Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1156/18.1T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
INCAPACIDADE PERMANENTE
INDEMNIZAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RP202104211156/18.1T8PVZ.P1
Data do Acordão: 04/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A incapacidade permanente constitui um dano patrimonial indemnizável, quer acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral, quer dela resulte apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais, exigindo tal incapacidade um esforço suplementar, físico ou/e psíquico, para obter o mesmo resultado.
II - Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica do lesado, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho.
III - A determinação do montante indemnizatório por danos futuros decorrentes de incapacidade permanente para o trabalho do lesado deve ser obtida com recurso a processos objectivos (fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas), servindo para determinar um limite mínino indemnizatório, o qual, deverá posteriormente ser corrigido com recurso a outros elementos, quer objectivos quer subjectivos, que possam conduzir a uma indemnização justa.
IV - A privação do uso de um veículo constitui, em si mesma, dano com tutela para ser reparado, pelo simples facto de o seu proprietário (ou o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) ficar impedido de exercer os poderes de uso e de fruição. correspondentes ao seu direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1156/18.1T8PVZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Central Cível de Póvoa de Varzim – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
1. B…, residente no …, n.º …, ….-… …, Trofa, propôs acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra C…, SA., com sede na Avenida …, …, Lisboa, alegando, em síntese, que foi interveniente num acidente de viação, que se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor segurado da Ré, pelo que esta é responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência do aludido acidente.
Conclui pedindo a procedência da acção e a condenação da Ré no pagamento da quantia global de € 105.730,29, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, bem como, a título de privação do uso e de imposto único de circulação relativamente ao veículo de matrícula ..-BO-.., o valor que vier a ser fixado em incidente posterior de liquidação tal como peticionado nos artigos 28.º e 29.º da petição inicial e ainda “todos os tratamentos e medicamentos que o Autor venha ainda no futuro a necessitar em consequência do acidente destes autos e a indemnizá-lo de qualquer agravamento que possa vir a ocorrer da sua incapacidade”.
O Instituto de Segurança Social, I.P., representado pelo seu Centro Distrital do Porto, com sede na Rua …, …, ….-… Porto, deduziu contra a Ré pedido de reembolso no montante de € 2.678,25, pago ao Autor a título de concessão provisória de subsídio de doença.
Contestou a Ré, atribuindo a produção do acidente de viação a culpa exclusiva do Autor, sustentando não recair, por isso, sobre a obrigação de o indemnizar por alegados danos que haja sofrido em consequência do referido evento, alegando, ainda assim, serem excessivas algumas das quantias indemnizatórias peticionadas.
Em resposta o pedido de reembolso formulado pelo Instituto de Segurança Social, I.P., alega a Ré nada ter a pagar porquanto o acidente foi causado por culpa exclusiva do próprio Autor.
Foi proferido despacho a determinar a notificação das partes notifique as partes para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo, sobre a dispensa de realização da audiência prévia, com a advertência de que se nada disserem seria a mesma dispensada.
Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que declarou a validade e regularidade processuais, identificou o objecto do litígio e enunciou os temas de prova.
Concluído o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, decide-se julgar a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
III.a) Condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 1.742,44 (mil, setecentos e quarenta e dois euros e quarenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, até integral pagamento;
III.b) Condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da prolação desta sentença, até integral pagamento;
III.c) Condena-se a Ré a pagar ao Instituto da Segurança Social, I. P. – Centro Distrital do Porto a quantia de € 1.339,13 (mil, trezentos e trinta e nove euros e treze cêntimos);
III.d) Absolve-se a Ré do demais que foi peticionado pelo Autor.
Condenam-se Autor e Ré a pagar as custas, na proporção do decaimento (art. 527.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo para o apoio judiciário concedido ao Autor.
2. 1. Não se resignando o Autor com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
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2.2. Também a Ré não se conformou com a sentença proferida, dela interpondo recurso para esta instância, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
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Ambos os recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso da parte contrária.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se existe erro na apreciação da prova;
- culpa na produção do acidente;
- indemnização e respectivo valor.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1) No dia 06 de Maio de 2017, pelas 18:00 horas, ocorreu um embate entre o veículo de matrícula ..-BO-.. e o veículo de matrícula ..-..-QH, na Estrada Nacional … (Rua …), Trofa;...
2) ...No entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua ….
3) A Rua … entronca na Estrada Nacional … (Rua …) pelo lado esquerdo desta, atendendo ao sentido …-….
4) O veículo de matrícula ..-BO-.., motociclo de marca Suzuki, era conduzido por B… (ora Autor) e circulava na Estrada Nacional … (Rua …), no sentido …-..;...
5) ...E o veículo de matrícula ..-..-QH, tractor agrícola de marca Deutz, era conduzido por D… e também circulava na Estrada Nacional … (Rua …), no sentido …-….
6) A responsabilidade civil por danos emergentes de acidentes de viação resultantes da circulação do veículo de matrícula ..-..-QH estava transferida para a C…, S. A. (ora Ré), através da apólice n.º ..........., que estava em vigor à data do acidente – 06 de Maio de 2017.
7) B… (ora Autor) nasceu no dia 27 de Março de 1994.
8) B… (ora Autor) é beneficiário do Instituto da Segurança Social, I. P., através do Centro Distrital do Porto, inscrito sob o n.º NISS ………...
9) Em consequência do acidente de viação acima referido, o Autor ficou temporariamente incapacitado para o trabalho, pelo que o Instituto da Segurança Social, I. P., Centro Distrital do Porto, pagou ao Autor, a título de subsídio de doença, a quantia de € 2.558,25 (dois mil, quinhentos e cinquenta e oito euros e vinte e cinco cêntimos); e, a título de prestação compensatória de subsídio de Natal de 2017, a quantia de € 120,00 (cento e vinte euros).
10) Antes do entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua …, atendendo ao sentido …-…, a Estrada Nacional … (Rua …) é ladeada por casas de habitação e outros edifícios;...
11)...E configura uma recta com mais de 60 metros, com boa visibilidade, estando a faixa de rodagem dividida em duas vias de trânsito, uma destinada ao tráfego do sentido …-… e outra ao tráfego de sentido contrário.
12) À data do acidente referido em 1), na recta acabada de referir, antes do posto de abastecimento de combustível, existia, do lado direito da faixa de rodagem, atendendo ao sentido …-…, um sinal C20c (sinal de fim de proibição de ultrapassar).
13) À data do acidente referido em 1), na recta acabada de referir, desde o local onde existia o mencionado sinal C20c até à passadeira para peões existente após o entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua …, estava pintada a meio da faixa de rodagem uma linha longitudinal contínua de cor branca, separando o trânsito do sentido …-… do trânsito do sentido …-…;...
14) ...Sendo essa linha descontinuada, em alguns espaços;...
15)...E, imediatamente antes do entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua …, a linha longitudinal pintada a meio da faixa de rodagem da Estrada Nacional … (Rua …) era contínua, de cor branca, separando o trânsito que circulava no sentido …-… do trânsito que circulava no sentido …-….
16) No local em que a Rua … entronca na Estrada Nacional … (Rua …), na data do acidente referido em 1), a linha longitudinal existente na Estrada Nacional … (Rua …) era descontinuada só em frente à Rua …, na medida da largura da Rua …, tendo em vista o acesso do trânsito que circulava pela Estrada Nacional … (Rua …) à Rua … e vice-versa.
17) Quando ocorreu o embate referido em 1), não circulava qualquer veículo na via de trânsito destinada ao tráfego do sentido …-….
18) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), depois de ter passado o posto de abastecimento de combustível e antes do entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua …;...
19) ...Circulando o Autor no motociclo de matrícula ..-BO-.., pela hemi-faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha;...
20)...Iniciou a manobra de ultrapassagem do trator agrícola de matrícula ..-..-QH, dando o respetivo sinal de ultrapassagem (pisca-pisca do lado esquerdo) e passando a circular na via de trânsito destinada ao tráfego do sentido …-….
21) Então, o condutor do tractor agrícola de matrícula ..-..-QH – veículo este que circulava pela hemi-faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha –, quando o tractor já estava a ser ultrapassado pelo motociclo de matrícula ..-BO-.., virou, de forma repentina, o seu veículo de forma oblíqua para a esquerda, sem sinalizar a manobra, entrando na via de trânsito destinada ao tráfego do sentido …-…, com a intenção de se dirigir para a Rua ….
22) Tendo o motociclo de matrícula ..-BO-.., conduzido pelo Autor, embatido no pneu da frente esquerdo do trator agrícola de matrícula ..-..-QH.
23) O embate ocorreu na metade esquerda da faixa de rodagem atendendo ao sentido em que seguiam os veículos de matrícula ..-BO-.. e ..-..-QH, no início do entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua ….
24) Quando ocorreu o embate, o trator agrícola de matrícula ..-..-QH circulava com uma alfaia agrícola na sua retaguarda constituída por um garfo em ferro destinado ao transporte de rolos de palha;...
25)...Não dispondo esse tractor agrícola, à sua retaguarda ou à retaguarda da alfaia agrícola supra referida, de um painel do modelo S2, de cor vermelho fluorescente no fundo e vermelho reflector nas partes laterais;...
26)...E não dispondo esse tractor agrícola de avisador luminoso especial de cor amarela («pirilampo»).
27) O motociclo de matrícula ..-BO-.., conduzido por B… (ora Autor), era de marca Suzuki, modelo … com a denominação comercial …, sendo a velocidade máxima homologada em 6.ª velocidade de 170km/h;...
28)...Tinha um motor de 600 cm3, a quatro tempos, com 16 válvulas, refrigeração líquida, uma potência de 25 kW e transmissão de 6 velocidades.
29) Em 06-05-2017, antes do acidente, o valor venal do motociclo de matrícula ..-BO-.. era de € 4.800,00 (quatro mil e oitocentos euros).
30) Devido aos danos provocados pelo acidente, o motociclo ficou impossibilitado de circular e o valor do custo da reparação ascende a € 6.874,37 (seis mil, oitocentos e setenta e quatro euros e trinta e sete cêntimos).
31) O valor do motociclo sinistrado é de € 1.856,00 (mil, oitocentos e cinquenta e seis euros).
32) Desde Julho de 2017, o Autor é proprietário de um veículo de passageiros da marca Audi, .., .., matrícula ..-..-SG.
33) Depois do embate, o Autor foi assistido no local do sinistro pelo INEM e transportado para o Hospital … (Centro Hospitalar …, EPE – Unidade de …);...
34) ...E, posteriormente, foi assistido no Hospital E….
35) Os exames realizados ao Autor, nos referidos hospitais, tiveram um custo de € 355,31 (trezentos e cinquenta e cinco euros e trinta e um cêntimos).
36) O Autor ficou acamado até ao dia 30/06/2017, tendo tido a necessidade de realizar fisioterapia pelo período de 6 meses.
37) Em 27-12-2017, a seu pedido, o Autor foi submetido a uma avaliação do dano corporal, realizada pelo Dr. F…, médico especialista em ortopedia e traumatologia, que redigiu o documento intitulado «Relatório pericial para avaliação do dano corporal em Direito Civil», com o teor que consta a fls. 29-32v, o qual se dá aqui por reproduzido;...
38)...Tendo o Autor despendido para o efeito € 165,00 (cento e cinquenta euros).
39) O Autor vivenciou enorme susto no momento do acidente.
40) Durante o período de 6 meses que se seguiu ao acidente, o Autor necessitou do auxílio de terceira pessoa para prover às suas necessidades de vida diária, nomeadamente alimentação e higiene pessoal, bem como para efectuar deslocações em cadeira de rodas.
41) Em consequência do acidente, o Autor sofreu dores resultantes dos ferimentos e dos tratamentos a que foi submetido;...
42) ...E ficou com as seguintes sequelas permanentes:
- ráquis: rigidez lombar global pós-traumática;
- no membro superior direito: desnível ligeiro de ombros (D < R); rigidez muito ligeira na abdução/flexão e rotações conseguindo levar a mão direita à nuca, à região lombar e ao ombro oposto; força muscular global 4+/5;
- no membro inferior direito: ligeiro edema dos tecidos moles do joelho; laxidez ligeira lateral interna com dor à palpação da linha interarticular interna; arco de mobilidade do joelho em flexão-extensão relativamente conservado com dor na hiperflexão; hipostesia da face interna do joelho.
43) À data do acidente, o Autor exercia a profissão de serralheiro de construção de estruturas metálicas (2.º escalão);...
44) ...Tendo auferido mensalmente, no ano de 2017 – exceptuando o mês em que sofreu o acidente e os meses em que esteve impossibilitado de trabalhar –, a quantia média líquida de € 707,96 (setecentos e sete euros e noventa e seis cêntimos).
45) Em Maio de 2017, o Autor recebeu da sua entidade patronal a quantia líquida de € 320,68 (trezentos e vinte euros e sessenta e oito cêntimos).
46) À data do acidente, o Autor era uma pessoa alegre e com grande vontade de viver e adepto de actividades desportivas e da vida ao ar livre, sente hoje tristeza ao recordar o acidente e face às consequências que para si advieram do acidente.
47) A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor em consequência do acidente é fixável em 30-09-2017.
48) O período de défice funcional temporário total em consequência do acidente é fixável num período de 56 dias.
49) O período de défice funcional temporário parcial em consequência do acidente é fixável num período de 92 dias.
50) O período de repercussão temporária na atividade profissional total em consequência do acidente é fixável num período de 148 dias
51) As dores e demais sofrimentos sentidos pelo Autor em consequência do acidente são quantificáveis no grau 4, numa escala crescente de 0 a 7.
52) Em consequência do acidente, o Autor é portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 11%.
53) As sequelas de que o Autor é portador, em consequência do acidente, são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
54) Em consequência do acidente, o Autor ficou a padecer de lesões com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, repercussão essa quantificável no grau 1, numa escala crescente de 0 a 7.
55) Em consequência do acidente, o Autor ficou a padecer de lesões com repercussão permanente na actividade sexual, repercussão essa quantificável no grau 1, numa escala crescente de 0 a 7.
III.2. A mesma instância considerou não provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
56) O embate entre o veículo de matrícula ..-BO-.. e o veículo de matrícula ..-..-QH ocorreu antes do entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua ….
57) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), o condutor do tractor agrícola de matrícula QH circulava com atenção ao trânsito, imprimindo ao veículo que conduzia uma velocidade não superior a 40 km/hora.
58) Com ressalva para o supra referido em 21), quando o condutor do QH se aproximou do entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua …), para onde pretendia dirigir-se, diminuiu gradualmente a velocidade que imprimia ao QH, accionou o sinal luminoso “pisca-pisca” da esquerda do QH, e, também gradualmente, aproximou o QH do eixo da via;...
59)...Nessas condições, o condutor do QH, com o veículo praticamente imobilizado, chegou ao local do supra referido entroncamento.
60) Atrás do QH imobilizaram-se, então, três veículos ligeiros;...
61) ...O condutor do QH, sempre em marcha lenta, direcionou então o seu veículo para a Rua … na sequência da manobra de mudança de direção que havia iniciado e fez a frente do veículo que conduzia transpor o meio da estrada, direcionando-a para aquela Rua …;...
62)...Tudo fazendo não sem antes se certificar de que pela hemifaixa de rodagem da esquerda da Estrada Nacional … (Rua …), atento o seu sentido de marcha, não circulava qualquer veículo;...
63)...E que à sua retaguarda o trânsito se encontrava imobilizado, aguardando que o condutor do QH concluísse a manobra.
64) Imediatamente antes do embate, o condutor do BO circulava pela Estrada Nacional … (Rua …) sem atenção ao trânsito;...
65) ...Imprimindo ao motociclo que conduzia velocidade superior a 50 km/hora;...
66) ...E, ao deparar-se com três veículos imobilizados atrás do QH, decidiu realizar uma manobra de ultrapassagem aos mesmos, de uma só vez;...
67)...Fazendo-o numa altura o condutor QH já tinha iniciado a manobra de mudança de direção;...
68) ...Ocupando, para tanto, a metade esquerda da estrada, atento o seu sentido de marcha, e, pese embora a presença do QH, o condutor do BO, após ultrapassar aqueles veículos, continuou a circular pela metade esquerda da estrada, atento o seu sentido de marcha, e tentou ainda ultrapassar o QH, em pleno entroncamento, pela esquerda deste.
69) O comprimento do garfo em ferro referido em 24) era de 2 metros.
70) O motor do motociclo de matrícula ..-BO-.. tinha uma potência de 103,3 hp (77,0 kW), com rotação máxima de 16.000 rpm.
71) O motociclo de matrícula ..-BO-.. era um motociclo de competição em pista, atingia como velocidade máxima mais de 277 km/hora, fazendo dos 0 aos 200 km em cerca de 7,94 segundos e dos 0 aos 100 km em cerca de 3,4 segundos, podendo passar da situação de parado à situação de circular a cerca de 100 km/hora, num espaço de 30/40 metros.
72) Com ressalva para o supra referido em 29) e 30), em 06-05-2017, antes do acidente, o valor venal do motociclo de matrícula ..-BO-.. era de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros);... 73)...E, devido aos danos provocados pelo acidente, o valor do custo da reparação do motociclo ascende a € 6.965,42 (seis mil, novecentos e sessenta e cinco euros e quarenta e dois cêntimos). 74) O aluguer diário de um motociclo com as mesmas caraterísticas do motociclo de matrícula ..-BO-.. ascende a € 30,00 (trinta euros).
75) O Autor tem vindo a pagar anualmente o valor relativo ao imposto único automóvel referente ao motociclo de matrícula ..-BO-...
76) Por estar impossibilitado de utilizar o motociclo de matrícula ..-BO-.., para as suas deslocações profissionais e de lazer, o Autor teve de socorrer-se de veículos de terceiros familiares e amigos que, a título de favor, lhe cederam por empréstimo tais veículos.
77) Pela fisioterapia que teve de realizar, em consequência do acidente, o Autor desembolsou € 300,00 (trezentos euros).
78) O Autor despendeu a quantia de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros) para custear o auxílio de terceira pessoa de que necessitou para prover às suas necessidades de vida diária, nos termos referidos em 40).
79) Com ressalva para o supra referido em 44), à data do acidente, o Autor auferia mensalmente a quantia líquida de € 600,00, ao que acrescia o subsídio de alimentação do valor de € 6,60/dia, e ainda um prémio de produção no valor de € 50,00.
80) E tendo a empresa realizado uma média de 130 horas extra durante o período em que o Autor esteve de baixa por doença em consequência do acidente de viação.
81) Com ressalva para o supra referido em 40 a 42) e 47) a 55), em consequência do acidente, o Autor ficou com sequelas permanentes no membro superior direito, relacionadas com a mobilidade dolorosa nos limites: EA 180, RI D12, RE 50, e redução da força do membro superior direito; no membro inferior direito relacionadas com a mobilidade dolorosa no limite 0-140o, dor palpação interlinha medial e ligeiro derrame articular; e ainda no ráquis, com rigidez lombar nos limites do arco de mobilidade;...
82)...E ficou a padecer de uma lombalgia crónica e agravada ao efetuar esforços, nas mudanças de posição ou mesmo quando está muito tempo na mesma posição (por exemplo no carro) e ainda gonalgia associada à marcha que limita as deslocações a pé e impossibilita a corrida;...
83) ...Ficou ainda a padecer de dor associada à mobilidade do ombro direito, o que limita o sinistrado para actividades que exigem esforço e manipulação de objectos, mesmo que moderadamente pesados, resultando esta dor em perturbações para actividades da vida diária como sejam pequenas tarefas domésticas ou até transportar um saco de compras;...
84)...Esteve privado da actividade sexual por um período de 150 dias; sofreu um quantum doloris quantificável no grau 5, numa escala crescente de 0 a 7; sofre de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 17%; ficou a padecer de lesões com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, repercussão essa quantificável no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7.
85) Com ressalva para o supra referido em 51) a 55), o Autor continua a padecer de acentuado sofrimento físico, sobretudo nos períodos de frio, bem como quando faz esforços, em especial no trabalho, e quando ocorrem alterações climáticas mais bruscas; sentindo dores recorrentes e difíceis de suportar.
86)...Sofre dores que o incapacitam para exercer a sua actividade profissional do modo como o fazia antes e que o irão a acompanhar ao longo da sua vida, e poderão ainda sofrer agravamentos.
87) Com ressalva para o supra referido em 39), o acidente causou ao Autor um profundo abalo psíquico, provocando-lhe acentuada revolta e amargura, por ver parcialmente frustrada a sua realização tanto a nível profissional como pessoal, que diminuiu grandemente a sua alegria de viver.
88) Durante todo o tempo em que esteve impossibilitado de conduzir, o Autor não pode auxiliar os seus pais que não têm carta de condução e dependiam de si para se descolar para os locais que precisavam.
89) O Autor adora nadar e, devido às sequelas provocadas pelo acidente, não o pôde fazer durante todo o verão de 2017 porque tinha que usar o colete cervical.
90) O Autor sentia um enorme desconforto físico por ter que usar o colete cervical e, além disso, tinha vergonha e sentia um grande desconforto por sair com esse colete para a rua, sentindo que toda a gente o observava.
91) Em consequência do acidente, o Autor teve que ficar fora da sua casa por um período de 3 meses, uma vez que mesma não tinha as condições necessárias para a sua mobilidade.
92) Devido ao acidente, o Autor tem uma sensação de depressão, bem como falta de vontade de conviver e perturbações de sono, recordando diariamente o acidente com sentimentos negativos e de tristeza.
93) Com ressalva para o referido em 51) a 55), o Autor sofre e continuará a sofrer de dores e limitações, que se acentuam quando faz esforços ou ocorrem mudanças de tempo, e não mais poderá evoluir na sua profissão, como seria, caso não tivesse as limitações do acidente, pois as dores e limitações que agora sente, ao trabalhar, lhe retiram condições físicas para realizar trabalhos que exijam esforços físicos, ou de manter-se longas horas a trabalhar continuamente, como antes do acidente o fazia.
94) Em consequência do acidente, o Autor padeceu e ficou a padecer de cicatrizes e marcas que lhe causaram e causam sofrimento e uma enorme tristeza e vergonha.
95) O Autor continua a ter de tomar analgésicos e outros medicamentos para obviar e diminuir as dores que sente sempre que faz esforços a mais para a sua actual capacidade física.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Nenhuma das partes se conformou com a decisão proferida em primeira instância quanto à matéria de facto submetida a julgamento, pelo que reclamam desta instância o reexame da mesma.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[2] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência.
2.1. Recurso do Autor.
Manifesta o Autor a sua discordância quanto à apreciação dos pontos 29.º e 30.º dos factos dados por provados na decisão que impugna.
Na perspectiva do Autor devem estes segmentos decisórios passar a ter a seguinte redacção:
29) Em 06-05-2017, antes do acidente, o valor venal do motociclo de matrícula ..-BO-.. era de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros).
30) Devido aos danos provocados pelo acidente, o motociclo ficou impossibilitado de circular e o valor do custo da reparação ascende a € 6.965,42 (seis mil, novecentos e sessenta e cinco euros e quarenta e dois cêntimo).
Para tanto convoca o teor da declaração emitida como documento n.º 9 e orçamento constante do documento n.º 12, ambos juntos com a petição inicial.
A força probatória de um documento traduz-se no valor ou fé que, enquanto instrumento de prova, a lei lhe reconhece.
Esse valor pode reportar-se ao próprio documento enquanto tal – e, neste caso, é a sua força probatória formal, a sua genuinidade ou autenticidade que é indagada -, ou ao seu conteúdo, isto é, ao seu valor probatório material.
A determinação da força probatória formal de um documento afere-se em função da sua proveniência, identificando a pessoa ou entidade de que o mesmo emana.
Relativamente à força probatória dos documentos particulares dispõe o artigo 376.º, do Código Civil que “o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (nº 1), sendo que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante” (nº 2).
Nos termos do citado preceito, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta necessariamente que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, que o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.
Com efeito, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondem à realidade, não se excluindo a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova, uma vez que, embora um documento prove as declarações das partes, deve poder provar-se que elas não correspondem à verdade.
Ao contrário do afirmado pelo Autor, ambos os documentos por ele convocados para fundamentar a pretendida alteração aos pontos 29.º e 30.º dos factos provados foram expressamente impugnados pela Ré – artigo 75.º da contestação.
Esta, de resto, junta com este articulado documentos que – quer quanto ao valor do motociclo, quer quanto ao valor dos danos nele causados pelo sinistro em que esteve envolvido - contrariam o teor dos apresentados pelo Autor, sendo que, quanto a estes, nenhuma prova os corroborou, ao invés do que sucedeu com os documentos juntos pela Ré, como detalhadamente expõe, nesta parte, a decisão impugnada:
“A convicção do Tribunal para considerar provados os factos das alíneas 29, 30 e 31 baseou-se nos depoimentos das testemunhas G… (perito regulador, sócio-gerente da empresa “H…, Lda.” que presta serviços à Ré) e I… (profissional de seguros, funcionário da Ré), conjugados com os documentos juntos a fls. 65v, 66 e 66v. As testemunhas ora mencionadas prestaram depoimentos espontâneos e convincentes sobre a matéria em análise, tendo sido confrontados com a documentação pertinente junta ao processo. Quanto ao valor venal do motociclo (alínea 29 dos factos provados e alínea 72 dos factos não provados), as referidas testemunhas explicaram como foi apurado o valor de € 4.800,00, valor corroborado documento de fls. 65, convencendo o Tribunal do acerto desse valor. Em contrapartida, não foi feita prova bastante do valor venal alegado pelo Autor (€ 6.500,00). O Tribunal teve presentes os documentos a este propósito apresentados pelo Autor (fls. 21 e segs.), mas esses documentos não lograram provar a factualidade alegada pelo Autor quanto ao valor venal do seu motociclo. O documento 9 apresentado com a petição inicial, junto a fls. 21, é uma declaração do estabelecimento «J…», onde se refere que «a mota com a matrícula ..-BO-.. à data do acidente tinha o valor a ser vendida por J… 6.500,00 euros com todos os extras»; todavia, não houve qualquer testemunha que explicasse como foi apurado esse valor e corroborasse o seu acerto. O documento 10 apresentado com a petição inicial, junto a fls. 21v-22, refere-se a uma mota substancialmente diferente da mota do Autor, pois nesse documento é apresentada uma mota com 125 cv de potência, o que corresponde a 92 kw; enquanto a mota do Autor, como resulta do respetivo certificado de matrícula – documento apresentado pelo Autor a fls. 80-00v –, tinha uma potência de apenas 25 kW. O documento 11 apresentado com a petição inicial, junto a fls. 22v, também diz respeito a uma mota substancialmente diferente da mota do Autor: nesse documento é anunciada uma mota …, ora esta variante identificada como K6 tem uma potência de 79,11 kW (cfr., por exemplo a informação constante do sítio internet https://pt.qwe.wiki/wiki/Suzuki_...), valor de potência muito superior à potência da mota do Autor. Além disso, a mota anunciada no documento 11 apresentado com a petição inicial estava equipada com diversos extras que não foi alegado existirem na mota do autor. A testemunha K… foi questionada sobre o valor da mota do Autor, mas o seu depoimento, nesta parte, foi vago e impreciso, pelo que não foi considerado relevante. No que concerne à matéria da alínea 30 dos factos provados e da alínea 73 dos factos não provados, designadamente quanto ao valor da reparação do motociclo, foi tido em consideração, essencialmente, o depoimento da testemunha G… que analisou a mota sinistrada, tendo-se deslocado ao estabelecimento «J…», que também tinha orçamentado a reparação da mota (cfr. documento de fls. 23). A testemunha (que foi quem subscreveu o documento de fls. 66) explicou, de forma esclarecedora e credível, que analisou a mota sinistrada e avaliou o custo da reparação dos danos causados pelo acidente, custo esse que – como afirmou – não era muito distante do orçamento apresentado por «J…»”.
Não se vislumbram, pois, razões que imponham ou sequer justifique a pretendida alteração dos pontos 29.º e 30.º dos factos provados, pelo que os mesmos permanecem sem qualquer alteração, improcedendo, nesta parte o recurso do Autor.
2.2. Recurso da Ré.
A Ré, por seu turno, discorda da apreciação da matéria elencada nos pontos 18,º, 19.º, 20.º, 21.º considerados provados e 57.º, 58.º, 59.º, 60.º, 61.º, 63.º, 64.º, 66.º, 67.º, 68.º julgados não provados.
A matéria em causa relaciona-se com a dinâmica do acidente, cuja responsabilidade exclusiva a Ré atribui à conduta do próprio Autor.
Sustenta a recorrente existirem nos autos elementos probatórios – designadamente, a participação do acidente e as declarações prestadas pelo Autor perante a autoridade policial que procedeu à sua elaboração – que descredibilizam os depoimentos das testemunhas L… e M…, nos quais se fundou a convicção probatória do tribunal recorrido.
Convoca ainda o depoimento da testemunha N…, condutor do veículo por ela segurado, afirmando ser o mesmo consentâneo com os demais elementos de prova existentes nos autos, designadamente, depoimento do agente participante do acidente, além do auto de participação e as fotografias de fls. 19.
A noção de documento autêntico é facultada pelo artigo 369º do Código Civil, cujo artigo 371º assim define a força probatória destes documentos: “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base na percepção da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
A participação de acidente, elaborado por autoridade policial, faz, assim, prova plena dos factos nela atestados, quer por percepção directa da entidade atestadora, quer dos por esta praticados: “a participação do acidente elaborada pela Guarda Nacional Republicana é um documento autêntico fazendo prova plena dos factos que refere como praticados pelo respectivo agente, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções do mesmo.
Os meros juízos pessoais por ele emitidos só valem como elementos sujeitos a livre apreciação do julgador”[3].
Ou seja: “a força probatória plena atribuída à participação de acidente elaborada pela GNR limita-se aos factos praticados pelo documentador e por ele atestados”[4].
Do auto de participação do acidente aqui em análise constam, entre os mais, declarações tomadas aos dois intervenientes no sinistro.
No que concerne à descrição do acidente efectuada pelo Autor, a 13.05.2017, prestou o mesmo as seguintes declarações, que integram o referido auto: “Circulava de …/… vinham três carros e um trator, começo a fazer a manobra de ultrapassagem dos três carros ao passar pelo trator, o mesmo vira para a esquerda sem sinalizar a manobra não dando para parar, embati no trator. O trator não fez a perpendicular”.
Procedeu-se à audição dos depoimentos prestados em audiência acerca da dinâmica do acidente.
O Autor, ouvido em audiência de julgamento, confirma ter prestado as declarações que integram o auto de participação, com o conteúdo assinalado no aludido documento, o que fez alguns dias após o acidente, após ter regressado do hospital.
Confirmando, em resposta a questão colocada pelo mandatário da Ré, que aquando do acidente nunca perdeu a consciência, desdiz o teor das declarações em causa, afirmando que quando prestou as declarações “...eu teria essa ideia que seriam três carros mas não foram. Foi só uma mota e não sei como é que essa ideia me surgiu porque vindo a ser relembrado do acontecimento foi só essa mota mesmo unicamente que eu ultrapassei. Nunca existiram três carros. Essas declarações foram feitas por mim de livre vontade após o acidente mas nada corresponde ao que se passou”.
E, mais à frente, sobre o facto de haver confundido uma mota com três carros, fornece a seguinte explicação: “Eu para lhe dizer a verdade, a testemunha está aí, ela referiu no processo, eu, na altura, não me recordo de nenhuma moto, por isso, do mesmo modo não me recordo de nenhum carro. A ideia que eu tinha é que eram três carros. Eu agora reflectindo lembro-me que o senhor parou no semáforo, arrancaram os dois, eu ainda vinha distante, quando cheguei ao motociclo ultrapassei o motociclo e ultrapassei o tractor. Na altura tava tudo tão recente que eu não consegui exprimir o que realmente...”.
As declarações contemporâneas ao acidente, ou dele temporalmente próximas, porque sem prévia preparação e sem congeminações ou reflexões sobre a sua adequação mais favorável aos interesses do declarante, são, por regra, as que mais fidedignamente retratam a realidade.
E não há dúvida que o Autor, uma semana após o acidente, declarou - perante autoridades policias que se deslocaram à sua morada para recolherem as suas declarações acerca do modo como ocorreu o acidente, como atesta a testemunha O…, militar da GNR autor do auto de participação do acidente – que, no sentido …/…, circulavam três carros e um tractor, em relação aos quais iniciou manobra de ultrapassagem; ao efectuar a ultrapassagem do tractor, este mudou de direcção para a sua esquerda, sem “fazer a perpendicular” e sem sinalizar a manobra, pelo que, sem poder deter o motociclo que conduzia, embateu no referido tractor.
O Autor, que confirmou ter tido acesso ao auto de participação do acidente cerca de um mês depois, não reclamou do mesmo, nem requereu qualquer rectificação às declarações da sua autoria que nele constam.
De resto, o próprio Autor admite no decurso do seu depoimento prestado em audiência que a versão que nele relata acerca dos momentos imediatamente antecedentes do acidente surge na sequência do que a testemunha que “está aí, [ela] referiu no processo...”.
A testemunha a que o Autor quis referir-se trata-se, naturalmente, de M…, indicada, nessa qualidade, no auto de participação do acidente.
Ouvida em audiência, a referida testemunha, que referiu que circulava na recta, atrás do tractor, a uma distância deste de dois a três carros, mas sem que entre eles circulassem outros veículos, tendo ambos parado nos semáforos, ouvindo atrás de si o barulho de uma mota sem que a tivesse visto então. Relatou que, no “fim da bomba” de combustível, a cerca de 80 metros do local onde se deu o embate, a mota do Autor manteve-se a seu lado durante algum tempo e depois mudou de faixa para ultrapassar quando o tractor, que já seguia aos “zigue-zagues”, ainda antes do entroncamento onde, mais à frente, ia virar, deu uma guinada à esquerda, sem “dar o pisca”, dando-se então o embate.
O seu depoimento, ao qual se veio a ajustar a nova versão acerca da dinâmica do acidente transmitida pelo Autor em audiência, embora circunstanciado e objectivo, revelou - por comentários e apartes que criticamente foi introduzindo acerca do condutor do tractor, segundo a testemunha, grande empresário conhecido no meio, em relação ao qual as autoridades policiais que acorreram ao local, denotaram especial proximidade – alguma hostilidade, embora sempre fazendo questão de destacar que “dou-me bem com o homem do tractor”, o que recomenda algumas reservas quanto à credibilidade de tal testemunho.
Aliás, o seu depoimento é desprovido de coerência quando refere que tendo parado nos semáforos que antecedem o local do acidente, ficando atrás do tractor, e que a mota se manteve algum tempo a seu lado, tendo depois mudado de faixa para iniciar a ultrapassagem, para logo acrescentar que seguia atrás do tractor, a uma distância de dois ou três carros, precisando, sem que alguém a tal propósito o questionasse, que essse espaço não era, todavia, preenchido por qualquer veículo.
A testemunha L…, que referiu não conhecer antes o Autor, mas tendo integrado o rancho folclórico de que fazia parte o pai deste, prestou, apesar desse facto, um depoimento objectivo e convincente, narrando os factos de se apercebeu quando, próximo do local, “praticamente de frente”, aguardava na sua viatura a chegada de um colega.
Apercebeu-se que a mota conduzida pelo Autor, antes do entroncamento, estava a ultrapassar o tractor, seguindo na faixa de rodagem contrária ao seu sentido de trânsito, quando este virou repentinamente para a esquerda, “sem efectuar os 90 graus”, tendo a mota ido embater no rodado da frente, do lado esquerdo do tractor.
Afirmou desconhecer se a mota do Autor efectuou ultrapassagem a qualquer outro veículo antes da manobra de ultrapassagem ao tractor, parecendo-lhe que vinha uma mota atrás do tractor, não sabendo precisar se seguiam outros veículos, porque na altura não estava a reparar no trânsito que circulava na rua.
Confrontado com as fotografias constantes dos autos, designadamente as juntas a fls. 19, confirma ser a posição em que ficou o tractor após o embate.
Abandonou o local antes da chegada da GNR, assim que o colega, que aguardava, chegou junto de si.
N…, condutor do tractor agrícola segurado pela Ré, ouvido em audiência de julgamento, também descreveu em que circunstâncias ocorreu o acidente, precisando, nomeadamente, que 20 a 30 metros antes do entroncamento formado pela rua para onde nesse dia decidiu virar, para evitar o trânsito e as pessoas que a essa hora saíam da igreja que existe perto da avenida por onde costuma “desandar”, “deu o sinal”, tinha passado um carro e uma mota, do seu lado direito, quando ouviu “o barulho da mota”, já tinha começado a fazer a manobra, parou, outros carros pararam atrás de si, quando, numa fracção de segundos, se deu o embate.
Porém, o seu depoimento não só não obtém confirmação nos demais meios de prova produzidos, como, ao invés, são por eles desmentidos, designadamente pelos depoimentos das testemunhas L… e M…, croquis da participação do acidente e fotografias juntas com a petição inicial, designadamente como documentos n.ºs 5, 6 e 7, esclarecendo ambas as testemunhas que o tractor ficou posicionado no local onde se deu o embate.
Não merecendo tal depoimento credibilidade, mas assumindo relevância probatória positiva as declarações prestadas pelo Autor aos militares da GNR, cerca de uma semana após o acidente, e que ficaram a constar do auto de participação do acidente, altera-se a decisão relativa à matéria de facto quanto ao ponto 20.º do factos provados, que passa a ter a seguinte redacção:
20) ...Iniciou a manobra de ultrapassagem do tractor agrícola de matrícula ..-..-QH, bem como de três outros veículos ligeiros que seguiam na rectaguarda daquele, dando o respectivo sinal de ultrapassagem (pisca-pisca do lado esquerdo) e passando a circular na via de trânsito destinada ao tráfego do sentido …-….
Quanto aos restantes segmentos decisórios objecto de impugnação, não existindo prova credível dos factos cuja modificação é recursivamente reclamada pela Ré seguradora, permanecem os mesmos sem alteração.
2. Mérito do julgado[5].
2.1. Responsabilidade da Ré pelos danos causados ao Autor em consequência do acidente.
2.1.1.Culpa.
Dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da simples leitura do preceito, resulta que, no caso de responsabilidade por facto ilícito, vários pressupostos condicionam a obrigação de indemnizar que recai sobre o lesante, desempenhando cada um desses pressupostos um papel próprio e específico na complexa cadeia das situações geradoras do dever de reparação.
Reconduzindo esses pressupostos à terminologia técnica assumida pela doutrina, podem destacar-se os seguintes requisitos da mencionada cadeia de factos geradores de responsabilidade por factos ilícitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, antes de mais, para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o agente tenha actuado com culpa, pois a responsabilidade objectiva ou pelo risco tem carácter excepcional, como se depreende da disposição contida no nº 2 do citado preceito legal.
Com efeito, a responsabilidade civil, em regra, pressupõe a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o facto. Aqui operam as fundamentais modalidades de culpa: a mera culpa (culpa em sentido estrito ou negligência) e o dolo, traduzindo-se aquela no simples desleixo, imprudência ou inaptidão, e esta na intenção malévola de produzir um determinado resultado danoso (dolo directo), ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito (dolo necessário), ou ainda correndo-se o risco de que se produza (dolo eventual).
Em termos de responsabilidade civil consagra-se a apreciação da culpa em abstracto, ou seja, desde que a lei não estabeleça outro critério, a culpa será apreciada pela diligência de um bom pai de família (in abstracto), e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito (in concreto)[6]. Como sustenta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2008[7], “a lei ficciona um padrão ideal de comportamento que seria o que um homem medianamente sensato e prudente adoptaria se estivesse colocado diante das circunstâncias do caso concreto – critério do “bonus pater familias”; irreleva a diligência normalmente usada pelo agente”.
A culpa define-se, para este efeito, na circunstância de uma determinada conduta poder merecer reprovação ou censura do direito, ou seja, importará sempre avaliar se o lesante, face à sua capacidade e às circunstâncias concretas do caso em que actuou, podia e devia ter agido de outro modo[8].
Causa de um acidente é a acção ou omissão normalmente idónea a produzi-lo. Tem tais características, a acção ou omissão que, no consenso da generalidade das pessoas medianamente prudentes, colocadas nas circunstâncias do caso, e segundo um juízo de prognose póstumo e de acordo com as regras da experiência comum ou conhecida do agente, é apta a produzir o evento danoso[9].
Via de regra, e segundo o disposto no artigo 487.º do Código Civil, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão[10], mas casos há em que a lei estabelece presunções de culpa do responsável.
Nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, essa sua tarefa está aliviada com o recurso à chamada prova de primeira aparência (presunção simples). Em princípio procede com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, cause danos a terceiros, ideia que pacificamente encontra eco na jurisprudência dos tribunais portugueses.
Ou seja: “sob pena de tornar-se excessivamente gravoso ou incomportável, o ónus probatório instituído no art. 487.º C.Civ. deverá ser mitigado pela intervenção da denominada prova prima facie ou de primeira aparência, baseada em presunções simples, naturais, judiciais, de facto ou de experiência - praesumptio facti ou hominis, que os arts. 349º e 351º C.Civ. consentem, precisamente enquanto deduções ou ilações autorizadas pelas regras de experiência - id quod plerumque accidit (o que acontece as mais das vezes) (…) Como assim, e dum modo geral, a ocorrência de situação que em termos objectivos constitua contravenção de norma(s) do Código da Estrada importa presunção simples ou natural de negligência, que cabe ao infractor contrariar, recaindo sobre ele o ónus da contraprova, isto é, de opor facto justificativo ou factos susceptíveis de gerar dúvida insanável no espírito de quem julga…”[11].
Em face da prova recolhida nos autos, de onde, nomeadamente, resulta demonstrada a factualidade descrita no ponto 21.º dos factos provados, constitui dado incontroverso que o condutor do tractor agrícola - que, de forma repentina, sem sinalizar a manobra, virou para a sua esquerda, com trajectória oblíqua e quando já estava a ser ultrapassado pelo motociclo conduzido pelo Autor – contribuiu decisivamente, pela sua conduta violadora de regras estradais primárias, para a eclosão do acidente que vitimou o Autor, que, deparando-se, subitamente, com a linha de trânsito em que seguia cortada pela manobra do tractor, foi embater no pneu dianteiro, do lado esquerdo, deste.
Mas o acidente não se ficou a dever, em exclusivo, àquele comportamento infractor do condutor do tractor, já que também o lesado – Autor – contribuiu para o evento que o vitimou ao adoptar, nos momentos que imediatamente precederam o sinistro, o comportamento temerário mencionado no ponto 20.º dos factos provados, em clara violação das regras estradais impostas pelo sinal a que o ponto 13.º dos factos provados faz referência.
Com pertinente propriedade anota a sentença sob recurso: “No caso em análise, resulta da matéria fáctica provada que o embate entre o motociclo de matrícula …-BO-.. e o trator agrícola de matrícula ..-..-QH se ficou a dever à conduta do condutor do trator agrícola, pois iniciou uma manobra de mudança de direção para a esquerda transpondo uma linha contínua M1 (que – nos termos do art. 60.º, n.º 1 do Regulamento da Sinalização do Trânsito – «significa para o condutor proibição de a pisar ou transpor e, bem assim, o dever de transitar à sua direita quando aquela fizer a separação de sentidos de trânsito», como era o caso) e desrespeitando várias normas do Código da Estrada, porquanto iniciou a manobra sem atender ao trânsito que circulava – provou-se que já estava a ser ultrapassado quando iniciou a manobra de mudança de direção –, violando o disposto no art. 35.º, n.º 1 do Código da Estrada; não sinalizou a manobra através da respetiva luz de mudança de direção (art. 60.º, n.º 2, alínea b) do Código da Estrada), violando o disposto no art. 21.º, n.º 1 e n.º 2 do Código da Estrada; e não virou em perpendicular, violando o disposto no art. 44.º, n.º 1 e n.º 2 do Código da Estrada. A conduta do condutor do trator agrícola configurou um facto voluntário, ilícito (praticou atos que comprometeram a segurança dos demais utentes da via, pois, tendo adotado uma conduta em contrariedade com as já citadas normas do Código da Estrada e legislação conexa) e culposo (nas circunstâncias concretas do caso, o condutor do trator agrícola poderia e deveria ter agido de outro modo, ou seja, agiu com negligência), do qual resultaram danos para o Autor. Estão, pois, preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva por factos ilícitos, emergentes do art. 483.º, n.º 1 do Código Civil.
Todavia, perante a matéria fáctica provada, entendemos que o embate em discussão neste processo não se ficou a dever em exclusivo à conduta do condutor do trator agrícola, tendo o condutor do motociclo também contribuído para a ocorrência do embate. Na verdade, também resulta dos factos provados que o condutor do motociclo, ora Autor, estava a realizar a manobra de ultrapassagem do trator agrícola transpondo uma linha contínua M1 (que – nos termos do art. 60.º, n.º 1 do Regulamento da Sinalização do Trânsito – «significa para o condutor proibição de a pisar ou transpor e, bem assim, o dever de transitar à sua direita quando aquela fizer a separação de sentidos de trânsito», como era o caso) e na zona do entroncamento formado pela Estrada Nacional … (Rua …) com a Rua …, violando o disposto no art. 41.º, n.º 1, alínea c) do Código da Estrada. A conduta do condutor do motociclo, ora Autor, configurou um facto voluntário, ilícito (praticou atos que comprometeram a segurança dos demais utentes da via, pois, quando ocorreu o embate, a sua conduta estava em contrariedade com as já citadas normas legais) e culposo (nas circunstâncias concretas do caso, o condutor do motociclo poderia e deveria ter agido de outro modo, ou seja, agiu com negligência), do qual resultaram danos para o próprio Autor.
Estamos, assim, face a uma situação em que a conduta do lesado também contribuiu para a ocorrência do embate do qual resultaram os danos.
Houve concorrência de culpas, razão pela qual haverá que ter presente o art. 570.º do Código Civil, onde se estabelece o seguinte: «1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar».
Importa, pois, determinar «se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída», tendo por base «a gravidade das culpas de ambas as partes» e «as consequências que delas resultaram».
Desde logo, atendendo ao alegado na petição inicial, cumpre referir que, como o condutor do motociclo já tinha iniciado a ultrapassagem do trator agrícola e o motociclo embateu no pneu esquerdo da frente do trator, entendemos que a falta no trator do painel de modelo S2, destinado a assinalar um veículo em marcha lenta, bem como do avisador luminoso especial (conhecido por «pirilampo»), não teve repercussão sobre o embate ocorrido.
Cumpre também referir que, ao invés do defendido pelo Autor, a ultrapassagem que este realizou não pode ser considerada uma manobra permitida pela legislação estradal por existir, ao tempo em que ocorreu o acidente, um sinal C20c (sinal de fim de proibição de ultrapassar), na via por onde circulavam quer o trator agrícola quer o motociclo.
A circunstância de existir tal sinal, significa tão só – hoc sensu – que a partir do local onde está o sinal C20c cessa a proibição de ultrapassar que, anteriormente, era imposta pelo sinal C14a, como decorre com clareza do disposto no art. 24.º do Regulamento de Sinalização do Trânsito.
Por esta razão a questão da hierarquia entre prescrições (art. 7.º do Código da Estrada) nem se coloca, pois do sinal C20c (sinal de fim de proibição de ultrapassar) não decorre que, a partir daí, não seja necessário observar as prescrições resultantes das marcas rodoviárias ou as regras de trânsito.
Dito de outro modo e reafirmando o já acima exposto, impunha-se ao condutor do motociclo que, ao contrário do que fez, não transpusesse a linha contínua M1 e que não realizasse a ultrapassagem do trator na zona do entroncamento.
Nas circunstâncias do presente caso, entendemos que a gravidade das culpas do condutor do trator e do condutor do motociclo são equivalentes, pois agiram ambos com negligência, violando um e outro preceitos estradais que deveriam ter observado. Acresce que a eventual maior culpa decorrente de o condutor do trator ter iniciado a sua manobra depois de já estar a decorrer a manobra do condutor do motociclo é compensada pelo facto de as consequências resultantes da atuação do condutor do motociclo serem mais gravosas, pois trata-se de um veículo cujo condutor está particularmente exposto a lesões, tendo o comportamento do Autor, condutor do motociclo, contribuído de forma muito mais relevante para as lesões que veio a sofrer.
O Autor deverá ser indemnizado, porque a conduta do condutor do trator foi censurável e contribuiu de forma relevante para o embate, mas a indemnização que o Autor terá direito a receber deverá ser reduzida para metade.
Preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (com culpa, passe a redundância), conclui-se que o condutor do trator agrícola se constituiu na obrigação de indemnizar”.
Assim, de acordo com a factualidade apurada, e tal como detalhadamente explica a sentença impugnada, ambos os condutores – do motociclo e do tractor – violaram, de forma voluntária, normas estradais fundamentais destinadas não só a regular o trânsito, mas, fundamentalmente, a salvaguardar a segurança dos utentes da via pública, tendo, com esse comportamento infractor contribuído, em medida equivalente, para o acidente que vitimou o Autor.
Verifica-se, pois, existir concorrência de culpas por parte dos dois condutores, devendo, no concreto contexto da contribuição de cada um deles para o evento danoso, cada uma delas ser quantificada na proporção de 50%, não constituindo a factualidade agora introduzida no artigo 20.º dos factos provados razão suficiente para alterar a medida dessa contribuição individual.
Mostra-se, além disso, evidenciado, face à prova recolhida nos autos, que as lesões corporais sofridas pelo Autor resultaram directamente do acidente de viação em se viu envolvido, e para o qual, como se disse, contribuiu de forma culposa.
Sendo o nexo causal um dos pressupostos da responsabilidade civil, o legislador civil acolheu nos artigos 483.º e 563.º do Código Civil a teoria da causalidade adequada.
Esta reporta-se a todo o processo causal, a todo o encadeamento de factos que, em concreto, deram origem ao dano, e não à causa/efeito, isoladamente considerados[12].
Como esclarece Almeida Costa[13], a teoria da causalidade adequada “não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha por si só determinado o dano”.
No mesmo sentido, esclarece Antunes Varela[14]: “do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano”.
Acham-se, por conseguinte, reunidos os pressupostos elencados no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, respondendo, por conseguinte, a Ré, na medida da culpa do condutor do veículo por si segurado, pelos danos que do sinistro rodoviário resultaram para o Autor, por virtude da transferência da responsabilidade civil emergente da circulação do referido veículo para a Ré por contrato de seguro com ela celebrado pelo proprietário do veículo.
2.1.2. Dos valores indemnizatórios devidos ao Autor pelos danos sofridos em consequência do acidente.
O artigo 562.º do Código Civil, que consagra o princípio da reconstituição natural, preceitua que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Por dano deve entender-se “a perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito viola ou a norma infringida visam tutelar”[15].
Podendo os danos ser patrimoniais ou não patrimoniais, os primeiros compreendem, por sua vez, o dano emergente e o lucro cessante, abrangendo este último “os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas a que ainda não tinha direito à data da lesão”[16].
Não sendo possível a reconstituição natural, não reparando ela integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro[17].
- A indemnização fixada a título de dano futuro patrimonial (dano biológico).
Sustenta a recorrente C…, S.A. (conclusão 25.ª): “Lançando mão, por um lado, dos factos que com relevo para o cálculo da indemnização em causa foram julgados provados, designadamente a idade do recorrido à data do acidente (23 anos), o seu vencimento médio mensal líquido durante o ano em que ocorreu o acidente (€ 707,96, o défice funcional permanente da integridade físico- psíquica de 11 pontos de que ficou afectado, e por outro lado, de critérios de equidade e das tabelas financeiras habitualmente utilizadas para o cálculo em questão, quer, ainda, à vasta doutrina e jurisprudência que ao longo dos tempos de vem pronunciando sobre o assunto, a indemnização a arbitrar ao recorrido a título de dano futuro de natureza patrimonial não deverá ser superior a € 20.000,00 e, consequentemente, a responsabilidade pelo pagamento por parte da recorrente deverá corresponder à quota-parte da responsabilidade que vier a ser atribuída ao condutor do veículo segurado”.
A sentença aqui sindicada, afirmando a ressarcibilidade dos danos futuros resultantes do défice funcional de que o Autor passou a padecer em consequência do acidente, ainda que sem rebate profissional, e depois de uma análise comparativa com os valores fixados pela jurisprudência para casos similares, entendeu fixar o valor da indemnização devida a este título em € 30.000,00, tendo o Autor direito a receber metade desse valor, reduzido na proporção da sua contribuição para o acidente.
Nos termos do artigo 564º, nº2 do Código Civil, deve atender-se aos danos futuros, desde que previsíveis, contemplando esta previsão a reparação dos danos emergentes plausíveis. Se não puder ser quantificado, em termos de exactidão, o montante desses danos, julgará o tribunal equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados, de acordo com o disposto no artigo 566º, nº 3 do Código Civil.
A fixação do valor indemnizatório pelos prejuízos decorrentes da perda de contribuição de rendimentos é tarefa delicada, sobretudo por se fundar em parâmetros de incerteza: quanto ao tempo de vida da vítima, quanto ao tempo de vida com capacidade de ganho. Mas outros factores de incerteza contribuem para o dificultar da referida tarefa: o facto da capacidade de trabalho poder vir a ser afectada por doença ou acidente, a evolução salarial, a manutenção do emprego, cada vez mais incerta, a flutuação da moeda e dos índices de inflação.
Podendo os danos ser patrimoniais ou não patrimoniais, os primeiros compreendem, por sua vez, o dano emergente e o lucro cessante, abrangendo este último “os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas a que ainda não tinha direito à data da lesão”[18].
Os prejuízos resultantes da perda de rendimentos de natureza laboral devem ser avaliados por referência à capacidade laboral, ao período de vida activa, que não se confunde com a esperança média de vida que, segundo dados do INE para 2012 – ano em que ocorreu o facto danoso, para os homens se situava nos 76 anos.
No caso de o lesado ter ficado afectado de uma IPP, podem configurar-se duas hipóteses:
a) O mesmo viu diminuída a sua capacidade de ganho efectiva (hipótese que apenas ocorrerá no caso de o lesado ter ficado afectado de um grau de incapacidade muito elevado): terá, por virtude disso, direito a ser ressarcido desses prejuízos, devendo o quantum indemnizatório ter correspondência efectiva com esses prejuízos reais, ainda que futuros;
b) O lesado não sofreu diminuição nos seus proventos - a capacidade de trabalho foi afectada, mas os rendimentos do trabalho mantém-se inalteráveis: ainda assim, tal como tem sido entendido pela jurisprudência[19], esse dano deve ser indemnizado, quer porque o lesado terá de efectuar um esforço redobrado para exercer a sua profissão, quer por ver diminuída a sua valorização no mercado do trabalho.
Nesta segunda hipótese, ainda se podem desenhar duas situações distintas consoante a incapacidade para o trabalho tenha incidência profissional, ou se trate apenas de incapacidade para o trabalho em geral.
Se no primeiro caso ainda se poderão avaliar os prejuízos prováveis a partir do critério da remuneração laboral, no segundo será difícil alcançar um montante equitativo a partir desse critério[20].
Afirma-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.04.2012[21]: “…ao contrário do dano biológico, que é um dano base ou um dano central, um verdadeiro dano primário, sempre presente em cada lesão da integridade físico-psíquica, sempre lesivo do bem saúde, o dano patrimonial é um dano sucessivo ou ulterior e eventual, um dano consequência, entendendo-se em tal contexto, não todas as consequências da lesão mas só as perdas económicas, danos emergentes e lucros cessantes, causadas pela lesão.
Assim, quem pretenda obter uma indemnização a título de lucros cessantes, em consequência de lesão sofrida, terá de fazer prova do pressuposto médico-legal sem o qual não há lugar a lucro cessante, isto é, provar que da lesão resultou uma determinada incapacidade durante o qual o lesado não esteve em condições – total ou parcialmente – de trabalhar, e, além disso, se tal for o caso, a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho (…).
Constituindo também entendimento corrente deste Tribunal, que o lesado que fica a padecer de determinada incapacidade parcial geral (IPG) – sendo a força de trabalho um bem patrimonial, uma vez que propicia rendimentos, a incapacidade parcial geral é, consequentemente, um dano patrimonial - tem direito a indemnização por danos futuros, danos estes a que lei manda expressamente atender, desde que sejam previsíveis – art. 564º, nº 2.
Sendo os danos previsíveis a que a lei se reporta, essencialmente, os certos ou suficientemente prováveis, como é o caso da perda da capacidade produtiva por banda de quem trabalha ou até o maior esforço que, por via da lesão e das suas sequelas, terá que passar a desenvolver para obter os mesmos resultados.
Sendo, pois, a incapacidade permanente, de per si, um dano patrimonial indemnizável, pela incapacidade em que o lesado se encontra e se encontrará na sua situação física, quanto à sua resistência e capacidade de esforços.
Sendo, assim, indemnizável (…) quer acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral, quer lhe implique apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais, exigindo tal incapacidade um esforço suplementar, físico ou/e psíquico, para obter o mesmo resultado (…)”.
Podendo, por seu turno, extrair-se do acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2017[22]: “Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho, já que, havendo uma incapacidade permanente, dela sempre resultará uma afectação da dimensão anátomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que, de futuro, terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo.
O dano biológico não se pode reduzir aos danos de natureza não patrimonial na medida em que nestes estão apenas em causa prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária e naquele estão também em causa prejuízos de natureza patrimonial provenientes das consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado”.
E ainda do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, pode ler-se no acórdão de 02.06.2016[23]: “O chamado dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras actividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis”.
Sustenta o acórdão da Relação do Porto de 07.04.2016[24] que, “mesmo que o défice funcional permanente de que o lesado ficou a padecer, em consequência do sinistro, não se traduza numa perda de rendimentos, representa sempre um dano específico, autónomo e indemnizável, independentemente da sua qualificação como dano patrimonial ou não patrimonial”.
Como já salientava o Acórdão da Relação do Porto, de 07.05.2001 (www.dgsi.pt), “sem dúvida que e é tarefa melindrosa calcular o valor indemnizatório, já que, tirando a idade do Autor e a incapacidade que o afecta, tudo o mais é aleatório. Com efeito é inapreensível, agora, qual vai a ser a evolução do mercado laboral, o nível remuneratório do emprego, a evolução dos níveis dos preços, dos juros, da inflação, a evolução tecnológica, além de outros elementos que influem no nível remuneratório, como por exemplo, os impostos.
Daí que, nos termos do n.º 3 do art. 566° do Código Civil, haja que recorrer à equidade ante a dificuldade de averiguar com exactidão a extensão dos danos”.
A Portaria n.º 377/08, de 26/5, com inspiração no direito espanhol e francês, no sistema dos “barèmes“, que estabelece meras propostas, indica critérios orientadores para apresentação aos lesados, em caso de acidente de viação, por dano corporal, estabelece no seu art.º 6.º b), que, para fins de cálculo de prestações em caso de violação do direito à vida e de prestações de vida ao cônjuge ou descendente incapaz por anomalia psíquica, se presume que o sinistrado trabalharia até aos 70 anos.
Também a jurisprudência dos tribunais superiores, na tentativa de adaptação às actuais condições socio-económicas do país, quando se perspectiva a possibilidade da idade da reforma vir a ser elevada para os 70 anos a relativamente curto prazo, vem abandonando a ideia de que o período de vida activa tem como limite os 65 anos de idade, antes se devendo atender ao tempo provável de vida do lesado, por referência à esperança média de vida estabelecida em relação à data em que ocorreu o facto danoso gerador do dever de indemnizar.
Como já defendia o acórdão do STJ de 28.09.1995[25], “finda a vida activa do lesado não é razoável ficcionar que também a vida física desaparece no mesmo momento e com ela todas as necessidades do lesado e, por outro lado, geralmente, continua a receber remunerações, ou como pensão de aposentação da própria profissão, ou como prestação da segurança social”, entendimento que passou a ser seguido pela jurisprudência dos tribunais superiores[26] após ter sido defendido no Parecer do Provedor de Justiça de 19.03.2001, elaborado a propósito do denominado caso “ponte Entre-os-Rios”.
Perante a constatação das dificuldades associadas à fixação do montante indemnizatório para reparação dos danos futuros, traduzidos em lucros cessantes, e perante a diversidade de resultados obtidos com o recurso a critérios diferentes, a Espanha sentiu necessidade de introduzir, através da Ley nº 30/1995, de 8/11, medidas de “baremación”, vinculativas para os tribunais. Ainda que sem o mesmo carácter vinculativo, mas sendo um sistema fundado em “barèmes”, o regime que se encontra implantado em França, assente numa Convenção destinada a regularizar sinistros de circulação automóvel, adoptada depois da publicação da Loi nº 85-677, de 5 de Julho de 1985, destinando-se à generalidade dos danos emergentes de acidente de viação, revela circunstâncias diversificadas, de forma a integrar a generalidade dos sinistros, com valores antecipada e objectivamente fixados, sem prejuízo da possibilidade de ponderação de situações específicas.
Sem idêntica consagração legislativa, os tribunais portugueses têm recorrido a diferentes fórmulas para determinar o quantum indemnizatório para a reparação desses danos.
Essas fórmulas oscilaram entre o recurso às tabelas de cálculo das pensões por incapacidade laboral e sua remição, que depressa foi abandonado, e o recurso a fórmulas matemáticas, além do recurso a critérios para cálculo do usufruto para fins fiscais.
O recurso às tabelas matemáticas ou tabelas legalmente fixadas para a regularização dos sinistros laborais tem vindo a ser posto em crise por não garantirem a justa reparação do dano em causa, já que “na avaliação dos prejuízos verificados o juiz tem que atender sempre à multiplicidade e à especificidade das circunstâncias que concorreram no caso e que o tornarão sempre único e diferente”[27].
Um dos outros critérios possíveis para ponderar o montante indemnizatório em discussão foi preconizado pelo Acórdão do STJ, de 18.01.79[28], segundo o qual “em relação ao futuro, a indemnização deve ser calculada em atenção ao tempo provável de vida activa da vítima, de forma a representar um capital produtor do rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual até final do período, segundo as tabelas financeiras usadas para determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente ao juro anual de 9%”.
A partir de então este critério passou a ser adoptado em várias decisões dos tribunais superiores, servindo-se, para o efeito, das taxas de juro estabelecidas para as operações bancárias activas de crédito, passando depois para as de depósito a prazo, adaptando a taxa de juro às flutuações respectivas no mercado financeiro.
Estes critérios foram sendo sucessivamente perfilhados por decisões do Supremo Tribunal de Justiça, que, todavia, não deixam de lhes reconhecer a natureza de índices meramente informadores da fixação do cálculo, meros instrumentos auxiliares de orientação, não dispensando o recurso à equidade, que pressupõe uma solução em sintonia com a lógica e o bom senso, com apelo às regras da boa prudência, da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem submissão a critérios subjectivos de ponderação, e que pese a gravidade do dano.
Note-se que o critério fundado nas tabelas financeiras não é isento de críticas: as taxas de capitalização devem corresponder à previsível remuneração do dinheiro no período a considerar, o que sendo impossível de quantificar de forma exacta, exige um juízo de previsibilidade, que, atendendo às modificações sociais e económicas, cada vez mais sentidas, se revela muitas vezes temerário.
Comprovando essa realidade, constata-se na jurisprudência uma larga oscilação nos valores das taxas de capitalização[29].
Talvez por isso, já alguma jurisprudência tende a defender que o recurso às tabelas deve ser posto de parte, devendo-se antes confiar no prudente arbítrio do tribunal, com recurso à equidade[30].
A discussão acerca da metodologia a seguir continua, assim, em aberto, como já o reconhecia o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.2002[31], dada a incerteza que envolve o cálculo deste dano futuro, aceitando mesmo, como critério possível, permitindo uma certa flexibilização no cálculo, a aplicação de uma regra de três simples, na qual se procura determinar qual o capital produtor do rendimento anual que se deixou de obter, tendo em conta a taxa de juro de 3%; ou seja qual o capital que à taxa de juro em alusão reproduz aquele rendimento, a que é de deduzir um factor de correcção.
De todo o modo, tem-se vindo a consolidar na jurisprudência, como solução para definir os parâmetros da reparação deste tipo de dano, determinar o capital necessário, que, entregue de uma só vez, e diluído no tempo de vida do lesado, lhe proporcione o mesmo rendimento que auferiria se não tivesse ocorrido a lesão[32].
Entende-se, de todo o modo, que a determinação do montante indemnizatório deve ser obtida com recurso a processos objectivos (fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas), servindo para determinar um limite mínino indemnizatório, o qual, deverá posteriormente ser corrigido com recurso a outros elementos, quer objectivos quer subjectivos, que possam conduzir a uma indemnização justa.
Seja qual for o critério norteador (já que todos os critérios até hoje seguidos não são vinculativos, são meramente indiciários), haverá que ter sempre presente a figura da equidade, a qual visa alcançar “a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, de forma que se tenha em “conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida…”[33].
Como antes se deixou referido, mesmo que o lesado, desenvolvendo actividade laboral, fique afectado de IPP, mas sem reflexo na sua capacidade de ganho, ainda assim deve ser indemnizado na medida em que represente uma diminuição somático-psíquica e funcional, com incidência na sua vida profissional e pessoal, conferindo-se neste caso relevo ao designado “dano biológico”[34].
Afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2012: “o dano biológico merece, logo porque tem lugar, tutela indemnizatória, compensatória ou ambas;
A extrema amplitude que o nosso legislador confere ao conceito de incapacidade para o trabalho, aliada à orientação sedimentada da jurisprudência de que é de indemnizar, quer esta leve a diminuição de proventos laborais, quer não leve, já o contempla indemnizatoriamente, ainda que noutro plano;
Do mesmo modo a relevância que a nossa lei confere aos danos não patrimoniais também aliada à amplitude deste conceito que a jurisprudência vem acolhendo – englobando, nomeadamente os prejuízos estéticos, os sociais, os derivados da não possibilidade de desenvolvimento de actividades agradáveis e outros – já o contempla neste domínio.
Pelo que a conceptualização do dano biológico não veio “tirar nem pôr” ao que, em termos práticos, já vinha sendo decidido pelos tribunais, quanto a indemnização pelos danos patrimoniais de carácter pessoal ou compensação pelos danos não patrimoniais.
Onde releva é na fundamentação para se chegar a tal indemnização, afastando as dúvidas que poderiam surgir perante a não diminuição efectiva de proventos apesar da fixação da IPP ou, em casos de verificação muito rara, como aqueles em que o lesado já estava totalmente incapacitado para o trabalho antes do evento danoso ou até, no que respeita aos danos não patrimoniais, em que ficou definitivamente incapacitado para ter consciência e sofrer com a sua situação”.
Idêntico entendimento foi perfilhado pelo acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2010[35], quando refere que a “compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança ou reconversão de emprego pelo lesado, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, frustrada irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas”.
Tal dano biológico não se reporta apenas ao período temporal subsequente à alta clínica, devendo, por maioria de razão, abranger o período em que o facto incapacitante foi mais intenso (incapacidade temporária absoluta) e é indemnizável ainda que o lesado à data do evento lesante não exercesse actividade laboral remunerada[36].
Assim, sendo, no caso do demandante, indemnizável os danos patrimoniais futuros decorrentes das sequelas físicas e funcionais que, por virtude do acidente, sofreu e de que padece ainda, o correspondente valor indemnizatório há-de ser calculado com base em critérios de equidade que assente numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida e que não seja colidente com critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
Importa sempre salientar, como faz notar o Acórdão da Relação do Porto de 20.03.2012[37] que “os Tribunais, na fixação das indemnizações por danos decorrentes de sinistros rodoviários, não estão sujeitos ao regime previsto na Portaria n.º 377/2008, de 26/05, por este diploma não ter por objectivo a fixação definitiva dos valores indemnizatórios mas, apenas e só o estabelecimento de regras/princípios que visam agilizar a apresentação de propostas razoáveis numa fase pré-judicial”.
No caso vertente, na ponderação dos elementos atendíveis haverá que privilegiar fundamentalmente a natureza, extensão e gravidade das sequelas funcionais resultantes do acidente para o Autor (achando-se, por virtude das sequelas, permanentes e irreversíveis, de que ficou a padecer afectado de uma incapacidade permanente geral de 11 pontos, as quais, não sendo impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, exigem, no entanto, esforços suplementares, de expressão significativa, dada a sua actividade profissional e as lesões de que passou a padecer – cfr. pontos 42.º e 43.º dos factos provados, a sua idade à data do acidente (23 anos), a expectativa de vida activa até, pelo menos, aos 70 anos de idade, o rendimento líquido que, à data do evento danoso, auferia (€ 707,96x 14 vezes por ano).
Todavia, o valor resultante da aplicação da fórmula abaixo descrita não é de aplicação vinculativa e automática. Constitui apenas um valor [objectivo] de referência, um minus, que deve ser corrigido/temperado nos termos já antes assinalados, de forma a serem ponderados outros factores concretos a que deva ser atribuída relevância para efeitos de equidade, não menosprezando os valores indemnizatórios atribuídos para situações similares pelas instâncias superiores.
Ponderando os parâmetros em causa, sem esquecer a existência da culpa concorrencial do Autor, ter-se-á de concluir que o valor fixado na sentença, a título de reparação pelo dano biológico, só pecará por defeito, jamais por excesso, não existindo o mínimo fundamento para reduzir tal valor nos termos pretendidos pela apelante seguradora.
- A reparação do motociclo.
O Autor impugnou a decisão relativa à matéria de facto na parte em que em primeira instância se deu como comprovada a factualidade constante dos pontos 29.º e 30.º.
Com o reexame de tal decisão por esta instância de recurso reclamava o Autor a alteração daqueles segmentos decisórios de modo a ter-se como provado que:
- Em 06-05-2017, antes do acidente, o valor venal do motociclo de matrícula ..-BO-.. era de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros);
- Devido aos danos provocados pelo acidente, o motociclo ficou impossibilitado de circular e o valor do custo da reparação ascende a € 6.965,42 (seis mil, novecentos e sessenta e cinco euros e quarenta e dois cêntimo).
Pedindo o mesmo, como base neste circunstancialismo fáctico, que seja a Ré seguradora condenada a pagar-lhe o valor da reparação.
O erro de julgamento imputado pelo Autor/Recorrente àquela parte da decisão não resultou, todavia, confirmado, pelo que os referidos pontos concretos da matéria de facto mantiveram-se inalterados.
Assim, resulta comprovado que:
Em 06-05-2017, antes do acidente, o valor venal do motociclo de matrícula ..-BO-.. era de € 4.800,00 (quatro mil e oitocentos euros) – Ponto 29.º;
Devido aos danos provocados pelo acidente, o motociclo ficou impossibilitado de circular e o valor do custo da reparação ascende a € 6.874,37 (seis mil, oitocentos e setenta e quatro euros e trinta e sete cêntimos) – Ponto 30.º.
Para além disso, ficou demonstrado que “O valor do motociclo sinistrado é de € 1.856,00 (mil, oitocentos e cinquenta e seis euros)” – Ponto 31.º.
O artigo 566.º do Código Civil estabelece o princípio da reconstituição in natura na reparação do dano: como já adiantamos, não sendo possível a reconstituição natural, não reparando ela integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização é fixada em dinheiro.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[38], “o fim precípuo da lei nesta matéria é o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes”.
Para Almeida Costa[39] a limitação ao princípio da reconstituição natural tem lugar em caso de “flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural para o responsável. A onerosidade deve apreciar-se, de resto, em termos amplos, considerando-se, inclusive, legítimos interesses de ordem moral ou sentimental”.
Menezes Cordeiro[40] entende que a excessiva onerosidade ocorre quando a indemnização específica, sendo possível, acarrete, no entanto, para o obrigado à indemnização, um esforço que não tenha qualquer equivalência com a vantagem obtida para o lesado, ou seja, quando a sua exigência atente gravemente contra o princípio da boa fé.
De acordo com o artigo 41.º, n.º 1, al. c), da LSO (Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto), “Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
[...]
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
A maioria da jurisprudência é, todavia, de opinião que o referido dispositivo normativo não revogou o nº 1 do artigo 566.º do Código Civil, não se aplicando aos litígios em fase judicial.
Na apreciação da excessiva onerosidade relevam factores subjectivos, como os respeitantes ao devedor e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, bem como as condições do lesado, e o seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado. Nesta sede, o valor a ter em conta é o valor patrimonial do veículo, correspondendo este ao valor que o veículo representa dentro do património do lesado, ou seja, o valor necessário para o lesado adquirir um veículo com as características do veículo sinistrado, adequado a satisfazer as mesmas necessidades e interesses. Tal valor não é, então, o valor venal do veículo mas o valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado; o valor que ele tem efetivamente - tal como estava antes do sinistro - dentro do património do autor (e não o valor que ele obteria se naquele mesmo estado o vendesse).
Considerando o ónus probatório plasmado no artigo 342.º do Código Civil, e a sua repartição pela litigantes, neste específico domínio, sem necessidade de acrescidos argumentos, pelas razões que a seguir melhor se entenderão, ao Autor, de acordo com a regra contida no n.º 1 do preceito, cabe a prova de que o seu veículo, sinistrado em consequência do acidente, pode ser tecnicamente reparado, recaindo ainda sobre ele o ónus da comprovação do custo dessa reparação.
Por sua vez, compete à Ré seguradora, por força do n.º 2 do aludido normativo – matéria de excepção -, demonstrar que o custo da reparação do veículo danificado é excessivamente oneroso em função do seu valor venal.
Nesta circunstância, incumbirá ao Autor - por se encontrar na melhor condição de fazer esta alegação e demonstração e ser ela do seu interesse - a tarefa probatória de comprovar que o seu veículo tem no seu património um valor superior ao do seu valor de mercado. Não fazendo ele esta prova, é o valor venal do bem que se sobrepõe.
Na situação dos autos, essa análise apenas pode assumir alguma relevância teórica-argumentativa, já que a reparação do motociclo, que não foi inicialmente peticionada pelo Autor, não pode agora, em sede de recurso, ser reclamada, a tal obstando o princípio da estabilidade da instância, que também determina a imutabilidade do pedido.
Ora, como se evidencia pela simples leitura dos artigos 21.º a 25.º da petição inicial, a controvérsia entre Autor e Ré cinge-se ao valor comercial do motociclo e aos custos da sua reparação, não aceitando esta última os valores indicados pelo Autor, para efeitos do cálculo indemnizatório que este reclama.
Diz, com efeito, o Autor no artigo 24.º do seu articulado inicial: “Sucede que, a Ré não assumiu os referidos valores, considerando que o veículo teria apenas o valor venal de € 4.800,00, apresentando uma proposta do valor de €2.944,00, já deduzido o salvado – cfr. doc. 13 (proposta de regularização condicional)”.
Para logo acrescentar (artigo 25.º): “O que o Autor não pode aceitar, uma vez que o seu veículo tinha um valor comercial muito mais elevado e o sinistro ocorrido é da responsabilidade do veículo segurado na Ré, tendo esta a obrigação de indemnizar o Autor”.
Ou seja: o que o Autor reclama na petição inicial é a indemnização pela perda do motociclo, devendo essa indemnização corresponder ao seu valor comercial, mais elevado, na sua perspectiva, do que o valor venal proposto pela Ré, deduzido o valor do salvado, não podendo agora transmutar esse pedido na reparação do motociclo sinistrado.
E daí se compreende que a sentença, quanto ao dever de indemnização pelos danos causados no motociclo em consequência do acidente e sua medida, se tenha sinteticamente limitado a afirmar:
“Como estamos perante um caso de perda total, em que o salvado ficou com o Autor, seu proprietário, o valor da indemnização deveria corresponder ao valor venal do veículo (€ 4.800,00) deduzido o valor do salvado (€ 1.856,00), ou seja, € 2.944,00. Ponderando, face ao supra exposto, que a indemnização deverá ser reduzida para metade, a este título, o Autor deverá receber € 1.472,00”.
Conclusão que, face à não alteração do decidido quanto aos pontos 29.º e 30.º, e considerando o pedido inicial formulado pelo Autor quanto à ressarcibilidade dos danos causados no seu veículo em decorrência do acidente, se mostra totalmente ajustada.
- Da privação do uso do motociclo sinistrado em consequência do acidente.
Embora se reconhecendo não ser tratada de forma uniforme a questão da ressarcibilidade do dano pela privação do uso do veículo, havendo quem a negue, tem vindo, todavia, a consolidar-se opinião favorável à reparabilidade deste tipo de dano[41].
Não importando tanto definir a natureza do dano em causa, patrimonial ou não patrimonial, que sempre dependerá da natureza do bem afectado, não podemos deixar de considerar que a privação de um bem patrimonial, como um veículo, constitui fonte da obrigação de reparar, na medida em o seu titular se confronta com a impossibilidade de dele dispor e de o usufruir[42].
A privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. Ela é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito[43].
Esta posição jurisprudencial traduz-se numa das duas correntes que vêm sendo seguidas nos tribunais, incluindo no Supremo Tribunal de Justiça, a que não tem sido alheia a influência de certa doutrina, designadamente a que foi desenvolvida por Abrantes Geraldes[44], assim sintetizada:
Em vista do disposto nos artigos 562.º a 564.º e 566.º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente pode resultar:
a) Um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como seria o aluguer de outro veículo;
b) Um lucro cessante – a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa;
c) Um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no artigo 1305.º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender[45].
De acordo com este último entendimento, o dano resultante da simples privação do uso do veículo é susceptível de indemnização, a fixar com recurso à equidade.
Como esclarece o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2011[46], “a avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no artigo 566º, nº 3, do CC”.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2007, citando o Prof. Gomes da Silva, lê-se: “o bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. No dano haverá sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.
Para Abrantes Geraldes[47] “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização”.
No seu acórdão de 8.05.2013[48], o Supremo Tribunal de Justiça mostra-se alinhado com tal posição ao sustentar: “Entende-se que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (assim, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc, nº 07B1849, ou de 10 de Setembro de 2009, já citado); e que o cálculo da correspondente indemnização, tal como se decidiu no acórdão recorrido, há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)”.
A determinação do valor do dano haverá de corresponder às despesas realizadas pelo lesado em consequência da privação do veículo sinistrado, se elas existiram e se se apurou o seu montante, ou através do recurso à equidade, caso não se apurem quaisquer despesas ou a sua quantificação, devendo, nesta última hipótese, a medida da indemnização ser ajustada aos transtornos e incómodos resultantes da impossibilidade de utilização do veículo, nomeadamente em deslocações profissionais, para satisfação de necessidades básicas, ou meramente de lazer.
A sentença recorrida julgou improcedente o pedido de indemnização formulado pelo Autor a título de dano pela privação do veículo sinistrado com o seguinte fundamento telegráfico: “Quanto ao alegado dano da privação do uso (arts. 26.º a 29.º da petição inicial), como não se provou a factualidade na qual o Autor baseava esta sua pretensão (alíneas 74-76 dos factos não provados), a ação improcederá, nesta parte”.
É certo que não se provou que “o aluguer diário de um motociclo com as mesmas caraterísticas do motociclo de matrícula ..-BO-.. ascende a € 30,00 (trinta euros)” – ponto 74.º, nem que “por estar impossibilitado de utilizar o motociclo de matrícula ..-BO-.., para as suas deslocações profissionais e de lazer, o Autor teve de socorrer-se de veículos de terceiros familiares e amigos que, a título de favor, lhe cederam por empréstimo tais veículos” – ponto 76.º.
Também se desconhece se o Autor, além do motociclo destruído em consequência do acidente, possuía, à data do acidente, alguma outra viatura que pudesse utilizar, sabendo-se apenas que “desde Julho de 2017, o Autor é proprietário de um veículo de passageiros da marca Audi, .., .., matrícula ..-..-SG” – ponto 32.º.
Assim, o único dano causado pela privação de uso do veículo do Autor traduz-se na ofensa ao seu direito de uso e fruição, inerente ao respectivo direito de propriedade, resultante da indisponibilidade de uso de tal veículo e aos transtornos que advieram da impossibilidade da sua utilização, por, após o acidente, ter ficado em condição de não poder circular.
Tendo a equidade conteúdo indeterminado, variável em função das concepções de justiça dominantes em cada sociedade e em cada momento histórico, a mesma está limitada por imperativos da justiça real (a justiça adequada às circunstâncias) em oposição à justiça meramente formal.
A indemnização fixada com recurso à equidade, destinando-se a reparar os prejuízos sofridos pelo lesado, não estando vinculada a critérios matemáticos, nunca poderá, todavia, representar um desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, não podendo, assim, conduzir a um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante (ou de quem por ele responda civilmente), sobretudo quando aquele não revele a existência de prejuízos efectivos em virtude da privação do uso do veículo sinistrado, nomeadamente, despesas com meios de transporte de substituição.
Recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil, e atendendo às circunstâncias relativas à privação do uso do veículo, não se apurando que o dano tivesse outros reflexos para além da ofensa ao direito de usar e de fruir do motociclo, inerente ao respectivo direito de propriedade de o Autor é titular, mostra-se equilibrado atribuir, a título de reparação do dano em causa, uma compensação diária de € 8,00, desde a data do acidente – 6 de Maio de 2017 -, até 8 de Junho de 2017, data em que a Ré dirigiu ao Autor proposta de regularização condicional, comunicando-lhe a situação de perda total do veículo deste – documento n.º 13 junto com a petição inicial.
Terá, assim, o Autor direito, a esse título, e considerando o grau de concorrência da sua culpa na produção do acidente, a uma indemnização no valor de € 132,00 (cento e trinta e dois euros): 33diasx8,00/diax50%.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:
- Julgar improcedente o recurso da apelante C…, S.A.;
- Julgar parcialmente procedente o recurso do apelante B…, condenando a Ré a pagar-lhe, além dos valores fixados na sentença recorrida, ainda a quantia de € 132,00 (cento e trinta e dois euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, desde esta data até integral pagamento, a título de indemnização pela privação do uso do seu motociclo sinistrado em consequência do acidente;
- Quanto ao mais, confirmar a sentença recorrida.

Custas das apelações:
- pelo recurso interposto pela apelante C…, S.A. – a cargo desta;
- pelo recurso interposto pelo apelante B…: por apelante e pela apelada, na proporção do respectivo decaimento

Porto, 29 de Abril de 2021
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Paulo Dias da Silva
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[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[3] Acórdão da Relação do Porto, 15.12.94, processo nº 9440149, www.dgsi.pt.
[4] Acórdão da Relação do Porto, 26.10.2004, processo nº 0423773, www.dgsi.pt.
[5] Por razões de coerência metodológica, uma vez que ambos os recorrentes (Autor e Ré) discutem recursivamente a culpa (exclusiva da parte contrária ou repartida e, neste caso, medida da concorrência) e montantes indemnizatórios, a análise das questões suscitadas pelos recorrentes far-se-á em conjunto.
[6] Acórdão do STJ, 18.05.2006, procº nº 06B1644, www.dgsi.pt.
[7] www.dgsi.pt.
[8] cf. Antunes Varela, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 102º, pág. 8 e ss.
[9] Neste sentido, Acórdão Relação do Porto, 14/3/89, BMJ 385º, 603.
[10] O que, de resto, se coaduna com as regras gerais da repartição do ónus da prova, plasmadas no artigo 342º do Código Civil, já que a culpa, sendo um dos pressupostos que integra e fundamenta o dever de indemnizar, é um facto constitutivo do direito a que o lesado se arroga; cf. ainda, neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ, 12.07.2005, 21.11.2006, 13.11.2008, Acórdão desta Relação, de 21.09.2004, todos em www.dgsi.pt.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2009, Processo n.º 04B2638, www.dgsi.pt.
[12] Cf. Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre Responsabilidade Civil”, 1955.
[13] “Direito das Obrigações”, págs. 632, 633.
[14] “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pág. 865.
[15] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 7ª ed., pág. 591.
[16] Ibid, pág. 593.
[17] Artigo 566º, nº1 do Código Civil.
[18] Ibid, pág. 593.
[19] Cfr., designadamente, acórdão da Relação de Coimbra de 12.04.2011, processo nº 756/08.2TBVIS.C1, www.dgsi.pt. e jurisprudência nele citada.
[20] Cf. Acórdão da Relação do Porto, 16/10/2003, www.dgsi.pt
[21] Processo nº 3046/09.0TBFIG.S1, www.dgsi.pt.
[22] Processo n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1, www.dgsi.pt
[23] Processo n.º 2603/10.6TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt
[24] Processo n.º 171/14.9TVPRT.P1, www.dgsi.pt.
[25] CJ.STJ.95.III, pág. 36.
[26] Entre outros, cfr. acórdãos do STJ de 19/04/2012 (3046/09.0TBFIG.S1); de 20/10/2011 (428/07.5TBFAF. G1.S1); de 07/06/2011 (524/07.9TCGMR.G1.S1); de 20/05/2010 (103/2002. L1.S1); de 25/06/2009, do 08B3234, e de 17/06/2008 (08A1266), www.dgsi.pt
[27] Acórdão do STJ, 4/2/93, Colectânea de Jurisprudência/ Acórdãos do STJ, ano 1, tomo 1, pág. 129.
[28] BMJ 283º-275.
[29] A título de exemplo: Acórdão do STJ de 4/2/93, CJSTJ, tomo I, pág. 128: 9%; Acórdão do STJ de 5/5/94, CJSTJ, tomo II, pág. 86: 7%; Acórdão do STJ de 15/12/98, CJSTJ, tomo III, pág. 155: 5%; Acórdão do STJ de 16/3/99, CJSTJ, tomo I, pág. 167: 4%.
[30] Entre outros, Acórdão do STJ de 28/9/95, CJSTJ, 1995, tomo 3º, pág. 36.
[31] CJ/Supremo Tribunal de Justiça, ano X, t. II, págs. 132, 133.
[32] Acórdão do STJ de 04.12.2007, processo n.º 07A3836, www.dgsi.pt.
[33] Acórdão do STJ, 10/2/98, CJSTJ, tomo I, pág. 65.
[34] Entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2006, processo nº 3977/06, de 12.10.2006, processo nº 2461/06, 20.05.2010, processo nº 103/201.L1.S1, de 23.11.2010, processo nº 456/06.8TBVGS.C1.S1, 26.01.2012, processo nº 220/2001-7.S1, todos em www.dgsi.pt.
[35] Processo nº 270/06.0TBLSD.P1.S, www.dgsi.pt.
[36] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06.12.2011, processo nº 52/06.0TBVNC.G1.S1, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2011, processo nº 160/2002.P1.S1, ambos em www.dgsi.pt.
[37] Processo nº 571/10.3TBLSD.P1, www.dgsi.pt.
[38] Código Civil Anotado, 2.ª edição, vol. I, pág. 506.
[39] Direito das Obrigações, Almedina, 1979, pág. 526.
[40] Direito das Obrigações, 2º vol., AAFDL, 1980, pág. 401
[41] Neste sentido se pronunciaram, entre outros, Abrantes Geraldes, “Indemnização do Dano de Privação do Uso”, Almedina, Coimbra, 2001, págs. 30 e segs, Luís Telles de Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, 3ª Edição, Vol. I, Almedina, Coimbra, págs. 338, 339.
[42] Artigo 483º, nº1 e 1305º, ambos do Código Civil.
[43] Neste sentido, cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011, proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1 e de 08.05.2013, proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt, citando-se, no segundo, outra jurisprudência, nomeadamente, os acórdãos do mesmo Tribunal de 5 de Julho de 2007, proc. nº 07B1849, e de 10 de Setembro de 2009, proc. nº 376/09.4YLSB, também publicados na referida base de dados. Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008, Colectânea de Jurisprudência do STJ, t. I, pág. 90, citando Direito das Obrigações do Prof. Menezes Leitão, vol. I, pág. 317, Cadernos de Direito Privado, anotação do Prof. Júlio Gomes, nº 3, pág. 62 e Temas, do Desembargador Abrantes Geraldes, vol. 1, pág. 90 e 91. E ainda acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, XIII, III, pág. 151, onde se contém vasta referência jurisprudencial no sentido sustentado, e o acórdão da Relação de Guimarães de 11.11.2009, proc. 8860/06.5TBBRG.G1, www.dgsi.pt.
Alguma jurisprudência, todavia, designadamente no Supremo Tribunal de Justiça – de que são exemplo os acórdãos de 16.9.2008, de 30.10.2008 e de 12.1.21012, www.dgsi.pt - perfilham entendimento no sentido do reforço das exigências de prova dos prejuízos emergentes da paralisação do veículo.
[44] Indemnização do Dano da Privação do Uso, Coimbra, Almedina, 2001.
[45] Em sentido diverso, outra corrente jurisprudencial defende a essencialidade da alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à utilização do veículo e termos dessa utilização.
[46] Processo nº 2618/08.06TBOVR.P1, www.dgsi.pt. No mesmo sentido, acórdão do mesmo STJ de 08.05.2013, processo nº 3036/04.9TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt.
[47] Indemnização do Dano Privação do Uso, págs. 39-41.
[48] Proc. nº 3036/04.9TBVLG.P1.S1.