Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21927/15.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
INÍCIO DA CONTAGEM DE PRAZO
Nº do Documento: RP2019121021927/15.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A deserção da instância depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
i) A inércia de qualquer das partes em promover o andamento do processo, imputável a título de negligência;
ii) A paragem do processo por tempo superior a seis meses, a contar do momento em que a parte devia ter promovido esse andamento;
iii) A prolação de despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual.
II - Em decorrência do princípio da boa gestão processual e do dever de prevenção que dele emerge, o prazo de 6 meses conta-se, não a partir do dia em que a parte deixou de praticar o ato que condicionava o andamento do processo, mas a partir do dia em que lhe é notificado o despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual.
III - A decisão de extinção da instância por deserção não faz caso julgado material, já que não houve qualquer decisão de mérito sobre a questão de natureza substantiva que se discutia nos autos, não precludindo qualquer direito que esteja em discussão na ação, podendo o direito invocado pela recorrente ser discutido noutro meio processual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 21927/15.0T8PRT.P1
Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
B…, e “C…, Unipessoal, Lda.”, intentaram em 11.09.2015, no Juízo Central Cível do Porto - Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, ação declarativa comum, contra D…, E…, F…, G… e “H…, Lda.”, pedindo a condenação dos réus nos pedidos formulados na petição inicial.
Após várias vicissitudes processuais, encontrando-se já designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento (8.01.2019), foi prestada informação nos autos, em 19.12.2018, pela autora C…, Unipessoal, Lda.”, do falecimento do co-autor B….
Em 21.12.2018 foi proferido o seguinte despacho:
«Suspendo a instância até que sejam habilitados os sucessores da parte falecida − art. 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e art. 22.º, n.º 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto.
Faz-se notar que o mandato do Ilustre Causídico subscritor não caducou relativamente à coautora.
Por não ser viável, em tempo útil, tramitar e decidir o incidente de habilitação de herdeiros, desmarcam-se, sine die, as sessões da audiência final já agendadas.
Notifique.
Os autos aguardam que a demandante (ou sucessores do autor falecido) assim os impulsione. Esclarece-se que:
a) o processo aguarda o impulso da demandante;
b) a inércia desta determinará a extinção da instância decorridos seis meses e um dia sobre a data da notificação deste despacho;
c) não haverá novo convite à prática do ato, sendo declarada deserta a instância, logo que decorrer o prazo apontado (art. 281.º, n.º 1);
d) qualquer circunstância que impeça a parte de praticar o ato deverá ser imediatamente comunicada ao tribunal.».
Não se registou qualquer atividade processual nos autos, tendo sido proferido em 11.07.2018, o seguinte despacho:
«Determina a norma vertida no n.º 1 do art. 281.º do Cód. Proc. Civ. (Deserção da instância e dos recursos) que “considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
De acordo com a norma contida no n.º 4 do mesmo artigo, “a deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator”.
O processo vertente esteve mais de seis meses parado, aguardando o impulso processual das partes, como resulta dos autos, não tendo sido apresentada qualquer justificação que possa afastar a qualificação desta conduta como sendo negligente.
A decisão vertente, embora imprescindível para que a deserção tenha efeitos processuais, é meramente declarativa − cfr. os Acs. do TRP de 28-04-2005 (JTRP00037988) e de 03-11-2005 (JTRP00038459). A instância já desertou.
Pelo exposto, encontra-se deserta e, como tal, extinta a instância (art. 277.º, al. c), do Cód. Proc. Civ.).
Fica prejudicado o conhecimento das questões processuais sem autonomia relativamente ao conhecimento do objeto do litígio.
Custas pela autora.
Não há lugar a elaboração de conta, para liquidação da responsabilidade emergente desta decisão, sem prejuízo do disposto no art. 7.º, n.º 6, da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, e sem prejuízo da eventual necessidade de contagem para liquidação da responsabilidade emergente de decisões pretéritas sobre custas ou multas processuais.
Notifique».
Não se conformou a autora “C…, Unipessoal, Lda.”, e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais formula as seguintes conclusões:
I – Antes de mais, o despacho em apreço é nulo, por violação frontal da Lei e assume cariz de verdadeira inconstitucionalidade.
Sem prescindir
II – Não se verifica nos autos falta de impulso processual das partes, pelo menos falta de impulso relevante ou que possa servir de fundamento para extinção da instância.
De facto,
III - A acção foi proposta por dois autores, duas pessoas jurídicas diversas, cumulando na acção dois pedidos diversos, embora movidos contra os RR. no âmbito da mesma acção.
IV - Trata-se, pois, salvo o devido respeito e melhor opinião, de um processo em que se verifica mera coligação de autores (e de RR.).
V - O que equivale a dizer que o processo corresponde a duas acções cumuladas no mesmo procedimento, conforme previsto no artº 36 do CPC.
VI - De facto, falecendo um dos autores, e ninguém se habilitando a suceder-lhe, quanto a esse autor e ao pedido por si formulado, a instância pode extinguir-se, mas mantém-se quanto às restantes partes.
VII – No caso, a co-autora, “C… - Unipessoal, Ldª”, é pessoa jurídica autónoma, parte própria e está devidamente representada por mandatário, e, tal como reconhecido pelo Tribunal o respetivo mandato não caducou (como é óbvio).
VIII - Igualmente continuam a existir nos autos como partes e estão devidamente representados todos os RR..
IX - Pelo que deveria/ deve a acção prosseguir quanto a estes
X - Os Tribunais estão obrigados (têm o dever) de administrar a Justiça quanto a todas as questões que lhe são postas – v.g. artº 152 do CPC.
XI - Este dispositivo processual resulta aliás de imperativo constitucional
XII - É a própria Constituição que comete aos Tribunais a obrigação de administrar a Justiça – artº 202 da CRP. XIII – A extinção da acção “in totum” consubstancia verdadeira denegação da justiça, em grosseira violação da Lei.
XIV - Violou, assim a sentença recorrida, por erro na aplicação da Lei, diversas disposições legais, nomeadamente os artigos 36, 152, 281 do CPC, artigos 2, 3, 12, 13 e 202 da CRP
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência deve revogar-se o despacho recorrido e substituir-se por outro que mande prosseguir os autos quanto às restantes partes, nos termos expostos.
Pois assim se fará JUSTIÇA.».
Os recorridos D…, G…, E… e I… apresentaram resposta às alegações de recurso, concluindo:
1. A sociedade comercial ora Recorrente é uma sociedade Unipessoal, cujo sócio único é o falecido co-Autor no presente processo.
2. A sociedade comercial Unipessoal foi regularmente notificada da suspensão dos Autos decorrente do decesso do co-Autor B….
3. Mais foi a sociedade ora Recorrente notificada para impulsionar os Autos, sob pena de se verificar a deserção da instância e a sua consequente extinção;
4. Não obstante, a sociedade ora Recorrente nada fez.
5. Não pode, assim, invocar a sua distinta personalidade jurídica para contornar a consequência da sua própria inércia.
Deve, assim, o presente Recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta Decisão Recorrida, como é da mais elementar JUSTIÇA!
II. Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se numa única questão: saber se se verificam os pressupostos legais da deserção da instância.
2. Fundamentos de facto
A factualidade provada relevante é a que consta do relatório que antecede.
3. Fundamentos de direito
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 281º do Código de Processo Civil, a instância considera-se deserta quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Decorre do normativo que se transcreveu, que a deserção da instância depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
a) - A inércia de qualquer das partes em promover o andamento do processo, imputável a título de negligência;
b) - A paragem do processo por tempo superior a seis meses, a contar do momento em que a parte devia ter promovido esse andamento[1].
Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[2], o prazo de 6 meses conta-se, não a partir do dia em que a parte deixou de praticar o ato que condicionava o andamento do processo, mas a partir do dia em que lhe é notificado o despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual.
Concluem os citados autores, apoiados em vasta jurisprudência, que a falta de advertência constitui nulidade processual.
No mesmo sentido, defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[3] que, antes de declarar o efeito extintivo da instância, o juiz deverá sinalizar por despacho, ser aquela a consequência da omissão do ato processual, em decorrência dos princípios da boa gestão processual e do dever de prevenção deles emergente.
Acresce assim, face à posição claramente maioritária da doutrina e da jurisprudência, um terceiro requisito para que possa ocorrer a deserção da instância: o despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual.
Vejamos a tramitação fulcral nos autos, com particular relevo para a decisão sobre a questão recursória:
i) Em 19.12.2018 foi prestada informação nos autos, pela autora (ora recorrente) “C…, Unipessoal, Lda.”, do falecimento do co-autor B….
ii) Em 21.12.2018 foi proferido o seguinte despacho:
«Suspendo a instância até que sejam habilitados os sucessores da parte falecida − art. 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e art. 22.º, n.º 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto.
Faz-se notar que o mandato do Ilustre Causídico subscritor não caducou relativamente à coautora.
Por não ser viável, em tempo útil, tramitar e decidir o incidente de habilitação de herdeiros, desmarcam-se, sine die, as sessões da audiência final já agendadas.
Notifique.
Os autos aguardam que a demandante (ou sucessores do autor falecido) assim os impulsione. Esclarece-se que:
a) o processo aguarda o impulso da demandante;
b) a inércia desta determinará a extinção da instância decorridos seis meses e um dia sobre a data da notificação deste despacho;
c) não haverá novo convite à prática do ato, sendo declarada deserta a instância, logo que decorrer o prazo apontado (art. 281.º, n.º 1);
d) qualquer circunstância que impeça a parte de praticar o ato deverá ser imediatamente comunicada ao tribunal.».
iii) Não se registou qualquer atividade processual nos autos, tendo sido proferido em 11.07.2018, o seguinte despacho:
iv) Em 21.12.2018 foi proferido o despacho recorrido – que declarou a deserção da instância.
Alega a recorrente que se verifica a “mera coligação de autores”, existindo assim “duas acções cumuladas no mesmo procedimento”, pelo que “falecendo um dos autores, e ninguém se habilitando a suceder-lhe, quanto a esse autor e ao pedido por si formulado, a instância pode extinguir-se, mas mantém-se quanto às restantes partes”.
Salvo o devido respeito, revela-se manifesta a improcedência do recurso.
Vejamos porquê.
Desde logo, cumpre esclarecer – pese embora a sua irrelevância para a apreciação da questão recursória – que não se verifica a coligação, mas antes o litisconsórcio, na medida em que, havendo pluralidade de partes há uma única relação material controvertida[4].
Na sua argumentação, a recorrente esquece a imperatividade das disposições legais ínsitas nos artigos 269.º e 270.º, ambas do Código de Processo Civil.
Dispõe o n.º 1, alínea a), do CPC, que a instância se suspende «Quando falecer ou se extinguir alguma das partes».
Imperativamente, preceitua o n.º 1 do artigo 270.º: «Junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo se já tiver começado a audiência de discussão oral ou se o processo já estiver inscrito em tabela para julgamento. Neste caso a instância só se suspende depois de proferida a sentença ou o acórdão.».
Finalmente, prescreve o n.º 3 do citado normativo: «São nulos os atos praticados no processo posteriormente à data em que ocorreu o falecimento ou extinção que, nos termos do n.º 1, devia determinar a suspensão da instância, em relação aos quais fosse admissível o exercício do contraditório pela parte que faleceu ou se extinguiu.».
Perante o quadro normativo enunciado, e a sua clara imperatividade, não se vislumbra como poderia a ação prosseguir, mantendo-se a instância “quanto às restantes partes”.
Na nossa prática forense, esquecemo-nos muitas vezes de que o critério de reprovabilidade com referência à litigância de má fé, em vigor no processo civil após as últimas revisões, passou a abranger, nomeadamente as situações em que se interpõe recurso da decisão, apesar de ser de todo pacífica a solução jurídica do caso, como bem refere o Conselheiro Abrantes Geraldes (in Temas da Reforma do Processo Civil, 1.º Volume, 2.ª edição, págs. 97 e 98).
Revela-se, por demais evidente, a total ausência de razão da recorrente que, relativamente a este segmento decisório, litiga no limite da lide temerária.
No que respeita à inconstitucionalidade (suscitada lateralmente, de forma genérica), cumpre tecer as considerações que se seguem.
A deserção da instância radica no princípio da autorresponsabilidade das partes, encontrando a legitimação legal no facto de não ser desejável, numa justiça que se pretende célere e cooperada, que os processos se eternizem em tribunal, quando a parte se desinteressa da lide ou negligencia a sua atuação, não promovendo o andamento do processo quando lhe compete fazê-lo[5].
Sendo absolutamente estranha à relação substantiva em discussão e recaindo apenas sobre a relação processual, tal decisão apenas é suscetível de gerar, nos termos do artigo 620º, caso julgado formal, sendo absolutamente inidónea para formar caso julgado material sobre qualquer questão de natureza substantiva.
A decisão de extinção da instância por deserção não faz assim caso julgado material, já que não houve qualquer decisão de mérito sobre a questão de natureza substantiva que se discutia nos autos.
Do exposto decorre que não preclude qualquer direito que esteja em discussão na ação, podendo o direito invocado pela recorrente ser discutido noutro meio processual.
Como tem entendido a jurisprudência, o artigo 281.º do Código de Processo Civil não padece de inconstitucionalidade material[6].
Não se verifica qualquer inconstitucionalidade, quer na norma em apreço, quer na interpretação acolhida no presente acórdão.
Decorre de todo o exposto a manifesta improcedência da pretensão recursória.
III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
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Custas do recurso pela recorrente.
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Porto, 10.12.2019
Carlos Querido
Mendes Coelho
Joaquim Moura
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[1] Vide, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3.05.2018 (processo 217/12.5TNLSB.L1.S1).
[2] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2018, pág. 572 e 573.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 329.
[4] Alegam os autores que o 1.º autor (falecido) deu de arrendamento à 2.ª autora o prédio identificado na petição, para esta ali exercer a atividade de “alojamento local”, e que os réus são donos de um prédio confinante que se encontra degradado, daí decorrendo danos para ambos os autores, pedindo, em consequência, a condenação dos réus, na realização de obras e no pagamento de indemnizações a favor dos autores.
[5] Vide acórdão do STJ, de 14.05.2019 (processo n.º 3422/15.9T8LSB.L1.S2).
[6] Vide, a título meramente exemplificativo, o acórdão da Relação de Lisboa, de 9.09.2014 (processo n.º 211/09.3TBLNH-J.L1-7).