem escrever (cf. documento 2 junto com a contestação; pág. 18). Conforme referido por algumas testemunhas (por exemplo, o depoimento de AC…), este seria o real motivo que levou a R. E… a pedir a emissão do referido relatório, cujo teor, foi dito, não corresponder à verdade.
Da informação hospital junta a 25.11.2019, relativa ao Hospital L…, não há qualquer alusão a doença do foro psiquiátrico. Da informação da Unidade Local de Saúde …, relativa a outubro de 2013, junta na mesma data, também nada resulta quanto a qualquer doença do mesmo foro. Foi ali declarado que reside sozinha numa casa, ao lado (da casa) da irmã, o que se ajusta à melhor prova testemunhal produzida.
O Dr. H… agiu a título particular; não o fez enquanto agente de uma entidade hospitalar pública e muito menos no âmbito de prova pericial organizada neste processo judicial. Prestava serviços clínicos na empresa de telefones, onde trabalhava a R., sendo conhecido dela, da sua consulta, como reconheceu a demandada.
Porém, a médica de família da F…, no Centro de Saúde AD…, Extensão de …, entre os anos de 2009 e 2016, em algumas ocasiões, mas não frequentemente, também receitou à F… Quetiapina, Alprazolan e Sertralina, de forma conjunta ou alternada (cf. registo clínico junto em 6.2.2020).
Foi, assim, lançado o anátema sobre a credibilidade daquele relatório do Dr. H… que nem ele (já falecido) nem a testemunha Dr. P… podem desfazer, este por não ter conhecido a F… e se ter limitado quase exclusivamente a interpretar documentos, principalmente aquele relatório.
Todavia, o conhecimento médico não se esgota naquelas referências. Foram ouvidas duas médicas, ainda que também na qualidade de testemunhas e sem especialização em psiquiatria, mas com a grande vantagem de conhecerem pessoalmente a F…: Dr.ª N…, médica cardiologista que seguiu a doente na sua consulta hospitalar, na vigilância e tratamento da sua doença cardíaca, e Dr.ª AE…, a sua médica de família, em cuja consulta a F… comparecia com alguma regularidade, permitindo-lhe ter uma perceção globalizada sobre o seu estado de saúde, em cada momento, tendo-lhe inclusivamente receitado, em algumas ocasiões, os citados medicamentos, usados na medicina psiquiátrica (Quetiapina, Alprazolan e Sertralina), entre os anos de 2009 e 2016, como resulta do registo clínico já citado. Este último depoimento tem uma importância quase soberana, dada a proximidade relacional médico-doente e conhecimento da causa justificativa da prescrição dos referidos fármacos. Ambos os depoimentos se evidenciaram desinteressados, exclusivamente técnicos, sem qualquer comprometimento pessoal ou familiar com a paciente, que conhecem apenas da consulta clínica, onde comparecia sempre ou quase sempre acompanhada da irmã E…, aqui R.
A médica cardiologista, N…, referiu que a sua consulta, no Hospital L…, onde recebia a doente, era muito dirigida para a sua especialidade e que não averiguava questões que com ela não estivessem relacionadas, assim acontecendo também na consulta da F… que ocorreu cerca de uma ou duas vezes por ano, durante vários anos, até à sua morte (em 2016). Não acedeu a qualquer informação psiquiátrica. A doente apresentava-se com higiene pessoal, cordata, sorridente e afável e nunca lhe detetou indícios que apontassem para comportamento psicótico. Ao ser confrontada com o relatório do Dr. H… ficou surpreendida, disse que, com todo o respeito pelos conhecimentos da psiquiatria (Quem sou eu para falar dessa matéria!?, por não ser a sua especialidade), nunca suspeitou sequer de esquizofrenia ou de qualquer outra doença psicótica. Confrontada com os fármacos acima identificados e informada de que eram receitados à F…, foi perentória na afirmação de que os mesmos são frequentemente usados na medicina também no tratamento da sintomatologia da depressão, da ansiedade, em quadros demenciais e outros, sendo receitados até a adolescentes. Não servem uma patologia específica, têm um espetro de aplicação enorme e mesmo fora de um quadro psicótico.
A Dr.ª AE…, trabalhou no Cento de Saúde … desde 2005. Conhecia melhor a F… do que a testemunha anterior. Admitiu ter-lhe receitado aquela medicação, mas nunca por causa de qualquer surto psicótico, que nunca lhe conheceu, nem dele suspeitou. Prescrevia aqueles fármacos para ela dormir melhor. Referiu que os idosos têm muitas perturbações do sono e aquela medicação se destinou a melhorar a sua qualidade. O comportamento da F…, na sua consulta, era, absolutamente, de uma pessoa normal. Falava com ela e com a irmã E… que a acompanhava sempre, ela entendia o que lhe era dito e conhecia as doenças que tinha. Apresentava-se com higiene pessoal e com um comportamento adequado e normal.
A depoente nunca se apercebeu de qualquer sinal psicótico, designadamente de atividade delirante, e referiu que se a F… fosse portadora duma doença mental dessa natureza, haveria alguma evidência de que se teria apercebido, dada a gravidade dos sintomas habituais.
Vejamos agora os restantes depoimentos testemunhais.
O Dr. O…, advogado, prestou serviços para a F…, designadamente pela realização das diligências necessária à concretização do testamento, no ano de 2005. Ela compareceu cerca de 3 vezes no seu escritório, sempre higienizada e sociável, manifestando bem o seu interesse e a sua vontade, como uma pessoa normal na sua idade. Assinou a procuração (pelo menos sabia assinar, disse). Sabia bem o que lhe pertencia e a quem queria deixar os seus bens, com a noção geral e comum do que é um testamento. Não se apercebeu de qualquer influência familiar para a sua decisão de testar, afirmando ela que queria contemplar a sua irmã E… por esta a ajudar.
Confrontada esta testemunha com o relatório médico elaborado pelo Dr. H…, de 21.6.2006, mostrou-se muito surpreendido, porque nunca lhe notou nada de anormal a nível mental, incluindo a sintomatologia própria da esquizofrenia ou de qualquer outra doença do foro psiquiátrico. Nunca assistiu a nada da F… que se enquadre naquele tipo de descrição. Acrescentou que mesmo o Sr. Notário, no ato da escritura do testamento --- que o depoente testemunhou --- conversou com a testadora e nada lhe encontrou que pudesse obstar ao ato. Ela tinha um discurso escorreito.
AF… nasceu em casa de seus pais, mesmo em frente à casa onde a F… sempre viveu com os pais até à morte do último, sua mãe, em 1993 e, depois, sozinha, até cerca de 3 anos antes da morte, altura em que, tendo ficado muito débil, com graves problemas nos ossos, foi viver para casa da irmã E…, mesmo ao lado da sua, que a apoiou. Esta testemunha mostrou conhecê-la perfeitamente, tendo com ela relacionamento social contínuo, diário, ainda que não profundo. Mostrou desinteresse no processo e até chegou a falar num litígio que terá existido há vários entre a F… e os pais do depoente, justificando a subida do muro e do portão da casa da F…, assim negando o que foi dito antes em depoimento de parte de B…, de que aquele alteamento foi feito para a F… não fugir de casa.
Afirmou que em tudo a F… revelava um comportamento normal, na sua modéstia e humildade, próprias de quem apenas sabe assinar o seu nome. Mas fazendo sempre a sua vida pessoal, a sua higiene, as suas refeições, as compras nas lojas de proximidade, contando o dinheiro cujo valor conhecia bem, cumprimentando e falando amistosamente com os vizinhos e conhecidos, nutrindo um grande carinho por crianças (incluindo o depoente enquanto o foi) até próximo da sua morte, altura em que passou a carecer muito de auxílio de terceiros por causa dos seus problemas de mobilidade, tendo então passado a beneficiar de grande apoio da irmão mais nova, E…, sua vizinha. Disse, tal como outras testemunhas, e ainda como resulta de alguma documentação clínica --- sem qualquer negação probatória ---, que a F… trabalhou muitos anos numa fábrica de produtos têxteis, em ….
Este depoimento, muito seguro e explicado com sentido lógico e coerente, está em consonância com os depoimentos do filho da R. (sobrinho da F…), AC…, AG…, ex-nora da R., por estar divorciada do seu filho AH…, mas ter vivido na casa da R., mesmo ao lado da casa da F…, entre 1989 e 1998, com passagens posteriores pelo local, AI…, neto da E… e frequentador das casas da avó e da tia-avó F… desde a infância, e ainda o referido AH… que sempre viveu em casa da mãe até ao momento em que a F… precisou do apoio dela e foi residir com a R., altura em que passou a viver na casa que foi residência da falecida.
Todos estes depoentes descreverem a vida da F… ao longo dos tempos, desde que a conhecem há muitos anos antes da data da feitura do testamento, e depois desta, contando pormenores das suas vivências e convivência com ela, muito significativos da normalidade da sua vida, tendo o AI… tomado regularmente refeições por ela confecionadas na sua casa, conforme explicação dada.
Esta prova harmoniosa e coerente entre si, abalou significativamente o quadro deixado pelo relatório médico de julho de 2005, o depoimento de parte de B…, o depoimento do marido, Q… --- este chegou a dizer que o muro e o portão da casa foram alteados para a tia não fugir e não se perder como já havia acontecido --- e da testemunha S…, tendo esta sido vizinha da falecida apenas até ao ano de 2005 e cujo depoimento consistiu em referências conclusivas a imprevisibilidade de comportamento e medo da F…, incapacidade para fazer a vida dela e apresentação sem higiene pessoal, sobretudo depois da morte da mãe e sem que ninguém que tomasse conta dela.
Esta versão mostra-se muito fragilizada à luz da restante prova, designadamente das prestações da Dr.ª AE…, de AF… e AG… que, afigurando-se-nos estas testemunhas rigorosas e isentas, não sendo familiares das partes, justificaram bem o seu desinteresse e o seu alargado conhecimento sobre a pessoa da F…, a primeira na perspetiva clínica bem justificada pelo longo e direto acompanhamento de diagnóstico e tratamento da sua saúde, e as demais no que concerne ao prolongado ambiente social em que conviveram.
Estas testemunhas desmereceram ainda a posição dos AA. ao referirem (sem que isso tivesse sido posto em causa) que aqueles, ao contrario da R., nunca se interessaram pela vida da F…, sua tia, nomeadamente pela sua saúde, surgindo agora apenas a manifestação do seu interesse pelo seu património.
Impõe-se ainda um esclarecimento. O que está em causa não é tanto saber se F… padecia de esquizofrenia ou qualquer outra doença incapacitante, psicótica ou não, mas se se encontrava incapacitada de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade, por qualquer causa, ainda que transitoriamente, no ato de testar.
A esquizofrenia é uma doença progressiva e grave, mas não imediata e irremediavelmente incapacitante. Vigiada e adequadamente tratada pode não evoluir para uma incapacidade, ou, pelo menos, para uma grande ou significativa incapacidade. É do conhecimento geral que muitas pessoas com essa psicose trabalham e fazem a sua vida social e económica com normalidade: conduzem, confecionam as suas refeições, cuidam da casa, convivem com outras pessoas, têm os seus gostos, dominam matérias, trabalham com bons resultados, gerem todos os aspetos da sua vida, tomando as decisões necessárias com adequado critério económico, ao ponto de não ser percetível a doença aos olhos do homem médio e razoável com quem interagem.
Tudo ponderado, assim recorrendo também as boas regras da experiência comum, quanto mais não seja pela dúvida séria que nos fica relativamente à matéria impugnada, altera-se totalmente a mesma para NÃO PROVADO, passando a integrar o acervo dos factos não provados.
*
3. Ónus da prova e insuficiência da matéria de facto
Nos termos o art.º 2199º do Código Civil, “é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”.
Esse normativo distingue-se da incapacidade de testar prevista nos art.ºs 2188º e 2189º do Código Civil. É capaz de testar todo o indivíduo que não seja abrangido por qualquer norma de incapacidade decretada na lei. O testamento feito por incapaz é nulo (art.º 2190º, do Código Civil).
A questão concreta situa-se no âmbito da aplicação do art.º 2199º do Código Civil, cuja epígrafe é incapacidade acidental, no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.
Esta disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada. Uma vez verificada uma situação e incapacidade aqui enquadrável, o testamento é anulável, dependendo, assim, a sua invalidade desde logo da iniciativa de quem tem legitimidade para a sua arguição, assentando ela na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.[13]
Saber quem tem o ónus de provar determinada circunstância fáctica que surja no contexto da demanda constitui elemento de primordial importância no desfecho do êxito da ação.
Segundo Vaz Serra[14], “a prova deve caber àquele que carece dessa prova para que o seu direito seja reconhecido. É que o juiz não pode aplicar uma norma jurídica, se não se fizer a prova dos requisitos constitutivos da hipótese de facto (Tabestand) pressuposta por essa norma para sua aplicação; e, portanto, o ónus da alegação e da prova pertence à parte a cujo direito, para se efectivar, deve aplicar-se a norma, donde deriva que cada uma das partes tem esse encargo relativamente aos factos de que depende a aplicação das normas que lhe são favoráveis. Por conseguinte, se a lei contém uma regra e uma excepção, a parte, cujo direito se apoia na regra, deve provar os factos integradores da hipótese nela prevista, e não já os integradores da hipótese prevista na excepção. Este critério faz com que o encargo da prova caiba precisamente à parte que se encontra em melhor situação para a produzir, e, assim, constitui um estímulo para que a prova seja produzida pela parte que mais perfeitamente pode auxiliar a descoberta da verdade: mostra a experiência, que, em regra, quem tem a seu favor certo facto se acautela com meios de prova dele”.
No caso em análise nem sequer existe dúvida em matéria de ónus da prova. A procedência da ação depende da prova de factos que preencham os referidos requisitos de anulação, previstos no art.º 2199º do Código Civil, cujo ónus é do autor: que o testador se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória. Esta anulabilidade encontra paralelo na regra do mencionado art.º 257º do mesmo código, quanto às condições da incapacidade acidental, mas diverge por prescindir da notoriedade daquele estado ou do seu conhecimento pelo declaratário, que não existe no testamento, como negócio jurídico unilateral não recetício. A anulação do testamento basta-se com a prova da existência de um estado de incapacidade natural que seja coeva ou contemporânea do momento em que o declarante emite a declaração relativa à disposição dos seus bens post mortis.
Temos assim que o ónus da prova dos factos impugnado pertencia aos AA.
Excluídos que estão agora os pontos j), i), k), l), m) e n) da matéria de facto provada, faltam os factos essenciais à verificação do fundamento legal da anulação do testamento, pelo que a ação tem que ser julgada improcedente.
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
………………………………
……………………………
……………………………
*
*
V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida e julga-se a ação improcedente.
*
CUSTAS
As custas da apelação e na 1ª instância pelos AA., por terem decaído em ambas as instâncias, sem prejuízo das taxas de justiça já pagas (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
*
Porto, 15 de dezembro de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
_________________
[1] Diploma a que pertencem as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Por transcrição.
[3] Por transcrição.
[4] Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, página 246.
[5] Carlos A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra ed., 2005, pág.s 619 e seg.s.
[6] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[7] “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171.
[8] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 262.
[9] Código de Processo Civil, Anotado, vol. IV, pág.s 184 e 185.
[10] Proc. 201/15.7T8CSC.L1-7, in www.dgsi.pt.
[11] A que pertencem todas as páginas do processo que forem citadas.
[12] O realce é nosso.
[13] P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, Vol. VI, 2010, pág. 323 e 324.
[14] Provas, Direito Probatório Material, BMJ 110/121.