Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3318/18.2T8PRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: ALIMENTOS
DOAÇÃO INDIRETA
Nº do Documento: RP202006163318/18.2T8PRT.P2
Data do Acordão: 06/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato em que alguém faz intervir a filha na escritura pública, como compradora de um imóvel, pagando o respetivo preço de aquisição, apresenta uma finalidade correspondente ao negócio típico da doação.
II - Nessa situação, ocorre uma “doação indireta”, tendo o contrato de compra e venda funcionado como “negócio-meio”, ou seja, como negócio apto a transmitir o direito de propriedade sobre o imóvel, sendo aplicáveis ao negócio, na medida em que a analogia das situações o justifique, as regras do contrato de doação.
III - Assim sendo, uma doação de um imóvel, mesmo que feita de forma indireta é fonte da obrigação de prestar alimentos, estabelecida no art. 2011º do Código Civil, obrigação essa que não assenta nos vínculos de solidariedade familiar, mas sim numa ideia de justiça, no sentido em que se o carecido de alimentos, entretanto e também por via da doação que efetuou ficou sem meios de subsistência, transferiu para o donatário a obrigação alimentar de que careça o doador.
IV - Para que se verifique a obrigação de prestação de alimentos pelo donatário, além de se ter que verificar a necessidade do credor e da possibilidade do devedor, é requisito da obrigação de prestação de alimentos que, por um lado, o bem doado servisse para o sustento do doador, se lá estivesse (no património do doador), e, por outro lado, que tivesse gerado riqueza no património do donatário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3318/18.2T8PRT.P2

- Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto -
Juízo Local Cível do Porto - Juiz 4
SUMÁRIO
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
B… intentou Ação de Alimentos Definitivos com processo comum contra C… e D…, pedindo a fixação da quantia de €600,00 a título de alimentos a prestar, solidariamente, pelas rés.
Alegou, para tal e em suma, que se encontra desempregada e impossibilitada de trabalhar, auferindo uma pensão de sobrevivência no montante de €180,00. Mais padece de problemas de saúde. Alegou ainda que após o seu divórcio procedeu à doação do imóvel que havia sido casa de morada de família à sua filha C…, o que permitiu que esta a ordenasse a sair, passando a autora desde então a viver em quartos e obrigada a recorrer ao apoio da Segurança Social carecendo, assim, de meios para prover à sua subsistência de forma digna.
Mais alegou que as rés, por sua vez, têm formação superior, encontrando-se ambas empregadas.
As rés contestaram a ação, tendo negado a doação do imóvel. Mais alegaram que foi a autora que as abandonou, sendo a ré D… ainda menor de idade, o que deixou marcas irreversíveis na vida das rés.
Alegaram ainda que não tem capacidade financeira para prestar alimentos à mãe, sendo que a ré C… encontra-se desempregada e a ré D… com vínculo contratual a termo desde junho de 2018, encontrando-se a concluir mestrado na Faculdade de Economia da Universidade E… e têm de suportar diversas despesas mensais que elencaram.
Deduziram pedido reconvencional pedindo a condenação da autora a indemnizá-las no montante de €7.500,00 a título de danos não patrimoniais sofridos com a conduta da autora em virtude do abandono e sujeição a processos judiciais.
A autora replicou invocando a inadmissibilidade legal da reconvenção, bem como que o alegado ocorreu há mais de dez anos.
As rés responderam à réplica e a reconvenção foi admitida.
Veio a ser realizada a audiência final, tendo sido proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“A) Julga-se a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a rés dos pedidos formulados pela autora;
B) Julga-se a reconvenção improcedente e absolve-se a autora/reconvinda do pedido.
C) Condena-se a autora nas custas da ação e as rés nas custas da reconvenção.”
Inconformada, a Autora B… interpôs o presente recurso de Apelação, tendo formulado as seguintes conclusões:
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Contra-alegar C… E D…, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
Admitido o recurso, cumpre apreciar e decidir.
II - OBJETO DO RECURSO:
As questões decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber:
- se ocorre nulidade da sentença por falta de fundamentação;
- se houve erro na apreciação da prova;
- se em consequência houve uma doação da mãe á filha e se essa doação é fonte da obrigação de prestação de alimentos e:
- se tal obrigação cessa por violação grave dos deveres da progenitora.
III-DA NULIDADE DA SENTENÇA
A Apelante invoca a nulidade da sentença dizendo em suma que o tribunal a quo desvalorizou o depoimento prestado pela autora, sem fundamentação, o que configura uma nulidade de sentença.
Para tanto afirma que o tribunal a quo desconsiderou as declarações da recorrente dizendo: “Já o depoimento da autora embora também tenha denotado afeto e vontade de aproximação com as filhas, foi confuso e pouco convincente”, o que representa uma nulidade da sentença.
Parece-nos manifesta a não ocorrência do vício apontado.
Com efeito, as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação da sentença e encontram-se taxativamente enunciados no nº1, do art. 615º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com a eventual discordância da apelante á convicção formada pelo tribunal em face da prova produzida.
A nulidade por falta de fundamentação está prevista na al. b) dessa norma legal e ocorre quando o tribunal “não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Constitui uma consequência da violação do artigo 205º, n.º 1, da Constituição e do artigo 154º do CPC (aplicável aos despachos em geral) bem como do artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 (aplicável á sentença).
Em especial, o artigo 154.º impõe ao tribunal o dever de fundamentar as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo, a qual fundamentação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição da parte. Poderá, porém, consistir numa adesão a outra decisão, em clara economia processual.
E tem sido entendido porém, de forma reiterada e unânime pela doutrina e jurisprudência, que este vício (falta de fundamentação) só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respetivo enquadramento legal.
Ora, no caso em apreço, é manifesto que a Apelante discorda da fundamentação feita na sentença, não que não exista fundamentação da decisão, pelo que é não ocorre o vício da nulidade invocado.
Improcede pois a nulidade invocada.
IV-DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa." (sublinhado nosso).
A “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII salientou o intuito do legislador de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada ao referir que “para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória – são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede á reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”.
Porém, a possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova reanalisados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do C.P. Civil, sem olvidar porém, o princípio da oralidade e da imediação.
Com efeito, há que ponderar que o tribunal de recurso não possui uma perceção tão próxima como a do tribunal de 1ª instância ao nível da oralidade e sobretudo da imediação com a prova produzida na audiência de julgamento. Na verdade, a atividade do julgador na valoração da prova pessoal deve atender a vários fatores, alguns dos quais – como a espontaneidade, a seriedade, as hesitações, a postura, a atitude, o à-vontade, a linguagem gestual dos depoentes – não são facilmente ou de todo apreensíveis pelo tribunal de recurso, mormente quando este está limitado a gravações meramente sonoras relativamente aos depoimentos prestados.
Assim sendo, se a decisão do julgador se mostra devidamente fundamentada, segundo as regras da experiência e da lógica, não pode ser modificada, sob pena de inobservância do princípio da livre convicção.
À luz destas considerações e princípios, cumpre reanalisar a decisão proferida sobre os pontos da matéria de facto que se mostram impugnados pelo Recorrente.
A Apelante impugna a prova do seguinte facto, que pretende que passe a integrar o elenco dos factos não provados:
“18- No ano de 2004 a ré C… ficou inibida do uso de cheques na sequência de cheques sem provisão sacados de conta que tinha conjunta com a autora.”
Sustenta o erro de julgamento no facto do tribunal ter valorado documentos que foram impugnados, quer na letra quer na assinatura e alegando ainda que as testemunhas (que não identifica) foram “perentórias ao afirmar que esta nunca teve conta com ninguém.”
Carece de razão a Apelante desde logo porque os documentos em que o tribunal baseou a sua convicção respeitantes a esta factualidade e que a sustentam são os documentos juntos a fls. 224 e ss com origem no Banco de Portugal, dos quais resulta que a Ré C…, em Abril de 2004, passou a integrar a listagem de utilizadores de cheques que oferecem risco desde 12.11.2003, os quais foram conjugados, com as declarações da Ré C… que relatou ao tribunal ter ficado inibida do uso de cheques em consequência de ser titular de contas em estabelecimentos bancários com a sua mãe, tendo esta passado cheques sem cobertura, tendo tido que se dirigir a várias instituições bancárias, para resolver a situação que muito a perturbou, juntamente com o seu pai, por que na altura tinha apenas 21 anos de idade.
Isto mesmo foi confirmado pelo depoimento do pai da Ré C…, F… e pelo seu então namorado, a testemunha G….
Improcede pois a impugnação efetuada.
A Apelante impugna ainda o facto provado sob o nº 19, com o seguinte teor:
“19- Em janeiro de 2003 o pai das rés não vivia com elas, tendo voltado para casa após a saída da autora.”
Pretende que seja dada resposta negativa com base no depoimento que prestou e com base no depoimento da testemunha H…, empregada que foi da família durante mais de quarenta anos.
A prova por declarações de parte, nos termos enunciados no artigo 466.º do Código de Processo Civil, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir.
«A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas».[1]
Ora, no caso em apreço, nas declarações de parte que prestou a Autora declarou que o ex-marido nunca abandonou a casa de família, pelo que, quando a autora saiu de casa, na sequência da separação do casal, não abandonou as filhas, uma das quais menor de idade, que ficaram a viver com o pai.
Esta versão dos factos foi contrariada pelos depoimentos das filhas da autora e do seu ex-marido, que relataram que foi a autora quem saiu de casa e que nessa altura deixou as duas filhas sozinhas, as quais tiveram a iniciativa de chamar o pai, para cuidar delas, pai que, quando a mãe saiu de casa, já ali não vivia.
Ora tal como se lê na sentença, “o depoimento da autora mostrou-se desacompanhado de outros elementos de prova que o corroborassem, porquanto as testemunhas I… e J… apenas relataram factos que souberam da autora, não revelando conhecimento direto de tais factos.”
E a verdade é que a testemunha H…, em cujo depoimento a Apelante se baseia para pretender a alteração da matéria de facto provada, não se mostra bastante para tal.
Com efeito, esta testemunha que foi empregada doméstica da Apelante e em simultâneo da sua mãe durante muitos anos (cerca de 40) revelou que, quando ocorreu a separação do casal, já ela não era empregada na casa da Apelante e que apenas “soube por linhas travessas”, nas suas palavras, que a Apelante se tinha divorciado. E disse ainda que era empregada da mãe da Apelante, na altura em que aquela saiu de casa e foi viver para casa da mãe e que então, sabia apenas que a Apelante ali estava a viver, mas não sabia o que se estava a passar.
Daí que o depoimento desta testemunha não sirva para infirmar a convicção do tribunal formada com base no depoimento do pai das rés, que confirmou a versão dos factos destas.
Finalmente, a Autora impugna o facto 3 do elenco dos factos não provados, pretendendo que seja provada a doação alegada, o qual tem a seguinte redação:
“3- A autora, após o seu divórcio, procedeu à doação do imóvel sito na Rua …, n.º… - …, …. - …, Porto, no qual residia com as filhas, à ré C… com a garantia que no futuro seria refeita, que seria para ambas as filhas com reserva de usufruto.”
Este é, na verdade, um facto essencial, pois que a autora, para além de basear o seu pedido de prestação de alimentos no vínculo familiar, dirigindo-o às filhas, fundamenta igualmente tal obrigação na existência de uma doação dum imóvel a uma delas, invocando o disposto no art º 2 do art.º 2011 do CC. Na situação contemplada nesta norma, a obrigação de prestação de alimentos não nasce duma relação familiar, como a obrigação alimentícia propriamente dita, mas sim do dever de justiça que a lei impõe ao beneficiário da liberalidade, dentro das forças próprias desta.
Ou seja, aqui a lei parte do princípio que, em caso de necessidade da doadora, o bem doado responde pela satisfação dessas necessidades.
Diz a Apelante que quanto á alegada doação da casa, facto não provado, referiu a autora o seguinte: CD …-10-2019 10:05:41 “Sim, sim da herança. … foi comprada com dinheiro da herança. O problema do aval já esta resolvido. Já posso ter tudo em meu nome. A mais velha sabia do caso e era pra fazer o seguinte, ela ia-me doar, pra por em nome das duas filhas com usufruto meu.” A própria recorrida C…, agora contrariamente ao alegado, confessa que só foi assinar a escritura, a casa foi paga com dinheiro da mãe. Testemunha C… CD . .. – 10 - 2019 11:07:51 “Presumo que (a casa) foi comprada com dinheiro da herança. Perante a lei sou proprietária.” Juiz: Considerasse proprietária só porque está em seu nome? Testemunha: “Exatamente”.
Pois bem. Relacionado com este facto, que mereceu resposta negativa por parte do tribunal, do elenco dos factos provados consta o seguinte facto.
“17- Por problemas relacionados com empresa da família da autora a titularidade do imóvel sito na Rua …, n.º …, …, Porto, ficou em nome da ré C….”
E o tribunal formou convicção quanto ao mesmo, procedendo á seguinte análise crítica da prova: “No que tange à factualidade descrita no ponto 17) do elenco dos factos provados a mesma resultou provada em face de depoimento da autora que explicou que em virtude de ter tido problemas com a banca relacionados com a concessão de avais à empresa do pai, não podia ter bens em seu nome e quando adquiriu o imóvel na Rua … a titularidade da propriedade do mesmo ficou em nome da ré C…, o que foi confirmado pelas rés e se mostra corroborado pela análise da escritura de compra e venda junta aos autos na contestação, bem como pelo depoimento da testemunha L… que confirmou que a pessoa que conheceu como compradora do imóvel foi a autora, embora a escritura tenha sido realizada em nome de outra pessoa.(…)”
Tal como o tribunal a quo reconheceu: “(…) das declarações prestadas pelas partes na audiência final não resultou confirmada nem a versão da autora, que consistia na alegada doação do imóvel à ré, nem a versão das rés, segundo a qual o imóvel foi adquirido com dinheiro distribuído pelas filhas e pela autora.”
Porém, as declarações prestadas em audiência de julgamento pelas partes, autora e rés coincidiram no facto que a autora não podia na altura ter bens em seu nome, por causa de dívidas que tinha na banca, pelo que, ao pretender adquirir a casa de …, onde a família ficou a viver, “pôs a casa em nome da filha mais velha”, que á data era já maior de idade. Isto ficou refletido facto 17 dos factos provados.
Porém, o depoimento prestado pelas partes, autora e rés, coincidiu ainda num outro facto, o qual não foi incluído no facto 17 e que tem interesse para a decisão a proferir, relativamente ao qual também não se verificava acordo nos articulados.
Tem a ver com a propriedade do dinheiro que foi usado para pagar o preço do imóvel.
Não se provou a versão das rés que afirmaram na contestação, ao impugnarem a doação invocada pela autora que “por problemas financeiros relacionados com a empresa da família da Autora, esta não podia ter bens em seu nome, assim, a Autora vendeu a casa onde viviam, tendo o produto da casa sido distribuído pelas suas filhas e pela própria”.
“Com esse dinheiro, as filhas compraram a casa onde ainda hoje residem, tendo aí residido com a Autora, não tendo ao contrário do que a autora alega havido qualquer doação”- artigos 12 e 13 da contestação.
Ao invés, as rés reconhecem, nos respetivos depoimentos que o imóvel foi comprado com dinheiro da mãe, tal como a mãe relatou no seu depoimento.
E se dúvidas houvesse, o depoimento da vendedora do imóvel, a testemunha L…, é a esse respeito muito esclarecedor ao afirmar que a compra e venda foi exclusivamente negociada por si com a autora e que apenas apareceu a filha C… na escritura que ficou a constar como outorgante, por razões que disse já não se recordar. Relativamente ao preço negociado, lembra-se que a autora lhe disse que não ia pedir nenhum empréstimo e que na data da escritura recebeu um cheque visado da Autora, que lhe havia já pago uma quantia a título de sinal.
Emergiu assim da discussão da causa, que o dinheiro usado para pagamento do preço do imóvel em causa não havia sido distribuído pela mãe às filhas, antes o imóvel foi comprado com dinheiro pertencente exclusivamente á autora, dinheiro esse proveniente das partilhas do seu pai, tal como a mesma esclareceu.
Impõe-se assim proceder á necessária ampliação da matéria de facto, de molde a nela contemplar este facto relacionado com a titularidade do dinheiro utilizado na compra do imóvel, sendo que o processo, como acabamos de analisar contém elementos para tanto, assim se evitando a anulação da sentença, nos termos do disposto no art. 662º nº 2 al c) primeira parte do C.P.C.
Pelo exposto, na sequência da impugnação da matéria de facto feita pela Apelante, apesar de se manter a resposta negativa ao facto impugnado, porque efetivamente não se provou a celebração dum contrato de doação entre mãe e filha, – o que foi junto aos autos foi uma escritura pública de compra e venda do imóvel, em que a Ré, figura como compradora - o tribunal não pode deixar de complementar o facto 17 com a titularidade do dinheiro que foi utilizado para pagar o preço do imóvel - facto que, note-se, em audiência de julgamento mereceu o acordo das partes.
Assim impõe-se que o facto 17 passe a ter a seguinte redação:
17 - Por problemas relacionados com empresa da família da autora a titularidade do imóvel sito na Rua …, n.º…, …, Porto, que foi adquirido com dinheiro pertencente á Autora, ficou em nome da ré C….
Deverá por conseguinte ser alterada a matéria de facto em conformidade.
IV-FUNDAMENTAÇÃO
Com interesse para a decisão, encontram-se provados os seguintes factos:
(factos assentes)
1 - A ré C…, nascida em 9 de novembro de 1981 registada na Conservatória de Registo Civil como filha da autora B….
2 - A ré D…, nascida em 19 de janeiro de 1990, está registada na Conservatória de Registo Civil como filha da autora B….
3- A autora nasceu no dia 13 de maio de 1954.
4- O ex-marido da autora foi combatente do Ultramar e vive da pensão que aufere.
5- Em janeiro do ano de 2003 a autora saiu de casa onde morava com as filhas, sendo que a filha C… tinha 23 anos de idade e a D… 13 anos de idade.
6- A autora quando saiu de casa deixou de pagar as contas, deixou de fazer pagamentos para os estudos das filhas.
7- Em março de 2013 a autora foi hospitalizada em virtude de acidente doméstico.
8- Tendo as rés prestado assistência à autora durante o período de internamento, como após a alta hospitalar.
9- No ano de 2013 as rés levaram a mãe para casa com o intuito de a ajudar e prover às necessidades que pudesse carecer para a sua recuperação.
(Factos provados em julgamento):
10- A autora encontra-se desempregada.
11- A autora aufere uma pensão de sobrevivência no montante de €186,68.
12- A autora sofre de Hipertiroidismo e patologia psiquiátrica, que lhe determina a toma de medicação e gastos monetários com a compra dos mesmos.
13- No ano de 2013 a autora passou a viver em quartos arrendados e recorreu ao apoio da Segurança Social e amigos.
14- A autora tem conseguido alojamento temporário em quartos que oscilam entre os €170,00 e €250,00.
15- A autora alimenta-se com a ajuda de amigos e das instituições que fornecem comida a pessoas carenciadas.
16- As rés são licenciadas.
17- Por problemas relacionados com empresa da família da autora a titularidade do imóvel sito na Rua …, n.º…, …, Porto, que foi adquirido com dinheiro pertencente á Autora, ficou em nome da ré C… (facto ora alterado).
18- No ano de 2004 a ré C… ficou inibida do uso de cheques na sequência de cheques sem provisão sacados de conta que tinha conjunta com a autora.
19- Em janeiro de 2003 o pai das rés não vivia com elas, tendo voltado para casa após a saída da autora.
20- A ré C… teve dificuldades em proceder ao pagamento de contas de condomínio e propinas da universidade.
21- As rés concluíram a formação superior com o rendimento proveniente do aluguer da garagem do prédio descrito em 11) e através de recurso a empréstimo aos pais do namorado da ré C…, com o qual namorou até ao ano de 2010, e dos rendimentos do trabalho da ré C….
22- Com o descrito em 5) e 18) a 21) as rés sentiram tristeza e vergonha, desgosto, preocupação, ansiedade e nervosismo.
23- A ré C… é acompanhada no serviço de psiquiatria do Hospital M…
24- A ré C… encontra-se desempregada, auferindo subsídio de desemprego.
25- A autora não se preocupou com a vivência das filhas, pagamento das despesas das mesmas e acompanhamento escolar das mesmas.
26- As rés passaram Natais, aniversários, férias sem a presença da mãe.
27- No ano de 2008 autora apresentou queixa-crime contra a ré D… e o seu pai pelo crime de injúria e sequestro.
28- A ré D… teve de recorrer a apoio psicológico estando a ser acompanhada.
29- No ano de 2013 após o descrito em 7) e 8) dos factos assentes a autora entrou em conflito com o ex-marido, o que obrigou as rés a diligenciar um quarto para a autora ficar e deram dinheiro para prover a sua alimentação.
30- As rés têm as seguintes despesas mensais: a) Condomínio no valor de €63,22; serviço de internet e televisão no valor de €37,00; despesas de água no valor de €40,00, gás no valor de €30,00, eletricidade no valor de €85,00, telemóvel €40,00 e alimentação cerca de €400,00.
31- As rés suportam despesas de IMI no valor anual de €485,16.
32- O acompanhamento psicológico da ré tem custo mensal de €255,00 e €12,00 de medicação.
33- A ré C… tem a despesa mensal de €20,00 com medicação.
34- A ré D… suporta a despesa mensal de €150,00 para a Faculdade de Economia do E….
35- As rés sentiram vergonha, tristeza e ansiedade ao serem confrontadas com processos judiciais.
36- Após a ré D… terminar a formação superior a autora passou a solicitar-lhe dinheiro através do envio de mensagens escritas, o que a ré cedida.
E foram julgados não provados os seguintes factos:
1- A autora está impossibilitada de trabalhar.
2- A autora auferia uma ajuda ocasional da Segurança Social no montante de €80,00, que não recebe desde setembro de 2017.
3- A autora, após o seu divórcio, procedeu à doação do imóvel sito na Rua …, n.º…, …. - …, Porto, no qual residia com as filhas, à ré C… com a garantia que no futuro seria refeita, que seria para ambas as filhas com reserva de usufruto.
4- O que permitiu que a filha C… ordenasse à autora a saída de casa no ano de 2013.
5- A autora despende €50,00 em medicação e €18,00 no passe social que carece para se deslocar às consultas de saúde.
6- A autora está a residir desde novembro de 2017 na Rua …, n.º..., … andar, Porto.
V-O DIREITO APLICÁVEL
Aqui chegados importa saber se a alteração da matéria de facto implica ou não a alteração da decisão proferida nesta ação de alimentos.
A autora, ora apelante intentou esta ação de prestação de alimentos contra as suas duas filhas, pedindo a condenação das mesmas a prestarem-lhe a quantia mensal de €600,00 a título de alimentos.
Alegou para tanto que para garantir a sua subsistência necessita que lhe seja atribuída uma quantia a título de alimentos e que as suas filhas se encontram obrigadas a prestar-lhe alimentos, por força do dever de assistência dos filhos aos pais consagrado nos art.s 2003º do C.C., e alínea b) do art. 2009º nº 1 do CC e ainda no disposto no art. 2011º do C.Civil, invocando que procedeu á doação de um imóvel á filha C….
Quanto á noção de alimentos, entende-se por tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário (artº 2003º do CC), devendo atribuir-se ao termo “sustento” um sentido lato nele se integrando tudo o que é indispensável à satisfação das necessidades da vida, sendo que relativamente à sua medida, os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los, havendo ainda na sua fixação que atender-se à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência (artº 2004º do C.C.).
No caso em apreço, resulta da matéria de facto provada que a apelante carece de alimentos.
Com efeito, provou-se que a mesma, atualmente com 66 anos de idade, encontra-se desempregada, sofre de “hipertiroidismo” e “patologia psiquiátrica”, que lhe determina a toma de medicação e gastos monetários com a compra dos mesmos e aufere uma pensão de sobrevivência no montante de €186,68, sendo que vive em quartos arrendados, cujos preços oscilam entre os €170,00 e €250,00, tendo ainda emergido provado que a mesma se alimenta com a ajuda de amigos e das instituições que fornecem comida a pessoas carenciadas.
Resulta ainda do regime jurídico dos alimentos que “Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebe-los” (art. 2004 nº 1 do C.Civil).
Resta pois saber se as filhas da Apelante estão ou não obrigadas a prestar-lhe alimentos e caso esta resposta seja positiva se as mesmas dispõem de meios para esse efeito.
Analisemos a primeira questão, que é a de saber se existe ou não obrigação por parte das filhas á prestação de alimentos á mãe.
A discordância da Apelante da sentença proferida, que absolveu as rés do pedido formulado, reside no facto da mesma entender que ao contrário do decidido pelo tribunal inexiste qualquer violação grave dos deveres parentais pela autora, pelo que as mesmas, enquanto filhas têm tal obrigação legal para consigo e ainda porque fez uma doação da casa a uma das filhas.
Ora, quanto ás pessoas obrigadas a prestar alimentos, dispõe o art. 2009º do Código Civil, o seguinte:
1. Estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada:
a) O cônjuge ou o ex-cônjuge;
b) Os descendentes;
c) Os ascendentes;
d) Os irmãos;
e) Os tios, durante a menoridade do alimentando;
f) O padrasto e a madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste.
2. Entre as pessoas designadas nas alíneas b) e c) do número anterior, a obrigação defere-se segundo a ordem da sucessão legítima.
3. Se algum dos vinculados não puder prestar os alimentos ou não puder saldar integralmente a sua responsabilidade, o encargo recai sobre os onerados subsequentes.
Por sua vez o artigo 2011.º do C.C dispõe que:
1. Se o alimentando tiver disposto de bens por doação, as pessoas designadas nos artigos anteriores não são obrigadas à prestação de alimentos, na medida em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência.
2. Neste caso, a obrigação alimentar recai, no todo ou em parte, sobre o donatário ou donatários, segundo a proporção do valor dos bens doados; esta obrigação transmite-se aos herdeiros do donatário.
Enquanto que a obrigação de prestar alimentos a que se refere o art. 2009º do C.Civil assenta na relação familiar, sendo reconhecidamente o dever de alimentos um dever funcionalmente familiar [2], já que a obrigação existe por virtude do casamento e parentesco, o certo é que existem outras razões que levaram o legislador a consagrar esta obrigação.
Uma dessas razões é precisamente a consagrada no art. 2011º de ter havido disposição de bens pelo alimentando, por doação.
Neste caso, tal como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela [3], trata-se de uma obrigação que não assenta nos vínculos de solidariedade familiar, pelo que a obrigação só existe quando o necessitado tiver disposto de bens por doação.
Ou seja, aqui a lei parte do princípio que, em caso de necessidade da doadora, o bem doado responde pela satisfação dessas necessidades.
Esta obrigação, tal como referem os ilustres Professores, radica na circunstancia do donatário ter enriquecido gratuitamente o seu património à custa de quem, “entretanto, caiu em desgraça ou miséria económica” constituindo “um dever especial de gratidão imposto ao beneficiário da liberalidade, ou dever de restituição inspirado na velha ideia romanista de que nemi liberalis nisi liberatus est”. E acrescentam “(…) o donatário só responde pela obrigação alimentícia dentro do limite do valor dos bens doados pelo alimentando. (…) Se os vinculados à prestação legal só deixam de ser obrigados, na medida em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência e os antigos bens do doador só poderiam surtir esse efeito através dos seus rendimentos ou do produto da sua alienação, é evidente que o montante global das pensões mensais postas a cargo do donatário não pode exceder o limite do rendimento dos bens nem o produto da sua alienação.” [4]
Pois bem, a provar-se a doação, cessa a obrigação decorrente do vínculo familiar, deixando de estar obrigadas a tal as pessoas elencadas no citado art. 2009º do C.C., nomeadamente a Ré D…, filha da Apelante.
Daí que na apreciação deste recurso, se imponha em primeiro lugar a análise da existência ou não da obrigação de prestação de alimentos, tendo como fonte a eventual existência da doação.
Pois bem, nos pressentes autos, tal como se entendeu na sentença sob recurso não se provou que a aqui Apelante tivesse feito uma doação (pelo menos direta[5]) do imóvel sito no Porto, na Rua … a uma das filhas, tal como a autora alegou na p.i.
A junção aos autos da escritura pública de compra e venda do imóvel sito na Rua …, n.º…, … Porto, é esclarecedora dessa situação, já que na mesma figura como vendedora L… e como compradora do imóvel a aqui apelada C….
Com base na demonstração deste facto – do imóvel ter sido adquirido pela Ré C… – o tribunal a quo, na sentença proferida afastou desde logo a aplicação do art. 2011º do C.C. dizendo que não ficou provada a existência de qualquer doação, mas apenas que “por razões do interesse da própria autora a titularidade do imóvel ficou em nome da ré C….”
Vejamos.
Como prevê o artigo 940.º do Código Civil, doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espirito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente.
A doação de coisas imóveis só é válida se celebrada por escritura pública (art.º 947, n.º 1 do CC).
A doação tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a assunção da obrigação, quando for esse o objeto do contrato (art.º 954 do C.C.).
Na doação ocorre, por isso, sempre, uma atribuição patrimonial geradora de um enriquecimento que advém de uma transferência do doador para o donatário.
São requisitos, essencialmente, constitutivos da doação a disposição gratuita de certos bens, em benefício do donatário, ou seja, a atribuição patrimonial sem contrapartida económica, isto é, gratuitamente, independentemente de um correspondente de natureza patrimonial, à custa da diminuição da substância efetiva do património do doador, e o espírito de liberalidade, por parte do disponente, ou seja, o animus donandi, a ideia da generosidade ou da espontaneidade, oposta à da necessidade ou do dever.
Efetivamente, para haver doação, impõe-se que a atribuição patrimonial seja gratuita, e que não exista, portanto, um correspetivo de natureza patrimonial, embora possa existir uma contrapartida de natureza moral, sem que o ato perca a característica da gratuitidade.
No caso em apreço, não podemos dizer que tenha sido celebrado um contrato de doação entre autora e ré, pois como vimos está em causa um bem imóvel e tal contrato teria de ser celebrado mediante escritura pública o que não ocorreu.
Encontra-se porém, provado o seguinte facto: Por problemas relacionados com a empresa da família da autora a titularidade do imóvel sito na Rua …, n.º…, Porto, que foi adquirido com dinheiro pertencente á Autora, ficou em nome da ré C….
O imóvel de que é proprietária a Ré C… foi adquirido com dinheiro pertencente á Autora. Fi a autora quem negociou a compra e venda e pagou o respetivo preço. Porém, na escritura pública da compra e venda foi a sua filha C… quem ficou a constar na qualidade de outorgante/compradora.
Estaremos aqui perante a figura doutrinária e que vem sendo acolhida pela jurisprudência da “doação indireta”.
Na noção de Manuel de Andrade [6], “negócio indireto” é aquele cujos efeitos são realmente queridos pelas partes mas é celebrado por um motivo ou para um escopo ulterior diverso dos que estão de acordo com o fim característico (causa) do tipo negocial correspondente a um negócio típico ou tipificável, o negócio indireto é verdadeiro, não se confunde com a simulação, nomeadamente a simulação relativa.
O pagamento do preço do imóvel, não constituindo uma atribuição patrimonial direta como tipicamente a caracteriza o art.º 940 nº 1 do CC. configura, ainda, uma “atribuição patrimonial”, ainda que indireta, com espírito de liberalidade a justificar a aplicação analógica do regime da doação.
A ré C…, através do contrato de compra e venda do imóvel em que outorgou como compradora, constitui-se na obrigação de pagar o respetivo preço á vendedora. Essa obrigação foi cumprida pela sua mãe, que o pagou, como o seu dinheiro.
Antunes Varela,[7] refere a propósito da realização da prestação debitória por terceiro, satisfazendo o interesse do credor que a mesma determina a perda do direito de que este dispunha, podendo ou não levar à extinção do direito (hipóteses de sub-rogação legal, convencional ou transmissão do direito), devendo analisar-se a situação concreta em que se deu o pagamento ou realização da prestação debitória, designadamente a intenção do solvens.
“Se quis beneficiar gratuitamente o devedor, libertando o seu património do débito que o onerava, o cumprimento constitui uma liberalidade indireta ao beneficiário (quando este a aceite), á qual serão aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as regras do contrato de doação”.
Se bem que a ora Apelante não tenha sido motivada por interesses “altruístas” para com a sua filha, mas por meros interesses pessoais, já que situação teve origem nos “problemas monetários da autora relacionados com empresa da sua família”, (a autora reconheceu no seu depoimento que não podia ter bens em seu nome, por causa de dívidas á banca), o certo é que o património da Ré ficou enriquecido á custa do património da autora, pelo valor correspondente ao valor do imóvel.
A motivação “egoísta” da Apelante não retira o caracter liberatório típico da doação.
E também não suscita dúvidas o facto da Ré, na mencionada qualidade de compradora ter aceite tal liberalidade prodigalizada pela sua mãe (cfr. art. 954º, al. a), do CC), uma vez que aceitou outorgar a escritura na qualidade de compradora.
O que se verifica in casu, é pois uma doação indireta do imóvel feita pela Apelante á Apelada C…, formalizada por uma compra á vendedora que da mãe da Ré C… recebeu a totalidade do preço.
Tem assim de concluir-se que o direito de propriedade sobre o identificado imóvel, entrou na esfera jurídico-patrimonial da Ré C…, em consequência da correspondente doação (indireta) a si efetuada pela sua mãe (cfr. art. 954º, al. a), do CC).
Ocorreu assim uma “doação indireta”, tendo o contrato de compra e venda funcionado como “negócio-meio” – como negócio apto a transmitir o direito de propriedade sobre o imóvel, porquanto foi a Apelante que pagou o respetivo preço de aquisição e não esta, apesar de identificada como compradora.
Ou seja, tal compra e venda camufla e dá cobertura a uma verdadeira liberalidade praticada pela Apelante a favor da sua filha, consubstanciando a mesma uma verdadeira doação “indirecta”.
Na verdade, a mesma reúne os três correspondentes requisitos apontados por P. de Lima e A. Varela [8], ou seja:
a) - Disposição gratuita de certo bem em benefício do donatário, ou seja, a atribuição patrimonial sem correspetivo;
b) - Diminuição do património do doador; e
c) - Espírito de liberalidade.
Quanto a este último requisito, o doador deve através do seu ato pretender beneficiar o donatário sem visar qualquer contrapartida patrimonial, podendo no entanto esse fim concorrer com outros intuitos ou expectativas, sendo estes considerados como meros motivos do ato e, por isso, irrelevantes.
Ver entre outros, o acórdão da RL de 14.4.1972[9], no qual expressivamente se pode ler o seguinte:
“I-O contrato pelo qual determinada pessoa adquire um imóvel para dar a uma filha e, para atingir esse objetivo, a faz intervir, como compradora, na respetiva escritura integra uma doação indireta; II-Assim como não poderia dizer-se que a oferta de um imóvel, cuja aquisição o ofertante houvesse negociado, se traduzira na doação do dinheiro com que pagara o respetivo preço, assim também não pode afirmar haver tal doação, na oferta de um imóvel feita em tais condições, quando o ofertante haja escolhido, como meio traditício do bem para o presenteado, não uma escritura de doação subsequente á de compra, mas apenas esta, com intervenção nela do presentado; III-Portanto, a doação operada por via de um negócio cuja função típica é diferente, deverá rotular-se de indireta, sem que exorbite o art. 940º do Código Civil e além disso, o seu objeto não foi o prédio em que materialmente se traduziu, mas sim o respetivo valor, já que foi este que saiu do património do doador e ingressou no património do donatário por via do contrato formal ujo condicionamento que ele preencheu ao intervir naquela escritura.”
Ver também, mais recentemente os seguintes acórdãos [10]: do STJ de 1.4.2014 (relator Gabriel Catarino); da Relação de Lisboa de 8.11.2012 (relator Vaz Gomes) e de 24.10.2019 (mesmo relator); da Relação do Porto de 31.3.2005 (relator Fernando Baptista); de 11.4.2005 (relator Fernandes do Vale) e de 15.11.2018 (relator Jorge Seabra).
Posto isto, voltando á situação em apreço, a doação indireta feita pela Apelante á sua filha constitui uma doação para efeitos da aplicação do disposto no art. 2011º nº 1 do C.Civil, o qual dispõe que:
Se o alimentando tiver disposto de bens por doação, as pessoas designadas nos artigos anteriores não são obrigadas á prestação de alimentos, na medida em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência.”
Como vimos, na aplicação desta norma, a lei parte do princípio que, em caso de necessidade da doadora, o bem doado responde pela satisfação dessas necessidades.
Como se refere no Ac. do STJ de 09/06/1992[11] “No caso de doação, o fundamento da obrigação de alimentos, radica-se em considerações de natureza patrimonial, dado que, beneficiando os donatários de bens subtraídos, no futuro, à titularidade dos parentes, não há razão para que sejam estes a suportar os encargos com a satisfação das necessidades da doadora, alimentanda, respondendo, no entanto, os donatários pelas forças dos bens doados.”
“O que interessa para o credor da obrigação é que os bens doados pudessem garantir meios de subsistência “se lá estivessem” no património da doadora, in casu, que poderia dispor da sua alienação (no caso a propriedade do bem).[12]
Relevante nesta matéria, também, o Acórdão da RE 15-01-2004 [13], onde se salienta que a obrigação de prestar alimentos subsiste, mesmo que o bem doado deixe de existir no património do donatário: “Tendo o cônjuge, requerente de alimentos, doado a um filho bens e valores substanciais e tendo ficado em situação de carência de alimentos, a obrigação de prestar esses alimentos recai, em primeira linha, sobre o filho, beneficiário da doação (e não sobre o cônjuge ou ex-cônjuge), até perfazer o montante dos bens doados e independentemente de ainda existirem ou não no património daquele, nos termos do disposto n.º 2 do art.º 2011 do CC.”
No caso em apreço, a quantia que foi usada para pagamento do preço, a quantia “doada” à filha seria suficiente para assegurar à requerente (caso a não tivesse doado) os necessários meios de subsistência.
O valor atualizado do preço então pago, de €77.640,15 euros, em 2002, corresponde em 2018 (ano de entrada em juízo da ação) á quantia de €100.806,94 euros. [14]
O artigo 2011º do C.Civil é informado como vimos, não por razões familiares, (é indiferente, neste caso os laços familiares que unem doador/donatária) mas sim razões de justiça, no sentido em que se o carecido de alimentos, entretanto e também por via da doação que efetuou ficou sem meios de subsistência, transferiu para o donatário (neste caso a filha mais velha da recorrente) a obrigação alimentar de que careça o doador (n.º 2 do art.º 2011 do CC), até perfazer o montante dos bens doados e independentemente de ainda existirem ou não no património daquele.
Com efeito, resulta da matéria de facto provado, que após a doação do imóvel à filha a doadora, a apelante, atualmente com 66 anos de idade, vê-se numa situação económica difícil em que, para subsistir, para além de recorrer á Segurança Social tem de socorrer-se de instituições que fornecem comida a pessoas carenciadas e de pedir a ajuda económica a amigos, por não auferir rendimentos, alojando-se temporariamente em quartos que oscilam entre os €170,00 e €250,00.
A doação (indireta) do imóvel, como vimos é fonte da obrigação de prestar alimentos.
Além da necessidade do credor e da possibilidade do devedor, é requisito da obrigação que, por um lado, o bem doado servisse para o sustento do doador, se lá estivesse (no património do doador), o que nos parece claro e, por outro lado, que tivesse gerado riqueza no património do donatário.
Quanto a este requisito, para além de ter garantido “um teto” á donatária, todos estes anos (que bondosamente, diga-se, nele não deixou de acolher a irmã e o pai, com quem vive), provou-se ainda que as rés concluíram a formação superior com o rendimento proveniente do aluguer da garagem do aludido prédio (cfr. facto supra 21), ou seja o imóvel também lhe providenciou rendimentos.
Haverá agora que ponderar que “Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebe-los” (art. 2004 nº 1 do C.Civil).
Assim sendo, se as duas últimas condições se mostram preenchidas, resta aferir das possibilidades da devedora.
Provou-se que a Apelada é licenciada, mas encontra-se atualmente desempregada e a auferir subsídio de desemprego (facto supra 24).
É certo que não se provou que a donatária, tenha atualmente rendimentos por estar desempregada, para além daqueles que possa vir a retirar do imóvel “doado” de que é proprietária, nomeadamente através do arrendamento da garagem e/ou de quartos a estudantes, ou outros, sendo que tal situação serviu já, no passado, como fonte de rendimento para a Rés.
Assim, tudo ponderado, considerando que, em caso de necessidade da doadora, o bem doado responde pela satisfação dessas necessidades, entendemos adequado fixar a prestação de alimentos em €200 euros mensais, quantia devida desde a data da propositura da ação (art. 20026º do C.Civil) e até ao limite do valor do bem doado.
Restará por último dizer que não ocorre, ao contrário do entendimento vertido na sentença, quanto á Ré C… (e só a esta nos cumpre pronunciar) a situação contemplada no art. 2013º al c) do C. Civil.
Dispõe esta norma que cessa a obrigação de prestar alimentos quando o credor viole gravemente os seus deveres para com o obrigado.
Em primeiro lugar, há que realçar que a fonte da obrigação de prestação de alimentos em causa não é a relação de filiação, mas sim a existência de uma doação.
Em segundo lugar, analisando os factos provados, apenas no que respeitam à donatária, [15] não podemos afirmar que a Apelante tenha “violado gravemente” os seus deveres para com a Ré C…, tal como se entendeu na sentença.
Pese embora as fortes divergências familiares que separam esta mãe e filha, foram ambas vítimas da perda do poder económico que a família da Apelante beneficiava enquanto o pai da Apelante foi vivo.
A “desgraça”, para usar as palavras da ora Apelante atingiu todos e cada um dos membros da família.
A Ré C…, nas suas declarações em audiência de julgamento, chegou a reconhecer que na altura em que havia dinheiro, foi muito protegida, teve uma “ infância feliz” e foi “bem criada”, sendo que era a mãe quem custeava os colégios e universidade privados que frequentou.
Ora, esta vida “feliz” sofreu uma grande “reviravolta”, em 2003, quando o dinheiro acaba. A mãe debate-se com dívidas a bancos, divorcia-se do pai, sai de casa e deixa de se preocupar com a filha, deixando de lhe pagar quaisquer despesas, nomeadamente as contas de condomínio (do imóvel doado) e propinas da universidade, deixando-a ainda a ter que enfrentar problemas complicados relacionados com o facto da Ré C… ter ficado inibida do uso de cheques na sequência de cheques sem provisão sacados de conta que tinha conjunta com a autora.
Na perspetiva do dever de assistência dos pais a filhos, porém, constata-se que a donatária, tinha á data 23 anos de idade, era pois maior de idade e podia (e pôde) contar com os cuidados do pai. A Apelante deixou de se preocupar com ela e de pagar as suas contas, mas deixou-a com um “teto”, uma casa para viver (o imóvel doado), ao contrário da mãe, que veio ter que recorrer a quartos “alugados”.
Acresce que o dever de assistência de pais a filhos tendo em vista a formação profissional dos filhos maiores apenas se mantem “na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”, nos termos do que dispõe o art. 1880º do C.Civil.
Por último, não se provou que a situação da inibição dos cheques bancários, de que foi vítima a Ré, em consequência dos cheques sem cobertura passados pela mãe, tenha sido propositadamente causado por aquela e terá sido mais uma das consequências nefastas da quebra do poder económico que a família sofreu.
Assim sendo, entendemos que na situação em apreço, relativamente á filha maior da Apelante, não se verifica a gravidade da violação dos seus deveres, enquanto progenitora, suscetível de fazer cessar a obrigação em causa, por aplicação do art. 2013º al c) do Código Civil.
VI- DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão acordam os juízes que compõe este Tribunal da Relação do Porto, em proceder á alteração da matéria de facto, nos termos supra expostos e em consequência, revogar a sentença proferida, na parte em que absolveu a Ré C… do pedido, condenando-se a mesma a pagar à autora, a titulo e alimentos a quantia mensal de 200€ (duzentos euros), até ao limite do valor do bem objeto da doação indireta.
Custas pela Apelante e Apelada C… na proporção do decaimento.

Porto, 16 de Junho de 2020
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
Maria Eiró
__________
[1] Ver Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3.ª edição, página 278.
[2] Ver Abílio Neto in CC anotado, 14ª edição, em anotação ao artigo 2009.
[3] Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1995, vol. V, pág. 598, em anotação ao artigo 2011º.
[4] Idem, Código Civil Anotado, vol. V, p. 598/599.
[5] Ressalva nossa.
[6] Teoria Geral do Direito Civil, vol II, pág 17.
[7] In Obrigações em Geral, II vol, 4º ed. pág. 28
[8] in “CC Anotado”, Vol. II, 4ª Ed., págs. 237.
[9] Disponível in BMJ 216-190 (com suma´rio transcrito por Abilio Neto in CC anotado, 14º ed., pg. 1001.
[10] Estes disponíveis in www.dgsi.pt.
[11] proc. 082014 in www.dgsi.pt.
[12] Ver acórdão da RE 12 de fevereiro de 2015, disponível no mesmo loc.
[13] Relator Bernardo Domingues in loc cit.
[14] Valor obtido através do Portal do Instituto Nacional de Estatística, disponível in https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ipc, o qual aplicou o coeficiente 1,29838678524367.
[15] Já não relativamente á outra filha, afastada da obrigação desde logo por força do que dispõe o art. 2011º do C.C.