Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3150/18.3T8OAZ-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ESTELITA DE MENDONÇA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RP201904113150/18.3T8OAZ-D.P1
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º885, FLS.74-77)
Área Temática: .
Sumário: I - No processo particular de insolvência, previsto no art. 294.º do CIRE, não é admissível o incidente da exoneração do passivo restante.
II - Tendo o processo de insolvência sido aberto em Portugal contra devedores portugueses, residentes em Portugal e que aqui têm os seus bens, a circunstância de posteriormente terem ido viver e trabalhar para outro país da União Europeia não transforma o processo em processo particular de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3150/18.3T8OAZ-D.P1
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Recorrentes: - B…
- C…
Recorrido: M.P.
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Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
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Nos presentes autos foi proferida a seguinte decisão (itálico de nossa autoria para melhor compreensão): “Devidamente notificados os credores e a devedora do relatório do Sr. Administrador Judicial, nada tendo sido requerido ou oposto quanto à proposta ali apresentada, determina-se o prosseguimento dos autos para liquidação (cfr. artigo 158º do CIRE).
Notifique.
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No que concerne ao pedido de exoneração do passivo restante, considerando que os insolventes têm o seu domicílio em França, nos termos previstos no art. 294º do CIRE, estamos perante um processo particular de insolvência.
E, assim sendo, não são aplicáveis nestes autos as disposições sobre a exoneração do passivo restante, conforme resulta do disposto no art. 295º do CIRE.
Pelo exposto, não se admite o pedido de exoneração do passivo restante.
Notifique”.

Desta decisão apelaram B… e C… oferecendo alegações e formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Ao caso concreto não deve ser aplicado o regime de processo particular de insolvência nos termos do art. 294.º do CIRE.
2. Porquanto, o processo particular de insolvência é um processo secundário, que pressupõe sempre um processo de insolvência principal instaurado noutro Estado - Membro da União Europeia, o que não sucede.
3. Os Recorrentes não têm qualquer outro processo de insolvência a correr termos noutro Estado - Membro da União Europeia.
4. Nem têm qualquer estabelecimento em Portugal.
5. O processo de insolvência deve ser aberto no Estado-Membro em que esteja situado o centro dos interesses principais do devedor, o que se verifica ser em Portugal.
6. Recorrentes têm o seu domicílio em Portugal, mais precisamente em Santa Maria da Feira, lugar onde voluntariamente estabeleceram a sua residência a título habitual e com caracter definitivo, razão pela qual adquiriram o imóvel apreendido nos autos, o que não constituiu de todo um acto isolado.
7. Os Recorrentes nasceram ambos em Portugal, local onde trabalharam até finais de 2015 e, apenas emigraram para França atenta a falta de alternativa e, nomeadamente, por não conseguirem nova ocupação profissional, conforme verteram na petição inicial.
8. Contudo, emigraram para França, sem perspectivas de permanência a longo prazo, de onde, aliás contam regressar no início do próximo ano, atentas as graves dificuldades que estão a passar as quais foram vertidas na petição inicial.
9. Sendo também em Portugal que os Recorrentes mantém o centro dos seus interesses, nomeadamente, as suas raízes, a sua família, as suas amizades mais próximas e a sua habitação, a qual constitui a sua residência habitual e casa morada de família.
Tal conforme consta da douta sentença de declaração de insolvência que prevê: “2º- Fixo a residência dos devedores, em Portugal, na Rua …, n.º …., …, freguesia de …, …. - … Santa Maria da Feira …”.
10. Sem prescindir, mesmo que se entendesse, o que se concede por mera hipótese académica e cautela de patrocínio, que os Recorrentes não mantém centro dos seus principais interesses em Portugal e nomeadamente, em Santa Maria da Feira pelas razões supra expostas, sempre se dirá que a aplicabilidade de tal regime deveria ter lugar, ab initio, aquando da sentença de declaração de insolvência e não, posteriormente.
11. Pois que, a convolação, a existir, deve ser feita no âmbito do próprio processo de insolvência e na data em que esta é declarada e não no âmbito do processado de exoneração do passivo e posteriormente a tal data.
12. Pelo que, não se encontram preenchidos os pressupostos para a aplicação, in casu, das regras atinentes ao processo de insolvência particular, violando o douto despacho de que se recorre as normas previstas nos art.º 237.º, 294.º e 29 e 296.º todos do CIRE.
Pelo exposto, deve o presente despacho ser revogado e substituído por outro que defira a exoneração do passivo restante dos recorrentes.
Como se fará a acostumada justiça.

Não foram apresentadas contra alegações.

Cumpre agora decidir.
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Delimitado como está o objecto do recurso, pelas conclusões das alegações – artigo 635 do Código de Processo Civil – das formuladas pelo Apelante resulta que a questão colocada à nossa apreciação é a de saber se deve ser revogada a decisão que rejeitou liminarmente o presente pedido de exoneração do passivo restante.
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Vejamos.
Para dilucidação da questão enunciada importa recordar os seguintes pontos:
- Em 20 de Julho de 2018 os aqui apelantes vieram requerer a sua declaração de insolvência com pedido de exoneração do passivo restante (fls. 13 a 89 do presente apenso).
- Em 16/08/2018, pelo Tribunal Judicial de Aveiro, Juízo de Comércio do Oliveira de Azeméis, foi proferida sentença que “declarou a insolvência de B… e C…”, fixou a residência dos devedores em Portugal, na R. … n.º …., …, freguesia de …, Santa maria da Feira e em França em .. Rue …, …… …”, e, no que diz respeito ao pedido de exoneração do passivo, disse “O tribunal oportunamente tomará posição sobre a mesma, ouvidos que sejam os credores sobre tal matéria”.
- Os apelantes encontram-se temporariamente emigrados em França, planeando regressar a Portugal brevemente.
- Em 21/11/2018 foi proferido o despacho recorrido e acima transcrito, do qual foi interposto o presente recurso.
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Vejamos então.
Estabelece o art. 294 do C.I.R.E. (redacção do Dec. Lei n.º 79/2017 de 30/06) sob a epígrafe “Processo Particular de Insolvência” que:
1. Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos seus principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
2. Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
3. Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário”.
Por seu turno estabelece a alínea c) do art. 295 do CIRE que “Em processo particular de insolvência não são aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo restante”.
Estabelece o art. 63 do C. P. Civil, na sua alínea e), que “os tribunais portugueses são exclusivamente competentes em matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas colectivas ou sociedade cuja sede esteja situada em território nacional”.
Ora, a sentença que declarou a insolvência dos apelantes fixou a residência dos devedores em Portugal, na R. … n.º …., …, freguesia de …, Santa Maria da Feira, embora também em França.
Mas os seus bens situam-se em Portugal, como se pode ver da Relação de Bens e direitos de que os AA são titulares (fls. 21 v.º dos presentes autos) em que se refere um único bem imóvel situado na R. … n.º …., …., freguesia de …, Santa Maria da Feira, sendo certo que os apelantes se encontram temporariamente emigrados em França, planeando regressar a Portugal brevemente.
Tendo em conta tais factos a questão não pode deixar de ser enquadrada no âmbito do Regulamento (CE), nº1346/2000 do Conselho da União Europeia, de 20-05-2000, com as alterações introduzidas pelos regulamentos (CE), nº603/2205, de 12-04-2005 e nº694/2006 de 27-04-2006.
Assim e como vem sendo entendido (cf. entre outros os Acórdãos desta Relação de 22.04.2008, processo nº0820286 e de 18.05.2009, processo nº3175/06.1TBPRD.P1, ambos em www.dgsi.pt.jtrp), o citado Regulamento (CE), assenta nos seguintes três princípios nucleares:
1) O princípio de que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro de interesses principais do devedor, a que é atribuído alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor – artigo 3º e considerando (12);
2) O princípio do reconhecimento imediato e automático por todos os Estados-Membros das decisões relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como das decisões proferidas em conexão directa com esses processos, o que deve conduzir a que os processos conferidos ao processo pela lei do Estado de abertura do processo se estendam a todos os outros Estados-Membros – artigos 16º e 17º e considerando (22);
3) O princípio de que deve aplicar-se a lei do Estado-Membro de abertura do processo (lex concorsus), que “determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência – artigo 4º e considerando (23).
No artigo 271 do CIRE regula-se a competência internacional do tribunal português para o processo de insolvência principal caso o devedor tenha bens situados fora do nosso país mas dentro de outro estado da União Europeia, tendo em conta o disposto no art. 3º, nº 1, de tal Regulamento.
Assim, de acordo com o texto deste normativo – Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro de interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência...-, se o centro dos interesses principais do devedor se encontrar, real ou presuntivamente, localizado em Portugal, o tribunal nacional é competente para abrir e prosseguir esse processo de insolvência principal.
Ora, como acima vimos, os recorrentes quando abriram o processo de insolvência em Portugal abriram um processo de insolvência normal, pois à época em que o fizeram residiam em Portugal (embora temporariamente emigrados em França) e não declararam bens no estrangeiro.
Objectar-se-á, porém, que na data em que foram declarados insolventes (Agosto de 2018) residiam em França e teriam aí o centro dos seus interesses.
No entanto, mantêm o centro dos seus interesses em Portugal para onde contam regressar brevemente.
Não é aplicável aqui o disposto no art.º 271º do D.L. Nº537/2004 de 18 de Março (CIRE), segundo o qual “sempre que do processo resulte a existência de bens do devedor situados noutro Estado membro da União Europeia, a declaração de insolvência indica sumariamente as razões de facto e de direito que justificam a competência dos tribunais portugueses, tendo em conta o disposto no nº1 do artigo 3º do Regulamento (CE) nº1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio, adiante designado Regulamento”.
Como resulta expressamente do nº1 do art. 272 do CIRE, o processo secundário constitui uma modalidade do processo particular que tem como elemento característico exclusivo o facto de ser instaurado na sequência de um processo principal em curso no estrangeiro.
Ora, como resulta dos factos acima referidos, não foi instaurado nem corre qualquer processo principal em curso no estrangeiro
Sendo assim, a conclusão necessária a retirar é a de se ter como procedente o recurso aqui interposto.
Sendo assim, importa revogar a decisão recorrida determinando-se a sua substituição por outra que admita liminarmente o pedido de exoneração do passivo, com a sua tramitação subsequente.
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Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que admita o pedido de exoneração do passivo restante, com a sua tramitação subsequente.
Sem Custas.
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Porto, 11 de Abril de 2019.
Estelita de Mendonça
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral