Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1202/11.0JAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: ARMAS
DECLARAÇÃO DE PERDIMENTO
Nº do Documento: RP201503251202/11.0japrt-A.P1
Data do Acordão: 03/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Ao abrigo do artº 109º1 CP a perda de instrumentos, produtos e vantagens de um facto ilícito típico radica nos riscos específicos e perigosidade do próprio objecto e não na perigosidade do agente do facto.
II –Se nem a natureza das armas (de defesa) nem as circunstancias do caso permitem afirmar que põem em perigo a segurança das pessoas ou oferecem sério risco de serem utilizadas para o cometimento de novos ilícitos, não devem ser declarados perdidos a favor do Estado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 1202/11.0japrt-A.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 25 de março de 2015, o seguinte
Acórdão
I - RELATÓRIO
1. Nos autos de Inquérito (Atos Jurisdicionais) n.º 1202/11.0japrt, da Secção Criminal (J1) – Instância Local de Gondomar, Comarca do Porto, em que é arguido B…, o Ministério Público promoveu que sejam declaradas perdidas a favor do Estado as armas e munições apreendidas nos autos, nos seguintes termos [fls. 70-71 dos autos que integram certidão do processo principal]:
«(…) Uma vez que decorreu o período de suspensão provisória do processo e que o arguido cumpriu as injunções e regras de conduta impostas, nos termos do art. 282º, nº 3, do Código do Processo Penal determina-se o arquivamento dos autos.
Notifique o arguido e a ofendida.
(…)
Indiciava-se nos autos que o arguido ameaçou a ofendida com recurso a uma arma de fogo (revolver de defesa pessoal), a qual lhe veio a ser apreendida, juntamente com uma outra arma de fogo (revolver), um revolver de alarme, várias munições, duas armas de caça e respetivas munições – cf. auto de apreensão de fls. 91 e segs. Tais armas foram examinadas a fls. 107 e segs. e 172 e segs.
O arguido encontrava-se habilitado a ter na sua posse tais armas, sendo que a licença de uso e porte da arma de defesa pessoal encontrava-se em processo de renovação na PSP.
Nos termos do disposto no art. 109º do Código Penal são declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, ainda que os autos venham a ser objeto de arquivamento, como é o caso dos autos.
Em conformidade com a orientação plasmada no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-02-2013, disponível em www.dgsi.pt "contrariamente ao regime legal de perda das vantagens do crime, a perda dos instrumentos e produtos do crime no C. Penal de 1982 tem caráter preventivo, pois o que está em causa é a prevenção dos riscos decorrentes da disponibilidade de objetos que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, são perigosos e não aplicar uma sanção, o que explica que a medida deva ser tomada mesmo que o agente não seja condenado nem possa sê-lo, podendo ter lugar na sequência de despacho de arquivamento (como no caso presente), de um despacho de mio pronúncia ou de sentença absolutória."
Com efeito, em face do ilícito em apreço e do tipo de objeto em causa, não temos dúvidas da séria perigosidade na utilização futura de tais armas para a prática de novos ilícitos pelo arguido, caso lhe venham a ser entregues. Não só a arma que, em concreto, foi utilizada na prática dos factos, mas também das restantes.
Assim, sendo promovo que sejam declaradas perdidas a favor do Estado as armas e munições apreendidas nos autos, devendo o Comando da PSP dar-lhe destino legal - cfr. Art. 78º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei nº 17/2009, de 06 de Maio.
Conclua os autos à Mma. Juiz de Instrução Criminal para apreciação e decisão, nos termos do art. 268º n.º 1, al. e), do Código do Processo Penal.
(…)»

2. Sobre tal promoção recaiu o seguinte despacho [fls. 93]:
«(…) Tendo em consideração que o arguido possui licença de uso e porte das armas apreendidas, que a situação que deu origem aos presentes autos terá ocorrido de forma isolada, de forma isolada, num único dia, que aquele e a ofendida deixaram de viver juntos a partir do dia em questão, que o arguido não denotou problema algum de relacionamento interpessoal na associação onde prestou trabalho comunitário no âmbito destes autos (fls. 245) e que o mesmo não possui antecedentes criminais, tendo cumprido adequadamente as condições da suspensão provisória do processo, entende-se que não se justifica medida tão gravosa para o arguido como o do perdimento a favor do Estado das armas apreendidas, razão pela qual se determina a restituição das mesmas – art. 186.º, n.º 1, CPP.
(…)»
3. Inconformado, o Ministério Público recorre, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [fls. 106-110]:
«(…) 1. Está em causa nos presentes autos o crime de violência doméstica p. e p. pelo Art. 152º, nº 1, al. b) e 2, do Código Penal;
2. O arguido B… manteve a ofendida C… privada da liberdade das 211--130 do dia 04-07-2011 até às 08H00 do dia seguinte, ameaçou-a com recurso a uma arma de fogo (revolver), que lha encostou à cabeça mais do que uma vez, agrediu-a com puxões de cabelo e empurrões e insultou-a, só a libertando no dia seguinte;
3. Foram apreendidos nos presentes autos dois revólveres, uma arma de alarme e duas espingardas de caça, bem como munições, dado que o arguido utilizou um dos revólveres para ameaçar a ofendida (não se tendo logrado apurar qual deles);
4. Determinou-se a suspensão provisória do processo e findo o prazo fixado e uma vez que o arguido cumpriu as injunções e regras de conduta impostas, determinou-se o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 282º, nº 3, do CPP;
5. Prevê o artº 109º do Código Penal que são declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, ainda que os autos venham a ser objeto de arquivamento;
6. O comportamento do arguido denunciado nos autos, para além de constituir um ilícito criminal, é violador das normas de conduta aplicáveis aos portadores de armas, na medida em que estão obrigados a, para além do mais, "não exibir ou empunhar armas sem que exista manifesta justificação para tal", conforme prevê o art. 39º, nos 1 e 2, al. c), do RJAM;
7. Atenta a inerente e concreta perigosidade das armas de fogo, bem como as circunstâncias do caso concreto, impõe-se declarar a perda das armas apreendidas, dado que a sua entrega ao arguido acarreta o perigo do mesmo as utilizar no cometimento de novos ilícitos, o que se promoveu ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal
8. O Mmo Juiz de Instrução Criminal concluiu que não se justifica a aplicação e medida tão gravosa, dado que a situação que deu origem aos presentes autos ocorreu e forma isolada, o arguido e a ofendida deixaram de viver juntos a partir do dia em questão, o arguido não denotou problema de relacionamento interpessoal na instituição onde prestou trabalho comunitário e não possui antecedentes criminais, ordenando a entrega das armas ao arguido, nos termos do art. 186º do CPP;
9. Com o devido respeito por tal posição, não podemos concordar pois, conforme refere Maia Gonçalves, citado supra, "O fundamento da perda dos instrumentos que servem para a prática de factos ilícitos típicos é a sua perigosidade, e esta afere-se pela natureza dos mesmos instrumentos e pelas circunstâncias do caso;
10. Ora, o simples facto de se ter tratado de uma situação isolada, não lhe retira gravidade, veja-se que a ofendida esteve privada da liberdade durante quase 11 horas, período durante o qual o arguido a ameaçou com uma das armas que lha encostou à cabeça, insultou-a e agrediu-a, puxando-lhe os cabelos e empurrando-a
11. Tais circunstâncias, aliadas ao facto das armas serem objetos de grande perigosidade intrínseca, podendo provocar graves ofensas à integridade física e mesmo a morte, aconselha a que as armas apreendidas e respetivas munições não sejam entregues ao arguido e sejam declaradas perdidas a favor do Estado;
12. Conforme se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães, de 17-05-2010, disponível no mesmo sítio da internet, segundo o qual "O que está em causa não é o risco subjetivo do recorrente vir a utilizar (ou permitir que outros utilizem) a máquina em jogos de fortuna e azar. Não há que conjeturar sobre as suas reais intenções, as quais, aliás, só poderiam ser fixadas em sede de julgamento. O que releva aqui é o perigo objetivo do uso da máquina para a prática desse tipo de jogos. O que se exige para a declaração de perdimento é que o bem em causa, atenta a sua natureza intrínseca isto é, a sua específica e conatural utilidade, se mostre especialmente vocacionado para a prática criminosa, e deva por isso considerar-se, nesta aceção, objeto perigoso. Esse perigo objetivo existe porque a máquina está preparada para desenvolver jogos de fortuna e azar, estando tal dependente da simples introdução de um código. Ou seja, independentemente da circunstância de se demonstrar que alguém usou, ou pretende usar, a máquina para a prática de jogos de fortuna e azar, há sério risco de ela vir a ser utilizada para esse efeito, o que a coloca sob a previsão da última parte da norma do art. 109º nº 1 do Cód. Penal, acima transcrita";
13. Ainda que assim se não entenda, pelo menos os dois revólveres e a arma de alarme não deverão ser entregues ao arguido e deverão ser declaradas perdidas a favor do Estado, dada a sua menor dimensão e maior facilidade em serem transportadas, manuseadas e ocultadas podendo, desta forma, virem a ser utilizadas pelo arguido para o cometimento de novos ilícitos,
Assim se fazendo JUSTIÇA (…)»
4. Na resposta, o arguido refuta todos os argumentos da motivação de recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 112-127].
5. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-geral Adjunta acompanha a motivação, emitindo parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso [fls. 136-143].
6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
7. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, importa decidir se, como sustenta o recorrente [Ministério Público], as armas e munições apreendidas ao arguido devem ser declaradas perdidas a favor do Estado em função do disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Cód. Penal.
8. O recorrente não tem razão. Diz o artigo 109.º, n.º 1, do Cód. Penal:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
9. À luz deste normativo, é unânime o entendimento segundo o qual a perda de instrumentos, produtos e vantagens de um facto ilícito típico é uma medida preventiva, exclusivamente determinada por necessidades de prevenção e não como reação contra o crime: só deve ser decretada para evitar a perigosidade resultante da circulação do objeto [Ac. RP de 2.3.2011 (Paula Guerreiro)]; radica em exigências, individuais e coletivas, de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, ou seja, nos riscos específicos e perigosidade do próprio objeto e não na perigosidade do agente do facto ilícito (daí que não possa ser considerada uma medida de segurança) ou na culpa deste ou de terceiro (daí que não possa ser vista como uma pena acessória) [Ac. RL de 28.09.2010 (Jorge Gonçalves)]; e deve ser proporcional à gravidade do facto ilícito cometido [Ac. RP de 3.12.2014 (Fátima Furtado)].
10. O que está em causa é a natureza da coisa e as condições de perigosidade que tal natureza revele [Ac. STJ de 14.3.2007 (Cons. Henriques Gaspar)], sendo a perigosidade avaliada em função do objeto em si ou tendo em conta as circunstâncias do caso [Ac. RP de 3.12.2014 [Maria Dolores Silva e Sousa – todos disponíveis em www.dgsi.pt].
11. No caso dos autos, as armas (de defesa) apreendidas e respetivas munições não são objetos proibidos nem são objetos que, pelas suas características próprias, revelem condições de perigosidade excecional. À data em que praticou os factos e mesmo quando foi proferida a decisão recorrida, o arguido encontrava-se habilitado a ter na sua posse tais armas [o pedido de renovação da licença de uso e porte de arma está a ser avaliado pela entidade competente – a PSP].
12. Por outro lado, a situação que deu origem aos autos ocorreu de forma isolada, num único dia, o arguido e a ofendida deixaram de viver juntos a partir de então, o arguido não denotou problemas de relacionamento interpessoal na associação onde prestou trabalho comunitário, cumpriu adequadamente as condições da suspensão provisória do processo e não possui antecedentes criminais.
13. Em suma: nem a natureza das armas (de defesa) nem as circunstâncias do caso permitem afirmar que põem em perigo a segurança das pessoas ou oferecem sério risco de serem utilizadas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos [art. cit.].
14. Apenas mais uma nota: os acórdãos referidos pelo recorrente reportam-se a objetos (e crimes) substancialmente diferentes que não permitem adaptação ao caso dos autos. Improcedem os fundamentos do recurso.
A responsabilidade pela taxa de justiça
Sem tributação – isenção do Ministério Público [artigo 522.º, do Cód. Proc. Penal].
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
● Negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo o despacho recorrido.
Sem tributação.
[Elaborado e revisto pelo relator – em grafia conforme ao Acordo Ortográfico de 1990]

Porto, 25 de março de 2015
Artur Oliveira
José Piedade