Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3484/16.1T8STS-A.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
CONVENÇÃO DE HAIA
CRIANÇA
REGRESSO AO PAÍS DE ORIGEM
Nº do Documento: RP201801163484/16.1T8STS-A.P2
Data do Acordão: 01/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º805, FLS.43-50)
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 13º, al. b) da Convenção de Haia o regresso da criança ao país de origem não será ordenado se existe risco grave desta, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável.
II - A verificação das circunstâncias previstas neste preceito como impeditivas da ordem de regresso terá que se aferir em função da consideração do interesse da criança, que se recorta como referência fundamental da própria Convenção de Haia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3484/16.1T8STS-A.P2
Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores de Santo Tirso
Apelação
Recorrente: B…
Recorrido: Min. Público
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
O Min. Público veio requerer a entrega judicial da menor C… contra B….
Alegou para tanto que a menor é filha da requerida e de D…, que vivem separados. Corre termos no Tribunal de Família de Bury St. Edmunds, Reino Unido da Grã-Bretanha o processo n.º BV16P00006 em vista à regulação das responsabilidades parentais da menor. Aí, foi atribuída à requerida a respetiva guarda da menor e a mãe assumiu o compromisso homologado por decisão judicial de, após férias em Portugal entre 30/10/2016 e 5/11/2016, fazer regressar a menor à área de jurisdição daquele tribunal. A mãe deslocou-se a Portugal em férias e não regressou ao Reino Unido. A Autoridade Central designada pelo Reino Unido da Grã-Bretanha no âmbito da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças solicitou à Autoridade Central portuguesa no âmbito da mesma convenção o regresso da criança ao Reino Unido.
Foi ordenada a comparência da menor e da mãe, na sequência do que foram tomadas declarações à mãe.
Após, a mãe pronunciou-se por escrito pela recusa do regresso da menor.
Em vista, o Ministério Público pronunciou-se pela imediata procedência da pretensão.
Por despacho de 10.3.2017 foi julgada procedente a pretensão deduzida e determinado o regresso da menor ao Reino Unido da Grã-Bretanha.
Desta decisão foi interposto recurso pela mãe, julgado por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.6.2017, que determinou a anulação da decisão recorrida, a realização de inquérito pelos serviços da Segurança Social, através de profissionais especializados na área da psicologia infantil, com vista a apurar da atual situação da criança no agregado familiar da sua mãe, procurando-se apurar quais os seus sentimentos em relação ao regresso ao Reino Unido e ainda a audição da avó da menor.
Foi solicitada informação à Segurança Social que a fls. 143 referiu que o Setor de Acessoria Técnica aos Tribunais não possui profissionais com especialização na área da psicologia infantil, tendo, porém, mostrado total disponibilidade para elaboração de inquérito com vista a apurar da atual situação da criança.
O relatório respetivo acha-se junto a fls. 147 e segs.
Foi inquirida a avó da menor.
Foram proferidas alegações pelo Ministério Público e pelo ilustre mandatário da mãe.
Seguidamente, proferiu-se decisão que julgou procedente a pretensão deduzida e, em consequência, determinou o regresso de C… ao Reino Unido da Grã-Bretanha.
Inconformada com o decidido, a requerida B… interpôs recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª O presente recurso que se interpõe, versa sobre a douta sentença que determina o regresso da criança C… ao Reino Unido.
2.ª A douta sentença proferida pelo Tribunal “ad quo” errou ao determinar o regresso da menor ao Reino Unido da Grã-Bretanha, pelas razões que se passam a expor.
3.ª Em sede de audição da mãe da criança, a ora Recorrente, a mesma indicou circunstâncias que obstam à entrega da criança.
4.ª Ora, a douta sentença recorrida foi proferida sem que tivesse sido produzido toda a prova requerida pela Recorrente.
5.ª Impunha-se ao Tribunal a quo que solicitasse os relatórios à Polícia Inglesa e à Segurança Social Inglesa, de molde a aferir se o regresso da menor ao Reino Unido da Grã-Bretanha, sujeitaria a criança a risco grave de ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou de qualquer outro modo a ficar numa situação intolerável.
6.ª In casu, o relatório prestado pela Segurança Social é omisso quanto à abordagem com vista a apurar da atual situação da criança no agregado familiar da sua mãe, procurando-se igualmente apurar quais os seus sentimentos em relação ao regresso ao Reino Unido.
7.ª Por outro lado, a douta sentença recorrida foi proferida sem considerar o interesse primordial, a acautelar nestes casos e consagrado na Convenção de Haia: o superior interesse da criança.
8.ª A sua execução é, por si só causadora de sujeição da menor a perigos de ordem psíquica e física, susceptíveis de comprometer irremediavelmente o seu desenvolvimento.
9.ª Ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 13.º da Convenção de Haia, cessa a obrigação de entrega da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha ao retorno provar que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo fica numa situação intolerável.
10.ª In casu, o Tribunal a quo deveria ter averiguado as causas impeditivas do regresso da menor à Grã-Bretanha invocadas pela Requerida, ora Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 13.º da Convenção de Haia e ordenada a produção da prova oferecida.
11.ª O Meritíssimo Juiz “ad quo” proferiu a decisão recorrida sem proceder à apreciação da prova que, para o efeito foi oferecida pela Requerida.
12.ª Por conseguinte, a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C., porquanto o Meritíssimo Juiz a quo, deixou de se pronunciar sobre a apreciação da prova oferecida pela Requerida, que nem sequer foi produzida e a emissão da decisão sobre a verificação in casu, da causa impeditiva do regresso da menor à Grã-Bretanha, nos termos previstos no artigo 13.º da Convenção de Haia.
13.ª Ao desconsiderar a factualidade invocada e a prova oferecida, para a determinação no caso concreto do interesse superior da criança, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 13.º n.º 1 al. b) e 20.º da Convenção de Haia.
14.ª Acresce que, o Tribunal a quo não averiguou se tinham sido tomadas medidas adequadas para garantir a protecção da menor após o regresso à Grã-Bretanha, como devia ter feito nos termos do artigo 11.º n.º 4 do Regulamento nº 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003.
16.ª[1] Em face do exposto, a douta sentença recorrida viola o disposto nos artigos 615.º n.º 1 al. d) do CPC e artigo 13.º n.º 1 al. b) e 20.º da Convenção de Haia, devendo por conseguinte ser revogada e substituída por outra que recuse o regresso da menor ao Reino Unido da Grã-Bretanha.
O Min. Público apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Apurar se a decisão recorrida padece de nulidade ao abrigo do disposto no art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. do Proc. Civil;
II – Apurar se a decisão de determinar o regresso da menor ao Reino Unido se compagina com as disposições da Convenção de Haia.
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OS FACTOS
É a seguinte a matéria de facto dada como assente na decisão recorrida:
a) C… nasceu em 9 de Janeiro de 2014, e é filha de B… e de D…;
b) Por decisão de 11 de Outubro de 2016, proferida pelo Tribunal de Família de Bury St. Edmunds, Reino Unido da Grã-Bretanha, no processo n.º BV16P00006, com cópia junta como documento n.º 5 com a petição inicial (fls. 13, verso a 15), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, foi nomeadamente decidido, mediante compromisso da mãe no mesmo sentido, que a menor continuaria a viver com a mãe, a visitar o pai nos termos aí prescritos, e que a mãe “retornará imediatamente a menor, C… à jurisdição depois das férias com a menor”;
c) Segundo a mãe comunicou ao pai, as férias em Portugal decorreriam entre 30/10/2016 e 5/11/2016, mas a mãe deslocou-se para Portugal na data em questão e não mais fez regressar a menor ao território do Reino Unido da Grã-Bretanha, tendo passado a residir em Portugal;
d) Enquanto os pais viveram em comunhão de vida na Grã-Bretanha, e particularmente na parte final dessa vivência, tinham frequentes discussões, durante as quais o pai dava murros nas paredes e nas portas;
e) Outras vezes, quando pais e filha circulavam no mesmo automóvel, conduzido pelo pai, este aumentava bastante a velocidade do veículo com intenção de assustar a mãe;
f) O pai consumia esteróides e efedrina como complemento das suas actividades em ginásio e tinha por hábito ingerir uma caixa de embalagens de cerveja de meio litro durante o fim-de-semana;
g) Por vezes o pai anunciava à mãe que lhe ia tirar a menor e fugir com ela;
h) Os factos descritos de d) a g) foram comunicados pela mãe ao Tribunal de Família de Bury St. Edmunds, que ao longo do processo aí pendente, assistido por serviços de segurança social, passou de um regime de visitas do pai à filha num centro de contactos, para, na decisão mais recente, recorrer à mediação dos avós paternos na nas visitas da menor ao pai;
i) Por desentendimentos entre os pais após a separação, foi chamada pela mãe, por diversas vezes, a polícia inglesa, por ter receio da agressividade do pai;
j) Uma irmã da mãe habita ainda hoje o Reino Unido, e a mãe chegou a estar acolhida em sua casa após a separação;
k) Depois do regresso a Portugal, a mãe e a menor passaram a habitar na casa da avó materna, que é uma moradia com jardim e boas condições de habitabilidade;
l) O agregado aufere €557,00 mensais, acrescidos de subsídio de alimentação no valor diário de €6,40, provenientes de trabalho da mãe, a que acrescem €463,86, provenientes de pensão da avó materna, e ainda £66,00 de pensão de alimentos paga pelo pai;
m) A mãe é tida por cuidadosa e boa educadora da menor, existindo fortes laços de afecto entre mãe e filha, que beneficia também do afecto da avó materna;
n) Antes desta última deslocação a Portugal, o maior dos períodos em que a menor tinha permanecido em território nacional foi entre a idade dos 3 aos 9 meses;
o) Não foi possível determinar quais os sentimentos da menor em relação ao regresso ao Reino Unido.
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O DIREITO
I – A recorrente, nas suas alegações, arguiu a nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. do Proc. Civil, por não ter averiguado das causas impeditivas do regresso da menor à Grã-Bretanha, nos termos previstos no art. 13º da Convenção de Haia e também porque deixou de se pronunciar sobre a prova por si oferecida.
Ora, estabelece-se, neste preceito, que a sentença é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Sucede que da mera leitura da decisão recorrida (fls. 157 a 161) logo se alcança que nela se apreciaram todas as questões que demandavam conhecimento pelo tribunal “a quo”, tendo-se avaliado, no percurso argumentativo trilhado, da eventual ocorrência de causas impeditivas do regresso da menor à Grã-Bretanha de acordo com o disposto no art. 13º da Convenção de Haia.
E quanto às diligências probatórias requeridas pela recorrente, que, nesta fase, se reconduziam à inquirição, por carta rogatória expedida às autoridades judiciais britânicas, da testemunha E…, regista-se que a realização da mesma foi objeto de apreciação pelo tribunal “a quo” no primeiro segmento da decisão recorrida, onde se escreveu que “o tribunal não considera relevante a produção de tal prova testemunhal, só agora requerida, por razões que se prendem essencialmente com a suficiência das declarações da mãe na avaliação da factualidade relevante para determinar se o regresso desta a Inglaterra implica para a menor perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, uma situação intolerável”, posição esta que, de resto, merece a nossa plena concordância.
Impõe-se, pois, concluir no sentido de não verificação, “in casu”, da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. do Proc. Civil.
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II – 1. Prosseguindo, há agora que apurar se a decisão da 1ª Instância de determinar o regresso da menor ao Reino Unido se compagina com as disposições da Convenção de Haia e, em particular, se se verifica a situação prevista no seu art. 13º, nº 1, al. b).
Nestes autos está em causa a deslocação de um menor do Reino Unido para Portugal com a sua mãe, sem que depois esta tenha regressado ao Reino Unido na data prevista – 6.11.2016 -, sendo que a mãe não podia alterar o local de residência da criança para Portugal sem o consentimento do pai.
No art. 2º, ponto 11, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27.11.2003, diz-se que se verifica “deslocação ou retenção ilícitas de uma criança”, quando:
«a) Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; e
b) No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera-se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental.»
Assim, tal como se entendeu na decisão recorrida, estamos neste caso perante deslocação ilícita de uma criança nos termos da última parte da alínea b) do ponto 11 do art. 2º do Regulamento (CE) nº 2201/2003.
2. Acontece que uma eventual decisão no sentido da recusa do regresso da menor ao Reino Unido poderia fundar-se no disposto no art. 23º deste Regulamento, onde se indicam os fundamentos para o não reconhecimento de decisões proferidas em matéria de responsabilidade parental, mas percorrendo tais fundamentos[2] logo se verifica que nenhum deles se ajusta ao caso dos autos, razão pela qual não se vislumbra qualquer motivo para não aceitar a decisão judicial do Reino Unido como válida na nossa ordem jurídica.
3. Seguidamente, haverá que ter em atenção que o art. 11º, nº 2 do Regulamento torna aplicáveis no que concerne à recusa do regresso do menor os arts. 12º e 13º da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças de 25.10.1980.
Dispõe-se o seguinte no art. 12º da Convenção de Haia:
«Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.
Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para um outro Estado, pode então suspender o processo ou rejeitar o pedido para o regresso da criança
Ora, a retenção da menor em Portugal tornou-se ilícita a partir do momento em que esta não regressou ao Reino Unido em consonância com a decisão que aí tinha sido proferida, mas sobre esse momento e o início do presente processo não decorreu um ano e, por outro lado, não há suspeitas de que esta tenha sido novamente deslocada para um outro Estado.
4. Por seu turno, o art. 13º da Convenção de Haia estabelece o seguinte:
«Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:
a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança
No que toca à alínea a), a mesma é desde logo de afastar, porquanto a requerida era a detentora da guarda relativamente à criança e a sua deslocação a Portugal foi consentida. Tal como perante uma criança com quatro anos de idade não faz sentido equacionar a sua eventual recusa de regresso fundada no seu grau de maturidade.
Passando à alínea b), há a destacar que as circunstâncias aí previstas remetem para os conceitos de perigo físico ou psíquico e derivam diretamente da consideração do interesse da criança como critério de decisão. Sucede que estes conceitos devem ser compreendidos à luz da relação afetiva da criança com a pessoa de referência que cuida de si no dia-a-dia e da opinião da própria criança, a qual pode ser relevante em qualquer idade, desde que expressa de forma inequívoca – cfr. Clara Sottomayor, “Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio”, 6ª ed., pág. 150.
Com efeito, se é certo que a Convenção de Haia teve por fim proteger a criança no plano internacional dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícita e estabelecer formas que garantam o regresso imediato da criança ao estado da residência habitual, bem como assegurar a proteção dos direitos de visita, não é menos certo que foram razões inerentes à salvaguarda dos superiores interesses das crianças que estiveram na base do estabelecimento das exceções à aplicação do regime de recondução das mesmas para o país onde se encontravam antes da atuação ilegítima, isto é, foram essas razões que estiveram na base da previsão do seu art.º 13.º, em particular, da alínea b) do mesmo – cfr. Ac. Rel. Coimbra de 22.2.2005, proc. 2544/04, disponível in www.dgsi.pt.
Isto é, não se pode ignorar que a Convenção de Haia tem, acima de tudo, como objetivo fundamental a proteção da criança, de tal forma que se tudo indicar que o regresso da criança, por força da Convenção, não vá de encontro ao seu interesse, este não deve ser determinado.
Por seu turno, Maria dos Prazeres Beleza (in “Jurisprudência sobre Rapto Internacional de Crianças, Revista Julgar, nº 24, págs. 85/86) entende que, na apreciação do risco que justifica a decisão de retenção, a exigência da gravidade do risco ou de intolerabilidade da situação obrigam a uma interpretação restritiva quanto ao grau de uma e de outra, sendo que no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.6.2012 (proc. nº 1534/11.7 TMLSB-A.L1-7, disponível in www.dgsi.pt) se indicam nesse sentido casos de maus tratos, abuso sexual, regresso a países situados em zonas de conflito, de guerra ou de fome ou situações com um nível de gravidade semelhante.
5. No caso dos autos foi dada como assente a seguinte factualidade:
- Enquanto os pais viveram em comunhão de vida na Grã-Bretanha, e particularmente na parte final dessa vivência, tinham frequentes discussões, durante as quais o pai dava murros nas paredes e nas portas [d)];
- Outras vezes, quando pais e filha circulavam no mesmo automóvel, conduzido pelo pai, este aumentava bastante a velocidade do veículo com intenção de assustar a mãe [e)];
- O pai consumia esteróides e efedrina como complemento das suas actividades em ginásio e tinha por hábito ingerir uma caixa de embalagens de cerveja de meio litro durante o fim-de-semana [f)];
- Por vezes o pai anunciava à mãe que lhe ia tirar a menor e fugir com ela [g)];
- Os factos descritos de d) a g) foram comunicados pela mãe ao Tribunal de Família de Bury St. Edmunds, que ao longo do processo aí pendente, assistido por serviços de segurança social, passou de um regime de visitas do pai à filha num centro de contactos, para, na decisão mais recente, recorrer à mediação dos avós paternos na nas visitas da menor ao pai [h)];
- Por desentendimentos entre os pais após a separação, foi chamada pela mãe, por diversas vezes, a polícia inglesa, por ter receio da agressividade do pai [i)].
Porém, na decisão recorrida considerou-se que esta factualidade era insuficiente para que se considerasse preenchida a previsão do art. 13º, nº 1, al. b) da Convenção de Haia.
De qualquer modo, do relatório social elaborado pela Segurança Social, junto a fls. 147 e segs., consta ainda o seguinte:
- “B… encara a sua permanência em Portugal como uma salvaguarda do bem-estar da filha na medida em que os alegados comportamentos agressivos da figura paterna se acentuaram quando o mesmo, em paralelo ao investimento na prática de exercício em ginásio, aumentou a toma de esteroides, de bebidas alcoólicas, em particular cerveja (…)”;
- “(…) em acordo com o transmitido por B…, o progenitor nunca partilhou os cuidados nem momentos lúdicos com a descendente”;
- “Mãe e menor residem desde Outubro[3] em casa que é propriedade da avó materna. Trata-se de moradia com boas condições de habitabilidade, circundada por um jardim bem cuidado que proporciona à criança um espaço para as brincadeiras em condições meteorológicas favoráveis” – cfr. al. k) da factualidade assente;
- “No âmbito do presente processo a progenitora teme que seja “obrigada” a regressar ao Reino Unido, por recear que tal coloque a filha em perigo desde logo, e na pior das hipóteses, que o pai cumpra com as ameaças de fuga acompanhado da descendente”;
- “(…) a educadora de infância da menor caracterizou-a como sendo uma criança alegre e sociável, que revelou grande facilidade na adaptação ao jardim de infância o qual integrou em janeiro de 2017 e onde permaneceu até junho somente até à hora de almoço. (…) na perspectiva da educadora, a C… revela um nível de desenvolvimento igual ou superior ao de algumas crianças do seu grupo/faixa etária, designadamente a nível da linguagem, da motricidade e autonomia”;
- “Pronunciou-se também relativamente à progenitora, a qual entende ser muito cuidadosa com a menor boa educadora, sendo que observou os laços de afeto existentes entre ambas, designadamente nos momentos do regresso da criança a casa para almoço”;
- “Na observação em gabinete a menor fez jus à descrição da educadora e à verbalizada pela sua mãe em espaço de entrevista individual.”
Por outro lado, consignou-se na decisão recorrida não ter sido possível determinar quais os sentimentos da menor em relação ao regresso ao Reino Unido – cfr. al. o) da factualidade assente.
6. Em linha com o que já atrás se expôs, a gravidade do risco de a criança, com o seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou de se criar para ela uma situação intolerável, tem que ser aferida em função do seu próprio interesse, até porque o objetivo fundamental da Convenção de Haia não deixa de ser a proteção da criança.
Tal como se afirma no Acórdão da Relação de Lisboa de 17.11.2015 (proc. 761/15.2 T8CSC.L1-7, disponível in www.dgsi.pt.), “…a exceção ao imperativo da ordem de regresso exige que seja feito um juízo avaliativo de conformidade entre o regresso da criança e o seu interesse, ou mesmo com a sua vontade (desde que a sua idade e maturidade justifique que se tenha em conta a sua opinião), sendo que esta se terá de fundamentar na salvaguarda do seu interesse que, (…), constitui “a trave mestra” da Convenção”.
Ora, da ponderação que fazemos dos elementos factuais vertidos na decisão recorrida e também do que consta do relatório social junto a fls. 147 e segs., entendemos, diferentemente da 1ª Instância, que no caso dos autos existe fundamento para aplicação da exceção prevista no art. 13º, al. b) da Convenção de Haia, não se determinando, por esse motivo, o regresso da menor ao Reino Unido.
Com efeito, cremos existir para a menor, caso o seu regresso seja ordenado, grave risco de ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica e de criação de uma situação intolerável.
Não se pode ignorar que a C…., que entretanto perfez quatro anos de idade, se encontra a viver em Portugal desde Novembro de 2016 e que aqui se acha inserida em agregado familiar constituído pela sua mãe e pela avó materna e que lhe proporciona uma vida estável e harmoniosa. Fez uma fácil adaptação ao jardim-de-infância, revelando até um nível de desenvolvimento igual ou superior ao de algumas crianças do seu grupo/faixa etária, designadamente a nível da linguagem, da motricidade e autonomia.
O seu regresso ao Reino Unido constituirá, neste momento, uma quebra na sua vida e no seu são processo de crescimento, mesmo que seja acompanhada pela sua mãe, isto porque ficará sujeita ao forte clima de conflitualidade existente entre os dois progenitores, mesmo estando este separados, e agora certamente exacerbado pela larga permanência da mãe em Portugal, sendo que o progenitor revela traços de agressividade que poderão até redundar em comportamentos imprevisíveis.
Mas a mãe pode não acompanhar a sua filha no regresso ao Reino Unido. Não está obrigada a fazê-lo e ao ser ouvida em tribunal declarou que não o faria por receio de ser presa ou de perder a filha. Mesmo que o receio de privação de liberdade se afigure excessivo, certo é que o temor de perseguição criminal pode levá-la a não acompanhar a filha e a permanecer em Portugal, onde tem neste momento a sua vida organizada, confiando no apoio que lhe poderá ser proporcionado no Reino Unido pela sua irmã que aí reside – cfr. al. j).
Só que este segundo cenário conduzir-nos-á a uma situação que cremos intolerável: ao afastamento da mãe e da filha, quando esta somente tem quatro anos de idade, havendo entre ambas uma forte relação de afetividade e sendo, inclusive, a mãe caracterizada como boa educadora.
O interesse da criança, que surge como referência decisiva em todos os processos relativos ao exercício de responsabilidades parentais[4], leva-nos a não determinar o regresso da menor C… ao Reino Unido, por se considerar preenchida a previsão do art. 13º, al. b) da Convenção de Haia.[5]
A consideração desse interesse implica que a menor permaneça em Portugal, a viver com a sua mãe – com quem aliás foi judicialmente fixada a sua residência - e a avó materna, em ambiente caracterizado pela estabilidade emocional e psicológica e que seguramente será o melhor para o seu desenvolvimento são e harmonioso.
Como tal, a decisão recorrida será revogada com o que logrará procedência o recurso interposto pela progenitora.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela progenitora B… e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, não se ordenando o regresso da menor C… ao Reino Unido por se considerar preenchida a previsão do art. 13º, al. b) da Convenção de Haia.
Sem custas.

Porto, 16.1.2018
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
________
[1] Inexiste a conclusão 15ª.
[2] A decisão não é de reconhecer:
«a) Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido, tendo em conta o superior interesse da criança;
b) Se, excepto em caso de urgência, tiver sido proferida sem que a criança tenha tido a oportunidade de ser ouvida, em violação de normas processuais fundamentais do Estado-Membro requerido;
c) Se a parte revel não tiver sido citada ou notificada do acto introdutório da instância ou acto equivalente, em tempo útil e de forma a poder deduzir a sua defesa, excepto se estiver estabelecido que essa pessoa aceitou a decisão de forma inequívoca;
d) A pedido de qualquer pessoa que alegue que a decisão obsta ao exercício da sua responsabilidade parental, se a decisão tiver sido proferida sem que essa pessoa tenha tido a oportunidade de ser ouvida;
e) Em caso de conflito da decisão com uma decisão posterior, em matéria de responsabilidade parental no Estado-Membro requerido;
f) Em caso de conflito da decisão com uma decisão posterior, em matéria de responsabilidade parental noutro Estado-Membro ou no Estado terceiro em que a criança tenha a sua residência habitual, desde que essa decisão posterior reúna as condições necessárias para o seu reconhecimento no Estado-Membro requerido; ou
g) Se não tiver sido respeitado o procedimento previsto no artigo 56.º»
[3] De 2016.
[4] A este propósito escreve Maria dos Prazeres Beleza (in “Jurisprudência sobre Rapto Internacional de Crianças, Revista Julgar, nº 24, pág. 69): “No caso dos processos relativos ao exercício das responsabilidades parentais, como se sabe, é o superior interesse da criança que norteia e fundamenta a intervenção do tribunal (…) Esta prevalência não implica de forma alguma a desconsideração dos interesses dos progenitores; mas significa a respectiva subordinação ao interesse da criança e a indisponibilidade dos direitos e deveres de que são titulares, que o tribunal deve ter em conta quando regula directamente ou homologa regimes de exercício das responsabilidades parentais, ou quando decide questões relacionadas com esse exercício – como é o caso das que ao rapto se referem.”
[5] Anote-se ainda que a decisão de não determinar o regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida em Portugal tem como efeito tornar o tribunal português competente para decidir “sobre o fundo do direito de custódia” – cfr. Ac. Rel. Lisboa de 15.12.2011, proc. 265/10.OTMLSB-B.L1.6, disponível in www.dgsi.pt e Maria dos Prazeres Beleza, ob. cit., pág. 86.