Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
98/12.9TYVNG-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: CRÉDITO NA INSOLVÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO PROMESSA
Nº do Documento: RP2020120998/12.9TYVNG-F.P1
Data do Acordão: 12/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Resultando dos factos alegados pelos autores na petição, que em meados de 2014 os autores tomaram conhecimento da pendência do processo de insolvência e das diligências que estavam a ser realizadas pelo administrador da insolvência no sentido da celebração da escritura pública e que o incumprimento do contrato promessa foi motivado pela declaração de insolvência é a partir de 2014 que se inicia o prazo de seis meses para a instauração da ação ao abrigo do art. 146º/1 CIRE.
II - O direito de retenção constitui um direito de garantia que confere preferência no pagamento, mas não confere qualquer direito de gozo sobre o bem, que fica como os demais bens do devedor sujeito à apreensão para a massa insolvente, não constituindo fundamento para separação dos bens da massa insolvente.
III - Em sede de insolvência, o crédito resultante do incumprimento do contrato promessa, por efeito da declaração de insolvência do promitente vendedor, não goza do direito de retenção, quando, apesar da tradição do bem, os promitentes-compradores não podem ser qualificados como consumidores, porque a fração a vender se destinava ao exercício da atividade profissional (salão de cabeleireiro).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Insolv-VerfUlteriorCred-98/12.9TYVNG-F.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação instaurada ao abrigo do art. 146º do CIRE, que segue a forma de processo declarativo comum, por apenso ao processo de insolvência de “B…, Lda.”, em que figuram como:
- AUTORES: C… e mulher, D…, residentes na Rua … n.º …, 1º, …, …, Vila Nova de Gaia; e
- RÉUS: Massa Insolvente de “B…, Lda.”, a devedora e os credores,
pedem os autores:
a) Que seja reconhecido o direito dos autores à restituição do imóvel e separação do bem objeto do contrato promessa da massa insolvente;
b) Que seja reconhecido aos autores o direito de exigir a realização do contrato prometido ou, em alternativa,
c) Que seja graduado, a favor dos autores, o crédito correspondente ao dobro pago a título de sinal e princípio de pagamento, no valor de 70.000,00 euros, acrescido de juros de mora vincendos, contados sobre as datas das respetivas entregas e até efetivo e integral pagamento;
d) Que seja reconhecido o direito de retenção dos autores sobre a fração autónoma objeto do contrato promessa de compra e venda celebrado com a insolvente “B…, Lda.”;
e) Que seja dada sem efeito a diligência de tomada de posse do imóvel.
Alegaram, para o efeito, que celebraram com a sociedade comercial “B…, Lda.”, a 17 de Março de 2008, um contrato promessa de compra e venda, tendo por objeto a fração autónoma designada por loja n.º ., do prédio urbano a constituir em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia …, com o número 2327, pelo preço de 55.000,00 euros. Naquela data, pagaram a quantia de 10.000,00 euros, a título de sinal e princípio de pagamento, tendo pago, ainda, a quantia de 25.000,00 euros, a título de reforço de sinal. A parte restante do preço, no montante de 20.000,00 euros, foi paga a 26 de Agosto de 2010, data em que passaram a tomar posse da fração, aí colocando a funcionar o cabeleireiro da autora mulher, o que ainda se verifica à data.
Mais alegaram que o legal representante da promitente vendedora comprometeu-se a outorgar a escritura pública com a obtenção da licença de utilização.
Alegaram, ainda, que em meados de 2014, o legal representante da insolvente, contactou o autor marido, apresentando-lhe a licença de utilização, e explicando, que apesar de obtida aquela, não era possível celebrar a escritura de compra e venda, porque a sociedade promitente vendedora, entretanto estava em processo de insolvência. Informou os AA, que não se preocupassem, porque a posse e o pagamento da fração identificada no escrito particular referido no artigo primeiro da petição inicial, era do conhecimento do Sr. Administrador de Insolvência, que estaria na posse de toda a documentação, designadamente os recibos de quitação, e portanto, seria este a fazer o contacto, para a celebração da escritura.
Mais referiram que neste hiato temporal os AA nunca receberam por parte da massa insolvente ou do Sr. Administrador de Insolvência qualquer comunicação e/ou notificação, para reclamar o seu crédito, para apreensão do bem e nomeação de fiel depositário (atenta a posse efetiva do imóvel) ou para entrega voluntária do imóvel.
Os AA foram confrontados com o Edital de tomada de posse com arrombamento de porta e mudança de fechadura, para o dia 02 de outubro de 2018.
Alegaram, ainda, que existindo, como existiu no caso sinal e reforço de sinal, e não sendo o outorgante faltoso o promitente-comprador, se este não optar pela execução específica ou esta não seja já possível, assiste-lhe o direito de exigir o dobro do que prestou, ou caso, tenha havido tradição da coisa objeto do contrato definitivo prometido, o valor desta, objetivamente determinado ao tempo do não cumprimento, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago (artº 442º, nºs 1, 2, 2ª parte, e 3 do Código Civil).
Referem que o crédito que resulta do não cumprimento está garantido com direito de retenção, a retenção reconhecida ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real para quem a coisa objeto mediato definitivo prometido tenha sido traditada, no tocante ao crédito resultante do não cumprimento dele pelo outro promitente (artº 755 nº 1 f) do Código Civil).
Mais alegaram que o incumprimento definitivo do contrato-promessa decorre da própria declaração de insolvência, suficiente para que os AA invoquem o direito de retenção emergente do artº 442º, nº 2, do Código Civil.
Concluem que tendo os autores procedido à entrega à insolvente, no âmbito do contrato promessa em causa, da totalidade do preço da fração prometida comprar, têm os mesmos o direito de exigir, a realização do contrato prometido, ou, em alternativa o direito de exigir, o dobro do valor da prestação que efetuaram, o que totaliza a quantia de € 70.000,00 (setenta mil euros).
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Proferiu-se despacho em 17 de outubro de 2018 que indeferiu liminarmente o pedido formulado sob a alínea e) [“e) Que seja dada sem efeito a diligência de tomada de posse do imóvel”].
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Determinou a realização das legais citações e declarou-se suspensa a liquidação do imóvel descrito no art. 1º da petição, despacho proferido com o teor que se transcreve:
““Na medida em que os Autores pretendem o reconhecimento do direito de separação do imóvel que indicam da massa insolvente, ao que acresce o facto de não estarmos perante uma situação de venda antecipada a efetuar nos termos do nº2 do artigo 158.º do CIRE, decide-se suspender a liquidação do imóvel melhor identificado no art. 1º da petição inicial, ao abrigo do artigo 160.º, nº 1, do CIRE.
Notifique, de imediato, conjuntamente com a citação, o Sr. Administrador da Insolvência (em representação da ré Massa Insolvente) e a ré Devedora, bem como os Autores do presente despacho”.
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Contestou a massa insolvente, representada pelo administrador da insolvência, defendendo-se por exceção e por impugnação.
A título de questão prévia considerou não ser de sustar a liquidação, porque na data em que foi instaurada a ação, o prédio em causa já tinha sido objeto de venda, mostrando-se a aquisição registada a favor do E…, SA.
Por exceção, suscitou a nulidade da petição por ineptidão com fundamento em falta de causa de pedir relativamente ao pedido formulado na alínea a) e a caducidade do direito a reclamar créditos.
A ré Massa Insolvente deduziu, ainda, pedido reconvencional.
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O credor “E…, S.A.” veio de igual forma contestar, pugnando, também, pela extemporaneidade da reclamação de créditos e impugnando os factos alegados pelos autores.
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Na Réplica os autores vieram responder à questão prévia e pronunciar-se sobre a matéria das exceções e nulidade e impugnar os fundamentos da reconvenção.
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A Massa Insolvente veio requerer que se julgasse não escrita parte da matéria da réplica, por não ser admissível a resposta dos autores nessa parte.
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Proferiu-se despacho que admitiu o articulado réplica, sem qualquer limitação.
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Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual foi apresentada proposta de decisão, reservando-se as partes a faculdade de se pronunciarem sobre a mesma em prazo a conceder.
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Em sede de saneador a exceção da ineptidão da petição inicial invocada pela ré massa insolvente foi julgada improcedente e o pedido reconvencional deduzido pela mesma não foi admitido.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente e, em consequência, absolvo os réus do pedido.
Custas a cargo dos autores, sem prejuízo da decisão proferida sobre o pedido de apoio judiciário que formularam (cfr. fls. 134 e seguintes)”.
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Os autores vieram interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentaram os apelantes formularam as seguintes conclusões:
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Termina por pedir o provimento do recurso e a revogação da sentença.
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O Administrador da Insolvência veio responder ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
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Termina por pedir que se julgue improcedente o recurso, com confirmação da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova e ampliação da decisão de facto, por omissão de pronuncia sobre factos alegados em sede de réplica;
- direito a requerer a separação dos bens da massa, com fundamento em direito de retenção.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
a) A sociedade comercial “B…, Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida a 28 de Setembro de 2012, transitada em julgado a 22 de Outubro de 2012;
b) Foi fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos;
c) A 2 de Novembro de 2012 foi apreendida a favor da massa insolvente a fração autónoma designada pela letra F, descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia …, com o número 2327/19960710-F [verba n.º 6];
d) O direito de propriedade sobre tal fração autónoma estava inscrito a favor da insolvente;
e) O registo da apreensão foi efetuado através da inscrição com a ap. 42, de 15 de Maio de 2013;
f) No âmbito da liquidação, a fração autónoma identificada na alínea anterior foi adjudicada ao credor “E…, S.A.”, a 22 de Julho de 2016;
g) A aquisição da propriedade da mesma fração autónoma está registada a favor do credor “E…, S.A.”, através da inscrição com ap. 1472, de 2 de Agosto de 2016;
h) Os autores não reclamaram créditos no prazo referido na alínea b);
i) A presente ação deu entrada em juízo a 2 de Outubro de 2018.
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3. O direito
- Regularidade formal das conclusões -
Os apelantes formularam conclusões sob a forma de parágrafos, sem atribuir qualquer tipo de numeração.
A numeração que consta do presente texto foi por nós atribuída, respeitando a sequência dos vários parágrafos, para facilidade de expressão e enunciação das questões a apreciar.
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- Regime jurídico -
Na apreciação das questões, por efeito da sucessão de leis no tempo, cumpre ter presente que o presente processo de insolvência foi instaurado em 2012, vigorando à data, o regime previsto no DL 53/2004 de 18/03, na redação do DL 200/2004 de 18/08, com as alterações introduzidas pelo DL 116/2008 de 04/07, DL 185/2009 de 12/08, Lei 16/2012 de 20 de abril (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que passaremos a designar de forma abreviada “CIRE”), que se aplicará ao caso presente.
A alteração introduzida ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas pelo DL 79/2017 de 30 de junho, que entrou em vigor a 01 de julho de 2017, apenas será considerada para efeitos adjetivos.
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- Reapreciação da decisão de facto -
Os apelantes nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 27, insurgem-se contra a decisão de facto por considerarem que existe erro na apreciação da prova e por a decisão de facto ser omissa a respeito da matéria de facto alegada em sede de réplica.
Entendemos que não se verificam os vícios apontados pelos motivos que se passam a expor.
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- Erro na apreciação da prova -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 8, insurgem-se os apelantes contra a decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova, em relação à alínea c) dos factos provados e a seguinte afirmação contida no texto da sentença: “[n]o caso em apreço, os autores tiveram conhecimento da declaração de insolvência em meados de 2014, como alegam na petição inicial, sendo certo que a fração autónoma foi vendida no processo de insolvência em julho de 2016”.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[2].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da indicação da prova e tratando-se de prova gravada, a transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto – fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, os apelantes vieram impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados – alínea c) dos factos provados e afirmação contida na sentença: “[n]o caso em apreço, os autores tiveram conhecimento da declaração de insolvência em meados de 2014, como alegam na petição inicial, sendo certo que a fração autónoma foi vendida no processo de insolvência em julho de 2016”.
Para fundamentar a reapreciação indicam como prova: os documentos que constam dos autos e as declarações dos autores nos articulados (ponto 7 das conclusões de recurso). Na motivação do recurso não concretizam tal conclusão. Os apelantes não indicam os concretos documentos a considerar, nem a matéria alegada nos articulados que releva para a reapreciação.
Acresce, que não indicam a decisão que sugerem por efeito da reapreciação da prova, pois limitam-se a afirmar:” desde logo a afirmação contida da alínea c) da matéria com interesse para a decisão da causa e esta última declaração deveriam ter conclusões diferentes, a decisão proferida deveria ter sido diversa e, por isso, se impugna com o presente recurso essa decisão”.
Nos termos do art. 640º/1/2 do CPC não se consideram reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto, porque não se indica a concreta prova a reapreciar, nem a decisão que se sugere.
Pelo exposto rejeita-se a reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova.
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- Ampliação da decisão de facto -
Nos pontos 9 a 27 consideram os apelantes que na apreciação da pretensão dos autores não se consideraram os factos alegados em sede de réplica e apenas a sua apreciação conjunta com os factos provados permite uma correta decisão da pretensão formulada.
Os factos a considerar e que, em parte, estão reproduzidos nos pontos 09 a 27 das conclusões, são os seguintes:
“4. Os AA. concordam com o vertido nos Artºs. 1º a 5º constantes da douta contestação que ora se replica.
Contudo,
5. Vem o R. na contestação, invocar que o imóvel em questão foi apreendido para a massa insolvente em 02-11-2012, conforme auto de apreensão de bens Imoveis a Fls. 4 e 6 dos autos, e que o mesmo foi objeto de avaliação em 12/11/2012 conforme relatório de avaliação que junta como Doc. 4.
6. Ora, é precisamente neste auto de apreensão e no relatório de avaliação, que como se diz na gíria “ a porca torce o rabo”.
Senão vejamos,
7. Dispõe o artigo 150º do CIRE:
1 - O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados.
2 - A apreensão é feita pelo próprio administrador da insolvência, assistido pela comissão de credores ou por um representante desta, se existir, e, quando conveniente, na presença do credor requerente da insolvência e do próprio insolvente
8. Na sequência de tal disposição, declarada a insolvência de sociedade e transitada em julgado a respetiva sentença, fica o administrador judicial autorizado a proceder à apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, com recurso, se necessário, ao auxílio da força pública.
9. Face a isso, deveria o Sr Administrador de Insolvência com vista á apreensão, deslocar-se ao imóvel, auscultando as condições do mesmo (com vista à atribuição do valor) e verificar a existência ou não de ocupação.
10. A verificar-se tal ocupação, (o que acontece no imóvel em apreço no caso sub iudicie) teria o mesmo, que verificar a existência ou não de título que justificasse tal ocupação e, verificada a mesma, deveria previamente avisar o dito ocupante, antes de o notificar para, em prazo determinado, proceder à desocupação do aludido imóvel.
11. E certamente face á aludida intimação/notificação, os ora AA., teriam utlizado os meios legais para oportunamente se defenderem.
12. No entanto, tal não aconteceu. ALIÀS,
13. Conforme se verifica, compulsando os documentos, supra citados, (auto de apreensão de bens Imoveis a Fls. 4 e 6 dos autos e relatório de avaliação) foi efetuada a apreensão do imóvel e a respetiva avaliação, sem qualquer visita ao mesmo.
Isto porque,
14. Apesar de diariamente no imóvel, exercendo a sua atividade profissional como cabeleireira desde 2010, nunca a A. mulher, foi notificada ou teve conhecimento, de tal apreensão, por parte do insolvente, do credor hipotecário, ou do Sr. Administrador da Insolvência
15. Sendo certo que, cabia ao Sr. Administrador de Insolvência auscultar e, sabendo, da existência de ocupantes do bem apreendido, teriam estes que ser previamente notificados para desocuparem o imóvel, num prazo razoável, concomitantemente lhes seria facultada a possibilidade de, nesse prazo, aduzirem o que considerassem pertinente em face da ordem recebida.
Mais grave,
16. Do auto de avaliação junto aos autos como Doc. 4., claramente resulta de fls 18, que o mesmo só contém fotos aéreas (que se presumem com grande probabilidade retiradas do Google Maps), ou de exterior, e a fls 19, na reportagem fotográfica referente às verbas 5 e 6, facilmente se afere da existência de estabelecimento comercial (cabeleireiro) em plena laboração.
Mas mais grave ainda
17. A fls 248, o credor E…, S.A. em requerimento dirigido ao processo requer a “entrega efetiva do referido imóvel” (fração “F”),… “em virtude da mesma não se encontrar livre de pessoas e bens”, requerimento esse do perfeito conhecimento do Sr. Administrador de Insolvência (Cfr. Doc. 1) e,
18. A fls. o meritíssimo Juiz do processo profere despacho de onde determina o auxílio das autoridades policiais para o arrombamento … “sem prejuízo de, previamente, O Sr. Administrador da Insolvência se assegurar da inexistência de eventual título legítimo de ocupação”. Cfr. Doc 2
19. De tudo quanto supra exposto, resulta, a irregularidade da apreensão, a irregularidade do auto de avaliação, o perfeito conhecimento do credor E… e do Sr. Administrador da ocupação do imóvel e a falta de qualquer notificação/comunicação aos ocupantes para eventual entrega.
20. Constitui princípio basilar do direito processual, o de que o conflito de interesses que a ação pressuponha não será resolvido sem que à parte “demandada” seja dada a possibilidade de deduzir oposição, assim como não pode, salvo exceção prevista na lei, tomar-se providências contra determinada pessoa, sem que esta seja previamente ouvida (art.º 3.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
21. A prática ou omissão de atos processuais com violação de tal princípio acarreta nulidade processual, na medida em que, como em regra sucederá, influa no exame ou decisão da causa, e podendo a respetiva apreciação judicial, nesse caso, ser alvo de impugnação (art.º 195.º n.º 1 parte final e 630.º n.º 2 do CPC).
22. Sem prescindir, da importância no dirimir da presente ação, o incumprimento do despacho de fls., que ordena que o Sr. Administrador se assegure da inexistência de eventual título legitimo de ocupação.
23. Porquanto, não existe qualquer fundamentação para a alegada prejudicialidade da declaração da liquidação do imóvel”.
Tal matéria foi alegada em resposta ao que a ré Massa Insolvente, na contestação, considerou “Questão prévia”. A questão prévia foi suscitada na sequência do despacho proferido em 18 de outubro de 2018, que declarou suspensa a liquidação do imóvel, quando na data em que foi proferido o despacho a venda do imóvel já se tinha concretizado. Os apelantes reagiram contra a argumentação da ré massa insolvente nos art. 1º a 23 da réplica e concluíram no art. 23º “Porquanto, não existe qualquer fundamentação para a alegada prejudicialidade da declaração da liquidação do imóvel”.
Não há nos autos qualquer despacho a pronunciar-se sobre a “questão prévia” suscitada pela ré Massa Insolvente, o que bem se compreende, por constituir uma questão prejudicada pela decisão que versou sobre a matéria da exceção de caducidade (art. 608º/2 CPC).
Em sede de recurso, os apelantes não impugnaram o segmento da sentença que se pronunciou sobre a exceção de caducidade, mas pretendem por esta via – ampliação da decisão de facto – e servindo-se dos factos supra transcritos, questionar a oportunidade do conhecimento do processo de insolvência.
Efetivamente, estão em causa um conjunto de factos que no entender dos apelantes os impediram de reagir contra a apreensão do imóvel e exercer os seus direitos no processo de insolvência.
Cumpre apreciar da relevância de tais factos na apreciação da questão em litígio relacionada com o tempestivo exercício do direito, pois só para este efeito se poderiam apreciar.
O processo de verificação ulterior de créditos e de separação ou restituição de bens, ao abrigo do disposto no art. 146º CIRE, constitui uma ação declarativa que segue os seus termos por apenso ao processo de insolvência, ao qual se aplicam as normas do processo comum de declaração (art. 148º CIRE).
Dispõe o art. 595º CPC que o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Enquadram-se na previsão da norma as situações em que não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo[3], nomeadamente quando:
- toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento;
- quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos – inconcludência do pedido - para apreciar a pretensão do Autor ou a exceção deduzida pelo Réu;
- quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental[4].
Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos, deve fazer prosseguir a ação, ponderando as diversas soluções plausíveis da questão de direito.
O conhecimento do mérito da causa, em sede de saneador, deve reservar-se para as situações em que o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa e que não seja apenas aquela que o juiz da causa perfilha, devendo assim atender-se ás diferentes soluções plausíveis de direito, facultando sempre a ampla discussão da matéria de facto controvertida
Como refere ABRANTES GERALDES, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça: “[a]pesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas”[5].
O processo especial de insolvência, como processo de execução universal, tem por finalidade última a satisfação dos credores.
Essa finalidade pode ser alcançada mediante a aprovação de um plano de insolvência ou através da liquidação do património do devedor e repartição do produto obtido pelos credores, como se prevê no art. 1º, nº 1 CIRE, desenvolvendo-se o processo em vários procedimentos e incidentes que lhe dão o caráter de processo especial.
A “Verificação de créditos”, que constitui a epígrafe genérica do Título V, compreende os vários procedimentos destinados ao apuramento do passivo do devedor a pagar mediante liquidação do ativo.
Na inserção sistemática este título subdivide-se em capítulos.
O Capítulo I, sob a epigrafe “Verificação de Créditos”, trata do prazo e termos a observar numa primeira fase (que podemos considerar a inicial ou ordinária) de reclamação, reconhecimento e graduação (artºs 128º a 140º).
Esta fase tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento. Nenhum credor está dispensado de reclamar no respetivo processo, “se nele quiser obter pagamento” (artº 128º, nº 3). Durante a sua pendência, os credores não podem exercer os seus direitos senão em conformidade com as regras do CIRE, dada a vocação de plenitude da instância – “a execução universal”.
Nesse primeiro período de tempo, fixado (até 30 dias) na sentença declaratória de insolvência (alínea j), do artigo 36º CIRE), os credores têm a oportunidade processual de apresentarem as suas reclamações, que são autuadas e apreciadas num único apenso (artº 132ºCIRE).
O Capítulo III, sob a epigrafe “Verificação Ulterior”, contempla-se uma fase extraordinária e subsequente àquela, enxertada no genérico procedimento e na comum finalidade do referido Título V – Verificação de Créditos.
Este procedimento visa prevenir a possível existência de credores que, por falta de conhecimento atempado, não reclamaram na fase normal, e promove-se, à luz do princípio “par conditio creditorum”, a oportunidade de todos, em igualdade, naquele processo, concorrerem ao produto da liquidação do ativo[6].
No artº 146º prevê-se:
“1 - Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, efetuando-se a citação dos credores por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação.
2 - O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo, mas a reclamação de outros créditos, nos termos do número anterior:
a) Não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129.º, exceto tratando-se de créditos de constituição posterior;
b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente”.
A reclamação ulterior de créditos está, pois, sujeita a prazos, só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente.
A finalidade deste preceito é permitir, findo o prazo das reclamações (artigo 128.º do CIRE) o reconhecimento de créditos que se hajam constituído em momento posterior ao trânsito em julgado da sentença declaratória de insolvência e no prazo de três meses a contar daquela constituição, quando este prazo termine após aquele prazo geral de seis meses, estabelecido na primeira parte da citada alínea[7].
Por outro lado, releva para este efeito a data da constituição do crédito e não o vencimento ou exigibilidade.
Acresce que estando em causa o crédito, por incumprimento do contrato promessa de compra e venda, para efeito de aferir da tempestividade da reclamação apenas interessa o facto constitutivo do crédito.
A questão que se coloca prende-se com a interpretação conjunta dos art. 102º e 106º CIRE, sem esquecer a particular natureza e fim do processo de insolvência e que leva a concluir que nas situações em que previamente ao processo de insolvência não foi reconhecido o incumprimento do contrato por facto imputável ao promitente-vendedor (agora insolvente), o direito à indemnização reclamado pelo promitente-comprador está constituído desde a data da declaração de insolvência, data em que a insolvente promitente vendedor, deixou de poder cumprir o contrato – promessa[8].
Neste sentido se pronunciou o Ac. Rel. Porto 10 de maio de 2018, Proc. 5865/15.0T8GMR-G.P1[9] (acessível em www.dgsi.pt), com argumentos que acolhemos e fazemos nossos, mas não podendo deixar de citar a seguinte passagem:
“[…] a declaração de não cumprimento do contrato em curso pelo administrador tem efeito meramente declarativo.
Importa, ainda ter presente o art. 91º n.º 1 do CIRE, que estabelece que a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente.
Por outro lado, entendemos seguindo a maioria da jurisprudência que a recusa do administrador da insolvência em executar um contrato promessa de compra de venda em curso, em que era promitente - vendedor o ora insolvente, não exprime incumprimento de tal contrato mas “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo insolvencial (cf. neste sentido Ac. do STJ de 14.6.2011, proc. 6132/08.0TBBRG-J.G1.S1, relator Cons. Fonseca Ramos, no sitio do ITIJ).
Assim sendo e independentemente da A, como promitente compradora ter o direito de interpelar o administrador da insolvência para cumprir o contrato-promessa, nos termos do art. 102º n.º 2 do CIRE, o direito à indemnização está constituído desde a declaração de insolvência, data em que a insolvente promitente vendedora, deixou de poder cumprir o contrato – promessa”.
A este respeito, na petição, alegaram os apelantes-autores:
“17. Até que, em meados de 2014, o legal representante da Insolvente, contacta o autor marido, apresentando-lhe o documento que ora se junta como Doc. 14 (licença de utilização), e explicando, que apesar de obtida aquela, não era possível celebrar a escritura de compra e venda, porque a sociedade promitente vendedora, entretanto estava em processo de Insolvência.
18. Mais, informando os AA, que não se preocupassem, porque a posse e o pagamento da fração identificada no escrito particular referido no artigo primeiro da presente petição inicial, era do conhecimento do Sr. Administrador de Insolvência, que estaria na posse de toda a documentação, designadamente os recibos de quitação, e portanto, seria este a fazer o contacto, para a celebração da escritura.
31. Note-se que, no caso em apreço, o incumprimento definitivo do contrato-promessa decorre da própria declaração de insolvência, suficiente para que a os AA invoquem o direito de retenção emergente do artº 442º, nº 2, do Código Civil.
32. O contrato-promessa celebrado, com eficácia obrigacional e, em que houve tradição da coisa, conferem aos AA, promitentes compradores o direito de retenção sobre essa coisa pelo crédito resultante do não cumprimento imputável ao promitente vendedor, Insolvente”.
Resulta dos factos alegados pelos autores na petição, que em meados de 2014 os autores tomaram conhecimento da pendência do processo de insolvência e das diligências que estavam a ser realizadas pelo administrador da insolvência no sentido da celebração da escritura pública. Entendem que o incumprimento do contrato promessa foi motivado pela declaração de insolvência. Apenas estes factos, e não os alegados na réplica, relevam para aferir da tempestividade no exercício do direito, face ao critério do art. 146º/2 CIRE.
Resta referir, por fim, que mesmo a entender-se que a verificação do direito de crédito do promitente-comprador está dependente da posição que o administrador da insolvência venha a assumir sobre o cumprimento do contrato-promessa, tal circunstância não dispensava o credor de reclamar o seu crédito nos termos gerais e no prazo de 30 dias fixado na sentença, como crédito sob condição suspensiva.
Como se observa no Ac. Rel. Porto 10 de maio de 2018 (já citado): “[i]mporta, ter em consideração, que os créditos sob condição, podem ser reclamados.
O art. 50º do CIRE expressamente define para efeitos do processo de insolvência essa espécie de créditos estipulando:
“1 - Para efeitos deste Código consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.
2 - São havidos, designadamente, como créditos sob condição suspensiva:
a) Os resultantes da recusa de execução ou denúncia antecipada, por parte do administrador da insolvência, de contratos bilaterais em curso à data da declaração da insolvência, ou da resolução de atos em benefício da massa insolvente, enquanto não se verificar essa denúncia, recusa ou resolução;
b) Os créditos que não possam ser exercidos contra o insolvente sem prévia excussão do património de outrem, enquanto não se verificar tal excussão;
c) Os créditos sobre a insolvência pelos quais o insolvente não responda pessoalmente, enquanto a dívida não for exigível.”
Esses créditos se reconhecidos, são considerados como os demais créditos, estando, no entanto, sujeitas a um regime especial de pagamento, atento o disposto nos arts. 180º n.º 1 e 181º do CIRE.
Assim sendo, nada impedia que a A, reclamasse o seu crédito emergente de um contrato-promessa, em que figura, como promitente-compradora e a Insolvente, como promitente vendedora, no prazo fixado na sentença para a reclamação de créditos”.
Este mesmo entendimento tinha já sido defendido no Ac. STJ 21 de junho de 2016, Proc.3415/14.3TCRLS-C.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt) onde se refere:”[m]as mesmo que assim não se entenda e que se pretenda atribuir natureza constitutiva à declaração do administrador quando este opta pelo não cumprimento haverá que ponderar uma outra opção do legislador do CIRE.
Com efeito, importa ter presente que o CIRE no seu artigo 50.º n.º 2 alínea a) estabelece que “são havidos, designadamente, como créditos sob condição suspensiva: a) Os resultantes da recusa de execução ou denúncia antecipada, por parte do administrador da insolvência, de contratos bilaterais em curso à data da declaração de insolvência, ou da resolução de atos em benefício da massa insolvente, enquanto não se verificar essa denúncia, recusa ou resolução (…)”.
Também aqui se vislumbra uma significativa diferença relativamente ao Código Civil em que dificilmente se poderá dizer que o promitente-comprador tem um direito a ser indemnizado sujeito á condição suspensiva do incumprimento do contrato imputável à contraparte.
Este reconhecimento de um crédito sob condição suspensiva visa reforçar a tutela do seu titular, como também resulta do artigo 181.º e do facto de a lei se preocupar expressamente com a hipótese de o rateio final ocorrer quando não está ainda sequer preenchida a condição suspensiva.
A teleologia tuitiva desta qualificação do direito como direito sujeito a condição suspensiva conduz a que o direito deva ser reconhecido e graduado desde logo como tendo a natureza que será a sua se a condição se verificar, ou seja, como direito garantido pelo direito de retenção”.
Neste contexto, a reclamação agora apresentada estaria forçosamente fora de prazo, por estar excedido o prazo de reclamação fixado na sentença que declarou a insolvência e o prazo previsto no art. 146º/2 CIRE.
Como se observa na sentença:
“Os pedidos formulados nas alíneas c) e d), fundados no incumprimento contratual, estão sujeitos ao regime da caducidade cominado no art. 146º, nº 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Nos termos desta disposição legal, a reclamação de outros créditos só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente.
No caso em apreço, os autores tiveram conhecimento da declaração de insolvência em meados de 2014, como alegam na petição inicial, sendo certo que a fração autónoma foi vendida no processo de insolvência em Julho de 2016.
Assim sendo, tendo a presente ação sido instaurada a 2 de Outubro de 2018, forçoso é concluir que, em tal data, tinha já caducado o direito de instauração da ação para verificação ulterior de outros créditos, nos termos previstos no art. 146º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
Na Réplica os apelantes alegaram:
“deveria o Sr Administrador de Insolvência com vista á apreensão, deslocar-se ao imóvel, auscultando as condições do mesmo (com vista à atribuição do valor) e verificar a existência ou não de ocupação.
10. A verificar-se tal ocupação, (o que acontece no imóvel em apreço no caso sub iudicie) teria o mesmo, que verificar a existência ou não de título que justificasse tal ocupação e, verificada a mesma, deveria previamente avisar o dito ocupante, antes de o notificar para, em prazo determinado, proceder à desocupação do aludido imóvel.
11. E certamente face á aludida intimação/notificação, os ora AA., teriam utlizado os meios legais para oportunamente se defenderem.
12. No entanto, tal não aconteceu. ALIÁS,
13. Conforme se verifica, compulsando os documentos, supra citados, (auto de apreensão de bens Imoveis a Fls. 4 e 6 dos autos e relatório de avaliação) foi efetuada a apreensão do imóvel e a respetiva avaliação, sem qualquer visita ao mesmo.
Isto porque,
14. Apesar de diariamente no imóvel, exercendo a sua atividade profissional como cabeleireira desde 2010, nunca a A. mulher, foi notificada ou teve conhecimento, de tal apreensão, por parte do insolvente, do credor hipotecário, ou do Sr. Administrador da Insolvência.
15. Sendo certo que, cabia ao Sr. Administrador de Insolvência auscultar e, sabendo, da existência de ocupantes do bem apreendido, teriam estes que ser previamente notificados para desocuparem o imóvel, num prazo razoável, concomitantemente lhes seria facultada a possibilidade de, nesse prazo, aduzirem o que considerassem pertinente em face da ordem recebida.
Mais grave,
16. Do auto de avaliação junto aos autos como Doc. 4., claramente resulta de fls 18, que o mesmo só contem fotos aéreas (que se presumem com grande probabilidade retiradas do Google Maps), ou de exterior, e a fls 19, na reportagem fotográfica referente às verbas 5 e 6, facilmente se afere da existência de estabelecimento comercial (cabeleireiro) em plena laboração.
Mas mais grave ainda
17. A fls 248, o credor E…, S.A. em requerimento dirigido ao processo requer a “entrega efetiva do referido imóvel” (fração “F”),… “em virtude da mesma não se encontrar livre de pessoas e bens”, requerimento esse do perfeito conhecimento do Sr. Administrador de Insolvência (Cfr. Doc. 1) e,
18. A fls. o meritíssimo Juiz do processo profere despacho de onde determina o auxílio das autoridades policiais para o arrombamento … “sem prejuízo de, previamente, O Sr. Administrador da Insolvência se assegurar da inexistência de eventual titulo legitimo de ocupação”. Cfr. Doc 2
19. De tudo quanto supra exposto, resulta, a irregularidade da apreensão, a irregularidade do auto de avaliação, o perfeito conhecimento do credor E… e do Sr. Administrador da ocupação do imóvel e a falta de qualquer notificação/comunicação aos ocupantes para eventual entrega”.
Os apelantes reproduzem tal matéria nos pontos 12 a 20 das conclusões de recurso.
Tais factos não foram considerados na sentença, o que não merece censura.
Nenhuma dessas circunstâncias releva para provar a tempestividade da reclamação do crédito, ao abrigo do art. 146º/2 CIRE.
A irregularidade dos atos a que se reportam os apelantes, a verificarem-se, constituíam nulidades que oportunamente deviam ter sido suscitadas no âmbito do apenso de liquidação ou no processo de insolvência (art. 197º, 198º CPC). Mostra-se irrelevante a sua apreciação nestes autos, na medida em que a lei não atribui qualquer relevo para efeito de apreciar da tempestividade da reclamação do crédito.
Perante este quadro factual e legal, não merece censura a sentença quando considerou que o crédito que se reclama nestes autos, com fundamento em incumprimento do contrato-promessa e direito de retenção, se constituiu com o trânsito em julgado da declaração de insolvência do promitente-vendedor, iniciando-se nesta data o prazo de seis meses para requerer a verificação ulterior do seu crédito nesta ação.
Mostrando-se irrelevantes os factos alegados na réplica a respeito da regularidade da apreensão do imóvel e notificação dos autores/apelantes, estavam reunidos as condições para proferir decisão em sede de saneador, sem proceder a qualquer diligência de instrução.
Perante o exposto não se justifica ampliar a matéria de facto.
Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 27.
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- Separação e restituição do imóvel -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 28 a 43, insurge-se a apelante contra o segmento da sentença que não reconheceu o direito à separação do imóvel da massa insolvente. Considera que a invocação do direito de retenção lhe confere o direito à restituição do imóvel e à sua separação da massa insolvente.
Na sentença, apreciando tal pretensão, face aos pedidos formulados sob a alínea a) [“Que seja reconhecido o direito dos autores à restituição do imóvel e separação do bem objeto do contrato promessa da massa insolvente] e d) [Que seja reconhecido o direito de retenção dos autores sobre a fração autónoma objeto do contrato promessa de compra e venda celebrado com a insolvente “B…, Lda”.] indeferiram-se os pedidos com os fundamentos que se passam a transcrever:
“No caso em apreço, os autores pretendem obter a separação da massa insolvente e a restituição da fração autónoma designada pela letra F, descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia …, com o número 2327/19960710-F.
A fração autónoma foi apreendida a favor da massa insolvente, constituindo a verba n.º 6 do auto de apreensão, uma vez que o direito de propriedade sobre a mesma estava registada a favor da insolvente. Assim, a causa de pedir não consiste na invocação de um título aquisitivo – originária ou translativo, mas funda-se, antes, exclusivamente nos efeitos de um contrato promessa de compra e venda, sem eficácia real, alegadamente incumprido pela insolvente, sendo certo que o direito de retenção invocado pelos autores surge apenas como garantia do crédito gerado pelo aludido incumprimento (cfr. art. 755º, alínea f), do Código Civil).
Nestes termos, cremos que inexiste fundamento para decretar a separação da massa insolvente da fração autónoma e a sua restituição aos autores [ou o valor correspondente, tendo em conta que a fração autónoma foi vendida no processo de insolvência em data anterior à da entrada em juízo da presente ação].
[…]
Resta acrescentar que, na nossa perspetiva, ainda existiria um obstáculo ao reconhecimento do direito de retenção. De facto, destinando-se a fração autónoma objeto do contrato promessa de compra e venda alegado pelos autores à instalação e funcionamento de um cabeleireiro, nunca poderiam os autores ser considerados como consumidores (cfr. AUJ n.º 4/2014, publicado a 19 de Maio de 2014 e, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Maio de 2017, in www.dgsi.pt).
Concluindo, temos que a presente ação deve ser julgada improcedente”.
A decisão não merece censura, pois, desde logo não se provaram os factos que fundamentam a pretensão dos autores: celebração de um contrato-promessa de compra e venda, sem eficácia real, com tradição da coisa, pagamento de sinal e recusa do administrador da insolvência de celebração do contrato de compra e venda.
Contudo, sempre se dirá, que o alegado direito de retenção não confere aos apelantes-autores o direito à separação e restituição do bem descrito no art. 1º da petição (verba nº6 do auto de apreensão).
Como se referiu, o processo especial de insolvência, como processo de execução universal, tem por finalidade última a satisfação dos credores.
Essa finalidade pode ser alcançada mediante a aprovação de um plano de insolvência ou através da liquidação do património do devedor e repartição do produto obtido pelos credores, como se prevê no art. 1º, nº 1 CIRE, desenvolvendo-se o processo em vários procedimentos e incidentes que lhe dão o caráter de processo especial.
Um dos efeitos da sentença de declaração de insolvência, e como corolário da faceta de execução universal de tal processo, é a apreensão de todos os bens do devedor (art. 36º n.º 1 alínea g) do CIRE).
Nos termos do disposto no art. 149º do CIRE, a apreensão abrange todos os bens ou o produto da sua venda caso não tenha sido distribuído, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for e se encontram no património do insolvente.
Verificada a apreensão de bem de terceiro, o seu titular pode requerer a separação do bem que lhe pertence da massa insolvente.
Prevê-se no Código da Insolvência procedimentos específicos sobre a forma de requerer essa separação e que constam do 141.º a 148.º CIRE.
A reclamação regulada no artigo 141º, onde se estabelecem o prazo e o procedimento, é o meio próprio de reação à apreensão indevida de bens em processo de insolvência, de exercício do direito a fazer separar da massa esses bens, e tem como pressuposto tal indevida apreensão de bens para a massa insolvente, quer pertençam ao insolvente (e não afetos à insolvência), quer ao cônjuge deste, quer a terceiros.
Nestas circunstâncias aplicam-se as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos quanto às reclamações e verificações nele previstas, com as adaptações exigidas. Não sendo apresentadas as reclamações de restituição e separação de bens em causa, o administrador da insolvência pode requerer ao juiz que este ordene as separações mencionadas no art. 141º, nº1, instruindo o requerimento com parecer favorável da comissão de credores se esta existir. O juiz decidirá sobre o requerido, nos termos do art. 141º, nº 3.
Contudo, pode suceder que as apreensões de bens para a massa só tenham ocorrido depois de terminado o prazo das reclamações de créditos. Nesse caso, o direito de restituição ou separação de bens pode ser exercido no prazo de cinco dias após a apreensão, por requerimento que é apensado ao processo principal (art. 144º, 1; sobre os termos ulteriores, cfr. o artigo 144º, 2). Além disso, depois de decorrido o prazo da reclamação de créditos o direito à separação ou restituição de bens apreendidos para a massa insolvente pode ainda ser reconhecido através de ação intentada contra a massa insolvente, os credores e o devedor (art. 146º, 1), podendo aquele direito ser exercido a todo o tempo (art. 146º, 2).
Neste caso a ação segue a forma de processo comum (art. 148º CIRE)[10].
No caso concreto, estamos na presença de ação instaurada ao abrigo do art. 146º CIRE e consideram os apelantes que lhes assiste o direito à separação e restituição de um imóvel apreendido para a massa insolvente (verba nº 6), porque celebraram um contrato-promessa de compra e venda, que tinha por objeto a aquisição da dita fração, receberam do promitente vendedor a fração, onde mantêm instalado um salão de cabeleireiro desde 2010 e pagaram o preço integral acordado para compra da fração, beneficiando o crédito que reclamam do direito de retenção.
Cumpre então verificar se o alegado direito de retenção impede a apreensão do imóvel para a massa insolvente e a distribuição do produto da venda pelos demais credores, uma vez que na data da instauração da presente ação o imóvel já tinha sido objeto de venda.
Nos termos do art.755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza do direito de retenção sobre essa coisa pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º.
O direito de retenção é um dos direitos reais de garantia previstos no nosso ordenamento jurídico. Os direitos reais de garantia são aqueles que conferem o poder de, pelo valor da coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, o respetivo beneficiário obter, com preferência sobre todos os outros, o pagamento de uma dívida de que é titular ativo.
O direito de retenção, em particular, consiste no direito conferido ao credor de, tendo em seu poder uma coisa do devedor que lhe devia entregar, se recusar a entregar a coisa ao devedor, apesar de ela lhe pertencer, enquanto o devedor não cumprir e, se necessário, inclusivamente executar a coisa para se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores (759.º do Código Civil).
Desempenha uma função de garantia e coercitiva.
Através dos direitos reais de garantia, o credor garante-se quanto à obtenção da satisfação do seu crédito através do valor do bem objeto da garantia. O seu interesse é puramente acessório ou instrumental, na medida em que a sua finalidade não é a de assegurar um autêntico gozo dos bens mas antes assegurar o cumprimento de outro direito (de crédito).
Por outro lado, segundo o artigo 601.º do Código Civil, todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, respondem pelo cumprimento da obrigação. O que significa que fora as situações de bens impenhoráveis e dos regimes especiais de separação de patrimónios, para obter do devedor a satisfação do seu crédito, o credor pode requerer a execução coerciva de todo o seu património. Por isso, segundo o artigo 817.º do Código Civil, não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, o credor tem o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, e, conforme o artigo 821.º do Código de Processo Civil, estão sujeitos à execução todos os bens suscetíveis de penhora que, nos termos da lei, respondam pela dívida exequenda.
Nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 824.º do Código Civil a venda coerciva transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Contudo, os bens são transmitidos livres dos direitos reais de garantia que os onerarem, os quais caducam, transferindo-se para o produto da venda dos bens.
Os direitos reais de garantia, que oneravam o bem vendido extinguem-se, o adquirente adquire o bem sem esse ónus e o credor garantido passa a exercer a sua garantia de pagamento através do produto da venda do bem.
Assim se passa quando o crédito goza de direito de retenção, o que significa que a preferência concedida no pagamento não confere qualquer direito de gozo sobre o bem, que fica como os demais bens do devedor sujeito à execução[11].
Como se observa no Ac. STJ de 06 de março de 2014, Proc. 652/03.0TYVNG-Q.P1.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “[o] direito de retenção é um direito real de garantia (especial) das obrigações e não um direito real de gozo.
É conferido ao promitente-comprador para lhe garantir o crédito pela indemnização por incumprimento do contrato-promessa, e não para lhe conceder o gozo da coisa objeto da promessa cuja tradição obteve.
Como resulta do texto do da al. f) transcrita, o direito de retenção visa garantir o crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º, isto é, o crédito que representa o dobro do sinal, o do aumento do valor da coisa ou a indemnização estipulada pelas partes, nos termos previstos no n.º 4 do dito artigo.
Em causa estará, portanto, o crédito do promitente-comprador correspondente à indemnização devida pela outra parte em razão do seu incumprimento, isto é, o crédito “derivado do incumprimento definitivo, de que o direito de retenção constitui garantia acessória”, sendo que, por isso que o direito de retenção surge apenas para garantia do crédito gerado por um incumprimento definitivo do contrato-promessa.
[…]
Daí que, como vem decidido, tal “posse” seja inócua, a não ser para efeitos de invocabilidade do direito de retenção, que não implica a aquisição da posse sobre a coisa prometida vender, mas apenas a sua entrega ao promitente-comprador pelo promitente-vendedor, em termos de lhe facultar uma detenção lícita do bem, como beneficiário da garantia”.
No Ac. Rel. Porto 07 de março de 2013, Proc. 652/03.0TYVNG-R.P2 (acessível em www.dgsi.pt) defende-se: “[…]também no processo de falência e na venda coerciva nele realizada os bens são vendidos livres de ónus e encargos e os direitos dos credores transferem-se para o produto da venda, naturalmente com as características e as preferências de pagamento de que dispunham anteriormente. O que significa que a ter direito de retenção sobre a coisa que lhe foi prometida vender, a autora podia reclamar o seu crédito relativo à indemnização pelo não cumprimento do contrato pela falida e obter a sua graduação em correspondência com a preferência de pagamento associada a esse direito de retenção. Mas já não podia e não pode impedir que o bem seja apreendido para a massa falida e aí vendido livre de ónus e encargos, pois isso já não corresponde à satisfação da essência material do seu direito – de retenção, ou real de garantia – mas à como que criação de um obstáculo atípico de natureza real à responsabilidade da totalidade do património do falido pela satisfação do seu passivo e à liquidação da totalidade do património para esse objetivo o qual não é consentido pelo n.º 1 do artigo 1306.º do Código Civil”.
Neste contexto é de concluir que apesar da alegada celebração de um contrato-promessa sem eficácia real e da tradição do imóvel e apesar de não cumprido o contrato pelo administrador da insolvência, os apelantes não tem o direito de se opor à apreensão do imóvel para a massa insolvente e à sua venda invocando o direito de retenção, pois tal direito, como direito de garantia que é, apenas atribui uma preferência no pagamento.
Desta forma, não têm os apelantes o direito de exigir a separação e restituição desse imóvel entretanto apreendido pela massa insolvente.
Numa segunda ordem de argumentos, considerando, ainda, os factos alegados na petição e na réplica, é de concluir que, em sede de insolvência, não seria de reconhecer aos apelantes o direito de retenção, por não revestirem a qualidade de consumidores à luz da jurisprudência uniformizadas no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014 de 20 de março de 2014 (DR 1.ª série — N.º 95 — 19 de maio de 2014) e no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2019 de 12 de fevereiro de 2019 (DR 1ª série – Nº 141 — 25 de julho de 2019).
Excluídas do âmbito interpretativo definido nos citados acórdãos ficam as situações comprovadas de incumprimento do contrato-promessa de compra e venda por facto imputável ao promitente-vendedor e anteriores à declaração de insolvência.
O AUJ 4/2014 fez instituir um regime especial em sede insolvencial, por forma a que apenas os promitentes-compradores consumidores cujo contrato tenha sido resolvido após a declaração de insolvência, pudessem gozar de privilégio em relação à hipoteca, em sede de graduação de créditos. Estão assim em causa o que a doutrina tem qualificado por “negócios jurídicos em curso”.
Como se observa no Ac. STJ 11 de setembro de 2018, Proc. 25 261/11.6T2SNT-D.L1.S2 (acessível em www.dgsi.pt): “Mas importa ir mais longe e questionar quais são estes contratos que o administrador da insolvência não cumpre.
A resposta é dada pelo artigo 102.º do CIRE. Ainda que este não contenha um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tenha que ser integrada e completada pelos artigos seguintes – mormente em matéria de contrato-promessa pelo artigo 106.º - o certo é que o regime ai estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes. É essa execução que é suspensa e é o cumprimento, que ainda seria exigível ao devedor insolvente que o administrador pode recusar – quer essa recusa seja uma resolução ou antes deva ser concebida como uma reconfiguração contratual.
E daí que a doutrina tenha sublinhado que o regime dos artigos 102.º e seguintes do CIRE não se aplica a contratos que já foram resolvidos anteriormente à data da declaração de insolvência, encontrando-se agora em uma fase de liquidação.
A este respeito observa FERNANDO DE GRAVATO MORAIS que «o incumprimento definitivo (imputável ao promitente-vendedor) da promessa de compra e venda (por exemplo, com a alienação do bem (…) com a recusa séria e categórica em cumprir ou com a resolução ilegítima daquele promitente) que importe a extinção do contrato-promessa antes da declaração de insolvência – no caso de entrega da coisa ao promitente-comprador que sinalizou a promessa – gera a aplicação das regras civilistas» acrescentando que «verificada a insolvência posteriormente á extinção do contrato não cabe aplicar o disposto no art. 106.º, dado que o regime integrado no capítulo IV, referente aos “efeitos sobre os negócios em curso” pressupõe que o cumprimento ainda seja possível».
Também L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS afirma que «se tiver havido resolução do contrato por qualquer uma das partes antes da declaração de insolvência, não estamos perante um negócio em curso no sentido do Capítulo IV do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas»”.
No mesmo sentido, pode consultar-se Ac. STJ 27 de abril de 2017, Proc. 44/14.5T8VIS-B.C1.S1 (acessível em www.dgsi.pt).
A aplicação da jurisprudência fixada no AUJ nº 4/2014 pressupõe que o negócio não tenha sido ainda cumprido e que não venha a ser cumprido pelo administrador da insolvência.
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2019 fixou jurisprudência com o seguinte sentido: “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.
Considerando o exposto e tendo presente que os autores alegaram que foi pelo facto de estar pendente processo de insolvência, que o contrato promessa não foi cumprido (art. 17º e 18º da petição), estamos perante o que se pode considerar um “negócio jurídico em curso”, aplicando-se a jurisprudência uniformizada no AUJ 4/2014 e AUJ 4/2019.
O crédito resultante do incumprimento do contrato não estaria garantido com direito de retenção, porque apesar da tradição do bem, os promitentes-compradores não podiam ser qualificados como consumidores, porque a fração a vender se destinava ao exercício da atividade profissional (salão de cabeleireiro).
Conclui-se, assim, que para além de não estar demonstrada a existência do direito de retenção, o mesmo, a existir, não justifica a separação e restituição do imóvel apreendido para a massa insolvente, motivo pelo qual não merece censura a sentença quando não reconheceu o direito à separação.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos 28 a 43.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelos apelantes.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e nessa conformidade:
- rejeitar a reapreciação da decisão de facto;
- confirmar a sentença.
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Custas a cargo dos apelantes.
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Porto, 09 de dezembro de 2020
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, Julho 2013, pag. 126.
[3] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum-Á luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013pag. 183
[4] Cfr. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2000, pag. 138.
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 402.
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum –À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pag.183 a 186.
[5] Cfr. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, ob. cit., pag. 138. Na jurisprudência, entre outros, seguindo esta orientação pode consultar-se o Ac. Rel. Coimbra 23.02.2010, Proc. 254/09.7TBTMR-A.C1 – endereço eletrónico: www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Ac. Rel. Porto 13 de março de 2014, Proc. 1218/12.9TJVNF-N.P1, acessível em www.dgsi.pt, que seguimos de perto.
[7] Cfr. Ac. Rel. Porto 02 de junho de 2014, Proc. 495/12.0TBVFR-F.P1, acessível em www.dgsi.pt
[8] Não ignoramos que há posição diferente como disso dá nota o Ac. STJ 12 de fevereiro de 2019, Proc. 5685/15.0T8GMR-G.P1.S1 (acessível em www.dgsi.pt), sendo certo que a interpretação defendida no citado acórdão não releva para o caso concreto no contexto dos factos que nos cumpre analisar.
[9] Com apoio no Ac. STJ 21 de junho de 2016, Proc. 3415/14.3TCRLS-C.L1.S1 e no estudo do Professor PINTO DE OLIVEIRA Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos, I Congresso de Direito da Insolvência, coordenado por Catarina Serra, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 201 e ss; o citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto afasta-se da posição defendida pelo Ac. Rel. Guimarães de 30 de março de 2017, Proc. 2506/13.2TBGMR-G.G1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt).
[10] Cfr. Ac. Rel. Porto 14 de julho de 2020, Proc. 6886/17.2T8VNG-E.P1, acessível em www.dgsi.pt
[11] Cfr. ANA PRATA (Coord) Código Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, Almedina, 2019, pag. 974 a 980 e 983 a 990, 992, 994; L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS Direito das Garantias, 2ª edição, Almedina, 2017, pag.384