Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1073/14.4GBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CRIME DE INJÚRIAS
EXPRESSÕES SEM RELEVÂNCIA PENAL
JUÍZO CRÍTICO SOBRE ACTUAÇÃO FUNCIONAL
Nº do Documento: RP201801101073/14.4GBPNF.P1
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 1/2018, FLS 165-171)
Área Temática: .
Sumário: I - As afirmações “tu pensas que mandas” e “ tratas mal as funcionárias” não têm relevância penal por não serem objectivamente ofensivas.
II - A expressão “tu és desumana” traduz um juízo critico sobre a actuação funcional da pessoa visada no âmbito das funções que desempenhava, traduzida numa opinião negativa, mas que não é ofensiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1073/14.4 GBPNF.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

I Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 1073/14.4 GBPNF, corre termos pela Secção Criminal (J1) da Instância Local de Penafiel, Comarca do Porto Este, B... foi submetida a julgamento, por tribunal singular, acusada pelo Ministério Público da prática de factos que consubstanciariam a autoria material, em concurso real, de um crime de injúria agravado e um crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º (com referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), e 22.º, 23.º, 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, al. a) (com referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l)), todos do Código Penal.
C..., devidamente identificada nos autos, admitida a intervir como assistente, deduziu acusação particular pelos mesmos factos e formulou pedido de indemnização civil contra a arguida.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença, datada de 27.02.2017 (fls. 296 e segs.) e depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo:
“Tudo visto e ponderado, o tribunal decide:
1. Absolver a arguida B... da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada previsto e punido pelos artigos 22°, 23°, 143°, n.º 1, 145°, n.º 1, al a) com referência ao artigo 132°, n.º 2, al. l) todos do C. P.

2. Condenar a arguida B... pela prática de um crime de injúrias agravado, previsto e punido pelos artigos 181° e 184° do C.P. na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz a quantia global de € 560,00 (quinhentos e sessenta euros).

3. Julgar o pedido de indemnização deduzido pela assistente/demandante contra a arguida/demandada parcialmente procedente e, condenar esta a pagar àquela o montante de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), acrescido dos juros de mora, calculados desde a notificação do demandado para contestar o pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento, à taxa legal que sucessivamente vigorar para os juros civis.

4. Condenar a arguida nas custas do processo crime, (artigos 513°, 514° e 515° Código de Processo Penal), fixando-se em 2 U.C.'s a taxa de justiça (artigo 8°, n.º 5 e do Regulamento das Custas Judiciais).

5. Condenar assistente/demandante e arguida/demandada nas custas dos pedidos de indemnização civil na proporção dos respetivos decaimentos”.
Inconformada, veio a arguida interpor recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, de que extraiu as seguintes “conclusões”:
I. “Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida no pretérito dia 27/02/2017, que condenou a ora Recorrente a uma pena de multa de 80 dias, à taxa diária de €7,00, pela alegada prática material de um crime de injúrias agravadas, previsto e punido pelo art.º 181º e 184º do Código Penal.
II. A Recorrente foi ainda condenada a pagar à Assistente o montante de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), a título de indeminização cível.
III. Não pode a Recorrente conforma-se com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, pois, é seu entendimento que as expressões proferidas pela Recorrente, no contexto em as mesmas foram ditas (tempo, modo e local) não assumem dignidade penal.
IV. A Recorrente, à data dos acontecimentos, desempenhava a função de professora ... no D..., sito em ..., Penafiel,
V. E por seu turno, no mesmo D..., a Assistente desempenhava as funções de educadora de infância.
VI. Foi considerado como provado pelo Tribunal a quo que, no decurso de uma reunião naquele estabelecimento de ensino, em defesa dos interesses dos demais funcionários daquele D..., mas em particular da funcionária E..., a ora Recorrente interrompeu a sobredita reunião, e dirigiu as seguintes expressões à Assistente: «tu pensas que mandas (…) és desumana (…) tratas mal as funcionárias»
VII. Ora, de tais expressões não resulta qualquer intenção de ofender a honra e consideração da Assistente,
VIII. Pois a Recorrente agiu por impulso, numa tentativa desesperada de reivindicar direitos para as funcionárias daquele D..., em especial para a funcionária E..., conforme se logrou provar pelo depoimento em especial da funcionária F..., que a MMª Juiza a quo valorou como credível
IX. Para efeitos de tutela penal, cujo fundamento se busca na proteção do direito fundamental ao bom nome e reputação constitucionalmente consagrado no art. 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a honra traduz-se num bem jurídico multiforme, que mistura uma conceção fáctica, subjetiva e objetiva, com uma conceção normativa, pessoal e social, incluindo, desta forma, por um lado, o valor e dignidade pessoal e interior de cada indivíduo, e, por outro, a sua integração e consideração na comunidade em que se insere.
X. A honra deve ser entendida como uma decorrência direta da dignidade da pessoa humana (cfr. art. lº da CRP) e, nessa medida, como um conceito normativo, cuja concretização não dispensará a convocação de uma dimensão fáctica ou existencial do homem enquanto ser social.
XI. No caso do crime de injúria, prevê-se que a imputação de factos e a simples direção de palavras a outrem podem traduzir uma forma de ofensa da honra e consideração do visado.
XII. A ordem jurídica acolhe os direitos ao bom nome e reputação de forma harmonizada e convergente, de tal modo que, entre outros, devem ser excluídos do seu âmbito de proteção os conteúdos que possam considerar-se de plano constitucionalmente inadmissível, mesmo quando não ressalvados na sua definição literal.
XIII. Nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações suscetíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado.
XIV. Por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada.
XV. O direito não pode intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
XVI. Apenas nos casos concretos é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efetivamente, comportam uma carga ofensiva da honra de um indivíduo. Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstância envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.
XVII. No caso dos autos, as expressões proferidas «tu pensas que mandas (…) és desumana (…) tratas mal as funcionárias» têm se ser analisadas no contexto em que foram proferidas, pois sendo apreciadas de per si, isto é de forma isolada e desgarrada do contexto, até poderiam ser adequadas a ofender a honra e consideração do visado, que nem assim se crê que sejam.
XVIII. Tanto mais se analisadas no contexto em que foram proferidas, uma discussão em que a Arguida assumiu a acalorada e acérrima defesa de uma colega de trabalho, para assim concluirmos que, essas mesmas expressões ou imputações, enquadradas nesse contexto, do qual resulta um significado ou uma conotação diferente, podem perder qualquer carga ofensiva.\
XIX. Ora, a conduta imputada à arguida, ainda que possa ter incomodado a assistente não assume a gravidade suficiente para merecer a tutela do direito penal, tanto mais quando a mesma é assumida no âmbito de uma “discussão”.
XX. Importando ainda ter em conta que as expressões «pensas que mandas (…) és desumana (…) tratas mal as funcionárias», quando utilizadas numa discussão, não tem subjacente qualquer significado literal preciso (e muito menos ofensivo), sendo utilizadas como palavras meramente incomodativas.
XXI. No fundo, a utilização comum da expressão «tu pensas que mandas (…) és desumana (…) tratas mal as funcionárias» com conotação depreciativa tem “apenas” subjacente a ideia de que a Arguida, autora daquelas expressões não tem consideração pela atuação da Assistente, sem que isso signifique a imputação de qualquer facto a esta ou que traduza umas palavras verdadeiramente ofensivas, traduzindo antes umas expressões indelicadas e incomodativas.
XXII. Além disso, verifica-se que as expressões em apreço foram utilizadas no âmbito de uma discussão entre a assistente e a arguida e mesmo num forte quadro litigioso, revelando-se, neste quadro, essencialmente uma expressão de grosseria e de deselegância por parte do seu agente.
XXIII. Por conseguinte, verifica-se que as expressões em apreço, quanto mais não seja no circunstancialismo referido, não possuem a virtualidade de assumir dignidade suficiente para merecer a tutela penal, na medida em que não são adequadas a atingir o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
XXIV. Nunca a Recorrente se poderá conformar com o entendimento do Tribunal a quo, de que estas expressões face a este circunstancialismo são por si só idóneas a ofender, magoar e preocupar a assistente a quem foram dirigidas.
XXV. Antes, o raciocínio deveria ter sido precisamente o inverso, ou seja, o proferir de tais expressões é que deve ser enquadrado neste circunstancialismo e justificado por tal, pelo estado emocional da Recorrente, em razão da injustificada transferência de uma funcionária do D....
XXVI. No contexto de uma discussão, num ambiente manifestamente hostil entre as partes, a Recorrente proferiu as expressões que acima se referiu, sendo evidente que à semelhança de um qualquer homem médio tal atuação terá sido perfeitamente irrefletida, pautada por um estado de exaltação e nervosismo, despoletado, além do mais pela atitude da Assistente “de expulsar” a Recorrente da sala onde decorria a reunião.
XXVII. Assim, ainda que se entendesse que a Assistente se tinha sentido ofendida pelo proferir das expressões dos presentes autos, sempre se teria que atentar no carácter objetivamente atípico das mesmas, pois a intenção de ofender é também elemento do tipo legal do crime de injúrias, cuja não verificação in casu afasta a existência de crime.
XXVIII. Nada nas palavras imputadas à Recorrente, poderá conduzir ao juízo de prognose de que seria sua intenção injuriar e ofender a Assistente,
XXIX. Isto porque, aquelas expressões não podem ser consideradas mais que uma reação, um contra-ataque irrefletido num clima de extremo nervosismo e tensão. Razão pela qual, de modo algum se pode considerar preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime de injúrias agravado e, logo, de modo algum se pode concordar com a condenação contida na decisão aqui sindicada.
XXX. Assim, nunca se poderia ter considerado como verificados os elementos do tipo legal de crime identificado e, consequentemente, nunca poderia ter a Recorrente sido condenado pelo crime de injúrias, devendo por isso a decisão recorrida ser alterada no sentido postulado pelas normas jurídicas, absolvendo-se a Recorrente.
XXXI. Por outro lado, equacionando-se um qualquer grau de ofensividade denotado pelas expressões referidas pela Assistente, as mesmas, claramente, revestem natureza “bagatelar”, o que sempre afastaria a necessidade de tutela penal, afrontando o princípio da ultima ratio do processo de natureza criminal.
XXXII. E a conduta até poderia ser censurável em termos éticos ou profissionais, mas nunca o seria em termos penais.
XXXIII. Não resulta dos Autos que a Recorrente tenha sequer criado um "perigo" de lesão do bem jurídico da honra e consideração da Assistente, tal os moldes genéricos e abstratos em que as alegadas críticas foram feitas, no pleno e legítimo uso da liberdade de expressão.
XXXIV. Ora, nem todo o facto que envergonha, perturba ou humilha cabe na previsão do supra referido artigo 181°, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa, isto é, ainda que se considerasse ter a Assistente sentido ofensa pelas palavras imputadas à Recorrente, sempre se teriam de considerar as mesmas como juridicamente irrelevantes, porque objetivamente impassíveis de ofender a honra e consideração da mesma.
XXXV. Nem todo o facto potencialmente perturbador é suscetível de afetar o bem jurídico - honra, entenda-se de suscitar a tutela penal e assim justificar a intervenção deste ramo processual configurado como última ratio.
XXXVI. São ofensivos os factos que afetam a dignidade ou a reputação de uma pessoa, ou que atingem ou possam atingir outros valores, como a retidão, honestidade, lealdade ou correção da conduta da pessoa em causa, desde que as imputações sejam de natureza a provocar, segundo o sentimento geral, uma ofensa injustificada ao desprestígio público, com as consequências morais e sociais para a dignidade do visado, ou seja, deve-se imprimir um mínimo razoável de objetividade na determinação do conteúdo do bem jurídico honra.
XXXVII. Face a um tal critério jamais se poderiam considerar as expressões proferidas pela aqui Recorrente como suscetíveis de afetar tal bem jurídico e, assim, justificar a ação penal.
XXXVIII. Ao penitenciar expressões de natureza tão “bagatelar” como as trazidas à presente contenda, seria tornar jurídico-criminalmente relevante qualquer desentendimento, discussão ou perda de compostura, ainda que motivados por pressões e provocações repetidas que, em concreto e última análise, não são merecedores de semelhante dignidade, não podendo esquecer que, afinal, nos encontramos perante um ramo de direito cuja natureza fragmentária sempre impõe que a ele se recorra enquanto direito punitivo de última ratio.
XXXIX. Da matéria de facto dada como provada na sentença proferida pelo Tribunal a quo, não resulta que a Recorrente tenha ofendido a honra e consideração da Assistente, pois,
XL. Por um lado, as expressões proferidas «tu és desumana (…) tratas mal os funcionários», não assumem gravidade suficiente, para em abstrato constituírem ofensas.
XLI. As ofensas deverão, por isso, dever ser entendidas não como injúrias, mas antes como manifestações de desentendimento e/ou desagrado.
XLII. Por outro lado, a Recorrente não agiu com o intuito de ofender a honra e consideração da Assistente, mas tão somente, como forma de demonstrar o seu desagrado com a “situação” relatada nos presentes autos, e ainda a fim de “defender os interesses dos funcionários” do D... onde desempenhava funções, e que no entendimento da Recorrente estavam a ser frontalmente ameaçados.
XLIII. Vide a título de exemplo, e a este propósito, os entendimentos perfilhados pelos Tribunais da Relação de Guimarães (proc. nº 310/13.7TABGC.G1 de 23/03/2015), Tribunal da Relação de Évora (proc. nº 956/07.2TALLE.E1 de 13/05/2014), Tribunal da Relação de Lisboa (proc. nº 16/07.6S6LSB.L1 de 09/02/2011) e Tribunal da Relação do Porto (Acórdão de 07/11/2012).
XLIV. Não é verdade que a Recorrente tenha proferido as expressões que ora lhe são imputadas, com o intuito de ofender a honra e consideração da Assistente,
XLV. Bem como, não se aceita a punição da Recorrente, uma vez que as expressões proferidas nas circunstâncias de tempo, modo e lugar, indubitavelmente não assumem dignidade penal, o que nos autos importa.
XLVI. A sentença ora sindicada, violou entre outras, as normas jurídicas constantes dos artigos 31 e 181º ambos do C. Penal e artigos 1 e 26, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
XLVII. Pelo que, deverá a Recorrente ser absolvida da prática de um crime de injúrias agravado, e consequentemente, deverá o pedido de indemnização cível deduzido pela Assistente ser julgado improcedente, por não provado”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 347) e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, apenas o Ministério Público apresentou resposta à respectiva motivação, defendendo a sua improcedência e a consequente confirmação da decisão recorrida.
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Subiram os autos ao tribunal de recurso e, já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que toma posição diametralmente oposta à do Ministério Público no tribunal a quo, pronunciando-se pelo provimento do recurso.
Desse douto parecer, destacamos a seguinte passagem:
“Dado o contexto em que foram produzidas as palavras que a arguida dirigiu à assistente parece-nos que a eventual conduta ilícita se encontra justificada pelo exercício de um direito – a liberdade de expressão, mais concretamente configurada como direito de crítica, a qual, nas circunstâncias do caso, nos parece terem funcionado como causa justificativa da ilicitude.
Neste sentido, escreve Manuel da Costa Andrade, in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra, 1996, páginas 302 e seguintes:
«Para ser lícita a crítica não carece de ser objectivamente adequada, no sentido de objectivamente fundada e hoc sensu objectivamente “verdadeira” e “justa”.
Em segundo lugar, abandona-se a exigência do recurso aos meios menos gravosos. (…) Pelo contrário, o direito de crítica legitima, só por si, as expressões mais carregadas, violentas e devastadoras.
Em terceiro lugar, liberta-se o autor da crítica do dever de demonstrar a sua pertinência, isto é, de carrear argumentos ou factos em abono do seu bem fundado».
No caso dos autos, a nosso ver, a arguida limitou-se a exercer o seu direito de crítica sobre a pessoa da assistente, o que justifica o carácter ilícito da sua conduta, nos termos da alínea b), do n.º 2, do artigo 31.º, do C.P.
Assim sendo, somos de parecer que a conduta da arguida, no caso concreto, não deveria ter sido considerada ilícita e, por isso, a mesma deveria ser absolvida”.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, sem resposta da recorrente.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II Fundamentação
Sabendo-se que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, está evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente.
As conclusões formuladas pela recorrente não são as proposições sintéticas que se exige que sejam.
Ainda assim, entendemos não se justificar um convite à recorrente para as aperfeiçoar porque as razões da discordância da recorrente são facilmente identificáveis.
A recorrente não impugna a decisão sobre matéria de facto. A sua discordância cinge-se à matéria de direito, especificamente, à valoração jurídico-penal dos factos, pois entende que as palavras que dirigiu à assistente não são ofensivas, pelo que não seriam idóneas ao preenchimento do tipo legal em causa.
Assim, a única questão a apreciar e decidir consiste em saber se, com a sua provada conduta, a arguida/recorrente cometeu, ou não, o crime de injúria agravada pelo qual vem condenada.
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade considerada provada e a não provada:
Factos provados
1. No dia 5 de Dezembro de 2014, cerca das 10.00, no interior do D1..., sito em ..., Penafiel, onde a assistente C..., desempenhava as suas funções como educadora de infância, com vínculo ao Ministério da Educação, a arguida, professora ..., interrompeu uma reunião e dirigindo-se de forma agressiva à assistente disse-lhe: "tu pensas que mandas" "tu és desumana", "tratas mal as funcionárias".

2. Ao proferir tal expressões dirigindo-se a C... que sabia estar no desempenho das suas funções de funcionária pública como educadora de infância num organismo público, a arguida tinha perfeita consciência da sua natureza ofensiva à idoneidade pessoal e profissional da ofendida.

3. Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

4. A assistente sentiu-.se humilhada e enxovalhada.

5. A arguida não tem antecedentes criminais.

6. A arguida é professora ..., encontrando-se em situação de licença sem vencimento.

7. Encontra-se a residir na Suíça, onde vive com o marido e um filho menor.

8. A arguida não trabalha sendo que o seu marido aufere cerca de 3056 francos suíços.

9. Na Suíça pagam 645 francos a título de renda e 840 francos de segurança social.

10. A arguida tem ainda mais dois filhos, que residem em Portugal e se encontram a estudar, sendo que um deles é trabalhador-estudante.

Factos não provados
1. Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 1 dos factos provados a arguida dirigiu, ainda, as seguintes expressões à assistente, "andas a dizer mal de mim", "se fosse lá fora ia-te às trombas", ao mesmo tempo que se aproximou de C... levantando os braços com o propósito de a agredir,

2. A arguida atuou ainda com o propósito de atingir C... na sua integridade física, o que só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade.

3. Ainda hoje a assistente teme pela sua integridade física.
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O direito à honra e consideração tem consagração, não só na nossa Lei Fundamental, mas também em importantes convenções internacionais, ratificadas por Portugal, como são a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH).
A nível infraconstitucional, o direito à honra e reputação é tutelado, quer pela lei penal (através da tipificação dos crimes de difamação e de injúrias nos artigos 180.º e 181.º do Cód. Penal, prevendo os artigos 183.º e 184.º do mesmo compêndio normativo formas agravadas de cometimento destes ilícitos), quer pela lei civil.
O art.º 181.º, n.º 1, do Cód. Penal tipifica como crime de injúria a conduta daquele que, dirigindo-se a uma pessoa, imputa-lhe factos, profere palavras ou formula sobre ela um juízo, tudo isso em termos ofensivos da sua honra ou consideração.
Essa imputação pode ser expressa, inequívoca ou sob a forma de suspeita.
Por outro lado, a realização do tipo objectivo basta-se com a reprodução da imputação do facto ou do juízo.
O conteúdo deste direito é constituído, basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.
O bem jurídico assim delineado apresenta uma componente individual ou subjectiva (o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua inviolável dignidade, atributo inato de qualquer pessoa) e uma componente social (a consideração, que é a reputação que a pessoa tem no seio da comunidade em que se insere[1]), fundidas numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros. É, em suma, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.
Verifica-se a sua lesão quando alguém imputa a outrem um facto (um formula um juízo) que é objectivamente adequado a diminuir, depreciar ou desacreditar socialmente a vítima.
O tipo legal descreve o seu modo de execução (um dos três modos já referidos). Por conseguinte, é um crime de realização vinculada. Neste âmbito (o da execução do crime), o que nos parece merecer referência é que a imputação do facto ofensivo ou a formulação do juízo (também desonroso), ou a reprodução de um e outro, pode concretizar-se por qualquer forma de expressão do pensamento: por palavras (orais, escritas ou reproduzidas por processos mecânicos), por desenhos, caricaturas, pinturas, sinais, etc.
Quanto ao tipo subjectivo do ilícito, o que importa sublinhar é que, sendo a injúria um crime necessariamente doloso, basta o dolo genérico (em qualquer das três modalidades legalmente previstas: directo, necessário ou eventual[2]), ou seja, é necessário, mas suficiente, que o agente tenha consciência da idoneidade ofensiva das suas palavras, gestos, sinais, etc. e, mesmo assim, queira levar a cabo a sua actuação, ou, pelo menos, que admita como possível que essa mesma conduta ofenda a honra e reputação do visado e, não obstante, não se abstenha de agir, conformando-se com essa eventualidade.
No nosso caso, a conduta alegadamente ofensiva da honra e consideração da assistente ter-se-ia concretizado em palavras que a arguida, directamente, lhe dirigiu quando aquela estava no desempenho das suas funções de funcionária pública (educadora infantil numa instituição pública), dizendo-lhe concretamente: “tu pensas que mandas” “tu és desumana”, “tratas mal as funcionárias”.
Como valorar jurídico-penalmente as afirmações da arguida, aqui reproduzidas?
Na 1.ª instância, entendeu-se que consubstanciam um crime de injúria, entendimento que está assim fundamentado:
De facto, dúvidas não restam que são expressões ofensivas da honra e consideração da assistente, facto que a arguida não podia ignorar.
Acresce que não estão provados factos que excluam a ilicitude ou a culpa”.
Tal apreciação teve o beneplácito do Ministério Público no tribunal recorrido.
Já a arguida/recorrente entende que tais palavras não são idóneas a causar qualquer ofensa à honra e consideração da assistente, sendo, pois, penalmente inócuas, insusceptíveis de preencher o tipo objectivo do crime de injúria, no que tem o apoio do Ex.mo PGA neste tribunal de recurso, que expressou o entendimento de que tais palavras não excedem os limites do legítimo exercício do direito de crítica.
Quid inde?
Temos para nós que as afirmações “tu pensas que mandas” e “tratas mal as funcionárias”, manifestamente, não têm relevância penal por não serem, objectivamente, ofensivas seja do que for.
Resta, então, a expressão “tu és desumana”.
Importa começar por fazer notar que a censura jurídico-penal subjacente aos crimes contra a honra tipificados no Código Penal tem como limite, além do mais, o direito à liberdade de expressão.
É consensual a ideia de que, nem a liberdade de expressão, nem o direito à honra e reputação são direitos absolutos, ilimitados, antes têm, como qualquer direito fundamental, “limites imanentes”.
Como se refere no acórdão do TC n.º 81/84 (DR, II, de 3.01.1985), “a liberdade de expressão – como, de resto, os demais direitos fundamentais – não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de protecção pára ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (…). Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos – designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v.g. o direito à integridade moral (artigo 25.º, n.º 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização”.
Consensual é, ainda, a ideia de que, tratando-se de direitos situados no mesmo plano[3], há que procurar harmonizá-los, de forma a atribuir-se a cada um deles a máxima eficácia possível, em obediência ao princípio da proporcionalidade. Na hipótese de conflituarem, mesmo naqueles casos em que é admissível algum exagero, mesmo que deva concluir-se que a esfera de protecção de um desses direitos esteja, à partida, diminuída, como poderá ser o caso da honra e reputação de figuras públicas, nunca o núcleo essencial deste direito pode ser atingido.
Poderá dizer-se que a afirmação “és desumana” vai além do direito de opinião e do legítimo exercício da liberdade de expressão, atingindo o núcleo essencial do direito à honra e consideração daquela?
Nem toda a afirmação de um facto ou formulação de um juízo que magoa, envergonha e perturba ou humilha, que se perfila como uma injustiça ou que, em geral, afecte o visado na sua sensibilidade cabe na previsão do art.º 181.º (ou do artigo 180.º) do Código Penal.
Também é bem certo que “a honra emerge com um sentido, conteúdo e densidade variáveis em função das representações colectivas dominantes e historicamente contingentes, assim como acaba por ver a sua extensão e consistência dependentes da conduta do portador”[4].
Por outro lado, como é afirmação recorrente, importa ter em consideração que, para além daquele mínimo de dignidade cujo respeito é exigência comum a todos os meios e países, o carácter difamatório ou injurioso de certas palavras ou juízos é fortemente tributário do lugar ou ambiente em que ocorrem, das pessoas entre quem ocorrem, do modo como ocorrem.
O que pode ser uma ofensa ilícita em certas circunstâncias (de tempo, lugar, meio, época, etc.) ou para certas pessoas, pode não o ser noutras circunstâncias ou para outras pessoas.
Em suma, para a determinação dos elementos objectivos do tipo legal em causa, é inevitável o recurso a um horizonte de contextualização.
É evidente que a arguida, com aquela afirmação, emitiu um juízo crítico sobre a actuação da assistente no âmbito das funções que desempenhava no “D1...”, é manifesto que expressou uma opinião negativa (desprimorosa e depreciativa) sobre a assistente, sobretudo na relação desta com as funcionárias da instituição.
Em todo o caso, mesmo que aquela afirmação seja infundada e injusta, convém não esquecer que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações emitidas.
Na nossa perspectiva, trata-se de uma afirmação forte, porventura excessiva, mas não é objectivamente ofensiva, não tem idoneidade para atingir o essencial do direito à honra e consideração da assistente, nela não se vislumbra qualquer propósito de rebaixar, humilhar, apoucar.
Não primando pela cortesia ou dever de respeito que deve nortear as relações entre os cidadãos, a conduta da arguida não ultrapassa o âmbito da crítica, que é legítima no contexto em que se expressou, enquanto manifestação de indignação/desabafo, face à actuação da assistente para com as funcionárias da instituição (justa ou injustamente considerada “desumana”).
Como se pode ler no acórdão da Relação de Guimarães de 23.02.2015, “nos crimes contra a honra, tal como acontece em muitos outros, há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal”.
As palavras dirigidas pela arguida à assistente não atingem esse patamar.
A este propósito, recordamos que é afirmação recorrente do TEDH que “o direito de crítica não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas”.
É nesta linha (de não conferir relevância penal e, portanto de excluir a tipicidade, a comportamentos que, podendo ser considerados censuráveis pelos excessos cometidos, ainda assim não extravasam os limites do direito de crítica e da liberdade de expressão) que se situam os acórdãos da Relação de Coimbra de 16.05.2012 (“A expressão «mal formado civicamente», constante de um fax, com cópia de um email e acompanhado de uma missiva enviados à entidade patronal do ofendido e a uma sociedade da família, ainda que deselegante, não contém um carácter suficientemente ofensivo da honra e consideração que permita a sua censura penal”), da Relação de Guimarães de 23.02.2015 (“As palavras «invejosa» e «comilona», escritas, como no caso destes autos, nos âmbito de desavenças familiares, em que uma das partes se queixa de o pai da família favorecer economicamente uma filha, não têm a carga ofensiva necessária para merecer a tutela penal. Serão materialmente injustas, revelarão uma personalidade pouco cortês, mas não ultrapassam o patamar de simples expressões azedas, acintosas ou agressivas”), da Relação de Coimbra de 23.05.2012 (“A expressão «sacana» não tem um conteúdo ofensivo da honra e consideração do assistente; trata-se de uma expressão desrespeitosa e nada educada e cortês”) e desta Relação do Porto de 09.03.2011 (“Não preenche a tipicidade (objectiva) do crime de injúria, do artigo 181.º, do CP, a expressão «Este advogado deve estar louco», proferida pela executada no âmbito de uma diligência de restituição de posse de servidão de passagem, num momento em que surgiram divergências entre os intervenientes a respeito da configuração do leito dessa servidão”).
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Apesar de excluída a ilicitude penal, nem por isso fica, automaticamente, excluída a possibilidade de existir uma base factual, com autonomia e identidade próprias, que não atinja a dimensão «qualificada» do nível de ilicitude criminal, mas possa suportar ou exigir uma valoração de outro nível segundo uma outra fonte de anti-normatividade, nomeadamente no plano dos pressupostos da responsabilidade civil.
Não é, porém, o caso, pois a conduta da arguida/demandada não constitui o facto ilícito em que há-de alicerçar-se a obrigação de indemnizar.

IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto por B... e, consequentemente, absolvê-la do crime de injúria agravado por que vem condenada, bem como do pedido de indemnização civil, revogando, nessa parte, a sentença recorrida.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 08-01-2018
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
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[1] Ou, como propõe Rabindranath V.A. Capelo de Sousa, "O Direito Geral de Personalidade", 301, honra é "uma projecção na consciência social do conjunto de valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esforço pessoal". Por isso que não deverá ser tida em conta uma hipersensibilidade desproporcionada do lesado relativamente à apreciação da sua própria honra social nem o seu sentimento individual de honra (honra subjectiva).
[2] No acórdão do TC nº 113/97, o tribunal concluiu que não ofende normas ou princípios constitucionais a punição criminal da imputação a outrem de factos ou a formulação de juízos ofensivos da sua honra e consideração quando o agente actue com dolo eventual.
[3] É de afastar qualquer ideia de infra ou supravaloração abstracta, dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Ob. Cit., 466).
[4] M. Costa Andrade, “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, 1996, 83