Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8819/18.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: RESPONSABILIDADE DO ESTADO
EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL
REQUISITO DA PRÉVIA REVOGAÇÃO DA DECISÃO DANOSA
DIREITO EUROPEU
Nº do Documento: RP201907108819/18.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 903, FLS 2-26)
Área Temática: .
Sumário: I - O n.º2 do artigo 13.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, faz depender da existência de prévia revogação da decisão danosa a responsabilidade civil do Estado pelos danos ocorridos na sequência de atos materialmente jurisdicionais, fundados em erro evidente ou grosseiro.
II - Tal norma não é inconstitucional por violação do disposto no artigo 22.º da CRP que consagra a responsabilidade civil direta do Estado pelos atos e omissões praticados, pelos seus agentes, no âmbito das funções que lhe estão cometidas, entre as quais, a função jurisdicional, uma vez que a concretização de tal princípio foi atribuída ao legislador ordinário, que, em cumprimento dessa incumbência, elaborou e aprovou a Lei 67/2007, de 31 de dezembro, na qual se incluí o artigo 13.º, n.º1, que prevê a responsabilidade pelos erros judiciários, bem como o seu n.º2, que prevê, como condição de procedibilidade, a existência de prévia revogação da decisão danosa.
III - Também a concretização de tal direito, porque não se mostra arbitrária, mas antes adequada e proporcional face aos outros interesses constitucionais em confronto – designadamente a segurança, a certeza jurídica e a estrutura dos recursos e hierarquização dos tribunais, respeita, dessa forma, o regime previsto no artigo 18.º, n.º2 da CRP.
IV - Não se estará igualmente perante qualquer violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), cujo valor jurídico lhe é dado pelo artigo 6.º do TUE, mas que, face ao seu artigo 51.º (da CDFUE), apenas é aplicável aos Estados quando estes estejam a aplicar direito comunitário, o que não é o caso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 8819/18.0T8PRT.P1
SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B…, intentou ação declarativa com processo comum contra o Estado Português, pedindo a condenação do réu ao pagamento da quantia global de €360.00,00 acrescida de juros legais de mora.
Para tanto, alega que tendo sido condenado ao cumprimento de duas penas de prisão sucessivas, em processos criminais diferentes, não lhe foi concedida a liberdade condicional que oportunamente havia requerido e à qual teria legalmente direito; por isso, cumpriu integralmente, até Novembro de 2017 as duas penas, quando deveria ter sido libertado em finais de Novembro de 2016, razão pela qual esteve indevidamente na situação de reclusão durante 12 meses.
Por isso, além de tal situação lhe ter causado angústia e sofrimento, viu-se impossibilitado de iniciar em devido tempo o seu processo de ressocialização, perdeu oportunidades de emprego e de retomar a sua vida familiar, desse modo vendo retardada a reconstrução da mesma.
O Ministério Público, em representação do réu, apresentou contestação, na qual preconiza o indeferimento das pretensão do autor, por entender carecer a sua demanda de uma condição legal de procedibilidade: que a decisão judicial que indeferiu o pedido do autor em lhe ser concedida a liberdade condicional, haja sido revogada, por decisão judicial posterior, definitiva e transitada em julgado.
Foi realizada audiência prévia e no final foi proferida sentença, que decidiu a causa nos seguintes termos:
“Nestes termos, e sem necessidade de mais largas considerações, julga-se improcedente a presente ação, absolvendo-se o réu Estado Português do pedido contra si deduzida pelo autor B….
Custas a cargo do Autor, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.”
Inconformado com a decisão, o Autor B… interpôs o presente recurso, pugnando pela revogação da decisão recorrida e determinação do prosseguimento dos autos para julgamento, apresentando as seguintes conclusões:
“I. Ao contrário do que havia sucedido com uma outra ação que correu termos sob o processo n.º 20692/15.5T8PRT, na 1ª Secção Cível da Instância Central da Comarca do Porto – J1, intentada pelo A, que foi julgada totalmente improcedente, em virtude deste., naquela ação, não ter recorrido do despacho que indeferiu o pedido de concessão da liberdade condicional, na presente demanda, a factualidade, para o que aqui nos interessa, é inteiramente distinta.
II. Do despacho com data de 19 de Dezembro de 2016 veio o A. recorrer para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, recurso este que foi rejeitado, pois que o Mmo. Juiz entendeu que o mesmo, por se tratar de um despacho de mero expediente, não seria suscetível de recurso.
III. Desta decisão, veio o ora A. reclamar para o Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto, que veio a sufragar o entendimento postergado pelo Tribunal de recurso.
IV. Aqui chegados, e ao contrário do que sucedeu com a primeira ação intentada pelo A. e identificada no ponto 9, este bem tentou revogar, através dos meios que tinha ao seu dispor, mormente através de impugnação judicial, num primeiro momento, e, mais tarde, através de reclamação – isto é: por todas as formas processualmente admissíveis - a decisão em que radica o erro judiciário em análise na presente demanda.
V. Assim, dúvidas não restarão que tal recusa consubstancia uma denegação da apreciação dos pressupostos para concessão da liberdade condicional, e, como tal, equivale a uma recusa efetiva da concessão da liberdade condicional, o que determinou que o Recorrente se visse, injustificadamente, privado da sua liberdade pelo período de 12 meses.
VI. Com efeito, a decisão de 19 de Dezembro de 2016 que veio indeferir o pedido de convocação do Conselho Técnico e Audição do Recluso, para efeitos de ser concedida ou não a tão almejada liberdade condicional, e a decisão com data de 19 de Março de 2017, que veio negar provimento á reclamação apresentada, consubstanciam factos ilícitos que, no caso, determinam, salvo melhor opinião, a verificação e preenchimento dos pressupostos para que a presente ação possa proceder.
VII. Tal decisão só não foi revogada porque, em ambos os momentos, o órgão decisor se recusou a apreciar se estavam ou não reunidos os pressupostos para que ao A., ora Recorrente, na altura Arguido, lhe fosse concedida a liberdade condicional.
VIII. Por conseguinte, in casu, ao exigir-se a prévia revogação da decisão tida por danosa, estaríamos a limitar, senão mesmo, a inutilizar o instituto da responsabilidade civil do Estado, retirando aos particulares lesados por tais decisões a possibilidade de agirem contra uma violação de um direito fundamental constitucionalmente consagrado.
IX. Ora, em nosso entender, não poderá ser este o sentido dado ao preceito em causa (cfr. artigo 13º, n.º 2 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro), sob pena de se comprimir – se não mesmo inutilizar/desvirtuar – o instituto em causa.
X. Ao concordar-se com este entendimento, estaríamos a permitir que este preceito comprimisse (se não mesmo se sobrepusesse) o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, que tem aplicabilidade direta e não carece de mediação normativa para poder ser invocado, o que não é admitido pela nossa Lei Fundamental e, muito menos, pelo Direito e Jurisprudência Comunitários (cfr. artigo 6º da CEDH, artigo 6º do TUE, artigo 4º, n.º 3, igualmente, do TUE, bem como a jurisprudência comunitária constante dos casos Kobler; Traghetti; Francovich e Brasserie du Pêcheur, alem da própria CDFUE).
XI. Tal restrição não se compadece com os princípios mais elementares da hierarquia das Leis do ordenamento jurídico interno e comunitário, afigurando-se como uma regra, e não como um princípio, e, como tal, violadora do princípio da efetividade, logo não sendo passível de restrições arbitrárias e de mera conveniência.
XII. A interpretação sufragada pela Mma. Juiz a quo ao concluir que o artigo 13º, n.º 2 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, ao exigir a prévia revogação de decisão tida por danosa (e não o desencadeamento dos meios ao dispor do lesado para levar a cabo tal pretensão) revela-se, portanto, em oposição ao direito nacional (Lei Fundamental – cfr. artigos 18.º e 22.º) e comunitário, o que poderá verificar-se quando uma decisão não seja passível de reação, maxime de recurso.
XIII. De facto, o legislador nacional ao fixar mais este requisito para a responsabilidade do Estado por erro judiciário está a agravar esse regime, contrariando claramente as orientações do Tribunal de Justiça da União Europeia neste domínio, defendendo que, apesentando o regime português de responsabilidade civil do Estado discrepâncias em relação às soluções fixadas no contexto da União Europeia pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, será, pois, necessário proceder à sua harmonização, ou fazendo intervir o princípio interpretação conforme, ou, no caso de tal não ser possível, apelando a outros princípios de direito da União, nomeadamente ao primado e à tutela jurisdicional efetiva.
XIV. Esta condição de natureza processual plasmada no n.º 2 do artigo 13º da referida Lei, estabelece um critério para afirmação da responsabilidade do Estado mais exigente do que os estabelecidos pela Constituição da República Portuguesa e pela jurisprudência do TJUE, ao arrepio dos princípios da efetividade e da equivalência, o que não é conforme com o direito constitucional português, nem com o direito comunitário.
XV. Mais releva o que acaba de se expor quando o ora A., embora sem sucesso, desencadeou todos os meios que tinha à sua disposição para revogar a decisão que consubstancia o ilícito relevante para efeitos de consagração do erro judiciário que serve de causa de pedir ao pedido por si formulado.
XVI. Situando-nos no plano puramente interno, o n.º 1 do artigo 13º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, contempla tanto as decisões inconstitucionais ou ilegais, bem como as decisões injustificadas por erro grosseiro na respetiva apreciação dos pressupostos de facto.
XVII. Assim, as decisões que afrontam direta e manifestamente a Lei Fundamental, nomeadamente em matéria de direitos fundamentais – cfr. artigos 18º e 22º da CRP – deverão ser sindicadas e objeto de apreciação com vista à responsabilização do Estado pelos erros cometidos em virtude do exercício da função jurisdicional.
XVIII. Quanto ao n.º 2 do referido preceito, não podemos concordar com o entendimento postergado pela Mma. Juiz a quo, pois que o Recorrente tudo fez o que estava ao seu alcance para revogar a decisão tida por danosa, sob pena de suprimirmos um direito que assiste a qualquer cidadão.
XIX. Atente-se, a título de exemplo, no caso de uma eventual ação cujo recurso não seja admissível, por não haver alçada para o efeito. Como poderia um cidadão reagir contra uma decisão danosa proferida pelo órgão judiciário se a prévia revogação de tal decisão não era possível por, por exemplo, a mesma não ser suscetível de recurso?
XX. Ao aceitarmos a presente interpretação, estaríamos a eximir os Estado de ressarcir os seus cidadãos por eventuais erros judiciários cometidos no exercício da função jurisdicional, o que, de todo, não se coaduna com os princípios e valores orientadores do nosso ordenamento jurídico, pondo em causa os princípios da igualdade e proporcionalidade, pois que tais decisões não seriam passiveis de ser revogadas.
XXI. Mais se refira que, para o Direito Comunitário, o pressuposto da prévia revogação da decisão danosa para efetivação da responsabilidade civil do Estado por danos causados no exercício da função jurisdicional é posto em causa, uma vez que para o TJUE basta que a norma de direito comunitário confira direitos aos particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e, ainda, que exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
XXII. Mais afirmou o TJCE que, de acordo com um princípio de equivalência, “as condições fixadas pelas legislações nacionais em matéria de reparação dos danos não podem ser menos favoráveis do que as respeitantes a reclamações semelhantes de natureza interna" e de acordo com o princípio da efetividade, "não podem estar organizadas de forma a, na prática tornarem impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação".
XXIII. Logo, pelo menos nos casos referentes a violações suficientemente caraterizadas de normas de direito comunitário que se destinam a conferir direitos aos particulares, e exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano, entende o Recorrente que a Lei nº 67/2007 é desconforme ao direito comunitário, na medida em que existe um requisito adicional para que se intente ação de responsabilidade civil contra o Estado - vide Acórdãos Kõbler e Traghetti deI Mediterraneo SpA.
XXIV. Nestes casos a "prévia revogação da decisão danosa" constitui uma violação do direito comunitário pela decisão jurisdicional causadora de danos, ou seja, é uma restrição, não autorizada pelo direito comunitário e pela interpretação dele feita pelo TJCE, do direito dos particulares a obterem a reparação dos danos causados por violações, pelos Estados-Membros, dos direitos conferidos pelo Direito Comunitário.
XXV. Porquanto, e tendo em conta a jurisprudência do TJCE, a condição de "prévia revogação da decisão danosa" não deve ser aplicada nos casos em que está em causa a responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário, sob pena de se pôr em causa o princípio do primado afirmado na jurisprudência do TJUE nos acórdãos Costa vs Enel (C-6/64), Simmenthal (C-106/77) e Internationale Handelgesellschaft (Proc. 11/70).
XXVI. E mais ainda, no artigo 41º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, permite-se que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condene o Estado que viola um direito fundamental a indemnizar os danos que resultaram, para o lesado, desse comportamento.
XXVII. A citada jurisprudência do TJUE que tem defendido, como decorre do COMUNICADO DE IMPRENSA n.º 96/15 Luxemburgo, 9 de setembro de 2015, a sua oposição a uma legislação nacional que, como a legislação portuguesa, exige, como condição prévia à declaração da responsabilidade do Estado, a revogação da decisão danosa, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída. O Tribunal de Justiça sublinha que uma regra de direito nacional desse tipo pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos causados pela violação do direito da União, uma vez que as hipóteses de reapreciação das decisões do Supremo Tribunal de Justiça são extremamente limitadas.
XXVIII. E, no acórdão de 09/09/2015 no processo C-160/14 (Ferreira da Silva e Brito et al./Estado português), o TJUE entendeu que o direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União, cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, devem ser interpretados no sentido de que obstam à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização a prévia revogação da decisão danosa, quando essa revogação está, na prática, excluída – cfr. - http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=167205&pageIndex=0& doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=1058029.
XXIX. Perante a doutrina deste acórdão de 09/09/2015, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, no Blog do IPPC, de 15.09.2015, salientou que “sempre que numa ação de responsabilidade civil proposta contra o Estado, seja invocado um erro judiciário por violação do direito europeu, não pode ser exigida, ao contrário do que dispõe o art. 13.º, n.º 2, RRCEE, a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro… Isto significa que, daqui em diante, bastará a qualquer interessado invocar que, segundo a jurisprudência do TJ, a ação de indemnização baseada em erro judiciário por violação do direito europeu não exige a prévia revogação da decisão pretensamente ilegal.”
XXX. Neste sentido, a decisão recorrida deverá ser revogada, por violação do artigo 13º, n.º 2 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, em virtude do entendimento de que a exigência legal da prévia revogação da decisão danosa que fundamenta o pedido de indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente de erro judiciário não estar conforme aos princípios constitucionais aludidos nos artigos 18.º e 22.º da Constituição da República Portuguesa, bem como ao estabelecido nos Tratados Internacionais e jurisprudência comunitária.”
O ESTADO PORTUGUÊS, através do MINISTÉRIO PÚBLICO veio contra-alegar, pugnando pela improcedência do recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“a) O n.º2 do artigo 13.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, faz depender da existência de prévia revogação da decisão danosa a responsabilidade civil do Estado pelos danos ocorridos na sequência de atos materialmente jurisdicionais, fundados em erro evidente ou grosseiro.
b) O erro que justificará o dever do Estado indemnizar pelos atos ilícitos praticados no âmbito da função de decidir a solução do caso concreto será um erro de facto ou de direito, desde que seja grosseiro ou manifestamente evidente.
c) O artigo 22.º da CRP consagra a responsabilidade civil direta do Estado pelos atos e omissões praticados, pelos seus agentes, no âmbito das funções que lhe estão cometidas, entre as quais, a função jurisdicional.
d) Todavia, a concretização de tal princípio foi atribuída ao legislador ordinário, que, em cumprimento dessa incumbência, elaborou e aprovou a Lei 67/2007, de 31 de dezembro, na qual se incluí o artigo 13.º, n.º1, que prevê a responsabilidade pelos erros judiciários, bem como o seu n.º2, que prevê, como condição de procedibilidade, a existência de prévia revogação da decisão danosa.
e) Assim, é conforme à Constituição a concretização e conformação do regime previsto no artigo 22.º da CRP, a que corresponde a Lei 67/2007, de 31 de dezembro, por não se tratar de uma compressão ou restrição (esta última, caso se considere que a mesma, mais do que concretizar, restringe tal direito) arbitrária, adequada e proporcional face aos outros interesses constitucionais em confronto – designadamente a segurança, a certeza jurídica e a estrutura dos recursos e hierarquização dos tribunais, respeitando, dessa forma, o regime previsto no artigo 18.º, n.º2 da CRP.
f) A limitação operada pela norma constante do n.º 2 do artigo 13.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, é necessária, não arbitrária e também adequada e proporcional, na medida em que, regra geral, é possível a reapreciação do erro por via do recurso.
g) O erro judiciário em causa passa pela aplicação errónea de normas de direito interno (cfr. artigo 63.º do CP e 141.º, alínea i), 179.º, n.º1 e 235.º, todos do C.E.P.M.P.L., e não de qualquer ato de direito comunitário, isto é Tratados, regulamentos, diretivas, jurisprudência, etc…, sendo que o entendimento plasmado nos acórdãos do TJUE elencados pelo Recorrente, reportam-se tão só aos casos em que há, na decisão danosa, a violação de direito comunitário, que cabe ao TJUE proteger e reforçar. Como não é esse o caso, o entendimento aí plasmado não será aplicável à situação dos autos.
h) Não se estará perante qualquer violação do artigo 6.º da CEDH e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo valor jurídico lhe é dado pelo artigo 6.º do TUE, mas que, face ao seu artigo 51.º (da CDFUE), apenas é aplicável aos Estados quando estes estejam a aplicar direito comunitário, o que não é o caso.
i) Acresce que, por estarem reunidos no processo todos os elementos necessários para conhecer do mérito da causa, sempre poderia o tribunal a quo de conhecer do pedido em sede de despacho saneador (cfr. artigo 595.º, n.º1, alínea b) do CPC), o qual só poderia passar pela sua absolvição por clara inexistência de erro manifesto e indesculpável de direito, já que as decisões que o Recorrente considera serem danosas têm cabimento na legal e jurisprudencial. Desta forma, nunca poderia proceder o pedido do Recorrente, no sentido de determinar o prosseguimento dos autos para julgamento, havendo sempre que findar em saneador-sentença.”
Admitido o recurso, cumpre decidir.

II - OBJETO DO RECURSO
As questões decidendas encontram-se delimitada pelo recorrente nas conclusões do recurso, (cfr. artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e consistem em saber:
-Qual o sentido do n.º2 do artigo 13.º, n.º2 da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, concretamente se o mesmo impõe a exigência da prévia revogação da decisão danosa, mesmo nos casos em que a decisão é irrecorrível, ou se nesse caso basta terem sido desencadeados os meios necessários á obtenção de tal revogação.
-Se tal entendimento é inconstitucional por violar o disposto nos artigos 18.º e 22.º da CRP e ainda os princípios da igualdade (artigo 13.º da CRP) e da proporcionalidade (artigo 18.º n.º2 da CRP).
-Se tal entendimento é ainda violador do direito europeu, concretamente os artigos artigo 6º do TUE (Tratado da União Europeia), artigo 4º, n.º 3, igualmente, do TUE, bem como a jurisprudência comunitária constante dos casos Kobler; Traghetti; Francovich e Brasserie du Pêcheur, alem da própria CDFUE - Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia)) e e internacional- artigo 6º e 41º da CEDH Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

III-FUNDAMENTAÇÃO
Mostram-se provados os seguintes factos (acordo das partes suportado pelo documentos juntos aos autos):
1. Por acórdão proferido no âmbito do processo n.º 48/08.7P6PRT, que correu termos na então 3.ª Vara Criminal do Porto, o autor B… foi condenado a uma pena de prisão efetiva de quatro anos e seis meses.
2. Esse acórdão transitou em julgado em 6 de Setembro do ano de 2011.
3. A 12 de Janeiro do ano de 2010 o Autor foi detido, tendo sido sujeito à medida de coação de prisão preventiva, após submissão a interrogatório judicial.
4. Feita a liquidação da pena, estipulou-se o seguinte:
a) Meio da pena: 12 de Abril do ano 2012;
b) Dois terços: 12 de Janeiro de 2013;
c) Termo: 12 de Julho de 2014.
5. O cumprimento da pena foi acompanhado pelo processo 657/11.7TXPRT do 1º Juízo do Tribunal de Execução de Penas.
6. No âmbito desse processo foi decidido expressamente não colocar o Autor em liberdade condicional a meio da pena, por decisão datada de 28 de Março de 2012, na esteira da orientação do MP, por, no entender do Mmo. Juiz, não estarem verificados os pressupostos previstos no artigo 61º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal.
7. Na altura em que o Autor se preparava para completar os dois terços da pena, o TEP, por decisão datada de 21 de Fevereiro de 2013, entendeu não ser oportuno convocar o conselho técnico, tendo por base o fundamento de que a situação jurídico-penal do Autor não estaria estabilizada.
8. À data, na sequência de uma queixa-contra queixa, corria termos o inquérito referente ao processo n.º 534/12.4SJPRT que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Local, Secção Criminal, J3., contra o aqui Autor.
9. Na esteira defendida pelo MP, por despacho datado de 21 de Fevereiro de 2013, o TEP considerou que essa realidade: “impedia a prolação de uma decisão conscienciosa quanto à liberdade condicional, afigurando-se necessário aguardar por mais tempo pelo desfecho do mencionado processo”.
10. Por tal motivo foi indeferido o requerimento do aqui Autor, de 15 de janeiro de 2013, a solicitar a marcação do conselho técnico para apreciação da liberdade condicional, com a presença do seu mandatário.
11. O aqui Autor, cumpriu, na totalidade, a pena a que foi condenado no âmbito do processo 48/08.7P6PRT, da 3ª Vara Criminal do Tribunal Judicial do Porto, pena essa de 4 anos e 6 meses, sem que, em nenhum momento, lhe tenha sido concedida a liberdade condicional.
12. Tendo sido restituído à liberdade a 12 de Julho de 2014, no final do cumprimento da primeira pena a que vinha condenado.
13. À data, o Mmo. Juiz do TEP titular do processo, na esteira defendida pelo MP, sempre se opôs a que o aqui Autor beneficiasse do regime previsto para a liberdade condicional, não tendo procedido à convocação do conselho técnico e audição do então arguido, uma vez que, no seu entendimento, a não estabilização processual do arguido, aqui autor, a tal impedida, alegando ainda que, mais tarde, o autor viria a beneficiar do regime previsto para a execução sucessiva de penas quando o segundo processo transitasse em julgado,
14. O que nunca veio a ocorrer.
15. A 26 de Setembro de 2016, o Autor entregou-se voluntariamente no Estabelecimento Prisional do Porto, para cumprir a pena de 14 meses de prisão efetiva a que vinha condenado, no âmbito do processo n.º 534/12.4SJPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Local, Secção Criminal, J3.
16. Por se tratar de uma execução sucessiva de penas, a execução da pena de prisão foi acompanhada pelo processo 657/11.7TXPRT, 1º Juízo do TEP do Porto, tal como havia acontecido com o anterior processo n.º 48/08.7P6PRT, que correu termos na então 3ª Vara Criminal do Porto.
17. Feita a liquidação da segunda pena, estabeleceu-se, o seguinte:
a) Meio da pena: 26 de Abril do ano 2017;
b) Dois terços: 06 de Julho de 2017;
c) Termo: 26 de Novembro de 2017.
18. O aqui Autor, foi libertado a 12 de Julho do ano 2014 sem que tivesse beneficiado da liberdade condicional e sem que tivesse sido submetido a conselho técnico aos dois terços de cumprimento da pena para apreciação da concessão ou não da liberdade condicional ao então arguido.
19. Tal sucedeu em virtude de o Mmo. Juiz titular do processo 657/11.7TXPRT, 1º Juízo do TEP do Porto ter sempre considerado que o processo º 534/12.4SJPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Local, Secção Criminal, J3, seria um caso de execução sucessiva de várias penas, pelo que aguardava pelo trânsito desta última para convocar o conselho técnico com vista a prolação de uma decisão conscienciosa acerca da liberdade condicional do então recluso, aqui Autor.
20. O Ilustre Procurador, no âmbito do processo º 657/11.7TXPRT, 1º Juízo do TEP do Porto, fundamentou sempre a sua oposição à convocação do conselho técnico alegando que estaríamos perante uma execução sucessiva de várias penas de prisão e que, à data, não estavam reunidas as condições necessárias para que se efetuasse o respetivo e necessário cômputo das penas a executar sucessivamente.
21. Se o respetivo cômputo tivesse sido efetuado, teríamos que: o arguido, no âmbito do primeiro processo pelo qual veio condenado, cumpriu a pena de prisão de 54 meses.
22. Mais tarde, em finais de Setembro do ano de 2016, o Autor iniciou o cumprimento da outra pena de prisão a que foi condenado, no total de 14 meses.
23. Juntando ambas as penas, temos um cômputo de 68 meses, equivalente a 5 anos e 8 meses, de prisão efetiva.
24. O Mmo. Juiz titular do Processo 657/11.7TXPRT, 1º Juízo do TEP do Porto, o então Exmo. Procurador do MP, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 141º, alínea i), do C.E.P.M.P.L., não procedeu ao respetivo cômputo, para efeitos de concessão, ou não, da liberdade condicional.
25. Em finais do ano de 2016, o então recluso, elabora um requerimento no qual solicita que sejam apreciados os pressupostos para a liberdade condicional, pedindo ao Mmo. Juiz titular do processo que notificasse o MP para dar cumprimento ao estatuído no artigo 141º, alínea i) do C.E.P.M.P.L., de forma a apreciar se estavam verificados os pressupostos para a concessão, ou não, da liberdade condicional ao então arguido, aqui Autor, convocando-se o conselho técnico, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 173º e ss. do C.E.P.M.P.L.
26. Por despacho com data de 19 de Dezembro do ano de 2016, o Mmo. Juiz titular do processo 657/11.7TXPRT, 1º Juízo do TEP do Porto, e em consonância com a vista do MP, decide que não estaríamos perante um caso de execução sucessiva de penas e, como tal, indefere a pretensão do recluso, aqui Autor.
27. Recusando-se a convocar o conselho técnico e a proceder à audição do recluso com vista à concessão, ou não, da liberdade condicional.
28. Em 12 de Julho do ano de 2014, já o Tribunal tinha conhecimento da condenação de que Autor havia sido alvo.
29. O aqui Autor, nunca beneficiou do regime da liberdade condicional, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 63º do Código Penal.
30. Do despacho referido no ponto 27 da presente p.i. veio o Autor, então arguido, recorrer, no dia 9 de Janeiro de 2017.
31. Não tendo incidido nenhum despacho a admitir ou a rejeitar o recurso então interposto, o arguido, ora Autor, faz novo requerimento ao processo solicitando ao Mmo. Juiz que profira o competente despacho.
32. Por decisão datada de 24 de Março de 2017, o Mmo. Juiz profere despacho negando a pretensão do recluso, aqui Autor, alegando que o despacho então em crise não seria, em sua opinião, suscetível de recurso, por não se tratar de um despacho que apreciara se o então recorrente reunia, ou não, os pressupostos para que lhe fosse concedida a liberdade condicional.
33. Da decisão a rejeitar o recurso interposto, veio o então recluso, aqui Autor, reclamar para o Douto Tribunal da Relação do Porto.
35. Que veio a sufragar o entendimento postergado pelo Mmo. Juiz do Tribunal de 1º Instância, pois que, em seu entender, tal despacho não seria recorrível, visto: “o indeferimento da apreciação da liberdade condicional pode retardar a respetiva apreciação, mas não nega nem recusa a concessão da liberdade condicional. O recurso a que alude o n.º 1 do artigo 179º (…). É limitado à questão da concessão ou recusa da liberdade condicional. Ou seja, só é admissível recurso da decisão final, aquela que afinal do processo ou incidente, após instrução, reunião do conselho técnico, audição do recluso e parecer do MP, decide de mérito, isto é, decide conceder ou recusar a liberdade condicional.”

IV-O DIREITO APLICÁVEL
O aqui Apelante B… pede a condenação do Estado Português no pagamento da quantia global de € 360.000,00 (trezentos e sessenta mil euros), quantia acrescida dos juros de mora legais, alegando que, no âmbito do processo n.º 48/08.7P6PRT, foi condenado, por sentença transitada em julgado em 06-09-2011, a quatro anos e seis meses de prisão efetiva.
A execução desta pena foi acompanhada pelo processo único de recluso n.º657/11.7TXPRT, que correu termos no Juízo de Execução de Penas do Porto.
Neste processo não foi apreciado se estavam reunidos os requisitos para que lhe fosse concedida liberdade condicional por, em 21-02-2013, ter-se considerado que o facto de decorrer inquérito contra este (com o n.º 534/12.4SJPRT) não permitia concluir que B… tinha a sua situação processual estabilizada e, assim, uma “decisão conscienciosa quanto à liberdade condicional…”. B… cumpriu a totalidade da pena que lhe foi imposta, tendo sido libertado no seu termo, ocorrido em 12-07-2014.
Em 26 de setembro de 2016 (mais de dois anos após a sua libertação), B… iniciou o cumprimento de 14 meses de pena de prisão efetiva, a que foi condenado no âmbito do processo n.º534/12.4SJPRT, sendo o cumprimento desta pena acompanhado no mesmo processo único de recluso (657/11.7TXPRT).
O Autor, em finais de 2016, requereu, no âmbito deste último processo, que fosse apreciada a verificação dos pressupostos da liberdade condicional, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 173.º e ss do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (doravante C.E.P.M.P.L.), aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro.
O que fez por considerar que, não tendo sido apreciada a concessão da liberdade condicional no processo 48/08.7P6PRT, com fundamento na existência deste segundo processo e na não estabilização da sua situação processual, estar-se-ia perante um caso de execução sucessiva de penas, pelo que haveria de efetuar-se o somatório das penas de prisão (54 meses + 14 meses) e o recluso ser libertado (liberdade condicional) quando cumprisse os 56 meses de prisão, isto é, em finais de novembro de 2016.
Por despacho, datado de 19-12-2016, foi-lhe recusada a sua pretensão, pelo facto das penas de prisão não terem sido cumpridas de forma ininterrupta (entre 12 de julho de 2014 e 26 de setembro de 2016 esteve em liberdade) e, assim, não se estar perante um caso de execução sucessiva de penas, previsto no artigo 63.º do Código Penal e no artigo 141.º, alínea i) do C.E.P.M.P.L.
B… recorreu deste despacho para o Tribunal da Relação do Porto, recurso que não foi admitido, por despacho proferido em 24-03-2017, por se tratar de despacho irrecorrível, já que, ao contrário da regra geral da recorribilidade das decisões em processo penal, prevista no artigo 399.º do CPP, no âmbito do direito penitenciário a regra é da excepcionalidade da recorribilidade das decisões, que apenas é de admitir nos casos expressamente previstos na lei, como decorre do n.º1 do artigo 235.º do C.E.P.M.P.L, sendo que, quanto à liberdade condicional “… o recurso é limitado à questão da concessão ou recusa da liberdade condicional”, como decorre do n.º1 do artigo 179.º do C.E.P.M.P.L., e não quanto à decisão referente à apreciação ou não da verificação dos seus pressupostos. Como se tratava, não da negação da liberdade condicional, mas tão só sua relegação para um momento posterior, foi tal decisão considerada irrecorrível.
Face à não admissão do recurso, o Autor B… reclamou deste despacho para o Juiz Presidente do Tribunal da Relação do Porto, o qual, por decisão de 18-04-2017, indeferiu tal reclamação, com o mesmo fundamento utilizado no despacho de não admissão do recurso.
Considera B… que as decisões de 19-12-2016, de 24-03-2017 e de 18-04-2017 consubstanciam atos ilícitos, por entender, ao contrário do aí decidido, que:
a) o Mm.º Juiz do Juízo de Execução de Penas deveria ter apreciado a verificação dos pressupostos da liberdade condicional, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 63º do CP e 173.º e ss do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (doravante C.E.P.M.P.L.), por, na data da libertação do Recorrente, ser já conhecida a sua condenação em pena de prisão efetiva no âmbito do processo n.º 534/12.4SJPRT, o que, no seu entendimento, levaria a que se estivesse perante um caso de execução sucessiva de penas;
b) o Mm.º Juiz do Juízo de Execução de Penas e o Presidente do Tribunal da Relação do Porto deveriam ter admitido o recurso apresentado da decisão que antecede, porque a recusa de apreciação da verificação dos pressupostos de facto da liberdade condicional consubstanciaria, para os efeitos do disposto nos artigos 179.º, n.º1 e 235.º do C.E.P.M.P.L., uma negação, de facto, da liberdade condicional, pelo que tal decisão seria recorrível.
Foi proferido saneador-sentença, que desatendeu a pretensão indemnizatória do Autor, tendo absolvido o Réu Estado Português do pedido, com o fundamento na falta de revogação prévia da decisão danosa, por decisão transitada em julgado, o que consubstanciaria uma condição de procedência da ação exigível nos casos de responsabilidade extracontratual do Estado por erro judiciário, como decorre do artigo 13.º n.º2, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
O aqui Apelante defende, através deste recurso, que tal requisito deve ter-se por demonstrado pelo facto de aquele ter desencadeado todos os meios ao seu dispor para obter a revogação da decisão danosa, revogação que não ocorreu por se ter considerado irrecorrível a decisão.
Vejamos então se o tribunal recorrido poderia ter considerado verificado o requisito apontado, o que constitui uma verdadeira condição de procedência da ação, com a atuação levada a cabo pelo Autor no âmbito do processo de execução de penas, ao interpor recurso e ao reclamar do despacho que rejeitou o recurso interposto.
Para tanto, haverá que proceder á interpretação da norma em causa para se perceber se é legítima tal interpretação.
Quanto á interpretação da lei, o art. 9º do Código Civil, fornece ao intérprete importantes fatores a considerar na tarefa de interpretação das leis.
Assim dispõe o nº 1 desta norma legal que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”
E o nº 2 dispõe que “Não pode porém ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”
Finalmente o nº 3, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
A formulação legal contempla os elementos tradicionalmente apontados como os fatores a considerar na interpretação da lei (cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 17.ª reimpressão, 2008, pp. 181-185): o elemento gramatical (a “letra da lei”) e o elemento lógico (o “espírito da lei”), onde se integram o elemento racional ou teleológico (ratio legis, o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), o elemento sistemático (consideração das outras disposições que integram o instituto em que se insere a norma interpretanda e bem assim as disposições que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins, pressupondo-se que o conjunto normativo compõe um todo coerente) e o elemento histórico (a história evolutiva do instituto, os textos legais e doutrinais, nomeadamente estrangeiros, que inspiraram a norma interpretanda, os trabalhos preparatórios).
Prescreve o artigo 13.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, aplicável à data dos factos, que:
“... 1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”
Conforme refere Ana Celeste Carvalho in Responsabilidade Civil do Estado, Centro de Estudos Judiciários, Julho de 2014, disponível em Ebook, em linha no site http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Responsabilidade_Civil_Estado.pdf, (página 48), esta norma reporta-se à responsabilidade civil extracontratual do Estado, pelos atos ilícitos praticados no exercício da função jurisdicional, mas tão só aquela que se reporta aos atos materialmente jurisdicionais, que passam pela interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, por magistrado judicial ou do Ministério Público, caindo a responsabilidade pela administração e organização do sistema judiciário e do seu serviço, designadamente pela violação do direito a uma decisão razoável, no âmbito de aplicação do artigo 12.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro.
A exigência da prévia revogação da decisão danosa constitui um pressuposto da ação de responsabilidade e tem o significado de se exigir o reconhecimento prévio do erro judiciário pelo sistema de justiça.
Decorre desta norma que não cabe ao juiz da ação civil condenatória fundada em erro judiciário aferir da bondade da decisão que, alegadamente, terá sido tomada em desconformidade com a lei ou Constituição ou de forma desfasada com os pressupostos de facto constantes no processo, mas sim ao juiz do processo, ou do tribunal superior, da jurisdição com competência para apreciar tal questão, fazendo-o no âmbito do efetivo exercício da função de decidir o caso concreto.
Como refere Ana Celeste Carvalho (loc cit página 56), “Tal pressuposto tem o significado de salvaguardar a autoridade da sentença e o instituto do caso julgado, por o juiz da ação de responsabilidade não se pronunciar sobre a bondade intrínseca da decisão jurisdicional proferida, deixando-a intacta, tal quale.
Essa opção do legislador compatibiliza os institutos da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado, preservando a paz social, pois impede a reabertura de conflitos antigos, que determinem a perda de segurança no sistema judicial.”
Nestes termos, o legislador, com a Lei 67/2007, de 31 de dezembro, fez depender a exigibilidade da indemnização devida pelo Estado, pelos danos decorrentes do manifesto erro judiciário (aqui se englobando o erro sobre a matéria de facto e de direito), da existência de uma decisão judicial que reconheça esse erro e que tenha sido obtida por via dos mecanismos de impugnação dessa mesma. Isto porquanto, por não se poder presumir o erro, é essencial que o mesmo seja reconhecido judicialmente, não bastando a mera qualificação e reputação pelo autor como tal. Tal reconhecimento terá de ser feito por tribunal hierarquicamente superior, por via da interposição de recurso, ou ainda pelo próprio do juiz, no âmbito do poder jurisdicional, que ainda mantenha após proferida decisão.
Tal pressuposto consubstancia uma verdadeira condição de procedência da ação, pelo que a sua inobservância tem como consequência a improcedência da ação com a absolvição do Réu do pedido (ver acórdão da Relação do Porto de 16-10-2017 (no Proc. n.º 379/16.2T8PVZ.P1, relator: Miguel Baldaia de Morais).
Assim sendo, atentos os elementos a que supra se fez referência, nomeadamente a ratio do preceito, o elemento gramatical (a “letra da lei”) e o elemento lógico (o “espírito da lei”), onde se integram o elemento racional ou teleológico (ratio legis, o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), o elemento sistemático (consideração das outras disposições que integram o instituto em que se insere a norma interpretanda e bem assim as disposições que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins, pressupondo-se que o conjunto normativo compõe um todo coerente) a interpretação restritiva da norma ora defendida defendida pelo Apelante não tem correspondência com a norma em causa, que se mostra devidamente interpretada pelo tribunal que a aplicou, já que se exige a prévia revogação da decisão, o reconhecimento do erro pelo sistema judicial e não apenas que aquele que se considere vitima de erro tenha “provocado” tal decisão.
Da conformidade da norma com a Constituição da Republica Portuguesa.
Posto isto coloca-se agora a questão de saber se tal norma ser revela em oposição ao direito nacional (Lei Fundamental – cfr. artigos 18.º e 22.º), o que poderá verificar-se, alega o Apelante quando uma decisão não seja passível de reação, maxime de recurso.
Tal situação, de acordo com a posição defendida pelo aqui Apelante configura violação do Princípio da Responsabilidade Civil do Estado (artigo 22.º da CRP), a sua efetividade e implica ainda uma limitação e ainda uma compressão/limitação arbitrária, violadora do disposto no artigo 18.º, n.º2 da CRP, bem como violadora do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP.
Desde já podemos dizer que concordamos com a posição defendida pelo Ministério Público, na muitíssimo bem elaborada resposta ao recurso que apresentou, cujas contra-alegações se mostram cuidadosamente fundamentadas.
Assim sendo, pode aí ler-se o seguinte: O artigo 22.º da CRP consagra o princípio constitucional da responsabilidade direta do Estado pelos danos patrimoniais ou não patrimoniais causados pelas ações e omissões praticadas pelos agentes do Estado no exercício das suas funções e por causa desse exercício, designadamente no exercício da função jurisdicional. Tal princípio constitucional constitui a génese do regime da responsabilidade extracontratual do Estado, previsto na Lei 67/2007, de 31 de dezembro, que o concretizou no plano infraconstitucional, sem prejuízo dos regimes especiais previstos quanto à responsabilidade decorrente da privação injustificada da liberdade (artigo 27º, nº 5, da CRP e artigos 225º e 226º do CPP) e pela sentença penal condenatória injusta (cfr. artigo 29º, nº 6, da CRP e artigo 462º do CPP).
Ora, o artigo 22.º da CRP consubstancia um direito fundamental de natureza análogo aos direitos, liberdades e garantias (enunciado como tal por Jorge Miranda, in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 3.ª edição, Coimbra Editora, Janeiro de 2000, página 151 e 289) e, por tal, sujeito ao seu regime (conforme previsto no artigo 17.º da CRP), nomeadamente ao previsto no artigo 18.º da CRP, designadamente a sua aplicabilidade direta a pessoas coletivas e singulares (n.º1), bem como a possibilidade da sua restrição, por lei formal (n.º2), na medida do estritamente necessário à salvaguarda outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Primeiramente, diga-se que a aplicabilidade direta do disposto no artigo 22.º da CRP, não afasta uma aconselhável conformação dos seus pressupostos, pelo legislador ordinário, atenta a grande amplitude deste normativo constitucional, que encerra situações de responsabilidade muito diversas. Efetivamente, as situações subjacentes à responsabilidade civil do Estado por ações ou omissões lesivas no âmbito do exercício da função legislativa, administrativa ou jurisdicional são entre si distintas e, por tal, merecedoras de um tratamento adequado às suas especificidades.
Nestes termos, é entendido, no que se reporta ao artigo 22.º da CRP, que a sua aplicabilidade direta a pessoas singulares e coletivas (artigo 18.º, n.º1 da CRP, aplicável por força do artigo 17.º da CRP), não impede que se reconheça ao legislador ordinário “… uma larga margem de conformação…”dos pressupostos de que pode fazer depender a responsabilidade civil do Estado, já que “..o artigo 22.º é diretamente aplicável (art. 18.º, n.º1), se bem que não é imediatamente exequível quanto às formas jurisdicionais de efetivação”.
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007., pg 429 “…a Constituição não oferece uma disciplina exaustiva do instituto da responsabilidade do Estado e não pretendeu aniquilar normas constantes da legislação ordinária reguladoras desta responsabilidade, desde que não sejam contrárias às normas e princípios constitucionais. (…) Esta disciplina jurídico-constitucional diretamente aplicável deixa larga margem de conformação ao legislador quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado e constitui uma disciplina normativa aberta ao desenvolvimento judicial do instituto da responsabilidade.”
Nesta matéria importará ainda atentar na jurisprudência resultante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-02-2015 (Proc. n.º2210/12.9TVLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt (relator Pinto de Almeida): “…não estando expressamente definidos no art. 22° dessa Lei Fundamental, os termos concretos em que o Estado e as demais entidades públicas podem ser responsabilizados civilmente pelas ações ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes no exercício das suas respetivas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, tal significa, para um qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art. 236º nº 1 do Código Civil), que o Legislador Constitucional quis deixar totalmente ao critério do Legislador Ordinário a tarefa de clarificar em que específicas condições esse direito dos lesados resultante desses atos e omissões podia ser exercido - e qual exata medida do ressarcimento que poderia ser almejado e alcançado por esses titulares de tal direito. (…)…e o estatuído no Regime Jurídico aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, mais não é do que o cumprimento dessa obrigação do Legislador Ordinário, a qual, para este Tribunal Superior, pode e deve ser entendida como equitativa e proporcionada, logo e consequentemente, como não violadora de qualquer preceito constitucional, nomeadamente os invocados pelo apelante ou até o consubstanciado no nº 4 do art. 20° da Constituição da República que, em conjugação com o estatuído nos art°s 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217 A (III), de 10 de Dezembro de 1948, 6° nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, e 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Anexa ao Tratado de Lisboa, assegura e garante a todos, com força obrigatória direta e geral (art.° 18° nº 1 da Constituição da República), o direito a um julgamento leal, não preconceituoso (fair and unbiased) e mediante processo equitativo.”
Daqui se conclui que a norma em causa não viola nem o princípio, nem a efetividade da responsabilidade civil do Estado (artigo 22.º da CRP), a sua efetividade
Mas implicará a mesma uma compressão/limitação da responsabilidade civil do Estado arbitrária, desadequeada, não proporcional e como tal, violadora do disposto no art. 18º nº 2 da CRP, tal como propugna o aqui Apelante?
Vejamos.
Dispõe o artigo 18.º nº 2 da CRP o seguinte:
A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Esta norma consagra o princípio da proporcionalidade, o qual servirá também de “bitola” para aferir se a concretização e conformação do âmbito deste artigo não se tratará de uma compressão arbitrária ou desproporcional.
Neste circunspeto há que ponderar que, ao admitir-se que o Estado venha a ser condenado por erro judiciário, não revogado previamente por decisão judicial obtida por meio dos mecanismos de impugnação disponíveis no processo em que foi proferida, colocar-se-ia irremediavelmente em causa a segurança e a certeza jurídica, interesses também consagrados constitucionalmente no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, como decorrência do Estado de Direito de democrático, de que emergem.
Assim, a opção do legislador, nas palavras de Ana Celeste Carvalho, in obra citada, pg 56 “…compatibiliza os institutos da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado, preservando a paz social, por impede a reabertura de conflitos antigos, que determinem a perda de segurança no sistema judicial.”
Também Luis Fábrica in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, em anotação a esta norma (apesar de a seguir se referir a estes fundamentos como “frágeis” e “criticáveis”) escreve, pg 341, que “Os fundamentos constitucionais invocados em apoio desta visão restritiva reconduzem-se á independência dos tribunais e á força do caso julgado, enquanto decorrências elementares das competências cometidas á Jurisdição. A função precípua dos tribunais de prossecução da paz jurídica - através da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, da restauração da legalidade e da resolução de conflitos (art. 202º nº 2 da Constituição) – só pode ser prosseguida se houver independência do julgador em face de todos os outros interesses (art. 203º da Constituição) e se os litígios ficarem definitivamente extintos, através de decisões dotadas de especial autoridade e estabilidade (art. 205º nº 2 da Constituição).”
Cita ainda o Ac do STJ de 13.12.2009, Proc 9180/07.3TBBRG.G1.S1: permitir que as instâncias no âmbito de uma ação de indemnização por erro judiciário, procedessem à “apreciação crítica de uma decisão tomada, em último grau, pelo Supremo Tribunal de Justiça representaria uma total e inaceitável subversão da regulamentação do nosso sistema judiciário”.
E prossegue aquele autor, pg. 342 e 343, “A previsão constitucional de uma indemnização pelos danos resultantes da privação da liberdade contrária á Constituição e á lei (art. 27º nº 5) ou de uma condenação penal injusta (art. 29º nº 6) é encarda nesta ordem de ideias, como uma solução excecional: feita a ponderação entre os princípios constitucionais acima referidos e, por outro lado, a liberdade e outros bens pessoais eminentes afetados pela aplicação da lei criminal, a prevalência dada a estes últimos expressa a relevância suprema da dignidade da pessoa humana no contexto constitucional vigente (art. 1º).”
O Tribunal Constitucional no acórdão proferido no processo n.º363/2015, publicado no Diário da República n.º 186/2015, Série II de 2015-09-23, apreciou esta questão, julgando “…não inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º2 do Regime Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”,
Na sua fundamentação diz-se que admitir a responsabilidade civil do Estado, por erro judiciário na aplicação do direito ao caso concreto, sem que houvesse uma prévia revogação dessa decisão, com recurso aos meios de impugnação previstos nesse processo e, assim, sem recurso ao sistema de recursos previsto, levantaria o seguinte a seguinte questão: “porque é que a decisão do juiz da ação de responsabilidade deve prevalecer sobre a decisão do juiz da causa inicial?”
Pode aí ler-se o seguinte: “A segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário - em que, por regra, as decisões mais importantes e mais bem fundamentadas são tomadas por tribunais onde têm assento os juízes mais qualificados (cf. por exemplo, o artigo 211.º e ss. da Constituição) - constituem bens constitucionais reconhecidos. Por outro lado, é ainda uma lógica sistémica que explica que o recurso jurisdicional não seja nem universal nem ilimitado, ou que os tribunais se organizem de acordo com certos critérios de especialização. Ora, são precisamente estas considerações que estão na base da ideia de que permitir que um ato judicial «consolidado» - porque não impugnável ou não impugnado tempestivamente - possa vir a ser ulteriormente «desautorizado», mesmo que para os efeitos limitados de reconhecimento de um erro judiciário, por outro tribunal - porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma ordem diversa de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior - constitui um ilogismo institucional (cf. o Acórdão n.º 90/84 e Cardoso da Costa, "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado...", cit., p. 164).”
Conforme referido na contra-alegações de recurso do Ministério Público, o sistema dos recursos e da hierarquia dos tribunais, parte integrante da estrutura do sistema judiciário e o exercício da função jurisdicional, resolve esta questão ao atribuir a apreciação de uma decisão judicial por tribunais hierarquicamente superiores, compostos por juízes e juristas escolhidos tendo por base o critério do mérito (artigo 215.º, n.º3 e 4 da CRP), o que lhe confere autoridade para revogar e substituir a decisão de um outro tribunal.
Assim, mais incoerente do que um tribunal vir desautorizar a decisão proferida por um outro tribunal na mesma posição hierárquica, seria que uma decisão judicial proferida por um tribunal de primeira instância viesse a desautorizar a decisão de um tribunal hierarquicamente superior, da qual não coubesse recurso.
Nestes termos, considera-se que a exigência de prévia revogação da decisão danosa, não pelo juiz da ação de responsabilidade civil, mas com recurso aos meios de impugnação legalmente previstos como reação a uma decisão judicial, é uma restrição necessária, mas também adequada, ao princípio geral da responsabilidade direta do Estado, consagrada no artigo 22.º da CRP. Isto porquanto, de outra forma, colocar-se-ia em causa, nas palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional 363/2015, supra referido, a “racionalidade sistémica e a coerência institucional” do ordenamento jurídico português. Albergando-nos, nas sua doutas palavras, “… uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, em princípio, e salvo razões juspositivas de especial relevo (como as que estão presentes nos recursos extraordinários de revisão), não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira (nem tão-pouco uma eventual terceira ou quarta decisão sobre a decisão imediatamente anterior – é o problema da regressão infinita); menos ainda se poderá admitir, igualmente salvo razões juspositivas de especial relevo, que a decisão judicial definitiva sobre uma dada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior.”
Finalmente e por último é ainda relevante mencionar os mecanismos processuais postos á disposição das partes, previstos na lei que podem ser utilizados em situação de irrecorribilidade, pois qualquer das partes pode requerer a retificação da sentença e de despachos, para fazer face a desde logo a situações de lapsos manifestos ou omissões (cfr. arts. 613º nº 2 e 3 e 614º do CPC), que permitem tais retificações pelo juiz de julgamento, e ainda, mesmo após o trânsito em julgado, a possibilidade de revisão de sentença, nos termos do art. 696º do C.P.C. e 449º do Código de Processo Penal, designadamente quando tal decisão seja inconciliável com uma outra proferida por instância internacional (TEDH ou TJUE), que vincule o Estado Português.
Há ainda a considerar a possibilidade de, nos casos em que se esteja perante a violação da Constituição da República Portuguesa, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, cuja decisão equivalerá à prévia revogação.
Estamos pelo exposto em crer, em consonância com as posições supra expendidas, que as restrições decorrentes desta exigência legal sub judice, se faz de forma necessária, adequada e proporcional e, assim, ainda dentro da margem de concretização do principio geral da responsabilidade direta do Estado e da permissão concedida pelo n.º2 do artigo 18.º da CRP.
Quanto á violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, não podemos deixar de seguir, uma vez mais, de perto (subscrevendo-as) as contra-alegações apresentadas pelo Ministério Público, nestes autos de recurso.
Com efeito, não se vislumbra que a interpretação do n.º2 do artigo 13.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, no sentido que lhe é dado pela douta sentença recorrida, seja violadora do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
É de notar que, por um lado, o princípio da igualdade comporta duas vertentes: “tratar igual o que é igual e diferente, o que é diferente”. Ora, conforme supra referido, a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário acarreta problemas diversos daqueles que se verificam na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, prevista no artigo 483.º do CC. Por tal, justifica-se fazer depender a sua verificação de pressupostos adicionais, designadamente: da sua qualificação como erro grosseiro e da prévia revogação da decisão danosa. Além do mais, os casos que poderão ficar de fora serão situações que se distinguem, de forma objetiva, das demais, por a sua reduzida relevância (designadamente por se tratarem de despacho de mero expediente ou por a questão já ter sido reapreciada, no mesmo sentido, por dois tribunais de hierarquia distinta) não justificar a interposição de recurso, admitindo ainda, no âmbito do que se entende ser o principio da igualdade, um tratamento diferenciado.
Por outro lado, como supra já fizemos referência, não estando em causa um direito absoluto, é admissível a sua restrição/limitação, nos termos e com os fundamentos supra referidos.
Da violação do Direito da União Europeia.
Defende o Apelante que no caso em apreço a exigência da "prévia revogação da decisão danosa" constitui uma violação do direito Europeu pela decisão jurisdicional causadora de danos, ou seja, é uma restrição, não autorizada pelo direito Europeu e pela interpretação dele feita pelo TJUE, do direito dos particulares a obterem a reparação dos danos causados por violações, pelos Estados-Membros, dos direitos conferidos pelo Direito Europeu. Porquanto, e tendo em conta a jurisprudência do TJUE, a condição de "prévia revogação da decisão danosa" não deve ser aplicada nos casos em que está em causa a responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário, sob pena de se pôr em causa o princípio do primado afirmado na jurisprudência do TJUE nos acórdãos Costa vs. Enel (C-6/64), Simmenthal (C-106/77) e Internationale Handelgesellschaft (Proc. 11/70).
Nestes acórdãos citados pelo recorrente está em causa a aplicação do direito europeu de responsabilidade civil do Estado em situações de violação do direito europeu.
Daí que, antes de mais, haverá que perceber se no caso em apreço, estamos ou não perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual do Estado Português por violação do direito da União Europeia.
A situação trazida a juízo, a qual, segundo o Apelante é geradora de responsabilidade civil extracontratual do Estado Português, é uma situação decorrente da aplicação de direito penal/processual penal por parte dos tribunais portugueses.
À partida, o facto de estar em causa a aplicação de direito de natureza penal, tal não exclui a aplicabilidade do direto da União Europeia.
Isto porque, com o Tratado de Lisboa, tornou-se incontroversa a competência da União Europeia, designadamente em face dos artigos 82º, 83º e 85º e 225º nº 4 do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia), para adotar regulamentos e diretivas em matéria penal.
Porém, no caso em apreço, o imputado erro judiciário passa apenas pela eventual aplicação errónea de normas de direito interno (cfr. artigo 63.º do CP e 141.º, alínea i), 179.º, n.º1 e 235.º, todos do C.E.P.M.P.L. (Código de Execução de Penas e Medidas de Privação de Liberdade).
Não está assim em causa a aplicação de qualquer ato de direito europeu, isto é de normas dos Tratados ou de Diretivas ou Regulamentos europeus.
Está assim em causa a responsabilidade do Estado Português por aplicação de direito nacional. Concretamente está em causa a aplicação das aludidas normas de natureza penal.
Aliás no caso “Kobler” de 30 de Setembro de 2003 (acórdão disponível in http://curia.europa.eu/, local onde se encontram disponíveis os demais acórdãos do TJUE citados), estando em causa a responsabilidade por violação cometida no exercício da função jurisdicional do Estado, o próprio TJUE afirmou a este respeito que “há que ter em conta a especificidade da função jurisdicional bem como as exigências legitimas de segurança jurídica” e que “só pode haver responsabilidade do Estado resultante de uma violação do direito comunitário por tal decisão, no caso excecional do juiz ter ignorado de modo manifesto o direito aplicável (paragrafo 53). O TJUE acrescentou ainda que “uma violação do direito comunitário é suficientemente caraterizada quando a decisão em causa foi tomada violando manifestamente a jurisprudência do Tribunal de justiça na matéria”. Ver Comentário ao Regime Geral da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Publicas, citado, pg 200.
Porém, mais recentemente o TJUE, no acórdão proferido no caso João Filipe Ferreira da Silva e Brito de 9 de setembro de 2015 (disponível in loc cit), teve oportunidade, na sequência de um pedido de reenvio dum tribunal português (Varas Cíveis de Lisboa), de se pronunciar concretamente sobre a conformidade da norma aqui em causa neste recurso - o art. 13º nº 2 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro - afirmando o seguinte: “Resulta das considerações precedentes que há que responder à terceira questão que o direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação está, na prática, excluída.”
Para decidir que: “O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída.” (sublinhado nosso).
Estava em causa a interpretação e aplicação duma diretiva europeia (artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2001/23) e a responsabilidade do Estado português tendo o tribunal entendido que um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial de direito interno é obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia um pedido de decisão prejudicial de interpretação do conceito de «transferência de estabelecimento» na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2001/23, em circunstâncias, como as do processo principal, marcadas simultaneamente por decisões divergentes de instâncias jurisdicionais inferiores quanto à interpretação desse conceito e por dificuldades de interpretação recorrentes desse conceito nos diferentes EstadosMembros.” Não o fazendo, incorre em violação do Direito Europeu), tendo ainda concluído que “ O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída.”
O que o TJUE pretende com a jurisprudência citada é garantir a efetividade e correta aplicação do direito comunitário pelos Estado Membros, mais precisamente pelos seus órgãos jurisdicionais, reforçando a sua vigência. É tão só nesta sede que vigora a invocada efetividade do direito Europeu, bem como o princípio da proteção jurídica efetiva do cidadão, o princípio da cooperação legal (artigo 4.º, n.º3 do TUE) e o princípio do primado do Direito Europeu.
Ora o erro judiciário a que se refere o TJUE é aquele em que ocorre violação do direito originário ou derivado do da União Europeia.
E o princípio do primado, aplica-se quando os tribunais nacionais incorrem em tal erro por violação de tal direito, já não quando se limitam a aplicar o direito nacional.
Porém, no caso em apreço, como vimos, está apenas em causa uma situação de aplicação de direito nacional, pelo que não é aplicável aqui aquela jurisprudência do TJUE.
Só não será assim se for aplicável á situação dos autos a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, (a seguir designada por CDFUE ou por “Carta”).
A Carta, proclamada em 7 de dezembro de 2000, só se tornou vinculativa em 1 de dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa.
Estabelece o artigo 6º do TUE, adotado em Lisboa estabelece o seguinte:
1. A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.
De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados.
Os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem ser interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do Título VII da Carta que regem a sua interpretação e aplicação e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência, que indicam as fontes dessas disposições.
2. A União adere à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Essa adesão não altera as competências da União, tal como definidas nos Tratados.
3. Do direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros.
Ao atribuir-se à Carta o estatuto de direito originário é dado um salto quantitativo e qualitativo na problemática da proteção multinível dos direitos fundamentais no contexto da União Europeia.
De facto, a partir de 2009, verifica-se um incremento dos casos discutidos perante o Tribunal de Justiça com apelo às disposições da Carta.
Por outro lado, há igualmente um reforço qualitativo na proteção dos direitos fundamentais na UE, uma vez que a Carta não só torna mais visível e acessíveis os direitos fundamentais já reconhecidos na UE, acolhendo no seu texto direitos proclamados noutras convenções internacionais e na jurisprudência do TJ enquanto princípios gerais de Direito da União Europeia, como ainda reconhece direitos novos.
Daí que tenhamos agora que apreciar a questão suscitada pelo aqui Apelante de saber se a decisão judicial em causa é suscetivel de violar o artigo 6º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que contempla o os diretos é liberdade e á segurança, caso em que ocorrerá uma violação do Direito Europeu, situação que a verificar-se conduzirá á aplicação da jurisprudência do TJUE citada.
A professora Alessandra Silveira, no seu interessante artigo “O âmbito de Aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: Recai ou não recai? — Eis a questão!” publicado na Revista Julgar nº 22- 2014, disponível na Julgar on line, debruça-se precisamente sobre “o problema que se coloca aos tribunais nacionais que se deparam com a aplicação dos direitos previstos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) é precisamente o de saber em que circunstâncias tais direitos seriam aplicáveis e como aferir do nível de proteção mais elevado. O presente texto equaciona o problema do âmbito de aplicação da CDFUE à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a fim de auxiliar os operadores jurídicos portugueses na quotidiana tarefa de deslindar se a questão sub judice recai ou não no âmbito de aplicação do direito da União — e se, nesta medida, o padrão de jusfundamentalidade aplicável seria aquele que resulta da CDFUE, segundo a lógica de interconstitucionalidade que a inspira. Importa, portanto, tentar captar, à luz da teoria da organização jurídica dos sistemas federativos, a base teorética que oferece sustentação à jurisprudência do TJUE naquela matéria, assim como as consequências da entrada em vigor da CDFUE na repartição de competências jurisdicionais sobre direitos fundamentais e no próprio processo de integração.”
E diz o seguinte: “Resulta da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), agora contemplada no art. 51.º, n.º 1 da CDFUE, que os direitos fundamentais protegidos pela União Europeia podem ser invocados pelo particular quando a medida impugnada (europeia ou nacional) integra o âmbito de aplicação material do direito da União.
No que diz especificamente respeito aos Estados-Membros, estes estariam vinculados pelas disposições da Carta «apenas quando apliquem o direito da União», muito embora o TJUE proceda a uma interpretação bastante ampla de tal expressão.
Assim, da jurisprudência constante do TJUE decorre que os Estados- Membros devem respeitar os direitos fundamentais protegidos pelo direito da União quando:
1) aplicam o direito da União (originário ou derivado);
2) derrogam temporariamente disposições europeias;
3) transpõem diretivas europeias;
4) adotam normas nacionais que executam/dão exequibilidade às disposições europeias;
5) aplicam direito nacional que «entre no campo de aplicação do direito da União».”
E como realça a professora Alessandra Silveira, é aqui que surgem as maiores dificuldades, ou seja na tarefa de identificar o que recai ou não neste âmbito de aplicação que nem sempre é simples e inequívoca — sobretudo tendo em conta o frenético desenvolvimento do direito da União Europeia e o crescente volume de normas europeias que regem o nosso quotidiano coletivo. E desta identificação depende, como veremos, a aplicação do padrão de jusfundamentalidade da União.
É necessário para tanto e desde logo, ter em consideração para o efeito, o teor do art. 51º da Carta que precisamente define o seu campo de aplicação.
Estabelece esta norma o seguinte:
“1.As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidos á União pelos Tratados.
2.A presente Carta não tona o âmbito de aplicação do direito da União extensivo a competências que não sejam da União, não cria quaisquer novas atribuições ou competências para a União, nem modifica as atribuições e competências feitas pelos Tratados”.
A professora Alessandra Silveira in Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, Almedina, em anotação ao artigo 51º, pg 572 e ss escreve o seguinte:
“É que a entrada em vigor da CDFUE oferece um catálogo de direitos fundamentais a todos os que se submetem à jurisdição da União – que passam a reconhecer previamente, os seus direitos neste contexto – mas não altera a essência da construção pretoriana dos direitos fundamentais da União, resultante do diálogo entre jurisdições, porque os direitos fundamentais continuam a ser aplicados segundo critérios próprios do direito da União- ou filtrados pelo modelo jurídico da integração europeia.”
E acresce “A efetividade do direito da União ficaria ameaçada se os tribunais nacionais resolvessem a questão de jusfundamentalidade, que recai no âmbito de aplicação do direito da União, exclusivamente á luz da ordem jurídico-constitucional interna – porque estriam a impedir que todos os cidadãos europeus beneficiassem do padrão de jusfundamentalidade (mais elevado) aplicável á situação concreta.”- pg 574 e 575.
Mas coloca-se então a pergunta. “neste contexto de interconstitucionalidade que estamos a descrever, em que situações concretas será aplicável o padrão de jusfundamentalidade da União?”
Como explica Alessandra Silveira, pg 577, “Do exposto deriva que o âmbito de aplicação dos direitos fundamentais da União Europeia está intimamente relacionado com a sua esfera de competências – não foi por outra razão que a entrada em vigor do “catálogo de direitos fundamentais da União” foi acompanhado da definição do “catálogo de competências da União” nos Tratados Constitutivos. E é também por isso que o art. 51º nº 1 da CDFUE exorta á observância do princípio da subsidiariedade e no seu nº 2 insiste que a Carta não amplia o âmbito de aplicação do direito da União, não cria novas competências para a União, nem as modifica. Isto é, o art. 51º da Carta tenta introduzir antídotos contra a “temível” ampliação dos poderes da União via proteção dos direitos fundamentais – ou, noutros termos, tenta evitar que os direitos fundamentais contemplados na CDFUE sejam interpretados como um reconhecimento implícito de novas faculdades para a União, em todas as matérias sobre as quais se projetam os direitos fundamentais.”
Importa salientar que a definição do âmbito de aplicação do direito da União para fins do art. 51.º, n.º 1, da CDFUE não é pacífica — sobretudo porque o TJUE tem feito uma interpretação significativamente ampla daquele âmbito.
Equacionando o problema do âmbito de aplicação da CDFUE à luz da jurisprudência do TJUE, resulta da jurisprudência assente do TJUE que, somente a atividade do Estado-Membro relativa a matérias estranhas ás competências e ao direito da União resulta afastada da jurisdição daquele tribunal no domínio dos direitos fundamentais. (ver CDFUE Comentada, supra citada, pg 580).
Equivale isto a dizer que para aplicação da CDFUE é necessária a aplicação (para além da norma da Carta) de uma outra disposição de direito da União (direito originário, derivado, etc). Ou seja, no caso concreto além da aplicação da norma da Carta seria necessária a aplicação de uma outra norma da União, que pode ser, por exemplo, uma disposição de uma Diretiva que já foi transposta atempadamente (ou seja, mesmo depois de transpostas de forma clara e atempada através de leis nacionais as disposições da Diretiva continuam a ser aplicáveis enquanto parâmetros de interpretação e validade das normas nacionais), um regulamento ou norma decorrente dos Tratados.
Com efeito, muito recentemente além da reconhecida eficácia vertical, na aplicabilidade da CDFUE, o TJUE reconheceu já a eficácia horizontal – (desde o caso Egenberg de Abril de 2018, disponível in loc supra citado) tendo o TJUE decidido que – “Um órgão jurisdicional nacional ao qual tenha sido submetido um litígio que opõe dois particulares está obrigado, quando não lhe seja possível interpretar o direito nacional de maneira conforme com o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78, a assegurar, no âmbito das suas competências, a proteção jurídica que decorre para os litigantes dos artigos 21.o e 47.o da Carta e a garantir o pleno efeito desses artigos, se necessário afastando a aplicação de qualquer disposição nacional contrária.”).
“Já no acórdão Akerberg (processo C-617/10), disponível in loc citado), o TJ havia esclarecido que os direitos fundamentais garantidos pela Carta devem ser respeitados quando uma regulamentação nacional se enquadra no âmbito de aplicação do direito da União, pois “não podem existir situações que estejam abrangidas pelo direito da União em que os referidos direitos fundamentais não sejam aplicados” (parágrafo 21). E nos casos seguintes, Siragusa (processo C-206/13) e Marcos (processo C-265/13), o TJ reiterou que a Carta se aplica em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora dessas situações; significa isto que quando uma situação jurídica não está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, o Tribunal de Justiça não pode conhecê-la e as disposições da Carta por si só não são suficientes para fundamentar essa competência. No caso Siragusa, o TJ acrescentou ainda que “o conceito de «aplicação do direito da União», na aceção do artigo 51.º da Carta, impõe a existência de um nexo de ligação de um certo grau, que ultrapassa a mera proximidade das matérias em causa ou as incidências indiretas de uma matéria na outra” (parágrafo 24); ou seja, importa verificar se a regulamentação nacional visa “aplicar uma disposição do direito da União, qual o caráter dessa legislação e se a mesma prossegue objetivos diferentes dos abrangidos pelo direito da União, ainda que seja suscetível de afetar indiretamente este último, bem como se existe uma regulamentação de direito da União específica na matéria ou suscetível de o afetar” (parágrafo 25). Em suma, a Carta só poderá ser chamada à colação se, no caso em apreço, além de se aplicar uma norma da Carta, uma outra disposição de direito da União for considerada relevante para o caso”.- ver Sofia Oliveira Pais, in Estudos da União Europeia, pg 176 e 177.
Voltando agora ao caso em apreço, não tem aplicação a CDFUE, visto não estar em causa a aplicação de direito europeu, apenas de normas de direito nacional.
Falha assim o necessário pressuposto, que como vimos decorre do art. 51º da CDFUE, para a sua aplicabilidade da Carta e consequentemente do direito europeu ao caso em apreço.
Em suma, o que TJUE pretende com a jurisprudência citada pelo Apelante é garantir a efetividade e correta aplicação do direito europeu pelos Estado Membros, mais precisamente pelos seus órgãos jurisdicionais, reforçando a sua vigência. É tão só nesta sede que vigora a invocada efetividade do direito Europeu, bem como o princípio da proteção jurídica efetiva do cidadão, o princípio da cooperação legal (artigo 4.º, n.º3 do TUE) e o princípio do primado do Direito Europeu.
Não se está pois perante qualquer violação do artigo 6.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo valor jurídico lhe é dado pelo artigo 6.º do TUE, mas que, face ao seu artigo 51.º (da CDFUE), apenas é aplicável aos Estados quando estes estejam a aplicar direito comunitário, o que não é o caso.
Violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
Invoca ainda o Apelante a violação do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a seguir designada por CEDH, que estabelece o direito a um processo equitativo.
Haverá ainda a considerar o disposto no 41° que dispõe que “Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos e se o direito interno da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte lesada uma reparação razoável, se necessário.
São múltiplas as fontes de direitos fundamentais na União Europeia e várias as entidades que procedem à respetiva interpretação e aplicação – a CDFUE é interpretada pelo Tribunal de Justiça (TJ) ao passo que a CEDH pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).
A Convenção Europeia para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH) foi adotada pelo Conselho da Europa em 1950, entrou em vigor em 1953, vincula todos Estados-Membros da UE e pode ser invocada por qualquer pessoa dentro da jurisdição de um Estado Membro (trata-se, em todo o caso, de uma proteção subsidiária, aplicável apenas depois de esgotadas as vias internas). De facto, nos termos do artigo 1.º, da CEDH, “as Altas Partes contratantes reconhecem a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades previstos na Convenção”; significa isto que ao ratificarem a CEDH os Estados assumem a obrigação de garantir a compatibilidade das suas leis nacionais com a Convenção, bem como de adotar soluções que garantam a sua aplicação eficaz. A CEDH impõe, deste modo, obrigação positivas aos Estados, obrigações estas que têm sido interpretadas de forma ampla pelo TEDH.
É certo que a União Europeia não aderiu (ainda?) à CEDH pelo que, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, do TUE, a Convenção não é direito da União; logo, não obstante poder ser fonte de inspiração de princípios gerais de direito da UE, e de os direitos fundamentais serem parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça, não poderá a CEDH ser invocada pelos particulares no ordenamento interno enquanto norma da União, nem poderá prevalecer sobre normas nacionais contrárias.
Conforme decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-02-2015 supra citado,“(…)e o estatuído no Regime Jurídico aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, mais não é do que o cumprimento dessa obrigação do Legislador Ordinário, a qual, para este Tribunal Superior, pode e deve ser entendida como equitativa e proporcionada, logo e consequentemente, como não violadora de qualquer preceito constitucional, nomeadamente os invocados pelo apelante ou até o consubstanciado no nº 4 do art. 20° da Constituição da República que, em conjugação com o estatuído nos art°s 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217 A (III), de 10 de Dezembro de 1948, 6° nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, e 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Anexa ao Tratado de Lisboa, assegura e garante a todos, com força obrigatória direta e geral (art.° 18° nº 1 da Constituição da República), o direito a um julgamento leal, não preconceituoso (fair and unbiased) e mediante processo equitativo.”
Pelo exposto em conclusão, não vemos que o art. 13º nº 2 Lei 67/2007, de 31 de dezembro seja contrário aos princípios constitucionais, bem como ao direito interno e internacional a que Portugal se encontra vinculado, devendo por conseguinte ser julgado improcedente o recurso interposto.

V-DECISÃO.
Pelo exposto e em conclusão acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante.

Porto, 10.7.2019
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
Maria Eiró