Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
294/18.5JAAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE HOMICIDIO QUALIFICADO
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RP20201007294/18.5JAAVR.P1
Data do Acordão: 10/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Comete um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2 alíneas a) e c) do Código Penal, por revelar uma especial censurabilidade do agente, quem contrarie as exigências emergentes dos laços de parentesco existentes em relação à vítima e mate, por estrangulamento, a sua própria mãe, com 94 anos de idade, que dependia dos seus cuidados, agindo nesses termos de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de, mediante tal conduta, causar a morte da ofendida, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
II - Um arguido que presta declarações em julgamento, mentindo ao negar a prática de um crime, não poderá beneficiar da fixação da pena respetiva no mínimo legal.
(sumário elaborado pelo relator).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 294/18.5JAAVR.P1
Data do acórdão: 7 de Outubro de 2020
Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Presidente da Secção: António Gama
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Criminal de Aveiro
Sumário:
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Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o arguido B…;
I - RELATÓRIO
1. Em 24 de Abril de 2020, foi proferido pelo Tribunal “a quo” um acórdão condenatório que terminou com a formulação do dispositivo que segue:
« Nos termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes que constituem este Tribunal Coletivo em:
A) Condenar o arguido B…, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2 alíneas a) e c) do Código Penal, na pena de 13 (treze) anos de prisão.
B) - Condenar o arguido nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC, bem como nos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513º, n.ºs 1, 2 e 3, e 514º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais).”

2. Inconformado com os termos da sua condenação, o arguido interpôs recurso do acórdão, terminando a motivação de recurso com a formulação das seguintes conclusões:
"O Acórdão é nulo por violação do artigo 374º n.º 2, o que acarreta a sua nulidade, atento o disposto no artigo 379º, tudo a coberto do artigo 410º n.º 2 a) e c) do Código de Processo Penal.
B. Atentos os factos dados como provados, que não se contestam, não podia o Tribunal a quo ter chegado à conclusão de que estamos perante um homicídio qualificado p.p. 132º CP;
C. No limite, poderíamos estar até perante uma situação prevista no artigo 134º do CP;
D. No entanto, entende o recorrente que deveria ter sido condenado pelo artigo 133º CP
E. O arguido, conforme resulta da perícia, é pessoa com forte dependência afectiva dos progenitores, com dificuldades interpessoais e afectivas; que negligenciou uma mulher grávida e filho (posteriormente), que cortou relações com familiares (irmão);
F. Era o arguido o cuidador da vítima, com residiu toda a vida, sendo que o estado de saúde desta, conjugado com a idade e recente historial médico (com diversas quedas e alguma demência), vinham a corroer a sua qualidade de vida e consequentemente do próprio arguido;
G. O arguido é contido na expressão das emoções, com traços de subordinação e sem iniciativa própria, com indicadores moderados de perturbação afetiva associada a ansiedade, depressão, défices na gestão do stress e ideação suicida;
H. Considerou o Acórdão recorrido que pelo simples facto de se tratar de uma asfixia e de a vítima ser progenitora do arguido, este deveria ser condenado por homicídio qualificado, alegando estarmos perante circunstâncias que revelam especial perversidade, para, parágrafos a seguir, afirmar peremptoriamente que se desconhece a concreta forma e porque meio o arguido asfixiou a vítima!
I. Entende o recorrente que, atento o supra exposto e uma vez que se encontra dentro da previsão legal - -133º CP Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos – deveria ter sido esta a norma aplicada, pois conjugando a livre apreciação da prova, com a prova produzida e as regras da experiência comum, deveria ter sido esta a correcta qualificação jurídica aplicada.
J. Devendo assim ser condenado numa pena de 1 a 5 anos de prisão por homicídio privilegiado.
K. Ainda que tal não mereça acolhimento, deverá a pena fixada ser reduzida ao seu mínimo legal, atenta a idade da vítima, as condições pessoais e sócio económicas do arguido e a ausência de antecedentes criminais;
Termos em que e nos demais de direito, deve a douta acórdão recorrida ser: declarado nula nos termos do artº 379 nº 1 al. b) do CPP por falta/insuficiência de exame crítico das provas, em violação do disposto no nº 2 do artigo 374º do CPP e com fundamento nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410º do código de processo penal, sendo por isso substituída por outra que condene o arguido pelo crime homicídio privilegiado.
Se assim não se entender, deve ainda a pena fixada, ser reduzida ao seu mínimo legal.”
3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo, imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. Apenas o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
"O arguido pretende impugnar é apenas a convicção adquirida pelo Tribunal a quo sobre os factos em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, olvidando a adequada interpretação da regra da livre apreciação da prova, prevista no art.º 127 do CPP.
Do texto da decisão recorrida não ressalta qualquer contradição insanável de fundamentação, posições antagónicas e inconciliáveis ou um erro de tal forma patente e ostensivo que não escapa à observação do homem médio, ainda que conjugado com as regras da experiência comum, não se encontrando por isso preenchida a alínea c) do nº2 do art.º 410 do CPP.
O Tribunal Coletivo cumpriu o art.º 374, nº2 do CPP, uma vez que indicou as provas em que se fundou para formar a sua convicção, expôs o processo lógico e racional da apreciação critica das provas que enunciou, apreciou todos os factos alegados, não tendo que fazer qualquer enunciação minuciosa dos factos provados com referência pormenorizada aos depoimentos de cada uma das testemunhas ouvidas relativamente a cada facto essencial.
Não há qualquer factualidade que indicie a prática daquele crime privilegiado, como nunca o arguido admitiu ter morto a mãe em circunstância alguma, insistindo sempre numa versão de causa natural para o seu falecimento, ainda que confrontado com as conclusões periciais inequívocas sobre a natureza das lesões causadas ao nível do pescoço da vitima por compressão externa e que lhe causou asfixia segundo a perita médica do INML e, conforme resulta do relatório de autópsia, as equimoses recentes ao nível da cavidade oral e região cervical, a exuberante compressão sanguínea detetada nesta zona corporal e os sinais de natureza asfíxica, refletem uma ação compressiva externa de tal forma acentuada que conduziu também à fratura de vértebras.
Afastada inequivocamente a hipótese de as lesões relacionadas com esta fratura terem sido causadas por qualquer manobra de reanimação, não existem dúvidas que não só foi o arguido que causou a morte violenta à mãe, como estava ciente que dado a idade e fragilidade física desta facilmente a mataria, como sucedeu.
A desproporção entre a conduta e suas consequências - a morte da progenitora - é desproporcional a evitar a saturação e desgaste do arguido pelos cuidados que há anos lhe prestava, já que poderia ter optado por pedir apoio institucional a instituições vocacionadas para o efeito, ainda que me regime domiciliário, como é o caso das diversas IPSS´s vocacionadas para o efeito e apoiadas pela Segurança Social ou cuja comparticipação nas eventuais despesas seria proporcionalmente aos parcos rendimentos da sua mãe.
Não se mostra indiciado qualquer nexo de causalidade entre a morte violenta da C… e uma sensível diminuição da culpa do arguido, uma vez que não resultaram apuradas causas de relevante social ou moral ou a existência dum estado emocional compreensível, embora violento e ilícito, no momento da prática do crime, que tivesse sido despoletado por um ato de desespero, compaixão, comiseração ou outro estado emocional intenso, relevante e compreensível do ponto de vista do homem médio.
Ao contrário do que refere o Recorrente, se as razões de prevenção especial não são particularmente exigentes, já porém as razões de prevenção geral são elevadas, conforme explanado devidamente no Acórdão e, no caso concreto, tem de se ter presente que se trata dum crime doloso mais grave da nossa ordem jurídica, a que acresce a falta de manifestação de arrependimento ou interiorização do desvalor da conduta que impedem, a nosso ver, a aplicação duma pena pelo mínimo legalmente previsto.
O Recorrente parte apenas de hipóteses e inferências não sustentadas na prova produzida e fixada para pugnar pela integração da conduta no crime de homicídio privilegiado, invocando a” compaixão de colocar um ponto final numa existência de dor e sofrimento”, que não resulta evidenciada em parte alguma, tal como inexiste qualquer elemento probatório que sustente minimamente a admissibilidade dum homicídio a pedida da vitima, pp. art.º 134 do CP.
O principio da livre apreciação da prova previsto no art.º 127 do CPP, impede, a nosso ver, que o Tribunal de Recurso fixe uma nova convicção, tendo apenas que avaliar se a que foi expressa pelo Tribunal recorrido tem razoável apoio na prova produzida em julgamento, conjugada com os demais elementos constantes dos autos e se reconduz a decisões objetivas e motivadas, suscetíveis de controlo dos critérios lógicos que explanam os pressupostos valorativos do julgador em conformidade com critérios de experiencia comum e do homem médio.
Não se verifica a existência de quaisquer das nulidades invocadas pelo Recorrente nos termos do art.º 410, nº2, alíneas a) e c) do CPP, o Acórdão encontra-se devidamente fundamentado ao abrigo do art.º 374, nº2 do mesmo diploma legal, pelo que não padece de qualquer nulidade por força do art.º 379, nº1, alínea b) do CPP, não existindo qualquer fundamento para a integração da conduta no crime de homicídio privilegiado ou a pedido da vitima e consequente redução da pena concreta para um ano de prisão.
Consequentemente, negando provimento ao Recurso interposto pelo arguido B… e confirmando integralmente o Acórdão proferido, farão Vs. Exs. a habitual Justiça.”
5. Nesta instância, o Ministério Público limitou-se a opor o visto nos autos, por ter sido requerida a audiência (artigo 416º, nº 2, do Código de Processo Penal).
6. Proferiu-se despacho de exame preliminar, foi marcada e realizada a audiência, respeitando as formalidades legais, nas quais o recorrente manteve, no essencial, a motivação do recurso e o Ministério Público e o assistente, de forma fundamentada, pugnaram pela improcedência do recurso.
Questões a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o "thema decidendum" que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de conhecimento de eventual questão de conhecimento oficioso - que resultam das conclusões formais do recorrente, constituindo, assim, o "thema decidendum":
a) erro notório na apreciação da prova;
b) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
c) erro em matéria de direito:
d) no entender do recorrente, os factos praticados pelo arguido apenas integram a prática de um crime de homicídio privilegiado (artigo 133º do Código Penal)
e) subsidiariamente, o recorrente considera existir um erro em matéria de direito, do qual resultou a fixação de uma pena concreta excessiva, devendo a mesma ser fixada no mínimo legal.
Para decidir as questões controvertidas, importará, primeiramente, concretizar o facto jurídico-processual relevante – a decisão da matéria de facto e a fundamentação jurídica do acórdão –.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A – Fundamentação do acórdão recorrido:
«II – FUNDAMENTOS
1. Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido, B…, é filho de C…, nascida em .. de março de 1924, a qual à data dos factos contava 94 anos de idade e ambos residiam na Rua …, n.º …, …, Aveiro.
2. À data dos factos (24/06/2018) o arguido tinha ao seu cuidado, a sua mãe, C…, que dele dependia, para a satisfação das suas necessidades básicas, sendo o arguido o responsável pela sua higiene pessoal, alimentação e subsistência, dada a fragilidade da mesma, a qual era uma pessoa de idade avançada.
3. Na madrugada do dia 24-06-2018, a hora não concretamente apurada, e no interior da residência de ambos, estando o arguido sozinho com a sua mãe, C…, o mesmo, asfixiou-a, por meio não concretamente apurado, mas tendo para o efeito, exercido pressão na região do pescoço da mesma, impedindo-a de respirar e exercido sobre esta área corporal, um movimento de extensão de tal forma violento que lhe causou lesões ao nível vertebral, com fratura do disco intervertebral, situado entre as vertebras C7 e T1 e que lhe provocaram graves lesões que foram causa suficiente e determinante da sua morte.
4. Em consequência da agressão perpetrada pelo arguido, sofreu C… as seguintes lesões, descritas no relatório de autópsia e que foram causa direta e necessária da sua morte:
Extensa infiltração sanguínea do tecido celular subcutâneo em topografia cervical antero-lateral bilateral; exuberante infiltração sanguínea dos músculos do pescoço (platisma, esternocleidomastóideu direito, dos músculos omohioideus, esternohioideu e esternotiroideu direitos e dos músculos para-vertebrais cervicais); infiltração sanguínea das bainhas carotídeas, mais exuberante à direita; infiltração sanguínea rodeando o osso hioide; edema das pregas ari-epiglóticas; exuberante infiltração sanguínea submucosa ao nível dos segmentos periféricos da epiglote; infiltração sanguínea retroesofágica; infiltração sanguínea peri-esofágica; fratura do disco intervertebral situado entre as vertebras C7 e T1 e da plataforma inferior do corpo de C7, com afastamento dos topos e hemorragia epidural a esse nível.
5. Após a prática dos factos descritos o arguido mudou o cadáver de C… de local, pretendendo com isso criar uma aparência de que a mesma havia falecido de morte natural, sentando-a numa cadeira de rodas e colocando-a perto da lareira na habitação de ambos. Só depois, cerca das 7.00 horas da manhã, o arguido telefonou para o INEM, informando que a vítima, sua mãe, havia caído no quarto e que em razão da queda tinha sofrido ferimentos e que a transportara para junto da lareira, onde esta adormecera e que só pelas 07h00 da manha seguinte, verificara que esta havia falecido.
6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de, mediante a conduta acima descrita, matar C…, bem sabendo que a mesma era sua progenitora, tinha 94 anos e dependia de si e dos seus cuidados. Sabia igualmente que, no pescoço se encontram órgãos vitais e veias de grande circulação sanguínea e que, ao exercer pressão nesse local e um movimento de extensão de tal forma violento que causou lesões ao nível vertebral, estava a levar a cabo condutas adequadas a causar a morte da mencionada C…, o que representou e quis.
7. O arguido atuou bem sabendo que as suas condutas eram ilícitas e criminalmente puníveis.
8. Nada consta do Certificado de Registo Criminal do arguido.
9. O arguido nasceu e cresceu na …, Aveiro, no seio de um agregado familiar constituído pelos progenitores e quatro descendentes (dois deles falecidos antes do segundo ano de vida) sendo B… o mais novo da fratria. O agregado familiar apresentava condição socioeconómica frágil sendo a subsistência assegurada pelo trabalho dos progenitores na agricultura e venda dos produtos produzidos em feiras locais. A comunidade vicinal considerava o casal como conflituoso e problemático.
10. Em idade própria, ingressou na Escola Primária … iniciando um percurso marcado por bom aproveitamento, tendo concluído o 1º ciclo do ensino básico. Tendo em conta as dificuldades económicas do agregado e os problemas de saúde da progenitora, o arguido abandonou a escola para ajudar o progenitor no cultivo da terra e na prestação de cuidados à mãe, mantendo residência junto dos progenitores até aos 19 anos idade, altura em que cumpriu o serviço militar obrigatório, nas localidades de Aveiro, Tomar e Entroncamento.
11. Após o cumprimento do serviço militar obrigatório, apesar da existência de uma oportunidade de trabalho em Mafra, a distância do agregado familiar e os vínculos emocionais aparentemente existentes com os familiares determinaram o seu regresso à casa dos pais e o apoio prestado ao pai nas tarefas agrícolas. Simultaneamente, realizava pequenos serviços pontuais para terceiros e inscreveu-se no Instituto de Emprego e Formação Profissional, tendo sido integrado, como guarda-noturno, no Instituto Português da Juventude e depois no Instituto da Segurança Social em …, como funcionário nos armazéns gerais até à sua aposentação, em 2013.
12. Com 29 anos de idade, iniciou uma relação afetiva com D…, então com 17 anos de idade, contraindo matrimónio cerca de mês e meio depois. O casal foi viver com a família de origem do arguido e separou-se poucos meses depois. O mau relacionamento com os sogros, levou D…, grávida de seis meses do filho do casal, a regressar à casa dos seus pais, oficializando-se o divórcio seis anos depois. Após a separação, o arguido permaneceu no agregado familiar de origem, distanciando-se, geográfica e emocionalmente, da cônjuge e do filho menor e apoiando os pais nas tarefas agrícolas enquanto mantinha a sua ocupação profissional. A forte dependência afetiva do arguido em relação aos progenitores e o ascendente destes interferiu nas suas relações interpessoais ao nível do grupo de pares, cônjuge, filho e restante comunidade, promovendo o isolamento social que se intensificou com a idade e após o falecimento do progenitor, em 1998.
Apesar do seu irmão residir na mesma localidade, a autonomização deste e abandono do agregado familiar de origem foi acompanhado de conflitos com os restantes familiares que resultaram num corte de relações até à presente data.
13. À data dos factos (24/06/2018), o arguido residia com a sua mãe, C…, de 94 anos de idade, na propriedade de família, constituída por uma habitação frágil e antiga, de tipologia 2, sem qualquer prestação ou renda associada. O arguido auferia uma reforma de €465.00 (quatrocentos e sessenta e cinco euros) mensais, aproximadamente. A progenitora auferia uma pensão de €200.00 (duzentos euros) mensais à qual acrescia uma pensão de sobrevivência de mais €200.00 (duzentos euros).
No seu tempo livre, sobretudo desde a aposentação, o arguido ocupava-se de forma recreativa das tarefas agrícolas que exerceu desde a sua infância. O meio de residência é uma zona rural, sendo o arguido identificado como cuidador da progenitora e descrito como sereno, tranquilo e pouco comunicativo, embora educado, por oposição aos ascendentes que mantinham um relacionamento conflituoso com alguns elementos da comunidade.
14. O arguido ingressou no Estabelecimento Prisional E… em 14 de dezembro de 2018 e o seu comportamento institucional é adequado e sem registo de incumprimentos ou indisciplina. Não se encontra motivado para integrar atividades neste EP, apresentando-se inativo até à data.
Recebe visitas do filho de quem se aproximou há cerca de um ano e meio e de alguns amigos, com regularidade semanal, elementos que manifestam disponibilidade para o apoiar durante a após a reclusão.
15. Avaliada a personalidade do arguido, interpretaram-se/integraram-se resultados e concluiu-se da seguinte forma:
- No seu mundo interno pouco desenvolvido e de tonalidade negativa predomina a expectativa fatalista sobre a realidade, o receio subjetivo da rejeição ou perda e a antecipação de desconforto ou sofrimento. Neste sentido os dados disponíveis documentam indicadores moderados de perturbação afetiva associada a ansiedade, depressão, défices na gestão do stress e ideação suicida. Sentimentos de desadequação ou timidez podem causar mal-estar, com o qual não sabe lidar ou resolver, optando por refugiar-se no seio daqueles que lhe querem bem (pais) e a quem se sente incondicionalmente ligado. O medo do estranho e a falta de confiança no desconhecido fazem-no retornar constantemente à família numa simbiose estreita com as figuras parentais e com as doutrinas familiares.
- No seu percurso de vida não assinalamos motivações ou iniciativas de caráter pessoal, atuando sempre de acordo com os interesses dos outros e retirando dessa subordinação/dependência a satisfação de “dever cumprido”. A capacidade de planificação e decisão autónoma é escassa, dependendo da orientação e validação externa idónea, dos que lhe são próximos, para responder às solicitações. Em retrospetiva, esta dependência condicionou a capacidade para se aproximar dos seus pares e estabelecer relações de pertença fora do núcleo familiar, incapaz de cumprir as etapas típicas do crescimento e autonomia social.
- Do ponto de vista da afetividade mostra um colorido pobre e é contido na expressão das emoções, recuando quando as situações apresentam uma carga emocional significativa. Parecem predominar sentimentos de subordinação e inferioridade capazes de limitar a sua atuação social, não obstante, expresse sentimentos positivos pelos outros e colha opinião favorável.
- Na avaliação do desempenho intelectual apresenta resultados dentro da média para o seu grupo etário.
- Mostra competências suficientes para lidar com a realidade e posicionar-se de acordo com o normativo legal e os valores sociais.
- Manifesta vulnerabilidades na componente afetiva (auto perceção negativa e abordagem fatalista do mundo) que podem condicionar a autorregulação das emoções e dificultar a gestão do stress, a tomada de decisões e a autonomia.
- Perante situações de maior exigência e complexidade emocional predominam mecanismos rudimentares de subordinação característicos nas estruturas de personalidade submissas e dependentes.
Factos não provados:
Nenhuns.
Convicção do tribunal quanto aos factos provados.
Os factos descritos em 1. e 2., resultaram provados, desde logo, com base nas declarações prestadas em audiência pelo arguido, que os confessou.
A idade da vítima e a relação de parentesco da mesma com o arguido resultam, também, provadas com base no teor dos assentos de nascimento de fls.347/348 e 349/350.
Ainda sobre a forma como ambos residiam, as condições de saúde da vítima e o facto de depender do arguido para satisfação das suas necessidades básicas sendo ele o seu único cuidador, depuseram de forma a merecer o convencimento do Tribunal o assistente F… (irmão do arguido e filho da vítima) e as testemunhas G… (filho do arguido), H… (sogra do arguido) e I… (vizinho de ambos e proprietário de minimercado que o arguido frequentava).
Com efeito, o assistente, embora referindo não ir à residência onde habitavam o irmão e a mãe, há mais de 20 anos, por estarem de relações cortadas desde que faleceu o pai em 1998, afirmou que viviam ambos na casa de família.
A testemunha G…, descrevendo, igualmente, uma relação quase inexistente, quer com o pai, quer com os avós paternos durante toda a sua vida, disse que o pai era totalmente dedicado à avó e que os vizinhos diziam que o pai era pessoa muito cuidadosa com ela.
Também a testemunha H…, após descrever a forma como o neto sempre foi rejeitado, quer pelo pai, quer pelos avós paternos, afirmou que o arguido “dedicou toda a sua vida à mãe e não dava um passo sem a autorização dela”. Mais afirmou que era o arguido quem cuidava da mãe, nesta fase em que a mesma tinha idade muito avançada.
Finalmente, a testemunha I…, disse que o arguido era cliente do seu minimercado e sabia que era ele quem cuidava da mãe de avançada idade e que recorda que ele tinha o cuidado de comprar produtos de qualidade dizendo que eram para a mãe e que chegou a mandar vir produtos que não tinha na loja a pedido dele. Para além disso, notava que ele estava sempre apressado dizendo que tinha de regressar a casa porque a mãe estava sozinha.
A agressão de que a C… foi vítima, as lesões que da mesma resultaram e nexo causal entre as mesmas e a sua morte e ainda, as circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram, quer as lesões, quer a morte, descritas nos pontos 3. e 4., resultam provadas essencialmente com base na prova pericial consubstanciada no relatório de autópsia de fls.233/243 sendo essenciais, não obstante a clareza do mesmo relatório, os esclarecimentos prestados em audiência pela Perita Médica que realizou a mesma autópsia, a Senhora Doutora J….
Com efeito, conjugando o relatório e esclarecimentos em causa, não existe qualquer dúvida sobre o tipo de agressão que a vítima sofreu, subsequentes lesões e morte.
Que tais factos ocorreram na madrugada do dia 24-06-2018 e no interior da residência de ambos, encontrando-se o arguido sozinho com a mãe, também não há quaisquer dúvidas, desde logo porque o próprio arguido, na versão que deu dos factos (a que nos referiremos infra, a propósito da prova da autoria) disse que naquela madrugada apenas estavam em casa ele e a mãe, afirmando que ele próprio fechara as portas de casa e que ninguém ali entrou antes de ser chamado o INEM, tendo sido ele quem esperou a chegada dos bombeiros na rua e lhes abriu as portas de casa. Por outro lado, disse que foi nessa madrugada e no interior da residência que a mãe faleceu, muito embora avance uma explicação para a causa da morte que não coincide com aquela que resulta da prova pericial.
A conduta descrita no ponto 5., isto é, que o arguido sentou a mãe numa cadeira de rodas, colocou-a perto da lareira na habitação de ambos e que, cerca das 7.00 horas da manhã, telefonou para o INEM, informando que a vítima, sua mãe, havia caído no quarto e que em razão da queda tinha sofrido ferimentos e que a transportara para junto da lareira, onde esta adormecera e que só pelas 07h00 da manha seguinte, verificara que esta havia falecido, é descrita, também, pelo próprio arguido.
De todo o modo, tal resulta provado em virtude da conjugação das demais provas produzidas, concretamente, do teor de:
- Relatório de inspeção judiciária de fls.78/86; - Auto de notícia de fls.98;
- Relatório de inspeção judiciária e fotografias de fls.107/116;
- Relatório de inspeção judiciária complementar e fotografias de fls.124/129;
- Documentos de fls.156/166 (ficha de acionamento do CODU; verbete de socorro e transporte em ambulância pelos bombeiros; ficha de observação médica da viatura médica de emergência e reanimação e gravação das chamadas em CD ROM).
Ainda sobre esta factualidade, o Tribunal teve em consideração os depoimentos das testemunhas que estiveram no local após os factos e verificaram as características da residência e forma e local onde a vítima foi encontrada, concretamente, as testemunhas K… (médica que foi ao local na viatura do INEM e que disse que ali chegou depois dos bombeiros), L… (bombeiro que esteve no local e descreveu as manobras de suporte de vida que levaram a cabo, bem como a forma como se encontrava a vítima).
Que foi o arguido quem levou a cabo a agressão de que resultaram as lesões e morte da sua mãe nas circunstâncias mencionadas nos factos provados, também não subsistem dúvidas, pese embora o mesmo tenha negado tal facto.
O arguido apresenta uma versão dos factos (que apresentou também no âmbito de diligência de inspeção ao local onde estiveram presentes a perita médica já referenciada e o Inspetor da PJ M… – documentada a fls.124/129) da qual decorre que a mãe faleceu em virtude de queda acidental que sofreu no interior da residência na madrugada em causa, mas tal versão não pode ter acolhimento, tendo em conta o teor do relatório de autópsia e esclarecimentos prestados pela perita que a levou a cabo e que também esteve no local com o arguido quando ele descreveu a forma como a mãe terá caído.
O arguido disse que, de madrugada, ouviu um barulho vindo do quarto da mãe e que se dirigiu para lá e acendeu a luz, tendo deparado com a mãe caída entre a cama e o guarda-vestidos, batendo com uma perna neste móvel. Abriu as pernas sobre o corpo dela, agarrou-a pelos sovacos e sentou-a na cama, tendo-lhe colocado uma gaze na ferida que tinha na perna. De seguida, sentou-a na cadeira de rodas e levou-a para junto de uma lareira porque ela disse a palavra “lume”. Acendeu a lareira e ficou ali sentado ao pé dela cerca de uma hora. Nessa altura, ela mexia-se. Quando se apercebeu de que a mãe não se mexia, telefonou para uma vizinha que é enfermeira e ela disse-lhe para ligar para o 112, o que fez, solicitando uma ambulância.
Ora, a perita médica, confrontada que foi com esta versão dos factos, tanto em audiência, como durante a diligência documentada a fls.124/129, afirmou categoricamente que o tipo de lesões que o cadáver apresentava ao nível do pescoço nunca poderiam ter sido causadas por aquela queda. Usou até a expressão “o cadáver fala por si próprio”. Esclareceu que (conforme fez constar do relatório de autópsia), as equimoses de características recentes ao nível da cavidade oral e região cervical indicavam terem resultado de uma ação de compressão externa sobre o pescoço da vítima. Por outro lado, a exuberante infiltração sanguínea encontrada ao nível da região cervical e os sinais de natureza asfíxica, reforçam a conclusão de que existiu a aplicação de uma força mecânica externa e que tal ação foi de tal forma violenta que conduziu à fratura de vértebras.
Conclui, pois, que aquelas lesões não poderiam nunca ter sido causadas pela queda descrita pelo arguido.
Também a mesma perita médica esclareceu, e verteu tal esclarecimento no relatório a que nos temos vindo a referir, que as lesões em causa e que determinaram a morte da vítima, não poderiam ter sido causadas pelas manobras de suporte básico de vida levadas a cabo pelos Bombeiros que estiveram no local e que as descreveram. Na verdade, aquando da ida ao local na companhia do arguido, estiveram presentes os bombeiros que realizaram aquelas manobras e tratou-se de manobras de suporte de vida e não manobras avançadas de suporte de vida e que as mesmas não poderiam ter causado as mencionadas lesões.
Aliás, tal resulta confirmado, também, pelas testemunhas L… (bombeiro) e K… (médica do INEM).
O primeiro disse em audiência de julgamento que quando chegaram ao local depararam-se com uma senhora idosa sentada numa cadeira de rodas numa cozinha e que não apresentava sinais vitais. Seguiram, então, o protocolo estabelecido para este tipo de situações, tendo efetuado manobras de reanimação depois de deitarem a senhora no chão. Disse, ainda, que na altura, o filho estava presente e disse que ainda há pouco tinha falado com a mãe o que a testemunha estranhou porque os livores cadavéricos que observou no corpo sugeriam que a morte já teria ocorrido há algum tempo.
A segunda disse que quando chegou ao local estavam, para além do filho da vítima e de uma vizinha, dois bombeiros que tinham colocado a senhora em decúbito dorsal e estavam a fazer manobras de reanimação. A vítima estava sem sinais vitais e ordenou que suspendessem a manobras, declarando o óbito. Questionada especificamente sobre se verificou a existência de lesões, disse que viu lesões ao nível do tórax que teriam resultado das manobras de reanimação e que, este tipo de manobras, nada têm a ver com a zona da cervical. De qualquer forma, a morte já teria ocorrido há algum tempo atentos os sinais de rigidez cadavérica.
De notar que, quer os esclarecimentos prestados pela Senhora Perita Médica, quer os depoimentos destas testemunhas nos surgiram, até pelas respetivas razões de ciência, absolutamente credíveis.
Conjugando todos estes elementos de prova e tendo como certo, por um lado, que naquela madrugada não estava mais ninguém na residência para além do arguido e da vítima e, por outro lado, que não poderia ter sido a vítima a causar a si mesma estas lesões (facto referido de forma categórica pela perita médica), forçoso é concluir que foi o arguido o autor da agressão que conduziu à morte da vítima.
Refira-se, por último, que o Tribunal teve em consideração o depoimento prestado pela testemunha M… (inspetor-chefe da PJ) na medida em que descreveu a forma como a investigação se desenvolveu, depoimento onde sobressai a sua vasta experiência profissional, ajudando a perceber como, a partir das dúvidas surgidas na autópsia, foram reunidos os restantes elementos de prova, sendo que, esteve presente na diligência documentada a fls.124/129.
Relativamente às consciência, vontade e intenção com que o arguido atuou (descritas no ponto 6.) também não tem o Tribunal quaisquer dúvidas.
Na verdade, os factos de natureza objetiva que resultaram provados, permitem concluir, com recurso a presunções naturais que têm a ver com aquilo que é normal acontecer em determinadas circunstâncias, pela prova daqueles outros de natureza psicológica.
Com efeito, provou-se que o arguido asfixiou a sua mãe, C…, por meio não concretamente apurado, mas tendo para o efeito, exercido pressão na região do pescoço da mesma, impedindo-a de respirar e exercido sobre esta área corporal, um movimento de extensão de tal forma violento que lhe causou lesões ao nível vertebral, com fratura do disco intervertebral, situado entre as vertebras C7 e T1 e que lhe provocaram graves lesões que foram causa suficiente e determinante da sua morte.
Ora, o arguido, como qualquer cidadão de mediano entendimento (como ele também é, atentos os resultados da perícia à sua personalidade) não podia ignorar, como não ignorava, que no pescoço se encontram órgãos vitais e veias de grande circulação sanguínea e que, aquela atuação sobre pessoa idosa e frágil como ele sabia ser a sua mãe, lhe causaria a morte. Assim, forçoso é concluir que o arguido atuou como atuou com a intenção de matar a sua mãe, como efetivamente veio a acontecer.
Atento o tipo de ilícito em causa e não tendo o arguido qualquer limitação intelectual, é forçoso, também, concluir que o mesmo era sabedor de que a sua conduta é ilícita e criminalmente punível.
Que o arguido não tem antecedentes criminais, atesta-o o certificado de fls.564
Os factos descritos nos pontos 9. a 14., constam do relatório elaborado pela DGRSP sobre as condições pessoais do arguido e seu percurso de vida e constante de fls.567/571, factos esses, confirmados, na sua generalidade, pelo arguido em audiência.
Ainda sobre estes factos, mormente, sobre a relação que o arguido foi tendo, ao longo da sua vida, com os pais, o Tribunal teve em consideração as declarações prestadas pelo assistente e os depoimentos prestados pelas testemunhas G… e H….
Os factos descritos em 15., conforme ali referido, resultam da perícia sobre a personalidade do arguido (e não perícia psiquiátrica, como o arguido requereu em sede de contestação) e constam do respetivo relatório a fls.589/603.
Subsunção jurídico-penal.
Face à materialidade dada como provada importa, agora, averiguar se daí decorre qualquer censura jurídico-penal para o arguido. Vejamos.
O arguido está pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas a), c) e i) do Código Penal.
O crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas a), c) e i) do Código Penal.
Dispõe o artigo 131º do Código Penal, sob a epígrafe “Homicídio” que "Quem matar outra pessoa é punido com pena de pisão de 8 a 16 anos".
O preceito em causa pune “quem matar outra pessoa”. O homicídio é a morte de um ser humano, causada por outro ser humano. Neste crime, o mais grave de todos, o bem jurídico protegido é a vida humana, enquanto supremo valor de entre aqueles que justificam a tutela do direito, assim arvorado desde sempre e em quase todas as civilizações. Tal proteção não é feita apenas enquanto bem do indivíduo, mas ainda como bem da coletividade e do Estado. Numa ordem lógica, o primeiro dos bens é exatamente o da vida, tendo o homicídio a primazia entre os crimes mais graves. Conforme dispõe o artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e é também consagrado no artigo 24º da nossa Constituição, “a vida humana é inviolável”.
Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa singular e sujeito passivo é o homem, enquanto vivo (pessoa humana já completamente nascida e com vida). Pela conduta entende-se a ação ou a omissão pela qual o agente provoca a morte de alguém. Matar é suprimir a vida humana, quer através de uma ação – utilização de um meio idóneo para produzir diretamente a morte – quer se consubstancie numa omissão – falta de atuação capaz de evitar o efeito letal. A conduta tem de ser dirigida ao resultado ou evento (a morte de alguém), pelo que se exige a existência de dolo, em qualquer das suas modalidades (direto, necessário ou eventual). Quanto ao nexo de causalidade, exige-se que entre a conduta do agente e o resultado da mesma exista um elo de ligação que permita afirmar que a morte resultou diretamente da ação do agente.
No caso vertente estão preenchidos os elementos típicos deste crime, porquanto se provou que, na madrugada do dia 24-06-2018, a hora não concretamente apurada, e no interior da residência de ambos, estando o arguido sozinho com a sua mãe, C…, o mesmo, asfixiou-a, por meio não concretamente apurado, mas tendo para o efeito, exercido pressão na região do pescoço da mesma, impedindo-a de respirar e exercido sobre esta área corporal, um movimento de extensão de tal forma violento que lhe causou lesões ao nível vertebral, com fratura do disco intervertebral, situado entre as vertebras C7 e T1 e que lhe provocaram graves lesões que foram causa suficiente e determinante da sua morte.
Mais se provou que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de, mediante a conduta acima descrita, matar C….
Está, assim, preenchida a totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de homicídio.
Mas, tendo presente a imputação ao arguido do crime de homicídio qualificado em virtude do preenchimento das alíneas a), c) e i) do artigo 132º há que averiguar se ocorre a dita agravação.
No artigo 132º do Código Penal surge uma forma agravada do homicídio simples. Aí se prescreve:
“Artigo 132.º Homicídio qualificado
1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adotado ou adotante, da vítima;
b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;
c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
d) Empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima;
g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas;
m) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.”
O sinal distintivo da qualificação do homicídio é a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente. O termo “especial” significa que a conduta deve revelar algo que transcenda a censurabilidade inerente a um crime de homicídio, para além da já invulgar perversidade que revela aquele que matou um ser humano.
Nas palavras de Teresa Serra, revelam especial censurabilidade as circunstâncias que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. A especial censurabilidade refere-se, assim, às componentes da culpa relativas ao facto, isto é, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
Como se refere no Comentário Conimbricense do Código Penal, a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. A especial perversidade supõe, assim, uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, que revelam um egoísmo abominável. O acento tónico ou componente da culpa refere-se aqui ao agente.
As circunstâncias enumeradas no n.º 2 do artigo 132º, suscetíveis de revelar esse “algo de especial”, são meros indícios, indicadores ou referenciais que poderão ser afastados ante condutas que, embora identificando-se com as mesmas, não revelam, contudo, a exigida especial perversidade ou censurabilidade. Tal poderá suceder por ocorrerem circunstâncias extraordinárias que destaquem claramente a sua ilicitude ou culpa do exemplo padrão (a que não se reconduzem circunstâncias como o bom comportamento anterior, a confissão, o arrependimento o ressarcimento do dano, etc., que são circunstâncias atenuantes gerais).
Do mesmo modo, outras circunstâncias não previstas, mas substancialmente análogas, refletidas no facto ou na personalidade do agente, poderão assumir tal relevância aos olhos do julgador, por revelarem uma especial censurabilidade ou perversidade.
Significa isto que as circunstâncias qualificativas não constituem elementos do tipo legal do crime, mas sim da culpa. Subjacente à especial censurabilidade e perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta e que motiva a agravação da culpa, a qual tem, assim, a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui em relação à desconformidade, já de si grande, subjacente à prática de um homicídio simples. Todavia, não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade; é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude ou aspetos da personalidade mais desvaliosos se concretizem em qualquer dos exemplos padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga.
A agravação resultante do disposto nas alíneas a) e c) do nº2 do artigo 132º.
Estas alíneas contêm dois exemplos-padrão que, no que ao caso dos autos concerne, são relativos às circunstâncias de “o agente ser descendente (…), da vítima” e “o agente praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade (…) doença (…)”.
Ora, tais circunstâncias verificam-se no caso dos autos.
Com efeito, resultou provado que o arguido praticou os factos em causa contra a sua mãe; que esta, à data dos factos contava 94 anos de idade; que ambos residiam na Rua …, n.º …, …, Aveiro; que à data dos factos, o arguido tinha ao seu cuidado a sua mãe, que dele dependia, para a satisfação das suas necessidades básicas, sendo o arguido o responsável pela sua higiene pessoal, alimentação e subsistência, dada a fragilidade da mesma, a qual era uma pessoa de idade avançada.
Não obstante, a qualificação do homicídio, não opera automaticamente, como referimos supra, sendo necessário que a prática do homicídio revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não “automaticamente” verificada) por ter vencido “as contra-motivações éticas” relacionadas com, por um lado, os laços de parentesco existentes e, por outro, a fragilidade e vulnerabilidade da vítima.
No caso dos autos, a forma como o arguido praticou os factos, de madrugada, no interior da residência de ambos, desconhecendo-se a exata forma como os praticou, nomeadamente o que precedeu a sua conduta, o que a motivou, procurando, depois, dar a aparência de que a morte da mãe teria ocorrido por causas naturais, é reveladora dessa especial censurabilidade.
Refira-se, também, que resultou provado que o arguido atuou como atuou, bem sabendo que a vítima era sua progenitora, tinha 94 anos e dependia de si e dos seus cuidados, dada a sua avançada idade e fragilidade.
Mostram-se, pois, preenchidas as qualificativas em causa.
O mesmo não ocorre no que concerne à qualificativa prevista na alínea i) do nº2 do artigo 132º do Código Penal.
A propósito desta matéria, permitimo-nos transcrever excertos do recente acórdão do STJ datado de 26-06-2019, acompanhando-o, bem como a diversas citações de outros arestos que o mesmo contém4.
Esta circunstância qualificativa é suscetível de aportar acrescida censurabilidade ou perversidade à conduta do agente, em resultado do meio insidioso usado, entendido na doutrina constituir todo o meio cuja forma de atuação sobre a vítima, assumindo características análogas à do veneno, na perspetiva de possuir um carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto, que torne especialmente difícil a defesa da vítima.
O que significa que o meio insidioso compreende não tão-só o meio particularmente perigoso usado pelo agente, mas também as condições escolhidas pelo mesmo para utilizá-lo de jeito a que, colocando a vítima numa situação que a impeça de resistir em face da surpresa, da dissimulação, do engano, da traição, lhe permita tirar vantagem dessa situação de vulnerabilidade.
E, como se dá nota no acórdão do STJ de 25-10-2017 (Proc. n.º 3080/16.3JAPRT.S1 – 5.ª Secção), que se vem acompanhando, em sentido convergente tem-se pronunciado, também, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto considera que o conceito de meio insidioso, de difícil definição, tem subjacente a ideia de utilização de meio dissimulado, oculto, em relação ao qual se torna mais precária, ou ténue, uma reação de defesa por parte da vítima.
(…)
No acórdão deste Supremo Tribunal de 15-01-2019, proferido no processo n.º 4123/16.6JAPRT.G1.S1 – 3.ª Secção, sendo relator o Ex.mo Adjunto (Cons. Lopes da Mota) registam-se considerações sobre a delimitação do conceito de «meio insidioso» que importa convocar.
Aí se refere que na citada alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º «inclui-se a utilização de “meio insidioso”, categoria que compreende o uso do veneno ou instrumento “particularmente perigoso” (fora do caso da alínea h)), sublinhando-se que a possibilidade de qualificação da circunstância há-de derivar do facto “de os meios utilizados tornarem «especialmente difícil a defesa da vítima ou arrastarem consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos» (...), (…) o que serve também para compreender que «insidioso será todo o meio cuja forma de atuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno – do ponto de vista do seu carácter enganador, traiçoeiro, sub-reptício, dissimulado ou oculto, «elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida” (Ac. do STJ de 15-02-2002) […]
Voltando ao caso concreto.
Nos autos não se apurou a concreta forma como o arguido asfixiou a vítima.
Com efeito, resultou provado que a asfixiou “por meio não concretamente apurado, mas tendo para o efeito, exercido pressão na região do pescoço da mesma, impedindo-a de respirar e exercido sobre esta área corporal, um movimento de extensão de tal forma violento que lhe causou lesões ao nível vertebral, com fratura do disco intervertebral, situado entre as vertebras C7 e T1 e que lhe provocaram graves lesões que foram causa suficiente e determinante da sua morte”.
Desconhece-se se tal asfixia e pressão na zona cervical foram levadas a cabo com as mãos ou outro objeto; se com um objeto, qual; se a vítima se apercebeu do que estava a acontecer; se estava consciente; etc…
Ora, nestas circunstâncias não pode considerar-se preenchida a qualificativa em causa. Em conclusão, procede parcialmente a pronúncia, mostrando-se o arguido incurso na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2 alíneas a) e c) do Código Penal.
ESCOLHA E MEDIDA DA PENA.
Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.
Nos termos do disposto no artigo 132º nº2 do Código Penal, o crime por que o arguido vai condenado é punível com pena de prisão de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos.
Na determinação da medida concreta da pena há que recorrer aos critérios orientadores fornecidos pelo artigo 71º do Código Penal, ou seja, a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial, devendo ter-se em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.
A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do agente, o que significa que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide os limites mínimo e máximo para a pena que, em caso algum, podem ser ultrapassados.
Dentro destes limites e para fixar a medida concreta intervêm os demais fins da pena, designadamente a prevenção geral e a prevenção especial.
Com efeito, segundo o disposto no artigo 40º, n.º 1, Código Penal, a aplicação de uma pena visa “a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Proteção de bens jurídicos essa que se consubstancia na denominada prevenção geral, enquanto que a reintegração do agente na sociedade se reporta à denominada prevenção especial.
A prevenção geral, dita de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido, e assume a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, no mínimo, fornecidos pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
Por sua vez, a prevenção especial está ligada à neutralização do agente e à necessidade de reinserção social do delinquente, da sua conformação com o quadro de valores vigentes na sociedade, especialmente aqueles que tutelam o bem jurídico atingido e que aquela norma visava proteger, cabendo-lhe encontrar o quantum exato da pena, dentro dessa função, que melhor sirva às exigências da socialização.
Assim sendo, e dentro das duas balizas fixadas pela culpa, a medida da pena deve considerar o quantum indispensável para manter a crença da comunidade na validade e eficácia da norma e, por essa via, a confiança nas instituições, bem como as exigências de prevenção especial que ao caso se fazem sentir, nunca podendo, porém, a pena ultrapassar em caso algum a medida da culpa (n.º 2 do artigo 40º).
Voltando ao caso dos autos.
Ao nível da culpa há que ter em consideração que o arguido atuou com dolo direto, forma mais grave de culpa – Artigo 14º nº1 do Código Penal.
Não obstante, desconhecendo-se as exatas circunstâncias que rodearam a prática dos factos, nada de relevante se pode considerar em termos de intensidade dolosa.
A motivação para a sua conduta também é desconhecida, não assumindo, pois, esta circunstância qualquer valor agravante ou atenuante devendo o Tribunal quedar-se por aquilo que constitui o desvalor de uma ação deste tipo, já refletida na moldura penal aplicável. Aliás, a conduta do arguido surge no contexto da factualidade apurada, no que concerne à sua relação com a vítima, como algo surpreendente e absolutamente inesperado. Com efeito, provou-se que, sendo o meio da residência de ambos um meio rural, ali o arguido era identificado como como cuidador da progenitora e descrito como sereno, tranquilo e pouco comunicativo, embora educado, por oposição aos ascendentes que mantinham um relacionamento conflituoso com alguns elementos da comunidade.
Relativamente à sua atitude em relação aos factos e postura em audiência de julgamento, trata-se de circunstâncias que não podem ser consideradas em abono do arguido.
Com efeito, o arguido, logo a seguir aos factos tentou ocultar a sua prática montando um cenário tendente a fazer crer que a mãe teria falecido de causa natural. Manteve, a seguir, e em julgamento, a postura de negação dos factos persistindo em descrever os acontecimentos de uma forma que a prova (mormente a pericial) contraria frontalmente.
Portanto, o arguido não tendo assumido a autoria do crime, não demonstrou qualquer autocensura nem consequente arrependimento.
De todo o modo, a tal não serão alheias as características da personalidade do arguido, mais concretamente as que têm a ver com a necessidade de “orientação e validação externa idónea, dos que lhe são próximos, para responder às solicitações” e “receio subjetivo da rejeição ou perda e a antecipação de desconforto ou sofrimento”. É de admitir, pois, que o arguido não tenha tido, nem no momento dos factos nem em julgamento, a força de caráter necessária, dadas as características da sua personalidade, para assumir a prática dos factos e a consequente censura, quer da comunidade, quer dos que lhe são mais próximos.
Ademais, resultou provado que “os dados disponíveis documentam indicadores moderados de perturbação afetiva associada a ansiedade, depressão, défices na gestão do stress e ideação suicida. Sentimentos de desadequação ou timidez podem causar mal-estar, com o qual não sabe lidar ou resolver, optando por refugiar-se no seio daqueles que lhe querem bem (pais) e a quem se sente incondicionalmente ligado. O medo do estranho e a falta de confiança no desconhecido fazem-no retornar constantemente à família numa simbiose estreita com as figuras parentais e com as doutrinas familiares. Do ponto de vista da afetividade mostra um colorido pobre e é contido na expressão das emoções, recuando quando as situações apresentam uma carga emocional significativa. Parecem predominar sentimentos de subordinação e inferioridade capazes de limitar a sua atuação social, não obstante, expresse sentimentos positivos pelos outros e colha opinião favorável”.
Atenta a absoluta primazia do bem jurídico atingido (vida), a comunidade manifesta para com os crimes de homicídio uma compreensível apreensão e um justificado sentimento de rejeição, o que revela fortes exigências de prevenção geral positiva.
No caso concreto, o crime praticado pelo arguido, atentos os seus contornos e gravidade, é objeto de forte rejeição por parte da comunidade, mas surge, sobretudo, no meio social do arguido, como um ato inexplicável face à imagem que o arguido ali tinha de cuidador da vítima, atento e dedicado.
Em matéria de prevenção especial não se manifestam particulares exigências, uma vez que o arguido tinha 64 anos de idade à data dos factos e não tem passado criminal. Por outro lado, o seu percurso de vida (pontos 9. a 13. dos factos provados), foi marcado de forma indelével por uma relação de intensa vinculação e dependência em relação aos pais, de tal forma que não logrou construir uma verdadeira identidade, independência, capacidade de tomar decisões e de interagir com grupos de pares e em última análise, constituir a sua própria família, afastando-se, por imposição dos pais, da esposa e do filho de ambos.
De salientar, também, que o seu comportamento em meio prisional é adequado e sem registo de incumprimentos ou indisciplina e recebe visitas do filho de quem se aproximou há cerca de um ano e meio e de alguns amigos, com regularidade semanal, elementos que manifestam disponibilidade para o apoiar durante a após a reclusão.
Tudo isto ponderado, entende-se que a pena a aplicar se deverá situar pouco acima do limiar mínimo da moldura penal abstrata.
Assim, o tribunal entende como adequada a pena de 13 anos de prisão.
B – De jure:
De acordo com as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (artigo 608º, nº 1 do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal), importa apreciar, primeiramente, as nulidades invocadas pelo arguido.
A – Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
O arguido recorrente estribou a motivação de recurso numa arguição de nulidade típica de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Porém, fundamentou-a afirmando que a “insuficiente justificação constitui falta de análise crítica da prova que gera nulidade do acórdão, nos termos do artigo 379º n º1 alínea a) do CPP”.
O Ministério Público respondeu, sustentando que a decisão da matéria de facto se encontra fundamentada nos meios concretos de prova produzidos em julgamento.
Cumpre apreciar e decidir.
”É consabido que entre os requisitos obrigatórios da sentença penal, elencados no art. 374º, do Código de Processo Penal, consta o da fundamentação (antecedida pelo relatório e seguida do dispositivo), a qual, nos termos do n.º 2 desse normativo, deve implicar a “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
Estas exigências, decorrentes do princípio geral de fundamentação das decisões judiciais com assento constitucional e legal - respetivamente, nos arts. 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa e 97º, números 1 e 5, do Código de Processo Penal, constituem um fator de legitimação do poder judicial. O seu cumprimento permite, ainda, reconhecer na fundamentação das decisões uma função endoprocessual (permitindo o seu controlo pelos demais sujeitos processuais e pelos tribunais superiores) e extraprocessual (visando convencer, igualmente, quanto ao acerto da decisão, a própria comunidade em que o tribunal se insere).
Somente uma fundamentação clara permite assegurar a garantia de observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, postergando a mera arbitrariedade em benefício do legítimo e fundado exercício da livre convicção dos julgadores nas decisões respeitantes à matéria de facto – sempre decisiva para a solução dos casos concretos -.
Da sua importância decorre que a inobservância do dever de fundamentação, em qualquer das vertentes legalmente plasmadas, seja fulminada com nulidade de conhecimento oficioso, por força do estatuído no art. 379º, números 1, a) e 2, do Código de Processo Penal, o último na redação introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25/8[3] - que veio esclarecer definitivamente as dúvidas que até então se suscitavam, afastando-se do regime previsto no Código de Processo Civil onde continua a vigorar o princípio da livre disponibilidade das partes no que concerne à arguição dos vícios da sentença –[4].
Assim sendo, a falta de exame crítico das provas não integra a nulidade apontada pelo recorrente (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada), mas uma nulidade distinta, como a seguir se descreverá.
De jure
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada prevista na alínea a) do artigo 410°, n° 2, do Código de Processo Penal é aquela que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação, pela defesa ou resultado da discussão. Se tal sucedeu, então o tribunal de julgamento terá deixado de considerar um facto essencial postulado pelo objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o “thema probandum”. Este - o “thema probandum” - é consubstanciado pela acusação ou pronúncia, complementada pela pertinente defesa, sendo referente ao apuramento da factualidade referente à existência e extensão da responsabilidade penal em causa nos autos, bem como à indemnização : à luz do disposto no artigo 124°, n° 1, do Código de Processo Penal: "Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis."
Analisada a motivação do recurso, conclui-se que o arguido não indicou qualquer facto concreto, integrante do objeto do processo, relativamente ao qual o tribunal não se tenha pronunciado, sendo assim manifestamente improcedente a arguição da nulidade tipificada na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Da alegada falta de exame crítico da prova:
Resta, então, aferir o mérito da sua crítica ao acórdão recorrido, no segmento em que imputa à decisão uma falta de exame crítico da prova - tanto mais que se trata de uma questão de apreciação oficiosa -.
Não estabelecendo a lei um determinado modelo rígido de fundamentação, concretizando apenas as suas linhas estruturais, é óbvio que os termos da explicitação dos motivos de facto e de direito que necessariamente a integram devem ter em consideração a complexidade e as circunstâncias particulares de cada caso.
Numa atividade de reconstituição histórica, como é o caso do julgamento em matéria de facto, a certeza judicial não pode ser confundida com a certeza absoluta, constituindo, antes, uma certeza empírica e histórica. A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só, a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência dos arguidos. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno. A "livre convicção" e a "dúvida razoável" limitam e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova e da sua apreciação, em obediência ao critério estatuído no artigo 127º do Código de Processo Penal, exigindo, ainda, uma apreciação da prova motivada, crítica, objetiva, racional e razoável.
Na qualidade de princípio estruturante do direito processual europeu e, particularmente do direito processual penal português, o princípio da livre apreciação da prova assume, na dinâmica do processo de fundamentação da sentença penal, uma dupla função de ordenação e de limite .
Este princípio da livre convicção libertou o juiz das regras da prova legal mas não o desvinculou das regras da razão, na medida em que a discricionariedade na apreciação de cada uma das provas assenta num modelo racionalizado, guiado pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação, sempre vinculada ao princípio da descoberta da verdade material. É precisamente a fundamentação de facto que cumpre «a função de controlo daquela discricionariedade, obrigando o juiz a justificar as suas próprias escolhas», evitando assim qualquer possibilidade de arbítrio no domínio da valoração da prova decorrente de uma atuação dominada apenas pelas impressões.
Deste modo, o tribunal recorrido permitirá ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que lhe serviu de suporte.
Concretizando, por referência ao caso concreto.
O tribunal coletivo explicitou todo o processo de formação da sua convicção, também, relativamente à factualidade típica que integra o ilícito criminal pelo qual o arguido foi condenado, ponderando todos os meios concretos de prova relevantes - também as declarações do arguido, que mentiu (conclusão a que se chega pelas razões largamente explicitadas na fundamentação do acórdão, afastando a credibilidade das suas declarações) em julgamento, negando a prática do homicídio (que em sede de recurso já não põe em causa):
“(…) O arguido apresenta uma versão dos factos (que apresentou também no âmbito de diligência de inspeção ao local onde estiveram presentes a perita médica já referenciada e o Inspetor da PJ M… – documentada a fls.124/129) da qual decorre que a mãe faleceu em virtude de queda acidental que sofreu no interior da residência na madrugada em causa, mas tal versão não pode ter acolhimento, tendo em conta o teor do relatório de autópsia e esclarecimentos prestados pela perita que a levou a cabo e que também esteve no local com o arguido quando ele descreveu a forma como a mãe terá caído.
O arguido disse que, de madrugada, ouviu um barulho vindo do quarto da mãe e que se dirigiu para lá e acendeu a luz, tendo deparado com a mãe caída entre a cama e o guarda-vestidos, batendo com uma perna neste móvel. Abriu as pernas sobre o corpo dela, agarrou-a pelos sovacos e sentou-a na cama, tendo-lhe colocado uma gaze na ferida que tinha na perna. De seguida, sentou-a na cadeira de rodas e levou-a para junto de uma lareira porque ela disse a palavra “lume”. Acendeu a lareira e ficou ali sentado ao pé dela cerca de uma hora. Nessa altura, ela mexia-se. Quando se apercebeu de que a mãe não se mexia, telefonou para uma vizinha que é enfermeira e ela disse-lhe para ligar para o 112, o que fez, solicitando uma ambulância.
Ora, a perita médica, confrontada que foi com esta versão dos factos, tanto em audiência, como durante a diligência documentada a fls.124/129, afirmou categoricamente que o tipo de lesões que o cadáver apresentava ao nível do pescoço nunca poderiam ter sido causadas por aquela queda. Usou até a expressão “o cadáver fala por si próprio”. Esclareceu que (conforme fez constar do relatório de autópsia), as equimoses de características recentes ao nível da cavidade oral e região cervical indicavam terem resultado de uma ação de compressão externa sobre o pescoço da vítima. Por outro lado, a exuberante infiltração sanguínea encontrada ao nível da região cervical e os sinais de natureza asfíxica, reforçam a conclusão de que existiu a aplicação de uma força mecânica externa e que tal ação foi de tal forma violenta que conduziu à fratura de vértebras.
Conclui, pois, que aquelas lesões não poderiam nunca ter sido causadas pela queda descrita pelo arguido.
Também a mesma perita médica esclareceu, e verteu tal esclarecimento no relatório a que nos temos vindo a referir, que as lesões em causa e que determinaram a morte da vítima, não poderiam ter sido causadas pelas manobras de suporte básico de vida levadas a cabo pelos Bombeiros que estiveram no local e que as descreveram. Na verdade, aquando da ida ao local na companhia do arguido, estiveram presentes os bombeiros que realizaram aquelas manobras e tratou-se de manobras de suporte de vida e não manobras avançadas de suporte de vida e que as mesmas não poderiam ter causado as mencionadas lesões.
Aliás, tal resulta confirmado, também, pelas testemunhas L… (bombeiro) e K… (médica do INEM).
O primeiro disse em audiência de julgamento que quando chegaram ao local depararam-se com uma senhora idosa sentada numa cadeira de rodas numa cozinha e que não apresentava sinais vitais. Seguiram, então, o protocolo estabelecido para este tipo de situações, tendo efetuado manobras de reanimação depois de deitarem a senhora no chão. Disse, ainda, que na altura, o filho estava presente e disse que ainda há pouco tinha falado com a mãe o que a testemunha estranhou porque os livores cadavéricos que observou no corpo sugeriam que a morte já teria ocorrido há algum tempo.
A segunda disse que quando chegou ao local estavam, para além do filho da vítima e de uma vizinha, dois bombeiros que tinham colocado a senhora em decúbito dorsal e estavam a fazer manobras de reanimação. A vítima estava sem sinais vitais e ordenou que suspendessem a manobras, declarando o óbito. Questionada especificamente sobre se verificou a existência de lesões, disse que viu lesões ao nível do tórax que teriam resultado das manobras de reanimação e que, este tipo de manobras, nada têm a ver com a zona da cervical. De qualquer forma, a morte já teria ocorrido há algum tempo atentos os sinais de rigidez cadavérica.
De notar que, quer os esclarecimentos prestados pela Senhora Perita Médica, quer os depoimentos destas testemunhas nos surgiram, até pelas respetivas razões de ciência, absolutamente credíveis.
Conjugando todos estes elementos de prova e tendo como certo, por um lado, que naquela madrugada não estava mais ninguém na residência para além do arguido e da vítima e, por outro lado, que não poderia ter sido a vítima a causar a si mesma estas lesões (facto referido de forma categórica pela perita médica), forçoso é concluir que foi o arguido o autor da agressão que conduziu à morte da vítima.
(…)
Relativamente às consciência, vontade e intenção com que o arguido atuou (descritas no ponto 6.) também não tem o Tribunal quaisquer dúvidas.
Na verdade, os factos de natureza objetiva que resultaram provados, permitem concluir, com recurso a presunções naturais que têm a ver com aquilo que é normal acontecer em determinadas circunstâncias, pela prova daqueles outros de natureza psicológica.
Com efeito, provou-se que o arguido asfixiou a sua mãe, C…, por meio não concretamente apurado, mas tendo para o efeito, exercido pressão na região do pescoço da mesma, impedindo-a de respirar e exercido sobre esta área corporal, um movimento de extensão de tal forma violento que lhe causou lesões ao nível vertebral, com fratura do disco intervertebral, situado entre as vertebras C7 e T1 e que lhe provocaram graves lesões que foram causa suficiente e determinante da sua morte.
Ora, o arguido, como qualquer cidadão de mediano entendimento (como ele também é, atentos os resultados da perícia à sua personalidade) não podia ignorar, como não ignorava, que no pescoço se encontram órgãos vitais e veias de grande circulação sanguínea e que, aquela atuação sobre pessoa idosa e frágil como ele sabia ser a sua mãe, lhe causaria a morte. Assim, forçoso é concluir que o arguido atuou como atuou com a intenção de matar a sua mãe, como efetivamente veio a acontecer.
Atento o tipo de ilícito em causa e não tendo o arguido qualquer limitação intelectual, é forçoso, também, concluir que o mesmo era sabedor de que a sua conduta é ilícita e criminalmente punível.

Pelo exposto, contrariamente ao sugerido pelo recorrente, não ocorreu qualquer vício de falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, tendo o tribunal coletivo demonstrado a autoria do homicídio de um modo particularmente assertivo, procedendo a um exame crítico de todos os meios concretos de prova relevantes de um modo claro, observando as regras de experiência comum, também quanto à intencionalidade da conduta do arguido.
B – Do erro notório na apreciação da prova;
O recorrente arguiu na motivação de recurso, ainda, uma segunda causa de nulidade tipificada na lei: um erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
O Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e confirmação da decisão da matéria de facto, por não evidenciar qualquer erro notório na apreciação da prova.
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
O erro notório na apreciação da prova integra um vício da decisão (artigo 410º, nº 2, al. c), do Código de Processo Penal), que só ocorre quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum.
Deve assim tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Trata-se de um vício de decisão e não de julgamento que, enquanto subsistir, não permite que a causa seja decidida.
Recorde-se, ainda, que não existe tal erro quando a convicção dos julgadores plasmada na fundamentação da decisão é plausível, ou possível, embora pudesse ter sido outra. Nessa hipótese, a única forma do sujeito processual interessado reagir é mediante uma impugnação da decisão da matéria de facto, indicando prova que imponha decisão diversa – e não pela arguição de um vício formal, como é o caso da nulidade invocada –.
O caso concreto.
O recorrente arguiu na motivação de recurso a existência de um erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Porém, em flagrante contradição com a arguição de erro notório na apreciação da prova, o recorrente também expressou não contestar os factos dados como provados (conclusão B).
Então, o que motivou a sua arguição da nulidade?
Analisando a motivação do recurso, observa-se o arguido referir que a decisão da matéria de facto – que o recorrente não impugna - viola frontalmente as regras da experiência comum, embora não tenha concretizado a razão de tal afirmação.
Mais adiante, apenas invoca os traços de personalidade e as condições pessoais do arguido (um indivíduo de 66 anos, que sempre residiu com os seus progenitores, desenvolveu e foi educado de forma completamente submissa, abandonou uma família recém-constituída e viveu única e exclusivamente em função dos progenitores).
Por outro lado, de acordo com o recorrente “É pacífico, e resulta do relatório de autópsia, que a vítima, caiu da cama de madrugada e que o arguido, tratou o ferimento resultante dessa queda com desinfectante e uma ligadura.”
Conclui, assim, que tal atitude é em tudo contrária a alguém que pretende de forma premeditada perpetrar um homicídio minutos/horas depois, tendo a vítima 94 e o arguido 66 anos de idade, tendo este partilhado toda a sua vida com a mãe, dedicando a esta, sobretudo nos últimos anos, todos os minutos da sua vida para dela tratar, numa fase em que esta estava já doente e com indícios de demência.
Porém, importa assinalar que tais alegações não encontram qualquer fundamento quer na decisão recorrida, como na prova produzida: em momento algum foi imputada ao arguido uma conduta premeditada. Existe uma diferença substancial entre um crime premeditado - que exige um certo grau de reflexão e de planeamento a respeito da prática do crime, efetuado à distância de um certo hiato temporal em relação à conduta planeada - e um crime "meramente doloso", mesmo que seja com dolo direto.
Por outro lado, tais alegações também não encontram razão de ser à luz da fundamentação do acórdão recorrido, onde foi explicitado de forma categórica que a versão dos factos declarada pelo arguido em julgamento é claramente falsa, tendo em conta o relatório de autópsia e os esclarecimentos da perita médica, a qual, “confrontada que foi com esta versão dos factos, tanto em audiência, como durante a diligência documentada a fls.124/129, afirmou categoricamente que o tipo de lesões que o cadáver apresentava ao nível do pescoço nunca poderiam ter sido causadas por aquela queda. Usou até a expressão “o cadáver fala por si próprio”. Esclareceu que (conforme fez constar do relatório de autópsia), as equimoses de características recentes ao nível da cavidade oral e região cervical indicavam terem resultado de uma ação de compressão externa sobre o pescoço da vítima. Por outro lado, a exuberante infiltração sanguínea encontrada ao nível da região cervical e os sinais de natureza asfíxica, reforçam a conclusão de que existiu a aplicação de uma força mecânica externa e que tal ação foi de tal forma violenta que conduziu à fratura de vértebras.
Conclui, pois, que aquelas lesões não poderiam nunca ter sido causadas pela queda descrita pelo arguido.”
Nestes termos, a queda da vítima referida pelo arguido nas suas declarações é irrelevante para excluir a intensidade dolosa (que não se confunde com premeditação) e, também, para excluir a prática do homicídio qualificado, uma vez que o nexo causal entre a conduta do arguido e o dano-morte foi cientificamente estabelecido pelo tribunal coletivo e a vítima, progenitora do arguido, de 94 anos de idade, doente e com indícios de demência, era uma pessoa particularmente indefesa.
Pelo exposto, o recorrente não identificou na decisão recorrida qualquer erro notório na apreciação da prova, tendo-se limitado a especular, levantando hipóteses que a decisão recorrida não permite sustentar e a prova produzida em julgamento não alcança.
Não tendo o recorrente impugnado a decisão da matéria de facto, nem evidenciando esta qualquer vício formal, os factos provados encontram-se processualmente estabilizados, devendo à luz dos mesmos ser aferido o mérito dos alegados erros em matéria de direito invocados pelo arguido.
C – Dos alegados erros em matéria de direito:
C.1. Da tipificação da conduta
No entender do recorrente, os factos praticados pelo arguido apenas integram a prática de um crime de homicídio privilegiado (artigo 133º do Código Penal).
Para tanto, alega que o arguido:
a) é pessoa com forte dependência afetiva dos progenitores, com dificuldades interpessoais e afetivas;
b) negligenciou a sua companheira grávida, bem como o seu filho;
c) cortou relações com um familiar (irmão);
d) era o cuidador da vítima, com quem residiu toda a vida e o estado de saúde desta, conjugado com a idade e recente historial médico (com diversas quedas e alguma demência), vinham a corroer a sua qualidade de vida e consequentemente do próprio arguido;
e) é contido na expressão das emoções, com traços de subordinação e sem iniciativa própria, com indicadores moderados de perturbação afetiva associada a ansiedade, depressão, défices na gestão do stress e ideação suicida;
Por outro lado, a tipificação da conduta do arguido, como homicídio qualificado, ainda segundo o recorrente, resultou do simples facto de se tratar de uma asfixia e da vítima ser progenitora do arguido, o que revela especial perversidade, ao mesmo tempo que o tribunal coletivo manifestou desconhecer a concreta forma e por que meio o arguido asfixiou a vítima.
Conclui assim o recorrente que os factos provados apenas integram a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio privilegiado (artigo 133º, do Código Penal):
"Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.”
O Ministério Público respondeu a tal pretensão, considerando que a mesma carece de fundamento factual, não revelando os factos provados a motivação do arguido de modo a concluir-se por uma diminuição sensível da sua culpa.
Cumpre apreciar e decidir.
O arguido foi pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas a), c) e i) do Código Penal.
Com relevância para a tipificação da conduta do arguido provou-se que na madrugada do dia 24-06-2018, a hora não concretamente apurada, e no interior da residência de ambos, estando o arguido sozinho com a sua mãe, C…, o mesmo, asfixiou-a, por meio não concretamente apurado, mas tendo para o efeito, exercido pressão na região do pescoço da mesma, impedindo-a de respirar e exercido sobre esta área corporal, um movimento de extensão de tal forma violento que lhe causou lesões ao nível vertebral, com fratura do disco intervertebral, situado entre as vertebras C7 e T1 e que lhe provocaram graves lesões que foram causa suficiente e determinante da sua morte.
Mais se provou que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de, mediante a conduta acima descrita, matar C….
Está, assim, preenchida a totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de homicídio (artigo 131º do Código Penal), o que o recorrente não contesta.
O arguido recorrente discorda é da subsunção da sua conduta no tipo qualificado previsto no artigo 132º do Código Penal:
“Artigo 132.º Homicídio qualificado
1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adotado ou adotante, da vítima;
b) (…);
c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
d) (…);
e) (…);
f) (…);
g) (…);
h) (…);
i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
j) (…);
l) (…);
m) (…).”
Como bem explicitado na fundamentação do acórdão recorrido, o "sinal distintivo da qualificação do homicídio é a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente. O termo “especial” significa que a conduta deve revelar algo que transcenda a censurabilidade inerente a um crime de homicídio, para além da já invulgar perversidade que revela aquele que matou um ser humano.
Nas palavras de Teresa Serra, revelam especial censurabilidade as circunstâncias que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. A especial censurabilidade refere-se, assim, às componentes da culpa relativas ao facto, isto é, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude. (…)
As circunstâncias enumeradas no n.º 2 do artigo 132º, suscetíveis de revelar esse “algo de especial”, são meros indícios, indicadores ou referenciais que poderão ser afastados ante condutas que, embora identificando-se com as mesmas, não revelam, contudo, a exigida especial perversidade ou censurabilidade. Tal poderá suceder por ocorrerem circunstâncias extraordinárias que destaquem claramente a sua ilicitude ou culpa do exemplo padrão (a que não se reconduzem circunstâncias como o bom comportamento anterior, a confissão, o arrependimento o ressarcimento do dano, etc., que são circunstâncias atenuantes gerais).
Do mesmo modo, outras circunstâncias não previstas, mas substancialmente análogas, refletidas no facto ou na personalidade do agente, poderão assumir tal relevância aos olhos do julgador, por revelarem uma especial censurabilidade ou perversidade.
Significa isto que as circunstâncias qualificativas não constituem elementos do tipo legal do crime, mas sim da culpa. Subjacente à especial censurabilidade e perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta e que motiva a agravação da culpa, a qual tem, assim, a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui em relação à desconformidade, já de si grande, subjacente à prática de um homicídio simples. Todavia, não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade; é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude ou aspetos da personalidade mais desvaliosos se concretizem em qualquer dos exemplos padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga.
A agravação resultante do disposto nas alíneas a) e c) do nº2 do artigo 132º.
Estas alíneas contêm dois exemplos-padrão que, no que ao caso dos autos concerne, são relativos às circunstâncias de “o agente ser descendente (…), da vítima” e “o agente praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade (…) doença (…)”.
Ora, tais circunstâncias verificam-se no caso dos autos.
Com efeito, resultou provado que o arguido praticou os factos em causa contra a sua mãe; que esta, à data dos factos contava 94 anos de idade; que ambos residiam na Rua …, n.º …, …, Aveiro; que à data dos factos, o arguido tinha ao seu cuidado a sua mãe, que dele dependia, para a satisfação das suas necessidades básicas, sendo o arguido o responsável pela sua higiene pessoal, alimentação e subsistência, dada a fragilidade da mesma, a qual era uma pessoa de idade avançada.
Não obstante, a qualificação do homicídio, não opera automaticamente, como referimos supra, sendo necessário que a prática do homicídio revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não “automaticamente” verificada) por ter vencido “as contra-motivações éticas” relacionadas com, por um lado, os laços de parentesco existentes e, por outro, a fragilidade e vulnerabilidade da vítima.
No caso dos autos, a forma como o arguido praticou os factos, de madrugada, no interior da residência de ambos, (…), bem sabendo que a vítima era sua progenitora, tinha 94 anos e dependia de si e dos seus cuidados, dada a sua avançada idade e fragilidade.
Mostram-se, pois, preenchidas as qualificativas em causa.
(…)
O mesmo não ocorre no que concerne à qualificativa prevista na alínea i) do nº2 do artigo 132º do Código Penal.
Nos autos não se apurou a concreta forma como o arguido asfixiou a vítima.
Com efeito, resultou provado que a asfixiou “por meio não concretamente apurado, mas tendo para o efeito, exercido pressão na região do pescoço da mesma, impedindo-a de respirar e exercido sobre esta área corporal, um movimento de extensão de tal forma violento que lhe causou lesões ao nível vertebral, com fratura do disco intervertebral, situado entre as vertebras C7 e T1 e que lhe provocaram graves lesões que foram causa suficiente e determinante da sua morte”.
Desconhece-se se tal asfixia e pressão na zona cervical foram levadas a cabo com as mãos ou outro objeto; se com um objeto, qual; se a vítima se apercebeu do que estava a acontecer; se estava consciente; etc…
Ora, nestas circunstâncias não pode considerar-se preenchida a qualificativa em causa.
Em conclusão, procede parcialmente a pronúncia, mostrando-se o arguido incurso na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2 alíneas a) e c) do Código Penal."
Perante esta fundamentação, o arguido recorrente contrapõe que apenas cometeu um crime de homicídio privilegiado (artigo 133º do Código Penal):
a) por não ter sido apurada a forma concreta como o arguido asfixiou a sua mãe; e
b) uma vez que o arguido matou a sua mãe estando dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero, ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa.
O Ministério Público, em resposta, pugnou pela confirmação da decisão, essencialmente, tendo em conta a fundamentação da mesma.
Cumpre apreciar e decidir.
O primeiro argumento em que o recorrente sustenta a sua tese jurídica de dissensão em relação à tipificação da sua conduta vertida na decisão recorrida carece de fundamento jurídico: a prática do homicídio em causa revelou uma especial censurabilidade do agente, não só por ter contrariado as exigências éticas emergentes dos laços de parentesco existentes em relação à vítima (filho/mãe), mas também pela excecional fragilidade e vulnerabilidade da vítima, com 94 anos de idade, que dependia dos cuidados do arguido, vivendo apenas um com o outro.
Apurou-se que o arguido asfixiou a sua mãe, por compressão violenta da região do pescoço – apenas se desconhecendo se foi com as mãos ou com algum objeto, o que é irrelevante para a tipificação da conduta em discussão -.
Nada mais se tendo apurado quanto ao modo como o arguido asfixiou a sua mãe, nem se ela se encontrava consciente enquanto foi estrangulada, não operou a qualificativa do homicídio prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, como bem decidido pelo tribunal "a quo". Mas tal não afastou as qualificativas tipificadas nas alíneas a) e c) do mesmo número e artigo, uma vez que a vítima é mãe do agente do crime e encontrava-se numa situação de especial vulnerabilidade, sendo particularmente indefesa, confirmando-se, assim, a qualificação jurídica efetuada na decisão recorrida.
Contrariamente ao alegado pelo recorrente, não se apurou que o arguido tenha morto a sua mãe estando dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero, ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa.
Importa também salientar que o próprio arguido, ao negar a prática do crime, mentindo sobre o sucedido, impossibilitou que o tribunal apurasse algo mais que não fosse aquilo que resultou cientificamente demonstrado (a morte da mãe por asfixia violenta, resultante da compressão do seu pescoço que, inclusivamente, lhe fraturou um disco intervertebral), e da análise da prova testemunhal e das declarações do arguido (quanto à autoria material do homicídio). Não foi produzido, sequer, qualquer meio concreto de prova, do qual fosse possível, sequer, extrair por presunção que o arguido estivesse dominado por alguma compreensível emoção violenta, compaixão, desespero, ou motivo de relevante valor social ou moral.
Recorda-se também ao recorrente terem-se provado aspetos relevantes da sua personalidade, que ajudam a explicar o sucedido – tanto na prática do crime, como em julgamento -:
a) o arguido manifesta vulnerabilidades na componente afetiva (auto-perceção negativa e abordagem fatalista do mundo) que podem condicionar a autorregulação das emoções e dificultar a gestão do stress – que podem ajudar a explicar, em parte, a prática do crime; e
b) no seu mundo interno pouco desenvolvido e de tonalidade negativa predomina a expectativa fatalista sobre a realidade, o receio subjetivo da rejeição (…) e a antecipação de desconforto ou sofrimento – o que pode contribuir para explicar a sua negação do crime em julgamento.
À luz do exposto, não se tendo provado que o arguido tenha morto a sua mãe estando dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero, ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa, mostra-se impossibilitada a qualificação da conduta do recorrente enquanto "mero" homicídio privilegiado, tratando-se de uma tese destituída de fundamento factual.
C.2. Da medida concreta da pena
O recorrente concluiu o seu recurso, pugnando subsidiariamente pela redução da pena para o mínimo legal.
Para tanto, limitou-se a invocar "a idade da vítima, as condições pessoais e sócio económicas do arguido e a ausência de antecedentes criminais".
O Ministério Público, em resposta, pugnou pela improcedência da pretensão recursória, por carecer de fundamento legal, devendo a pena ser confirmada nesta instância de recurso.
Cumpre apreciar e decidir esta última questão.
Sendo o crime punível com uma pena de doze a vinte e cinco anos de prisão, o tribunal coletivo fixou a pena concreta em 13 anos de prisão.
Para tanto, operou os "critérios orientadores fornecidos pelo artigo 71º do Código Penal, ou seja, a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial, devendo ter-se em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente", considerando ainda as preocupações de prevenção geral e especial".
Fixou a pena, considerando "o quantum indispensável para manter a crença da comunidade na validade e eficácia da norma e, por essa via, a confiança nas instituições, bem como as exigências de prevenção especial que ao caso se fazem sentir, nunca podendo, porém, a pena ultrapassar em caso algum a medida da culpa (n.º 2 do artigo 40º)".
Em concreto, valorou:
a) Ao nível da culpa, que o arguido atuou com dolo direto, forma mais grave de culpa – Artigo 14º nº1 do Código Penal;
b) A motivação para a sua conduta, sendo desconhecida, não assume qualquer valor agravante ou atenuante;
c) como agravante de caráter geral, a atitude do arguido em relação aos factos e postura em audiência de julgamento, por ter tentado ocultar a sua prática, montando um cenário tendente a fazer crer que a mãe teria falecido de causa natural. Manteve, a seguir, e em julgamento, a postura de negação dos factos persistindo em descrever os acontecimentos de uma forma que a prova (mormente a pericial) contraria frontalmente.
Tendo o arguido prestado declarações em julgamento negando a autoria do crime, o mesmo não demonstrou qualquer autocensura nem um consequente arrependimento, aumentando as preocupações de prevenção especial. Porém, o tribunal coletivo não considerou tal como agravante de peso, tendo desvalorizado a sua importância, uma vez que "o arguido tinha 64 anos de idade à data dos factos e não tem passado criminal" (…) o seu percurso de vida (pontos 9. a 13. dos factos provados) foi marcado de forma indelével por uma relação de intensa vinculação e dependência em relação aos pais, de tal forma que não logrou construir uma verdadeira identidade, independência, capacidade de tomar decisões e de interagir com grupos de pares e em última análise, constituir a sua própria família, afastando-se, por imposição dos pais, da esposa e do filho de ambos.
Finalmente, o tribunal "a quo" também teve em consideração "a absoluta primazia do bem jurídico atingido (vida), a comunidade manifesta para com os crimes de homicídio uma compreensível apreensão e um justificado sentimento de rejeição, o que revela fortes exigências de prevenção geral positiva".
Para contrariar a abundante fundamentação da decisão recorrida, o arguido recorrente limitou-se a basear a sua pretensão de redução da pena para o mínimo legal na idade da vítima, nas condições pessoais e sócio-económicas do arguido e na ausência de antecedentes criminais, não indicando, sequer, a base legal para a sua pretensão, contrariando o disposto no artigo 412º, nº 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal.
Por conseguinte, trata-se de uma pretensão recursória manifestamente improcedente, por carecer de base legal.
Mesmo se o não fosse por esse motivo, importa assinalar que a pena concreta foi fixada muito próximo do limite mínimo, revelando-se a pretensão do recorrente em ver a pena fixada no mínimo legal também manifestamente improcedente, por contrariar o disposto no artigo 71º, nº 2, corpo e alínea e), do Código Penal, tendo em conta a ausência de expressão de um juízo de autocensura e de arrependimento pela prática do crime, apesar de ter prestado declarações em julgamento.
Pelo contrário.
O arguido sempre negou a prática do crime (cuja autoria não impugna em sede de recurso) e manifestou uma versão mentirosa a respeito do sucedido.
Além disso, concorreram duas circunstâncias qualificativas do homicídio (ser filho da vítima e ter cometido o crime contra pessoa particularmente indefesa): uma assegura assim a qualificação do homicídio e a outra deve ser valorada como agravante de caráter geral (artigo 71º, nº 2, al. a), do Código Penal), o que também inviabiliza a pretendida redução da pena.
A pena mínima está reservada para os casos em que existe uma única circunstância de qualificação do homicídio e concorre uma plêiade de atenuantes, entre as quais a confissão do arguido (além da ausência de antecedentes criminais e a circunstância do arguido ter sido cuidador da ofendida, que, in casu, se verificam).
As características provadas da personalidade do arguido não deixam de suscitar preocupações de prevenção especial, com reflexo na medida concreta da pena.
Assim sendo, improcede manifestamente a última pretensão recursória.
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Sendo o recurso do arguido julgado não provido, impõe-se a sua condenação no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 513°, 1, do Código de Processo Penal e 8°, n° 9, do Regulamento das Custas Processuais.
A taxa de justiça é fixada em 5 (cinco) unidades de conta, nos termos da Tabela III anexa àquele Regulamento, tendo em conta o objeto e a extensão do recurso.
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III - DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam por unanimidade os juízes subscritores, da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B….
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.
Porto, em 7 de Outubro de 2020.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
António Gama
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[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[3] O número 2 do aludido artigo estatui o seguinte: “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do art. 414º”.
[4] Conforme salientado no acórdão deste Tribunal e Secção, de 7 de Setembro de 2011 (processo nº 1147/09.3PJPRT.P1), relatado pela Desembargadora Dra. Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio e conforme também decidido no acórdão subscrito pelo ora relator no processo nº 830/13.3PHMTS.P1, em 24 de Fevereiro de 2016.