Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8447/20.0T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA TROVÃO
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Nº do Documento: RP202301118447/20.0T9PRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1 ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Na situação em apreço, um empregador afirmou, dirigindo-se a um seu trabalhador subordinado, que este «tem falta de carácter» e que «é ardiloso por conveniência nos seus atos»; estas afirmações podem querer significar que o visado não é uma pessoa reta, leal, pelo contrário, é desprovido de princípios/valores morais e que, sem pudor, ou seja interessadamente, se lhe for conveniente, usa de engano/manha no seu modo de agir para obter vantagens indevidas; portanto, essas afirmações são suscetíveis de ofender a honra e consideração do visado.
II - No caso de se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, esta não pode ser considerada manifestamente infundada e rejeitada liminarmente, nos termos do art. 311.º, n.º2, a) e n.º 3, d) , do Código de Processo Penal, devendo os autos prosseguir para julgamento, onde a questão, segundo as várias perspetivas que se perfilem e sob a égide do contraditório, será discutida e debatida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 8447/20.0T9PRT.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 3


Acordam em conferência, os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum Singular nº 8447/20.0T9PRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 3, na sequência do despacho proferido pelo Ministério Público finda a fase de inquérito, nos termos e para os efeitos do art 285º, nº 1 do CPP, veio o assistente deduzir acusação particular contra o arguido AA, imputando-lhes a prática de um crime de injúria p. e p. pelos arts. 181º nº 1, 182º e 183º do Código Penal.
*
Tal acusação particular veio a ser rejeitada - ao abrigo do artigo 311º nºs 2 a), e 3 d), do Cód Proc. Penal - por manifestamente infundada, por se ter considerado que os factos ali narrados não constituem crime.
*
Inconformado com a decisão, recorre o assistente BB, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1 - Com relevância para o apuro da situação in casu, os factos constantes da acusação particular de fls., reconduzem-se ao Recorrido ser o sócio-gerente e administrador de várias empresas para as quais o queixoso trabalhou, com vínculo formal contratual laboral, ou prestador de serviços, tendo prestado serviços individualmente;
2 – As injúrias ocorrem quando o Recorrente ainda trabalhava para as empresas das quais o Recorrido é sócio e gerente, estando a ser afastado de todas as suas funções pelo que o corolário do comportamento hostil e provocador, por parte do Recorrido, foi o email junto como doc. nº da participação criminal de fls. – datado de 29 de Junho de 2020, pelas 20:26 horas e dirigido ao Queixoso, onde lhe dirige as expressões denunciadas;
3 – Epiteta o Recorrente de ardiloso – “Sendo o senhor ardiloso por conveniência nos seus actos”; falta de carácter – “demonstram o seu carácter, ou melhor, a falta dele”; mentiroso - “pois se alguém mente é o senhor”, “Quanto aos dias que diz ter permanecido no escritório a meu pedido, mente.”; falta de carácter - “hoje custa-lhe ter hombridade de admitir os seus actos”; mentiroso – “se alguém mente é o senhor”;
4 - O Recorrido fê-lo, de modo expresso, dando publicidade às expressões que proferiu uma vez que o indicado email foi dirigido não só ao Recorrente, mas à também colaboradora e colega de trabalho, CC e ao Ilustre Advogado da empresa, Sr. Dr. DD;
5 – A douta decisão do Tribunal a quo, nos termos do art.º 311º n.º 1 2 al. d) do C.P.P., entendeu que tais factos não constituíam crime, colocando todo o racional da sua argumentação de que as acima transcritas expressões, não teriam a virtualidade de causar dano à honra do assistente em qualquer das vertentes penalmente tuteladas;
6 – Ora, ressalvado o devido respeito, tal interpretação dos factos, não é inequívoca, literal e objectiva, mas resulta do livre arbítrio do julgador, sendo passível de interpretação diversa – numa palavra não se poderá, salvo o devido respeito por melhor opinião – afirmar peremptória e inequivocamente que tais imputações não têm dignidade penal;
7 – Isto quando é pacifica a doutrina de que a honra, enquanto valor juridicamente tutelado, assume uma dimensão ou sentido normativo-pessoal;
8 - “Difamar e injuriar mais não é basicamente que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública” – cfr. Ac. Rel. de Guimarães, Proc. 1467/04-1, que cita o Ac. Rel Lisboa de 6.2.96, CJ, 1, 156, e este, por sua vez, cita o Cód. Penal Anotado de Leal. Henriques e Simas Santos (cfr. 2º Volume, 2ª edição, pág. 317).
9 - Com este sentido jurídico-penal do bem jurídico protegido, a honra, haverá, para a decisão a proferir, que indagar se os elementos colectados para o processo capacitam ou confortam a imputação autoral formulada pelo assistente/Recorrente ao arguido/Recorrido;
10 – Ora, apelando às expressões proferidas e ao contexto em que as mesmas foram escritas subjaz, de forma inequívoca, o carácter desonroso de per se, pois as mesmas são de molde a denigrir a honorabilidade do Recorrente perante terceiros, enquanto trabalhador mas, sobretudo, enquanto pessoa;
11 - Assumem, salvo devido respeito por melhor opinião, o caracter de imputações de factos susceptíveis de o lesar na sua dignidade pessoal, dado que o arguido quis, com tais afirmações significar que o Recorrente era uma pessoa ardilosa – segundo o dicionário www.dicionário/priberam.org - em que há ardil ou plano para enganar (ex.: plano ardiloso).2. Que usa ardis ou que quer enganar (ex.: pessoa ardilosa). = VELHACO "ardiloso", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ardiloso [consultado em 29-06-2022] - sem carácter, sem hombridade e que mentia – no fundo que era uma pessoa enganadora, manhosa, artificiosa, enganosa, maliciosa, matreira ou capciosa;
12 - Ora estas afirmações, salvo melhor opinião, não poderão deixar de ser passíveis de serem lesivas da dignidade pessoal do Recorrente, pois não podem deixar de ser referenciadas e assumidas como uma imputação do facto desonroso;
13 – Ou, pelo menos, tal conformação é passível de ser aceite, portanto não é inequívoco que tais epítetos e imputações não sejam crime – existe uma ampla margem para a apreciação e integração dos factos sub judice;
14 – Atento o disposto no art. 311º do CPP n.º 2, al d) que a acusação considera-se manifestamente infundada se os factos não constituírem crime;
15 - Ora, como se refere no Acórdão do TRP de 18/01/2017 (processo nº 984/15.4T9VFR.P1, disponível nas bases de dados da DGSI): “Decorre deste normativo que quando o juiz recebe o processo para julgamento tem de o sanear, ou seja, certificar-se da inexistência de nulidades ou de questões prévias que obstem á apreciação do mérito da causa. Ademais se não tiver havido instrução o juiz pode ainda rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada. Este conceito encontra-se densificado nas diversas alíneas do número 3 e, para o que aqui nos importa, sê-lo-á, quando os factos dela constantes não constituírem crime. (…); No entanto, salvo o devido respeito, como tem sido entendido na Jurisprudência, esta conclusão tem de se impor como inquestionável, ou seja, a leitura que se fizer dos factos não pode suscitar dúvidas a ninguém, de que aqueles concretos factos imputados ao arguido não constituem crime.”.
16 – Neste sentido TRL, acórdão de 07/12/2010, processo 475/08.0TAAGH.L1-5);
17 - Ora, dão-se por reproduzidas as expressões já supra transcritas, em que se verifica que o Arguido, usando do seu ascendente enquanto entidade patronal, e perante uma colega de trabalho e o Ilustre Mandatário, dirigiu-se ao Assistente, apodando-o de ardiloso, sem carácter e que mentia;
18 - Destas expressões, impõe-se concluir, salvo o devido respeito, que assiste razão ao Recorrente, porque a sua honra, bom nome, honradez e dignidade;
19 - Na verdade, do teor das mesmas não pode concluir-se, de modo inequívoco e incontroverso e sem suscitar dúvidas a ninguém, que elas não sejam injuriosas e que não atinjam o âmago dobem jurídico em causa – a honra;
20- Vide também neste sentido Ac. R.G. de 25/02/2019, Proc. n.º 611/15.0PBGMR.G1 ou da R.P de 20/10/2015, Proc. n.º 658/14.3GAVFR.P1;
21 - Assim, compulsado todos os argumentos supra aduzidos, não se poderá aderir à decisão do Tribunal “a quo” ao rejeitar a acusação, que deve ser recebida, seguindo-se os posteriores termos “.
Pugna pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que aceite a acusação particular e ordene o prosseguimento dos autos para julgamento e aferição dos factos em causa.
*
O Ministério Público e o arguido responderam ao recurso sem formular conclusões, pronunciando-se pela sua improcedência.
*
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu favorável ao provimento do recurso, argumentando:

“No email enviado pelo arguido ao assistente ele imputa-lhe factos e dirigi-lhe palavras, tendo o assistente considerado as palavras que lhe foram dirigidas ofensivas da sua honra e consideração.
Como se percebe e depreende do email e da primeira parte da acusação particular o assistente trabalhou para o arguido em várias empresas em que o mesmo era administrador e sócio-gerente e que a determinada altura a relação laboral se deteriorou, com acusações reciprocas.
Foi junta também aos autos a resposta dada pelo assistente ao arguido ao email acima referenciado e embora o assistente rebata as afirmações e acusações do arguido em nenhum momento tece juízos de valor directos sobre a pessoa do arguido.
O arguido utiliza no contexto de manifesto conflito laboral juízos de valor sobre o caracter do assistente, dizendo que o mesmo não tem caracter, que mente e é ardiloso a seu favor.
Como é evidente, dependendo do contexto, as palavras utilizadas pelo arguido podem ser suscetíveis de ofender a honra e consideração do assistente.
O arguido diz que o assistente mente e é enganoso (ardiloso), que utiliza, portanto, ardil, manha, em seu benefício, e que mente, também para ter vantagens indevidas.
O conceito de caráter é definido pelo conjunto de traços morais e éticos de um indivíduo. Em termos gerais, o caráter define a índole da pessoa e como ela rege as suas atitudes, dentro dos parâmetros da honestidade e do respeito ao próximo.
Assim, só se apelando a entendimentos doutrinais ou jurisprudenciais sobre o conceito de honra e consideração e dos eventuais limites do bem jurídico protegido pelo crime de Injúria se toma uma decisão sobre a coloração criminal dos factos.
Ora, essa apreciação definitiva numa fase embrionária de recebimento da acusação, não é aceitável, estando prevista a rejeição da acusação por falta de verificação de crime nos casos em que é totalmente evidente que aqueles factos, mesmos que provados, nunca poderão configurar prática criminosa, o que não se verifica no caso concreto do processo.
Desta forma, e concordando com o Recorrente, não é de maneira alguma inquestionável que os factos descritos na acusação particular não sejam suscpetíveis de preencher o tipo legal do crime de Injúria, devendo os mesmos ser apreciados e avaliados em sede de julgamento no sentido da condenação ou absolvição, pelo que em meu entender deve ser o Recurso interposto pelo Recorrente procedente, prosseguindo o processo para a fase de julgamento, sendo recebida a acusação “.
*
Cumprido o estabelecido no art. 417º nº 2 do CPP, respondeu o arguido ao parecer emitido, manifestando a sua discordância quanto ao teor do mesmo e reiterando não dever o recurso merecer provimento.
*
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões do recorrente formuladas na respetiva motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Da leitura das conclusões, extrai-se que o recorrente coloca a este Tribunal, as seguintes questões:
saber se a acusação particular do assistente, acompanhada pelo Mº P º, pode qualificar-se como «acusação manifestamente infundada» porque os factos descritos na acusação particular não constituem crime;
saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que aceite a acusação e designe data para a audiência de julgamento.
*
II.2 Teor da acusação particular deduzida pelo assistente (transcrição parcial):
EE, id. a fls., assistente nos autos de Inquérito identificados em epígrafe, vem nos termos e para os efeitos do art. 285º do Código de Processo Penal (CPP), deduzir contra o arguido:

AA, id. a fls., com domicílio profissional na Av.ª ..., ..., sala ..., ... Porto,
ACUSAÇÃO PARTICULAR
e requerer o seu Julgamento perante Tribunal Singular
Porquanto,
O denunciado é o sócio-gerente e administrador de várias empresas para as quais o queixoso trabalhou, com vínculo formal contratual laboral, ou prestador de serviços,
Designadamente:
- M..., Lda., NIPC ...;
- P..., S.A., NIPC ...
...;
- U..., Lda., NIPC ..., com sede no Complexo Industrial ..., Via ..., ..., ..., República Popular de Angola; e
- M..., Lda., NIPC ..., com sede na Avª ..., ..., ..., ..., República Popular de Angola;
Mais o Assistente também trabalhou para o Arguido, designadamente prestando funções de consultor e assessor fiscal;
Desde Abril de 2020 que o Queixoso tinha vindo a ser afastado de todas as suas funções junto das acima referidas empresas e, como corolário do comportamento hostil e provocador, por parte do Arguido a que teve de resisir, o mesmo, por email junto como doc. n.º 1 da participação criminal de fls. – datado de 29 de Junho de 2020, pelas 20:26 horas e dirigido ao Queixoso, injuria-o e imputa-lhe condutas atentatórias do seu bom nome, honra e consideração.
Nesse referido email, o Arguido dirige-se ao Queixoso
apodando-o de:
- ardiloso – “Sendo o senhor ardiloso por conveniência nos seus actos”;
- falta de carácter – “demonstram o seu carácter, ou melhor, a falta dele, pois se alguém mente é o senhor”; “hoje custa-lhe ter hombridade de admitir os seus actos”;
- mentiroso – “se alguém mente é o senhor”; “Quanto aos dias que diz ter permanecido no escritório a meu pedido, mente.”
O Arguido fê-lo, de modo expresso, para ofender o Queixoso, dando publicidade às injúrias, uma vez que o indicado email foi dirigido não só ao Queixoso, mas à também colaboradora e colega de trabalho, CC e ao Ilustre Advogado da empresa, Sr. Dr. DD, com o único fito de que as expressões e insinuações por si escritas fossem lidas pelas pessoas que se encontravam em conhecimento naquela mensagem de correio electrónico, ou seja com carácter não restrito.
O Arguido agiu da maneira supra descrita, de forma livre, voluntária e consciente com a intenção e propósito de atingir o Ofendido na sua honra, bom nome e consideração, o que conseguiu, ao proferir as acima mencionadas expressões de carácter injurioso e difamatório, constituindo-se autor material de um crime de injúria p.p. pelo art.º 181º do C.Penal;
O Assistente sente-se, amarga e profundamente ofendido, humilhado e enxovalhado na sua pessoa, e profundamente envergonhado por toda esta situação que o afecta sob o ponto de vista do seu comportamento moral, quer como homem, quer denegrindo a sua seriedade enquanto profissional, diligente e probo.
Tais factos têm-lhe causado muita ansiedade, sério nervosismo e graves perturbações de sono e mentais.
Pelo exposto, O arguido, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, designamente pela prática continuada de ilícitos penais que se reconduzem a crime de injúria previsto e punido pelo art.º 181º do CP, e ainda nos termos dos art.º 182º e 183º do C.P.
Não obstante, saber que o seu comportamento era proibido e punido por lei, não se coibiu em agir da forma supra descrita, bem sabendo que as expressões e imputações que proferiu eram caluniosas e injuriosas, e que eram de molde a ofender a honra, consideração e bom nome do aqui Assistente, objetivo que o Arguido desejou e conseguiu atingir.
O Assistente como já referido, sente-se, pois, ofendido, humilhado e pior, viu-se enxovalhado pelas palavras e imputações, de carácter falso e injurioso que afectaram a sua honra e bom nome.
- Com o seu comportamento, voluntário, ilícito e culposo, o arguido constituiu-se autor material de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181º do Código Penal (CP);
PROVA:
I – As declarações do assistente, EE, id. fls.;
II – TESTEMUNHAS:
1 – FF, id. fls. 8;
2 – GG, id a fls. 8;
III
PROVA DOCUMENTAL:
1 – Documento de fls. 9 e ss., junto como documento número um da participação criminal.
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
(…) “.
*

II.3 Despacho do MºPº a que alude o art. 285º nº 4 do CPP (transcrição):
“O Magistrado do Ministério Público, em Processo Comum e perante o Tribunal Singular, acompanha a acusação particular deduzida a fls. 95 e seguinte, respeitante à imputação ao arguido:
AA, já identificado a fls. 88; da autoria material de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Cód. Penal, porquanto indiciam suficientemente os autos que:
Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas na acusação particular, o arguido, dirigindo-se ao assistente EE, dirigiu-lhe palavras ofensivas da honra e consideração, o que aquele bem sabia, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis.
O arguido actuou de modo livre e consciente, tendo perfeito conhecimento da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
*
MEDIDA DE COACÇÃO:
Promovo aguarde o arguido os ulteriores termos processuais sujeito apenas ao termo de identidade e residência já prestado, por se mostrar medida de coacção suficiente e adequada às exigências cautelares dos presentes autos.
*
Cumpra o disposto nos artigos 277º, nº 3, e 283º, nº 5, do Código de Processo Penal, notificando o arguido da acusação particular e do antecedente despacho, bem como da possibilidade de requerer a abertura da instrução, no prazo de vinte dias, nos termos do artigo 287º, nº 1, do Código de Processo Penal”.
*
II.4 Despacho recorrido (transcrição):
EE deduziu acusação particular a fls. 95 e ss contra AA imputando-lhe factos que, no seu entender, integram a prática de um crime de injúria, p.p. pelo art. 181.º, n.º 1, art.º 182º e 183º do Código Penal e que ora se dá por integralmente reproduzida.
O Ministério Público acompanhou a acusação particular.
*
De acordo com o art.º 181º, n.º 1 do Código Penal comete o crime de injúria “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.
Trata-se de um crime doloso, cujo bem jurídico tutelado é a honra.
A honra vem conhecendo ao longo do tempo diversas conceptualizações, assinalando-se a concepção adoptada por Faria Costa, segundo a qual “a honra é um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade. Desta forma, a comunidade em que cada um se insere não constitui a fonte da honra, apenas o lugar em que ela se deve actualizar“ - vd. José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 606 e 607, Coimbra Editora, 1999. No tipo legal criminal do art.º 181.º do Código Penal “a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior (…) O ordenamento jurídico português alarga a tutela da honra também à consideração ou reputação exteriores.” - in Ob.cit.
O tipo objectivo do ilícito consiste numa imputação directa à vítima de factos e/ou de palavras ofensivas da honra e consideração desta.
Para aferir se uma conduta é ou não lesiva da honra “deve o julgador orientar-se por um critério objectivo, tendo em conta o valor social da honra, a carga ofensiva da conduta em função das circunstâncias, a condição da pessoa, à relação entre o agente e o ofendido, costumes, etc; sendo irrelevante a maior ou menor sensibilidade às ofensas” (neste sentido vd Ac. TRL, 09.04.91, Proc. 0013035, in www.dgsi.pt).
O tipo subjectivo deste ilícito criminal preenche-se com o dolo genérico da conduta do agente, em qualquer uma das suas formas, de directo, necessário ou eventual, previstas no art.º 14.º do Código Penal.
Para que se verifique o preenchimento do crime de injúria é necessário que as expressões consistam numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração.
Mas, como se pode ler no acórdão da Relação de Coimbra de 06.01.2010, proc. n.º 862/08.3TAPBL.C1, “a ofensa à honra ou consideração não é susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direccionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social,
não são objecto de sanção penal”. Pode ler-se ainda no citado acórdão o seguinte: “Como é sabido, a vida em sociedade pauta-se por normas, nem todas elas de carácter jurídico. A teia de relações sociais que necessariamente se estabelece em torno de cada indivíduo e que lhe permite interagir com os demais, pressupõe, por força da própria natureza humana, uma regulação normativa. Basicamente, é usual distinguir-se entre normas religiosas, normas de costume, normas morais e normas jurídicas. As primeiras, valem nas relações entre os crentes de uma mesma religião ou fé e entre estes e o Deus em que acreditam. A violação destas normas importa, para o crente, a sanção do castigo divino e a desaprovação dos outros crentes. As normas de costume respeitam ao comportamento em determinadas circunstâncias; são normas de conveniência, de decoro, de higiene, de etiqueta ou de cerimónia. A sua violação acarreta a reprovação por parte de quem lhes atribui importância, e pode importar ainda um sentimento de mal-estar ou desconforto social para quem, respeitando por princípio essas normas, delas se afastou. A sanção que as acompanha é, pois, essencialmente, uma reprovação social. As normas morais radicam numa noção de “bem” e de “mal”, são normas cuja violação gera uma intensa reprovação por parte dos membros da comunidade e que nos casos mais ostensivos conduz a uma verdadeira desqualificação social do infractor, que se verá olhado com desdém ou deixará de ser aceite em certos círculos sociais. Por fim, as regras jurídicas prendem-se com o núcleo essencial da convivência humana. Tutelam valores de tal modo relevantes para a vida em sociedade que o Estado impõe coactivamente a sua observância, estipulando sanções para os infractores. Todos estes grupos de normas se reflectem, directa ou indirectamente, na personalidade moral dos indivíduos e todas as sociedades, pelo menos, as sociedades de pendor humanista, tutelam a personalidade moral.
Assim sucede entre nós, tutelando a Constituição da República Portuguesa a personalidade moral, consagrando a sua inviolabilidade no art.º 25º, nº 1: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”.
No desenvolvimento desse princípio, o Código Civil consagra uma tutela geral, estatuindo, no respectivo art.º 70º, nº 1, que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.
O direito penal, por seu turno, tutela a honra e reputação do indivíduo, enquanto expressão da irrenunciável dignidade pessoal.
Honra, no sentido pressuposto pelas normas que lhe conferem tutela penal, tanto pode ser a honra subjectiva ou interior, no sentido de juízo valorativo que cada um faz de si mesmo, como honra objectiva ou exterior, correspondente à consideração de que alguém goza entre quem o conhece, ao bom nome e reputação no contexto social envolvente - Para desenvolvimento do tema veja-se José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pag. 603, em anot. ao art. 180º.
Importa ainda fazer notar que a censura jurídico-penal subjacente aos crimes contra a honra tipificados no Código Penal tem como limite, além do mais, o direito à liberdade de expressão.
É consensual a ideia de que, nem a liberdade de expressão, nem o direito à honra e reputação são direitos absolutos, ilimitados, antes têm, como qualquer direito fundamental, “limites imanentes”. Como se refere no acórdão do TC n.º 81/84 (DR, II, de 3.01.1985), “a liberdade de expressão – como, de resto, os demais direitos fundamentais – não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de protecção pára ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (…). Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos – designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v.g. o direito à integridade moral (artigo 25.º, n.º 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização”.
Consensual é, ainda, a ideia de que, tratando-se de direitos situados no mesmo plano, há que procurar harmonizá-los, de forma a atribuir-se a cada um deles a máxima eficácia possível, em obediência ao princípio da proporcionalidade. Na hipótese de conflituarem, mesmo naqueles casos em que é admissível algum exagero, mesmo que deva concluir-se que a esfera de protecção de um desses direitos esteja, à partida, diminuída, como poderá ser o caso da honra e reputação de figuras públicas, nunca o núcleo essencial deste direito pode ser atingido.
Posto isto, e revertendo para o caso dos autos, afigura-se-nos que as concretas expressões cuja autoria é imputada ao arguido no email enviado e indicadas na acusação particular referindo que o assistente era “ardiloso por conveniência nos seus actos” (…) “demonstram o seu carácter, ou melhor, a falta dele, pois se alguém mente é o senhor”; “hoje custa-lhe ter hombridade de admitir os seus actos”; “se alguém mente é o senhor” e “quanto aos dias que diz ter permanecido no escritório a meu pedido, mente”, não têm a virtualidade de causar dano à honra do assistente em qualquer das vertentes penalmente tuteladas.
Com efeito, nem toda a afirmação de um facto ou formulação de um juízo critico que magoa, incomoda, envergonha e perturba ou humilha, que se perfila como uma injustiça ou que, em geral, afecte o visado na sua sensibilidade, cabe na previsão do art.º 181.º do Código Penal.
Como vem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência (cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 27.04.2016, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, no processo n.º 427/13.8GAARC.P1), nem toda a falta de respeito, ultraje ou prolação de uma expressão obscena com tal fito constitui injúria, por carecer de dignidade penal.
Não pode deixar-se de concluir no caso que nenhuma das expressões dirigidas ao assistente alcança o limiar de dignidade penal a que se reconduz o crime de injúria: na verdade as palavras que lhe foram dirigidas pelo arguido não podem ser consideradas ofensivas da honra ou consideração. Trata-se é certo da manifestação de uma opinião desprimorosa, depreciativa ou deselegante, podendo ser mesmo entendida como falta de educação ou de respeito, que não obstante ser geradora de repulsa social, não assume dignidade penal, deixando intocável a honra e consideração devida ao assistente. Podendo ser consideradas rudes e/ou grosseiras as expressões utilizadas pelo arguido, e obviamente deselegantes, que qualificam negativamente quem as profere e que ofendem as normas de convivência social e o mínimo de respeito comunitário que é suposto existir, não atingem, contudo, aquele núcleo essencial do conceito de honra e consideração de forma a merecer a tutela penal. Na verdade, uma coisa é a grosseria, a má educação, a utilização de linguagem desbragada ou obscena e outra, bem diversa, é que tal comportamento, eticamente reprovável e moralmente censurável, traduza um atentado à personalidade moral do interlocutor.

Assim, reforçamos, embora se possa considerar que alguma da linguagem e palavras utilizadas sejam impróprias, denotando falta de polidez por parte de quem as usa e, por força disso, censuráveis do ponto de vista moral, não assumem relevância penal nos termos que lhe foram atribuídos, não podendo afirmar-se que constitua um atentado à personalidade moral do interlocutor. Na verdade, nenhuma das expressões “contende com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal - cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19.04.2006, in www.dgsi.pt, proc. nº 0515927.; não atinge aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana - cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19.12.2007, in www.dgsi.pt, proc. nº 0745811.
As expressões utilizadas podem traduzir um comportamento revelador de falta de educação e respeito, que fere as regras do civismo exigível na convivência social.
Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por grosseiro e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal - cfr. Ac. da Relação do Porto, de 25.06.2003, in www.dgsi.trp.pt, proc. nº 0312710.
Assim temos para nós que as expressões constantes da acusação particular em causa, através das quais o arguido emite opiniões negativas e juízos críticos relativamente ao comportamento do assistente – não atingem a honra enquanto elemento intrínseco da pessoa humana, não sendo, só por si, adequadas a diminuir socialmente o assistente. Mesmo que aquelas afirmações seja infundadas e injustas, convém não esquecer que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações emitidas. As referidas expressões não são adequadas a ferir o núcleo essencial das qualidades morais daquele: não afectam a sua dignidade e consideração com a densidade que estes conceitos encerram em si e que acima referimos. A este propósito, recordamos que é afirmação recorrente do TEDH que “o direito de crítica não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas”.
Não pode confundir-se a dignidade e consideração da pessoa – cuja lesão conduz à prática de um crime – com a sua susceptibilidade – cuja lesão não alcança dignidade penal: e se há condutas que efectivamente lesam aquelas, outras haverá, como entendemos ser o caso, que apenas se mostram susceptíveis de afrontar, provocar o descontentamento e ferir a susceptibilidade do visado.

Dispõe o n.º 2 do art. 311.º do Código de Processo Penal que «Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada». Para efeitos do disposto no referido n.º 2 diz o n.º 3, al. d), do mesmo preceito legal que a acusação se considera manifestamente infundada se os factos não constituírem crime.
Ora, conforme supra dissemos, os factos descritos na acusação particular deduzida pelo assistente, salvo o devido respeito por entendimento diverso, não integram a prática de qualquer crime, nomeadamente do crime de injúria, p.p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal que é imputado ao arguido, pelo que em conformidade com os referidos preceitos, se impõe a rejeição da mesma.
Pelo exposto, decide-se rejeitar a acusação particular formulada pelo assistente EE contra o arguido AA.
Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal – cfr. art.º 515.º, n.º 1, al. f), do Código de Processo Penal.
Notifique.
Dê baixa estatística (F7).
Oportunamente arquive os autos “.
*

II.5 Apreciação do recurso
Comecemos por apreciar da relevância criminal das afirmações dirigidas por email pelo arguido ao assistente descritas na acusação particular para, em face do resultado, saber se a acusação pode qualificar-se, como considerou o tribunal a quo, como «acusação manifestamente infundada», para responder à 1ª questão suscitada pelo recorrente.
Como se percebe e depreende do email e da primeira parte da acusação particular, o assistente trabalhou para o arguido em várias empresas em que o mesmo era administrador e sócio-gerente e que, a determinada altura, a relação laboral se deteriorou, com acusações reciprocas.

O arguido utiliza no contexto de manifesto conflito laboral juízos de valor sobre o caracter do assistente, através de email que lhe enviou, do teor “Sendo o senhor ardiloso por conveniência nos seus actos demonstram o seu carácter, ou melhor, a falta dele, pois se alguém mente é o senhor; hoje custa-lhe ter hombridade de admitir os seus actos; e “quanto aos dias que diz ter permanecido no escritório a meu pedido, mente”.
O assistente considera as referidas imputações e afirmações injuriosas.
De acordo com o disposto no art. 181º nº 1 do Cód. Penal, comete o crime de injúria, quem imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigir-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração.
O tipo objetivo do crime de injúria pressupõe que o agente se dirija a uma pessoa utilizando palavras ou expressões que atentem contra a honra ou consideração.
Segundo Nélson Hungria([1]), Injúria “é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipendio contra alguém, dirigida ao próprio visado” – realce nosso.
Para Miguez Garcia([2]), a injúria, “enquanto expressão puramente afetiva e quase sempre espontânea da vontade de poder do sujeito, é o ato verbal ( ou atitude!) atirado à cara do interlocutor, a quem se nega qualquer valor, que é desprezado e desdenhado”.
O bem jurídico tutelado no art. 181º é a honra e a consideração devidas a uma pessoa (qualquer pessoa); o direito que lhe assiste ao seu bom nome, à sua consideração pessoal, social e profissional.
Leal-Henriques e Simas Santos([3]), definem honra como “a essência da personalidade humana, referindo-se propriamente à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter “; é a dignidade subjetiva, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui; diz respeito ao património pessoal e interno de cada um – o próprio eu; e, por consideração, “o merecimento que o indivíduo tem no meio social, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão “.
Por reputação, entendem “a estima que se goza na sociedade, em virtude do próprio engenho ou de qualidades morais, da habilidade em uma arte, profissão ou disciplina: algo mais que a consideração e menos do que o renome e a fama “.
O art. 182º do Cód. Penal equipara à injúria verbal, a feita por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.
Miguez Garcia([4]) acrescenta ainda que o valor ofensivo de uma expressão depende não só do que é dito em si mas também da situação em que ela é usada; é o contexto que determina a escolha de uma dada palavra precisando-lhe o sentido, isto é a direção que o interlocutor tem de seguir para compreender ou, como se diz no Ac. da R.P. de 18/01/2017([5]), “no que ao crime de injúrias concerne existe um problema acrescido. Importa, para a conclusão a retirar relativamente aos factos imputados a sua consideração objetiva – digamos a apreciação do seu teor literal – mas importa muito, quase mais ainda, o “sentido”, o significado que as palavras proferidas têm socialmente e o contexto no qual elas são proferidas “.
Dizer a uma pessoa que «não tem carácter», é uma afirmação, que objetivamente, tem uma conotação depreciativa, pois uma pessoa sem carácter é uma pessoa egoísta, interesseira, sem pudor, bajuladora, que usa das fragilidades dos outros, não tem qualidades morais – cfr. Ac. da R.E. de 09/01/2018([6]); ou, de acordo com o Dicionário Online de Português, é a pessoa desprovida de princípios, valores; sem senso de justiça e de moral; que não age em concordância com os padrões éticos da sociedade.
E segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, «ardiloso» significa enganador, manhoso, velhaco, espertalhão.

Na situação em apreço, o empregador dizer a um seu trabalhador subordinado que «tem falta de carácter» e que «é ardiloso por conveniência nos seus atos» pode querer significar que o visado, não é uma pessoa recta, leal, pelo contrário, é desprovido de princípios/valores morais e que, sem pudor, ou seja interessadamente, se lhe for conveniente, usa de engano/manha no seu modo de agir para obter vantagens indevidas e, portanto, as palavras utilizadas pelo arguido são suscetíveis de ofender a honra e consideração do assistente.
Contudo, a Sra. Juiz a quo fez uma interpretação divergente (apoiada em critérios doutrinais e jurisprudenciais que cita no despacho recorrido) de quem deduziu a acusação particular e do magistrado do MºPº que dirigiu o inquérito e a acompanhou, sobre os factos imputados ao arguido, violando deste modo o princípio do acusatório.
O princípio do acusatório vem consagrado no art. 32º nº 5 da CRP que estatui “O processo criminal tem estrutura acusatória (…) “.
Pode ler-se no Ac. do T.C. nº 219/89, de 15/02/89([7]) que, “Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjetivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.
Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) Proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação;b) Proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo isto, é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) Proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa.
Castanheira Neves, nos “Sumários de Proccesso Criminal, pp. 33 e 34, escreve o seguinte: Ora o que o princípio da acusação se propõe é justamente a conciliação do interesse público (e, portanto, da função estadual) da repressão com as exigências, de não menor interesse público, da imparcialidade e objectividade no julgamento das in­fracções.
O que se consegue atribuindo a órgãos públicos funda­mentalmente distintos, por um lado, a função de investigação e acusação dos delitos — que compete em regra ao MP, magistratura com um estatuto administrativo — e, por outro lado, a função de julgamento dessa acusação — que compete ao tribunal criminal, como órgão de estatuto e estrutura jurisdicional. Desse modo, e já que além disso ao acusado será dada a mais ampla possibilidade de contradição e de defesa da acusação feita, o julgador, se se encontra numa situação super panes, também não está interessado senão na apreciação objectiva do «caso» criminal que lhe é submetido “.
Diz-se ainda no Ac. da R.L. de 07/12/2010([8]) que, “Face a este princípio, nesta fase, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos
não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Uma opinião divergente, como a manifestada pelo Mmo. Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação “.
O que acaba de dizer-se remete-nos para a resposta à segunda questão suscitada pelo recorrente que é a de saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que aceite a acusação e designe data para a audiência de julgamento.
Dispõe o art. 311º do CPP no seu nº 2 que “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.

E acrescenta no seu nº 3 que “Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: d) Se os factos não constituírem crime “.
Conforme se decidiu no Ac. da R.L. de 02/12/2009([9]) que consideramos aplicável ao caso destes autos com as devidas adaptações, “ II - O despacho que rejeita a acusação que imputa ao arguido o crime de falsidade de testemunho por factos não constituírem crime, nos termos do art. 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d) do Código de processo Penal não pode ter como fundamento a opção por um determinado entendimento jurisprudencial
sobre os elementos do crime. III - A acusação só pode ser rejeitada quando for evidente que os factos nela descritos ainda que viessem a ser provados não preenchem qualquer tipo legal de crime “.
Na mesma senda, decidiu o Ac. da R.C. de 25/03/2010([10] dizendo que “1- A acusação considera-se manifestamente infundada quando: a) não contenha a identificação do arguido; b) não contenha a narração dos factos; c) não indica as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) os factos narrados não constituírem crime. 2 – (…). 3 - Só quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la “.
Como se escreveu ainda no citado no Ac. da R.L. de 07/12/2010, “A acusação pode vir a improceder, mas esse será um juízo que o tribunal fará na fase própria, o julgamento, devendo o Mmo Juiz, neste momento, limitar-se a marcar data para o efeito, pois face ao texto da acusação não é possível afirmar que os factos nela descritos não constituem crime “.
Também para o Ac. da R.E. de 23/06/2020([11]), “1 - O conceito de acusação «manifestamente infundada», assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate. 2 - Todavia, a alínea d) do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime. 3 - No caso de se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, esta não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a rejeição liminar, nos termos do art. 311º, nº2, al. a) e nº3, al. d) , do CPP, devendo os autos prosseguir para julgamento, onde a questão, segundo as várias perspetivas que se perfilem e sob a égide do contraditório, será discutida e debatida “.
Da leitura do despacho recorrido resulta que, efetivamente, a Sra. Juiz a quo antecipou a decisão da causa para o despacho de saneamento do processo a que alude o art. 311º do CPP, aderindo a entendimentos doutrinais e jurisprudenciais nele citados, proferindo uma decisão de mérito sobre o objeto do processo, pese embora, não seja de maneira alguma inquestionável que os factos descritos na acusação particular não sejam suscetíveis de preencher o tipo legal do crime de injúria, pelo que, consequentemente, deverão os mesmos ser apreciados e avaliados em sede de julgamento no sentido da condenação ou absolvição, como bem observa a Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal ad quem.
Termos em que procede o recurso interposto.
*

III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pelo assistente, revogando o despacho recorrido, devendo a Sra. Juiz a quo, caso não encontre qualquer outro motivo que imponha a rejeição da acusação, dar seguimento aos termos do processo.

Sem tributação.

Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.


Porto, 11/01/2023
Lígia Trovão
Pedro M. Menezes
Donas Botto
____________
[1] Cfr. Comentário ao Código Penal Brasileiro, IV, págs. 90 e 91, apud, Leal-Henriques e Simas Santos no Código Penal Anotado, 3ª edição, 2º Volume, Parte Especial, Rei dos Livros, pág. 494.
[2] Cfr. “O Direito Penal Passo a Passo”, pág. 362.
[3] Cfr. ob. cit., págs. 469 e 470.
[4] Cfr. ob. cit., págs. 365 e 366.
[5] Cfr. proc. nº 984/15.4T9VFR.P1, relatado por Maria Manuela Paupério, acedido in www.dgsi.pt
[6] Cfr. proc. nº 263/15.7T9ALR.E1, relatado por Alberto Borges, acedido in www,dgsi.pt
[7] Cfr. proc. nº 324/88, relatado por Raúl Mateus, acedido in TC, Jurisprudência, Acs.
[8] Cfr. proc. nº 475/08.0TAAGH.L1-5, relatado por Vieira Lamim, acedido in www.dgsi.pt
[9] Cfr. proc. nº 734/07.TAPDL.L1-3, relatado por Telo Lucas, acedido in www.dgsi.pt
[10] Cfr. proc. nº 127/09.3SAGRD.C1, relatado por Mouraz Lopes, acedido in www.dgsi.pt
[11] Cfr. proc. nº