Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0647190
Nº Convencional: JTRP00040206
Relator: AIRISA CALDINHO
Descritores: BURLA
DESISTÊNCIA
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Nº do Documento: RP200704110647190
Data do Acordão: 04/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA.
Indicações Eventuais: LIVRO 259 - FLS 134.
Área Temática: .
Sumário: I - O agente que elabora, subscreve e apresenta a uma companhia de seguros, com vista a obter à custa desta um enriquecimento ilegítimo, uma declaração amigável de acidente de viação, dando deste uma versão falsa, e só desistindo do seu propósito quando confrontado com o perito averiguador, que lhe comunica conhecer a verdade, comete um crime de falsificação de documentos do artº 256º, nº 1, alínea b), do CP e um crime de burla, na forma tentada.
II - Uma tal desistência não é voluntária.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal:
*
I. No processo de instrução n.º …/03.5TAVNF do ..º Juízo de Competência Criminal de Vila Nova de Famalicão, a assistente “Companhia de Seguros X………., S.A.”, inconformada com o despacho de fl.s 255- 259 que não pronunciou os arguidos B………. e C………. pela prática de um crime de burla na forma tentada p. e p. pelos art.s 217.º, n.º 1 e 22.º do CP e de um crime de falsificação de documento p. e p. pelos art.s 255.º e 256.º, n.º 1, al. b) do CP, dele interpôs o presente recurso com os fundamentos constantes da respectiva motivação e as seguintes conclusões:
- “…
1.º- No que concerne à decisão de não pronúncia dos Arguidos pelo crime de burla, sob a forma tentada, e pelo crime de falsificação de documentos o tribunal a quo limita-se a remeter a fundamentação da decisão recorrida para a motivação alegada pelo Ministério Público no douto despacho de arquivamento, alicerçando-se indevidamente na interpretação extensiva do artigo 307.º n.º 1 do CPP.
2.º Sendo certo que o artº 307º, n.º 1, in fine do CPP, limita expressamente a possibilidade de remissão da fundamentação para o despacho de acusação ou para o requerimento de abertura de instrução.
3.º Fá-lo porque tais peças, ao porem termo ao processo judicial, têm já por lei que conter de forma completa um esclarecimento aos interessados dos concretos fundamentos de facto e de direito que os motivam, nos termos nomeadamente do artigo 283.º, 3 e 287.º, 2 e 283,3, alíneas b) e c) do CPP.
4.º- Pelo que se conclui que a decisão recorrida, no que respeita à fundamentação, encontra-se ferida de nulidade, porquanto baseou-se numa interpretação extensiva do art.º 307º, n.º 1, In fine do CPP que além de não encontrar correspondência na letra e espírito da lei, a viola e contraria;
5.º- Acresce que o despacho recorrido tem a natureza de uma verdadeira sentença, como a define o n.º 1 do art.º 97º do CPP (alínea b)), porque conhece do objecto do processo, decidindo que os arguidos não devem ser responsabilizados criminalmente e põe termo aos autos, pelo que tem que obrigatoriamente especificar os motivos de facto e de direito da decisão (97.º, 4 do CPP), o que não faz.
6.º- Tem pois que se entender que lhe é aplicável o disposto nos artºs 374º e 379º, nº 1, al. a) e nº 2 do CPP, que exigem que a decisão manifeste a respectiva fundamentação, especificando os motivos de facto e de direito que a determinam e o conhecimento do raciocínio lógico desenvolvido pelo Tribunal.
7.º- Viola, pois, a decisão recorrida o disposto nos artigos 97.º do CPP (designadamente no seu n.º 1 alínea b) e n.º 4), bem como o disposto nos artigos 374º e 307, 1 do CPP – neste caso ao dar uma interpretação indevida a esta norma, já que esta tem que ser entendida tal como o seu texto expressa, em como o julgador apenas pode fundamentar a sua decisão por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução (e não já como ali se entende por remissão para o despacho de arquivamento).
8.º- Nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPP tem que haver-se tal decisão como nula.
AINDA
9.º- Mesmo que – o que por mera hipótese de raciocínio se configura – se admita estar fundamentada e ser válido o despacho recorrido – quanto à decisão de não pronúncia do crime de burla que aqui está em causa, cometeu o Tribunal a quo um erro notório na apreciação da prova
10.º- Porquanto embora resulte claro para o tribunal a quo que se encontram preenchidos os elementos típicos do crime de burla na forma tentada, ao dar como indiciada a factualidade constante dos artigos 2 a 12 inclusive do seu requerimento de abertura de instrução, ali se alega que o Arguido B………. desistiu, com a declaração junta aos autos de fls., de prosseguir o iter criminal.
11.º- A deduzir-se que proferirá o entendimento de que o crime de burla não será punível nos termos do artigo 24, 1 do CPP, atenta a aludida desistência, constata-se que a decisão recorrida não atende a que o perito averiguador D………. já tinha apurado a verdade quando procura o Arguido B………. (conforme resulta claro do teor do seu relatório de averiguação de fls. (documento junto com queixa como documento n.º 4): “De diligência em diligência, apurei que o veículo garantido (…) não interveio no sinistro…” e “Face ao que tinha apurado, contactei o n/ cliente, Sr. B………. …”
12.º Só depois de descoberta a verdade é que procurou o Denunciado B………. e o confrontou com a verdade, obtendo a aludida confissão de 06.06.03, constante da sua declaração de fls. (documento junto à denúncia como documento n.º 5), pelo que era irrelevante para a Assistente a sua confissão ou arrependimento.
13.º- Por isso, o Denunciado B………. não teve qualquer margem de escolha entre desistir ou prosseguir com o projecto criminoso.
14.º- Termos em que devem os autos prosseguir contra os Arguidos, com pronúncia destes pelo crime de burla sob a forma tentada p.p no artigo 217.º, n.º 1 e 2 do CP., com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, atentos todos os factos já expostos.
ACRESCE QUE
15.º- Não esclarece a douta decisão recorrida – e mesmo que se considere que é admissível uma interpretação extensiva do citado normativo (307, 1 do CPP), o que não se concede e por mera hipótese de raciocínio se admite – quais as razões de facto e de direito que lhe permitem concluir no douto despacho recorrido que tal desistência é extensível ao co-arguido C………. .
16.º- É que no douto despacho de arquivamento nada consta quanto à motivação da conclusão de que tal declaração de desistência do arguido B………. é extensível ao Arguido C………. . Ao invés, até ali se invoca um acórdão (Ac. da Relação do Porto de 10.01.01, processo 111037) onde houve declaração de desistência expressa de todos os Arguidos (além de existirem ali apenas meras suspeitas da prática do crime, ao invés do que sucedeu in casu, como se expôs).
17.º- Na realidade, resulta evidente que em momento algum o outro arguido C………. admitiu a verdade verbalmente ou por escrito perante o perito ou tentou fazer algo no sentido de evitar a consumação do crime. Ao invés, faltou a três encontros marcados com o perito (conforme se comprova pelo teor do seu relatório de averiguação de fls. Quando ali dá conta que “…foi marcado um lugar, seguidamente de outros dois lugares para que seja reposta a verdade dos factos. Porém nunca compareceu aos três lugares indicados.”).
18.º- Assim sendo, e mesmo que se entenda – o que não se concede e só por mera hipótese de raciocínio se admite – que o Denunciado B………. desistiu de prosseguir com a execução do crime, esta desistência não pode ser “extensível ao seu co-autor”, como se alega no douto despacho recorrido.
19.º- É que quanto à alegada desistência, vigora o princípio da pessoalidade da desistência da tentativa (artigo 24, n.º 1 e 25.º do CP). Nos termos do artigo 25.º do CP que regula os casos de “desistência em caso de comparticipação”: “Se vários agentes comparticiparem no facto, não é punível a tentativa daquele que voluntariamente impedir a consumação ou a verificação do resultado, nem a daquele que se esforçar seriamente por impedir uma ou outra, ainda que os outros comparticipantes prossigam na execução do crime ou o consumem.”
20.º- A desistência é uma circunstância pessoal, não comunicável aos co-agentes. Qualquer desistência do propósito criminoso só poderá beneficiar o desistente e não qualquer comparticipante – Ac. RL de 24.4.85, CJ, X, tomo 2, 174)
21.º- E tal tem que entender-se, face à própria razão de ser daquele normativo, a qual é de não penalizar individualmente o agente que em com creto se arrepende e tudo faz para que o crime não se consuma. Mas considerar tal arrependimento extensível ao outro agente C……… - único beneficiador do esquema engendrado com a burla (era quem receberia a indemnização) – e que nunca colaborou durante a averiguação com o perito, faltando a todos os encontros – conduz a situação injusta e até aberrante em termos de Justiça!
22.º- Pelo que, pelo menos e sempre, quanto ao Arguido C………. deve este ser pronunciado pelo crime de burla sob a forma tentada p.p no artigo 217.º, n.º 1 e 2 do CP, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
23.º- Violando a decisão do tribunal a quo o disposto no artigo 24, 1 e 25 do Código de Processo Penal.
TAMBÉM
24.º- Resulta do sentido do douto despacho de não pronúncia, pese embora a falta de fundamentação de direito e de facto, que os factos indiciados não serão susceptíveis de integrar o crime de falsificação de documento, p.p pelos artigo 256.º, n.º 1 b) do CO e isto porque, diz-se, a Declaração Amigável de Acidente Automóvel” não tem a virtualidade de constituir, modificar ou extinguir qualquer relação jurídica, mas tão somente de accionar os mecanismos próprios.
25.º- Ora, afigura-se à Recorrente, no seguimento aliás da jurisprudência dominante nesta matéria, que, com o preenchimento do aludido documento de “Declaração Amigável de Acidente Automóvel”, esta ficou logo submetida na obrigação de indemnizar o lesado.
26.º- Pelo que o documento em causa é apto a materializar um facto juridicamente relevante, ou seja, com a mesma constitui-se, modifica-se ou extingue-se uma relação jurídica, consubstanciada no pagamento de indemnização.
27.º- E essa indemnização faz-se, por regra, logo após a avaliação dos danos do veículo e outros sofridos pelo lesado, apenas assim estando em causa o quantum da indemnização e não a responsabilidade pelo acidente, a qual, por norma, resulta clara – como in casu – do próprio documento.
28.º- Os Arguidos fizeram falsamente constar da declaração Amigável de Acidente Automóvel factos juridicamente relevantes com intenção de causar prejuízo à Seguradora e de obter benefício ilegítimo consubstanciado na indemnização paga (art. 256º, nº 1 alínea b) do Código Penal).
29.º- Trata-se assim de factos com relevância jurídica dado que são susceptíveis de constituir relações jurídicas, porquanto “A relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção dum benefício” (Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, in Código Penal, 2.º volume, 1996, pág. 731).
30.º- Por último, como se disse, este crime visa proteger a vida em sociedade, em especial a segurança e confiança do tráfico probatório, havendo o interesse de proteger o documento enquanto meio de prova, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, como bem jurídico. E aqui essa protecção é, in casu, fundamental.
31.º- Assim se pronunciou inclusive o Ac. da Relação do Porto, de 12.01.05 disponível na Internet através do site www.dgsi.pt e o Ac. da relação do Porto de 21.04.06 (proc. 82/06-1 – 1.ª secção) que aqui se junta, quanto à falsificação da Declaração Amigável de acidente Automóvel perante uma seguradora.
32.º- Violou o despacho recorrido o disposto nos artigos 255.º e 256º, n.º 1 alínea b) do Código Penal.
AINDA
33.º- Ocorreu também um erro notório na apreciação da prova pelo tribunal a quo, quando este considera não indiciado que a Assistente não pagou a indemnização porque procedeu à averiguação dos factos (ponto 13 do requerimento de abertura de instrução considerado não provado).
34.º- É que resulta do teor do relatório de averiguação junto aos autos e dos depoimentos do perito averiguador D………. de fls. Durante o inquérito e de E………. que foi durante a averiguação que o Arguido B………. admitiu a falsidade da participação e a aludida não intervenção do veiculo seguro na Recorrente.
35.º- Com efeito diz-se em tal relatório de averiguação de fls.: “Face ao que tinha apurado contactei o n/ cliente, Sr. B………., que me descreveu (…). Anexo as suas declarações”. Sendo que em anexo remete a dita declaração de retractação (documento junto a fls. Como documento n.º 5 anexo à queixa) que originou a não pronúncia doa Arguidos pelo crime de burla nestes autos.
36.º- Considerar que o Arguido B………. (e por arrastamento o outro co-arguido) desistiram do iter criminal como o faz o douto despacho recorrido e que foi por isso que Assistente não pagou a indemnização (o que de todo o modo, como se disse, não se aceita) não pode fazer olvidar e não contraria o facto indiciado de forma evidente no processo de que apenas porque foi ordenada a dita averiguação é que ao Arguido C………. foi pedida pelo respectivo perito averiguador e efectuada por aquele a dita retractação.
37.º- Neste âmbito e porque a Assistente se considera prejudicada a nível civil, e embora seja de relevância, como se diz no despacho recorrido, diminuta para efeitos criminais, não pode a Assistente deixar de considerar que ocorreu também erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal a quo, quando este considera que não existe qualquer nexo causal directo e necessário entre as despesas tidas pela Assistente (em concreto os pontos 19 e 20 que o tribunal até adiantou que doutro modo consideraria provados) e a burla tentada e falsificação de documentos.
38.º- É que, da factualidade indiciada dada como provada na decisão recorrida (os pontos 2 a 12 inclusive do requerimento de abertura de instrução) resulta evidente que a Assistente apenas foi chamada a intervir, regularizar e averiguar o falso acidente porque julgou ser verdadeiro ter o veículo por si seguro causado danos ao veículo terceiro.
39.º- A Assistente, a não terem os Arguidos representado astuciosamente esta falsa realidade, nunca teria sequer tido qualquer intervenção no acidente, pelo que é manifesto que, a nível indiciário, tem que dar-se também como provados os pontos 19 e 20 do Requerimento de requerimento de abertura de instrução (suportou despesas administrativas com a abertura e gestão do sinistro de €250,00 e € 178,50 com despesas de averiguação e contratação do perito averiguador – documentos de fls. Junto com a Denúncia como documentos 10 e 11).
40.º- Foi, pois, a conduta ilícita doa Arguidos descrita nos pontos 2 a 12 inclusive do requerimento de abertura de instrução que originou de forma directa, causal e necessária a intervenção da Assistente com as inerentes despesas com ela relacionadas.”
O arguido B………. respondeu, pugnando pelo não provimento do recurso.
O Ministério Público junto da primeira instância respondeu concluindo pelo parcial provimento do recurso.
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do provimento do recurso.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417.º, n.º 2 do CPP.
II. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Da análise dos autos constata-se que:
- Foi pela assistente apresentada queixa contra B………… e C………. por factos que, em seu entender, constituem crime de burla p. e p. pelo art. 217.º, n.º 1 do CP.
- O Ministério Público, no fim do inquérito, proferiu o despacho de arquivamento que consta de fl.s 108-109 dos autos, do seguinte teor:
“Dos elementos já recolhidos nos presentes autos resulta que nos dias 15 e 16 de Maio de 2003, de acordo com o planeado entre ambos com o intuito de a “Companhia de Seguros X………., SA” proceder ao pagamento das despesas com a reparação do motociclo, com a matrícula ..-..-DD, e pagamento dos danos pessoais do seu condutor, junto do mediador F………., exclusivo daquela companhia, em Vila Nova de Famalicão, o B………. e o seu sobrinho C………. fizeram dar a entrada a duas declarações escritas, pelos mesmos subscritas, onde se dava conta de o primeiro na condução do veículo segurado na “Companhia de Seguros X………., SA”, ter sido interveniente e dado causa a um acidente de viação, no dia 12 de Maio de 2003, provocando estragos no acima referido veículo, que era conduzido pelo segundo.
Resulta, ainda, que no dia 6 de Junho de 2003 o B………. subscreveu uma declaração onde manifestava dar sem efeito as anteriores declarações referidas por não corresponderem à verdade, pedindo até desculpa pela sua conduta.
Com tais factos, alicerçados nos elementos documentais juntos e nas declarações das testemunhas indicadas e do B………., passamos à questão da sua qualificação jurídica.
Ora, tais factos, sem qualquer dúvida, integram, em co-autoria, a prática pelos acima arguidos de um crime de burla, na forma tentada, p. e p. pela conjugação dos artºs. 22º, nº 1 e nº 2, alínea c), 23º, 217º, nºs 1 e, do Código Penal.
Todavia, a declaração escrita do B………., apenas alguns dias após a sua inicial conduta, pese embora, quando confrontado pelo perito nomeado pela ofendida, mas ainda muito antes de esta ter apresentado queixa, constitui, sem dúvida, a vontade de desistir com a execução do crime e extensiva ao seu co-autor, a qual entendemos caber dentro da previsão do artº 24º, nº 1, daquele Código, onde se prevê que face a tal manifestação de vontade a tentativa deixa de ser punível.
Nesse sentido, aliás, assim se decidiu no Acórdão da Relação do Porto, de 10.10.2001, no âmbito do processo nº 111037, in http://www.dgsi.pt, com o qual concordamos na íntegra.
Por outro lado, é de referir que os factos não são susceptíveis de integrar o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº 256º, nº 1, alínea b) do Código Penal, uma vez que a declaração escrita apresentada não é apta a materializar um facto juridicamente relevante, ou seja, com a mesma não se pode constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, além de que nada acrescenta à simples declaração oral.
Com efeito, como consta da própria declaração, a mesma destina-se apenas a dar mais rapidez à regularização do sinistro, dando origem, como é por todos sabido, a um processo de averiguações dos factos participados e onde se concluirá sobre a responsabilização pela reparação (dos) danos efectivamente verificados.
Pelo exposto, considerando existir prova bastante de a conduta dos denunciados não ser punível, determino o arquivamento dos autos, nos termos do artº 277º, nº 1, do Código de Processo Penal.”
- A assistente, inconformada com o despacho de arquivamento, veio requerer a abertura da instrução, nos termos do art. 287.° do CPP, conforme consta do requerimento de fl.s 120-126 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pedindo que os arguidos fossem pronunciadas pela prática de um crime de burla na forma tentada p. e p. pelo art. 217.°, n.º 1 e n.º 2 do CP e de um crime de falsificação de documentos p. e p. pelos art.s 255.º e 256.º, n.º 1, al. b) do CP.
- Procedeu-se à inquirição de testemunhas e à realização do debate instrutório que culminou com o despacho de não pronúncia recorrido, do seguinte teor, na parte que aqui interessa:
“I.
Factualidade indiciada:
A indicada pela assistente no respectivo requerimento de abertura de instrução nos artigos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12.
O tribunal dá, ainda, como apurado que:
O arguido B………., através de declaração escrita datada de 06-06-2003, retractou-se quanto à versão do acidente, fornecendo uma versão Nos Termos da qual o respectivo veículo encontrava-se estacionado e não era interveniente no sinistro.
A queixa apresentada nos presentes autos data de 05-12-2003.
II.
Factualidade não indiciada:
A sustentada pela assistente no respectivo requerimento de abertura de instrução, sob o número 13.
III.
Motivação:
A convicção do tribunal, quanto aos factos dados como apurados alicerçou-se na apreciação crítica e articulada de todos os elementos probatórios carreados para os autos, sobretudo documentais, não se olvidando os depoimentos recolhidos, bem como os próprios termos processuais (designadamente quanto à data da queixa criminal).
Quanto aos factos dados como não provados, a convicção do tribunal alicerçou-se na ausência de elementos que nos permitam estabelecer tal nexo causal entre a falta de pagamento e as averiguações efectuadas pela assistente, de modo exclusivo, porquanto quando o relatório final de averiguações foi apresentado, do mesmo constava já a declaração do arguido B………., a qual foi, também, tida em consideração, para o sentido final de tal relatório.
IV.
Do Direito
Quanto ao crime de burla de seguros sob a forma tentada:
Concordamos integralmente com a posição assumida pelo Ministério Público, no sentido de que houve desistência do iter criminal por parte do arguido B………., extensiva ao co-arguido C………., pelo que daremos a mesma, a qual se reveste de tal clareza e eloquência, integralmente por reproduzida, interpretando extensivamente o art.º 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que a decisão instrutória pode remeter para as razões de facto e de direito constantes da fundamentação do despacho de arquivamento do Ministério Público – no sentido do exposto vide Germano Marques da Silva in Código de Processo Penal, Quid Iuris, 3.ª edição, pág. 30.
Faremos, apenas salientar que a circunstância de a retractação do arguido B………. não ter sido, eventualmente, integral quanto à versão do acidente não releva nos termos sustentados pela assistente, já que se nos afigura que a nova versão sustentada pelo mesmo não aponta no sentido da responsabilização da sua Companhia de Seguros, aqui assistente, pelo que a mesma continua a valer como retractação e como desistência do percurso criminal.
Quanto ao crime de falsificação de documento:
Nos mesmos termos e fundamentos que enunciamos a propósito do crime de burla, damos, também, integralmente por reproduzida a fundamentação contida no despacho de arquivamento do Ministério Público, sendo nossa convicção, que a declaração amigável e respectiva apresentação perante a Assistente não tem a virtualidade de constituir, modificar ou extinguir qualquer relação jurídica, mas tão somente de accionar os mecanismos próprios para tal constituição e/ou modificação venha a processar-se no futuro, o que não aconteceu.
Ainda:
Por referência a ambos os crimes faremos notar que a alegação da existência de despesas por parte da assistente não foi tida em consideração para efeitos criminais, uma vez que não existe nexo de causalidade directo entre a falsificação e sobretudo a burla tentada, sendo irrelevante do ponto de vista criminal (sendo certo que mesmo que assim não se entendesse, sempre daríamos a factualidade alegada nos artigos 19 e 20 como apurados e a factualidade constante do artigo 21.º como não apurada, nada alterando tal constatação o nosso raciocínio).
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Em conformidade com o exposto, com a factualidade dada como indiciada e com o enquadramento jurídico efectuado, afigurando-se-nos inexistirem nos autos elementos que nos permitam concluir por uma provável condenação dos arguidos, se sujeitos a julgamento nos termos requeridos pela assistente, impondo-se, por conseguinte, a prolação de despacho de não pronúncia dos mesmos.
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Pelo exposto, ao abrigo do art.º 308.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal o tribunal decide:
não pronunciar os arguidos B………. e C………. pela prática dos factos e, segundo a qualificação jurídica constante do requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente Companhia de Seguros X………., SA."
A questão em causa é tão-só a de saber se os autos contêm elementos bastantes para a pronúncia dos arguidos B………. e C………. e, consequentemente, para o prosseguimento do processo para julgamento.
O actual Cod. Proc. Penal, no n.º 2 do art. 283.º considera "suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança".
A definição do que deve entender-se por "suficientes indícios" contida neste preceito, bem como no art. 308.° n.°1 do CPP, é idêntica à que, no âmbito do Cód. Proc. Penal de 1929 havia sido acolhida pela Jurisprudência e pela Doutrina, que "por indícios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado"- cfr. Ac. do S.T.J. de 01 /03/61, BMJ 105, 439; Ac. da Relação de Coimbra de 26/06/63, "J.R." 3º, 777; Ac. da Relação de Lisboa de 28/02/64, id., 1º, 117; Ac. da Relação do Porto, de 24/03/76, C.J., 1976, Tomo I, pag. 131 e Ac. da Relação de Coimbra de 31/03/93, C.J., 1993, Tomo II, pag. 65.
Tendo presentes estas formulações jurisprudenciais e doutrinais, vejamos então o caso dos autos.
1- Quanto às invocadas nulidades da decisão, importa salientar, antes de mais, que não pode a decisão instrutória ser tratada com os mesmos requisitos exigidos para a sentença, pois tem regras próprias e efectivamente não configura uma sentença.
Por outro lado, a regra geral em matéria de nulidades é a sua arguição perante o tribunal onde foi proferida a decisão onde alegadamente as mesmas se verificam e só depois haverá recurso da decisão que delas conhecer.
A disciplina do art. 309.º, n.º 2 do CPP não tem aplicação apenas nos restritos casos referidos no n.º 1, aplicando-se a outras nulidades invocadas.
Neste sentido, veja-se o Ac. desta Relação de 08.02.06, processo 0515730, http://www.dgsi.pt: “Como decorre claramente do disposto no art. 309º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, as nulidades do despacho de pronúncia devem ser arguidas perante o juiz de instrução (no prazo de 8 dias contados da data da notificação da decisão), apenas cabendo recurso do despacho que se pronunciar sobre tais nulidades – art. 310º, 2 do C.P.Penal. Apesar de estes artigos se referirem a nulidades específicas da decisão instrutória, julgamos que deve ser esse o regime aplicável a qualquer nulidade cometida na decisão instrutória.
O regime das nulidades da sentença, previsto no art. 379º, 2 do C.P.Penal, é um regime especial previsto apenas para a sentença, que não pode, sem mais, transpor-se para os despachos…”
Neste contexto, não tendo as invocadas nulidades sido arguidas em sede própria e atempadamente, rejeita-se, nesta parte, o recurso.
2- Quanto à questão de saber se os autos contêm elementos indiciários bastantes para a pronúncia dos arguidos, importa analisar, num primeiro momento, se o comportamento do arguido B………. configura desistência da tentativa relevante no âmbito do imputado crime de burla.
Dispõe o art. 24.º, n.º 1 do CP:
“A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime.”
O cerne da questão radica na expressão “voluntariamente desistir”.
A tal propósito, lê-se em anotação ao art. 24.º, in “Código Penal Português” de Manuel Maia Gonçalves, 10.ª ed. – 1996, pág. 166: “A desistência da tentativa, naturalmente, terá que ser voluntária. Não tomou a lei posição sobre o que se deve entender sobre voluntariedade na desistência… Parece assim, de harmonia com os ensinamentos da doutrina mais moderna e actualizada, que terá de tratar-se de uma desistência espontânea, isto é aquela que se verifica quando o agente desiste, não obstante poder prosseguir na execução do crime.”
No caso dos autos, no âmbito da averiguação que teve lugar, por parte da assistente, na sequência da apresentação da declaração amigável de acidente automóvel, ao ser confrontado pelo perito averiguador, o arguido B………. alterou a versão do acidente que constava da referida declaração (cf.r fl.s 18), radicando aqui a retractação que o despacho de arquivamento e a decisão instrutória dizem existir.
A essa atitude do arguido falta, porém, a tal voluntariedade que o art. 24.º do CP exige para que a desistência seja relevante. “A relevância da desistência na tentativa, como causa de não punibilidade do acto, encontra o seu fundamento no arrependimento activo, numa reconsideração livre e espontânea que é feita antes de findar a execução dos actos criminosos ou antes de findar a execução do crime” – lê-se no Ac. do STJ de 20.11.2003, proc. 03P3225, http://www.dgsi.pt, que cita outros acórdãos do STJ no sentido de que: “Na desistência da tentativa não basta que o arguido deixe materialmente de prosseguir na execução do crime, por razões de estratégia dada a dificuldade ou impossibilidade de prosseguir na execução do crime ou até receio de intervenção de terceiros. Tem de haver uma decisão voluntária, uma atitude interior, espontânea, de revogar a decisão anteriormente formada de cometer o crime, por motivos próprios, assumidos, de reconsideração e não por meras razões de estratégia.”
Estas considerações servem ao caso em apreço para dizer que à conduta do arguido, ao apresentar uma versão do acidente diferente da que constava da declaração amigável, falta essa espontaneidade própria de quem reconsidera uma decisão anteriormente formada e dela se arrepende. Não pode, pois, ter-se tal conduta como relevante para a não punição da tentativa nos termos do art. 24.º do CP.
Por outro lado, o art.º 25.º do CP, ao prever a não punibilidade do comparticipante que voluntariamente impedir a consumação ou a verificação do resultado ou daquele que se esforçar seriamente por impedir uma ou outro, ainda que os outros comparticipantes prossigam na execução do crime ou o consumem, consagra o carácter pessoal da desistência da tentativa, pelo que, mesmo que se considerasse como desistência relevante para os efeitos do art. 24.º do CP a referida conduta do arguido B………., ela não se estenderia ao seu co-arguido C………. .
Temos, assim, que, configurando os factos indiciados a prática pelos arguidos de um crime de burla na forma tentada p. e p. pelos art.s 22.º e 217.º, n.º 1 e n.º 2 do CP, impõe-se que os arguidos sejam por ele pronunciados.
Quanto à declaração amigável de acidente automóvel que os arguidos subscreveram, trata-se da narração de um facto que não corresponde à realidade com o intuito de obter um benefício ilegítimo, em prejuízo de outrem, sendo esse facto juridicamente relevante, pois é susceptível de suscitar precisamente o ensejo de alcançar esse benefício.
Temos, pois, que a conduta dos arguidos configura indiciariamente a prática de um crime de falsificação p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. b) do CP, pelo qual devem eles ser também pronunciados.
III. Pelo exposto:
1.º Rejeita-se o recurso quanto às alegadas nulidades;
2.º Revoga-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que pronuncie os arguidos nos termos sobreditos.
3.º Custas a cargo do recorrido B………., fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Elaborado e revisto pela primeira signatária.

Porto, 11 de Abril de 2007
Airisa Maurício Antunes Caldinho
António Luís T. Cravo Roxo
Joaquim Rodrigues Dias Cabral