Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7365/13.2TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE VIDA
INVALIDEZ TOTAL E PERMANENTE
INEXISTÊNCIA DE RISCO
PROPOSTA
PREENCHIMENTO DO QUESTIONÁRIO
VINCULAÇÃO DO TOMADOR
Nº do Documento: RP202110217365/13.2TBVNG.P1
Data do Acordão: 10/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de seguro de vida com cobertura de invalidez total e permanente é nulo, por inexistência do risco, se no momento da sua celebração o tomador do seguro já se encontra numa situação de invalidez permanente.
II - Porém, essa circunstância não se deduz de modo automático da circunstância de já estar diagnosticada ao tomador de seguro uma doença que só mais tarde vem a suscitar o estado de invalidez permanente.
III - A aposição da assinatura num documento representa a assunção da autoria e/ou a vinculação aos termos do documento.
IV - Provando-se que o tomador do seguro não efectuou o preenchimento do questionário médico da proposta de seguro mas que a assinou já preenchida, ele fica vinculado pelas respostas ao questionário excepto se demonstrar que as respostas foram preenchidas pelo beneficiário do seguro sem lhes pedir a informação a levar às respostas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:7365.13.2TBVNG.P1.
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

Relatório:
B… e mulher C…, contribuintes fiscais n.º ……… e ………, respectivamente, residentes em …, Vila Nova de Gaia, intentaram acção judicial contra D… , SA, pessoa colectiva com a matrícula e a identificação fiscal n.º ………, com sede em Lisboa, e contra E…, SA, pessoa colectiva com a matrícula e a identificação fiscal n.º ………, com sede no Porto, pedindo:
a condenação das rés a reconhecer (i) que o autor está em situação de invalidez permanente com impossibilidade de angariar meios de subsistência; (ii) que a situação da incapacidade é irreversível; (iii) a 1ª ré a pagar ao 2º réu o remanescente do empréstimo do autor ainda em dívida, a contar da data em que ao autor foi reconhecida a situação de reforma por incapacidade permanente; (iv) o 2º réu pagar ao autor as prestações recebidas desde tal data, incluindo a quota-parte do prémio de seguro, acrescidas de juros à taxa legal.
Alegaram para o efeito que contrataram com o réu banco um mútuo para aquisição de habitação própria, no valor de €79.400,00, e, por exigência deste, com a ré seguradora um seguro de vida, na modalidade de adesão a seguro de grupo, para garantir o pagamento do empréstimo, em caso de invalidez ou morte de qualquer deles. Posteriormente uma Junta Médica da Segurança Social atribuiu ao autor, por motivos de doença, uma incapacidade de 66%. O autor dirigiu-se ao banco a comunicar a situação para efeito do seguro, mas foi-lhe comunicado não dispor das condições exigidas na apólice por alegadamente a sua incapacidade não ser total. Os autores não tomaram conhecimento das condições gerais ou especiais da apólice do seguro, visto que elas não lhes foram lidas, exibidas, entregues ou enviadas posteriormente à subscrição da proposta de contrato, e apenas têm conhecimento do que consta do certificado de seguro: morte ou invalidez permanente, entendendo por invalidez permanente a situação de por falta de saúde não mais poder exercer a sua profissão ou outro trabalho remunerado do mesmo género.
O réu banco contestou a acção, alegando que para efeito da celebração do contrato de seguro, cada um dos autores preencheu os impressos próprios relativos aos seus antecedentes de saúde e recebeu as condições gerais e especiais do contrato de seguro que iam celebrar, delas tomando conhecimento, tendo-lhe sido prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre as garantias e exclusões. Impugna ainda os demais factos alegados atinentes ao sucedido após a celebração dos contratos.
A ré seguradora contestou alegando que as condições gerais e especiais do contrato foram entregues aos autores, o seu conteúdo foi-lhes explicado e foram-lhe prestados todos os esclarecimentos sobre coberturas, garantias e exclusões, conforme os mesmos declararam na proposta de adesão; a contratação da cobertura do risco foi aceite com base nas declarações prestadas na proposta de seguro e no pressuposto de que as declarações efectuadas não padeciam de incorrecções ou omissões; a ré nunca recebeu qualquer participação de sinistro por parte dos autores, desconhecendo em absoluto a razão de ser desta acção, bem como a invalidez que alegadamente afecta o autor, a qual não preenche o conceito de invalidez total e permanente das condições da apólice. Mais impugna os demais factos alegados pelos autores.
Após a realização da audiência de julgamento e estando o processo concluso para sentença, foi determinada a reabertura da discussão e ordenada oficiosamente a realização de exame médico-legal ao autor.
Junto o respectivo relatório, a ré seguradora apresentou um articulado superveniente alegando que através do referido relatório tomou conhecimento que em 1994 o autor padecia de “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos, estando a ser medicado a essa patologia, facto que omitiu aquando da subscrição do seguro em 2007, sendo certo que se a ré tivesse conhecimento dessa situação teria aceite a cobertura do risco de morte com agravamento do prémio em 400% e teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente. Tomou igualmente conhecimento que o autor desde 2004 faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores, que em 2001 e 2003 foi seguido em consultas de Cardiologia por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca e que em 2004 esteve 42 dias de baixa médica não tendo sido explicado o seu motivo. Todas estas situações eram do conhecimento do autor e foram omitidas, deliberada e dolosamente, no preenchimento da proposta de adesão ao seguro, revelando que a invalidez actual resulta de doença pré-existente não comunicada à seguradora. Se as mesmas tivessem sido declaradas na proposta de adesão a ré teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.
O articulado superveniente foi admitindo e no exercício do contraditório os autores responderam que não foram eles que preencheram o formulário da proposta de seguro, tendo-se deslocado ao escritório de uma colaboradora do E… para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário e esta pediu-lhes apenas para assinarem a papelada, entre a qual se encontraria a proposta de seguro, já integralmente preenchida, indicando-lhes o local das assinaturas, sem lhes fazer qualquer pergunta; acrescentam que à data da celebração do contrato o autor fazia a sua vida normal, desenvolvendo um trabalho duro como fundidor, ocupava as horas vagas na agricultura e tinha um estado de saúde perfeitamente estabilizado, sentia-se bem e tinha a hipertensão perfeitamente controlada.
Passados mais de quatro anos sobre o seu encerramento, a audiência de julgamento foi reaberta e sete meses depois da abertura de nova conclusão para sentença foi, por fim, proferida sentença, julgando a acção «totalmente procedente, por provada, … condenando a 1ª Ré “D…, SA”, a pagar ao 2º Réu “E1…, SA” as prestações do empréstimo bancário vencidas desde 2 de Janeiro de 2013 até atingir o capital seguro. Caso haja remanescente do capital seguro, condena-se a 1ª Ré a entregar o montante respectivo aos AA., seus beneficiários».
Do assim decidido, a ré seguradora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- Por sentença proferida pelo tribunal “a quo” foi considerada a validade do contrato de seguro de vida em questão e a ré condenada a pagar ao banco as prestações do empréstimo associado ao mesmo, vencidas desde 2 de Janeiro de 2013, até atingir o capital seguro.
2- Citada para os presentes autos, a ré alegou que nunca recebeu qualquer participação de sinistro por parte dos autores, ou seja, as garantias contratuais não foram accionadas, designadamente, a de invalidez total e permanente.
3- Realizada perícia médico-legal ao autor, determinada oficiosamente pelo tribunal “a quo” antes da prolação da sentença, concluiu a ré:
4- Que o autor foi remetido em 1994 para consulta de Hematologia Clínica para estudo de “poliglobulia”.
5- Que o estudo efectuado na consulta externa da referida especialidade no Centro Hospitalar de … foi compatível com “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos.
6- Que o autor iniciou medicação nesse ano, tendo em 1996 alterado a medicação, sempre associado a flebotomias.
7- Que todos estes factos foram omitidos pelo autor na subscrição do contrato de seguro em data posterior (2007).
8- Caso a ré tivesse conhecimento destes factos, teria o contrato de seguro sido aceite com um agravamento de 400% do prémio na cobertura de morte.
9- E teria sido recusada a cobertura de invalidez total e permanente.
10- Acresce que desde 2004 o autor faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores, outro facto omitido aquando da subscrição do contrato de seguro.
11- E ainda que em 2003 e 2001 o autor foi seguido na consulta externa de Cardiologia do mesmo Hospital, por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca.
12- Trata-se de outro factor que agravaria a cobertura de morte, já que a invalidez total e permanente seria recusada.
13- Finalmente que houve em 2004 um período de 42 dias de baixa médica, não tendo sido explicado o seu motivo.
14- Pelo exposto, não há dúvida nenhuma que se verifica pré-existência de doenças que motivaram a actual invalidez, cobertura que teria sido recusada aquando da aceitação do contrato de seguro, pela existência dos antecedentes clínicos do autor.
15- Os antecedentes clínicos do autor eram do seu perfeito conhecimento e foram omitidos quer na proposta de adesão quer na petição inicial.
16- O proponente, o autor, omitiu, deliberada e dolosamente, o supra referido no âmbito da subscrição da proposta de adesão no ano de 2007.
17- O autor violou deste modo o princípio da boa fé que impera no âmbito da contratação de um contrato de seguro, a obrigação de comunicar todas as circunstâncias conhecidas e que possam ter influência na determinação do risco.
18- Se as referidas patologias tivessem sido declaradas na proposta de adesão (o autor respondeu negativamente a todas as questões do questionário médico…), condicionavam a análise e aceitação do risco, sendo que a ré teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.
19- O proponente prestou falsas declarações na proposta de adesão e deste modo enganou a ré, conduta que o autor reiterou na petição inicial.
20- Se o supra exposto tivesse sido declarado, como era obrigação do autor, a ré não teria aceite a proposta de adesão em apreço nos presentes autos, nos termos em que o fez, sendo que a ré teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.
21- Face ao exposto, invocou a ré em articulado superveniente de 16/01/2019 a nulidade da adesão ao contrato de seguro,
22- Sendo manifesto o dolo do proponente, a intenção de esconder a verdade.
23- Aliás, a matéria apurada está em total oposição com o alegado pelo autor na petição inicial.
24- Acresce que, as patologias em causa, supra enumeradas, são manifestamente pré-existentes à subscrição do contrato de seguro, pelo que não estão cobertas pelos contratos de seguro, pois a ré não aceita cobrir riscos relacionados com doenças pré-existentes, o que aliás resulta da essência do contrato de seguro.
25- Factualidade que, na sua essência, resultou considerada provada após produção e toda a prova.
26- O proponente em qualquer seguro está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.
27- Tal é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
28- Impende, pois, sobre o segurado um dever de informação pré-contratual, dever que se restringe às circunstâncias que conheça e que possa razoavelmente ter como significativas para a apreciação do risco pelo segurador.
29- É necessário que os factos ou circunstâncias omitidos sejam conhecidos do aderente ou, pelo menos, que este não os possa desconhecer sem culpa sua, o que traduz uma exigência de segurança contratual: os factos ignorados pelo segurado devem ser havidos como caso fortuito ou de força maior, suportando o segurador as respectivas consequências.
30- Há que ter em atenção que, quer do uso do advérbio “razoavelmente”, quer da referência ao que é “significativo” para a apreciação do risco, resulta um critério abstracto, ou seja, um critério de normalidade, e não um critério dependente das concretas capacidades do tomador ou do segurado.
31- Da matéria de facto dada como provada resulta que o autor não ignorava, quando assinou a proposta de adesão ao contrato de seguro em causa nos autos, que não se encontrava boa de saúde, antes sendo-lhe conhecidas queixas relacionadas as patologias de que padecia, tendo, ademais, atuado voluntariamente e, por isso, com dolo.
32- Por outro lado, tais declarações, relativas ao estado de saúde do autor, eram, como não podiam deixar de ser essenciais para a apreciação do risco por parte da ré, e, consequentemente, para a decisão de aceitação do contrato.
33- Com efeito, inexistem dúvidas que é com base em tais elementos que a seguradora fica a saber as circunstâncias concretas do risco que assume.
34- O autor assinou a proposta de adesão, não podendo ser desresponsabilizado pelas declarações nela insertas.
35- Ora, considerando as patologias de que o autor padecia, não existem dúvidas que o autor agiu, dolosamente, faltando à verdade às advertências constantes das declarações que assinava.
36- De atentar ainda na doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2001, de 21 de Novembro de 2001 (Diário da República, I-A, de 27/12/2001) hoje valendo como Acórdão uniformizador, que estabelece que “sendo fundamental, no contrato de seguro, a confiança nas declarações emitidas pelos contraentes, para prevenir as eventuais tentativas de fraude, a lei sanciona com a invalidade os contratos em que tenha havido declarações inexactas, incompletas ou prestadas com reticências, com omissões por parte do tomador do seguro e que influam sobre a existência ou condições do contrato, sendo inócua a intenção do segurado. A avaliação do que sejam declarações inexactas, ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio, terá de ser feito caso a caso.”
37- A declaração inexacta do autor sobre o seu estado de saúde criou na ré seguradora a convicção errónea sobre o risco do contrato de seguro, tendo a primeira ré aceite o seguro por desconhecer que o autor não se encontrava boa de saúde.
38- E não exigindo a lei ademais a prova do nexo causal naturalístico entre a declaração omitida e o sinistro, conclui-se, pois, a verificação dos pressupostos da nulidade do contrato, por via da anulabilidade.
39- Quanto a esta questão do nexo causal, não se desconhecendo a jurisprudência que considera que tem que haver nexo de causalidade entre as declarações inexactas ou factos omitidos na proposta de seguro e a verificação do risco coberto pelo contrato de seguro para se considerar a invalidade do contrato (de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Outubro de 2015, processo 2007/12.6TJVNF.G1, disponível em www.dgsi.pt), somos do entendimento que “na medida em que a sanção da invalidade (por nulidade ou anulabilidade) do contrato de seguro prevista no artº 429º do C. Comercial reporta-se à previsão de um caso de erro como vício de vontade – declarações falsas ou omissões relevantes -, incidindo sobre a própria formação do contrato, na medida em que impedem a formação da vontade real da seguradora, uma vez que tal formação se baseia em factos ou circunstâncias ignorados (que lhe foram omitidos ou escondidos), por não terem sido devidamente indicados pelo segurado, pelo que se entende que não é necessário que as declarações ou omissões tenham efectivamente influído na celebração do contrato de seguro ou relativamente às condições contratuais acordadas, bastando que pudessem ter influído ou fossem susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato por parte da seguradora – ver o Ac. STJ de 27/05/2008.” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Novembro de 2010, processo 2617/03.2TBAVR.C1, disponível em www.dgsi.pt).
40- Com efeito, era essencial que a declaração de saúde correspondesse à realidade, pois que, se fosse conhecedora da real situação de saúde do autor, a ré jamais aceitaria a cobertura do risco “invalidez”.
41- Encontram-se, por isso, preenchidos todos os pressupostos da invalidade do contrato ao abrigo do disposto no artigo 429º do Código Comercial, anulabilidade que, dado que o contrato ainda não se mostra cumprido, pode ser invocada sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção (Cf. artigo 287.º do Código Civil.)
42- Importa, ainda, ponderar que o disposto nos arts. 5º, 6º e 8º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, pois é inegável que o contrato de seguro em causa nos autos recorre a um clausulado pré-elaborado pela ré.
43- No caso dos autos, importa, porém, ter em consideração que a consequência para as declarações inexactas aquando da subscrição do contrato não decorre de qualquer cláusula contratual geral, mas sim da lei.
44- Por outro lado, o que o recurso aos artigos 5.º, 6.º e 8.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, permite é a exclusão de cláusulas contratuais gerais e não das declarações das partes vertidas na declaração de saúde (Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2008 - processo 08A1373, disponível em www.dgsi.pt).
45- Pelo que é também indiferente que o Banco tenha ou não informado o teor das cláusulas contratuais nos termos do disposto no art. 4º do DL 176/95, de 26 de Julho, pois não é disso que se trata, mas sim da declaração inicial de risco por parte do autor, o proponente.
46- Relativamente ao teor da proposta de seguro, ainda que possa ser prestada assistência no preenchimento de qualquer tipo de documentação por parte dos colaboradores envolvidos do Banco envolvidos, as pessoas seguras não podem escudar-se na assistência que lhes foi prestada.
47- Ao celebrar um contrato de seguro, as partes, de boa-fé, estão a garantir a cobertura de riscos e não de certezas, sendo que os riscos são eventos futuros e imprevisíveis geradores de sinistros.
48- Ou seja, o contrato de seguro é um contrato assente nos princípios da boa-fé, pelo que os proponentes devem responder com verdade e informar o segurador de quaisquer circunstâncias susceptíveis na opinião/avaliação do risco.
49- É no momento da subscrição e em função das declarações dos proponentes que a seguradora decide se aceita ou recusa a proposta, se solicita exames complementares, se na eventual aceitação é condicionada ou excluída determinada cobertura, se o prémio é agravado e em que montante, ou qualquer outra hipótese, tendo por base a avaliação da situação concreta, realizada pelo departamento médico.
50- Neste sentido, o autor, na qualidade de pessoa segura subtraiu-se ao dever de declaração inicial do risco, ao omitir a patologia de que padecia.
51- Ao decidir como que decidiu, o tribunal “a quo” violou o disposto no art. 429º do Código Comercial, bem como no contrato de seguro.
Termos em que, julgando-se procedente o presente recurso, deverá ser julgada improcedente a acção e a ré absolvida do pedido, com o que se fará Justiça.
Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Admitida a apelação, foi proferido nesta Relação do Porto Acórdão, no qual se julgou o recurso procedente e se revogou a decisão recorrida, absolvendo os réus dos pedidos.
Desse Acórdão foi interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual proferiu Acórdão onde se decidiu «nos termos do art. 683.º, n.º 3, do Código de Processo Civil», anular o acórdão recorrido e determinar «a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, sem prejuízo de, se necessário, vir o processo a ser remetido ao Tribunal da 1.ª Instância, para: a) Serem supridas as contradições da decisão de facto, enunciadas no ponto 5.3. do presente acórdão; b) Proferir decisão de direito em conformidade».
Regressados os autos a esta Relação e ouvidas as partes sobre a matéria, importa cumprir o determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

A - Supressão das contradições da decisão sobre a matéria de facto enunciadas no ponto 5.3 do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:

1. Em 26 de Abril de 2007, através de escritura pública, os autores celebraram com o Banco réu, através de uma agência em Vila Nova de Gaia, um mútuo com hipoteca destinado a aquisição de habitação própria, no valor de €79.400,00.
2. Para o empréstimo, o 2º réu exigiu que os autores subscrevessem um seguro de vida que ficasse a garantir o reembolso do capital, tendo sugerido a modalidade de adesão a seguro de grupo.
3. A proposta de adesão foi subscrita pelos autores a 22-03-2007, e a 1ª ré aceitou e emitiu o contrato de seguro de vida associado ao crédito à habitação contraído junto do 2º réu, identificado pelo certificado individual n.º …….. (apólice de grupo n.º …….), com início em 26-04-2007, e coberturas de morte ou invalidez total e permanente para o capital inicial de €79.400.
4. O tipo de seguro contratado é na modalidade de seguro de adesão ou de grupo, em que a pessoa segura é cada um dos autores, o banco mutuante o tomador e beneficiário, mediante o qual a 1ª ré se obrigou a pagar ao banco mutuante, 2º réu, em caso de morte ou invalidez de qualquer dos autores, o valor do mútuo em débito.
5. O prémio do seguro contratado (anual) era pago em 12 mensalidades, incorporadas no pagamento da prestação do empréstimo, estando os autores em dia no cumprimento dessas prestações.
6. Após submissão a Junta Médica, foi atribuída ao autor marido pela Segurança Social uma incapacidade de 66%, e reconhecida a situação de reforma em 02-01-2013.
7. O autor marido nasceu em 28-06-1965, era metalúrgico de profissão, não está ao trabalho desde 2011, e o único rendimento de que agora dispõe é o da pensão de reforma paga pela Segurança Social, no montante de €379,04.
8. Consta do art. 6º das condições especiais da cobertura de invalidez total e permanente que o Segurado deve solicitar à Seguradora, por escrito, a verificação da invalidez total e permanente, nos 60 dias imediatos à constatação da mesma, enviando os seguintes documentos:
a) Relatório do médico ou médicos assistentes, dando informações sobre o início e evolução da invalidez, devendo ser clinicamente comprovada com elementos clínicos objectivos, e declarar a pessoa segura como incapacitada total e definitivamente para o exercício de uma qualquer actividade remunerada;
b) Descrição detalhada da actividade profissional exercida pela pessoa segura antes da invalidez.
9. Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os autores contactaram uma terceira pessoa que tratou da documentação necessária, esclarecendo-se que acompanhou os autores ao banco, onde estes subscreveram os documentos que lhes foram apresentados, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida.
10. Algum tempo após a dita subscrição, e já depois da concessão do empréstimo, os autores receberam pelo correio o certificado de seguro de vida.
11. Em 2011, o autor começou a ter queixas de cefaleias, tonturas, mialgia e astenia e inchaço na perna esquerda, com situações de febre, bem como um cansaço permanente.
12. Deixou de ter condições físicas para trabalhar, entrando em baixa médica.
13. O autor sofria de “uma doença no sangue”, em virtude da qual tinha de se submeter regularmente a flebotomias.
14. Foi referido ao autor, em data indeterminada, que tal doença não tem cura e há um risco de progressão para neoplasia ou leucemia.
15. A partir de 2011, o autor teve de abandonar todas as actividades que exigem esforço, por não ter condições físicas para as exercer, precisando de repousar o mais que puder.
16. O autor não tem habilitações escolares e técnicas que lhe permitam granjear trabalho que dispense a força física.
17. Era convicção do autor de que preenchia os pressupostos de accionamento do seguro de vida, e por isso dirigiu-se ao balcão do banco, onde lhe foi comunicado não dispor das condições exigidas na apólice por alegadamente a sua incapacidade não ser total.
18. Os autores não tomaram conhecimento das condições gerais ou especiais da apólice do seguro, não lhes tendo sido lida nem explicada qualquer cláusula da apólice ou das condições, designadamente a respeitante à invalidez total e permanente.
19. Foram entregues à pessoa segura as condições gerais e especiais do contrato.
20. A ré aceitou a contratação da cobertura do risco com base nas declarações constantes da proposta de adesão subscrita pelos interessados, não tendo sido necessário solicitar quaisquer outras informações relativas ao estado de saúde, de acordo com os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco.
21. Através da proposta de seguro, dados das pessoas seguras e respectivos questionários médicos e declarações de saúde, a ré avalia e aceita os riscos garantidos ao abrigo dos contratos de seguro de vida.
22. Os seguros foram aceites no pressuposto de que as declarações constantes da proposta não padeciam de incorrecções ou omissões que, no futuro, se fosse esse o caso, poderiam originar a resolução do contrato ou a cessação das garantias conferidas, inclusive, numa eventual participação de sinistro.
23. Em 04-01-2013 a ré recebeu um pedido de cópia do contrato de seguro de vida, subscrito pelo autor, tendo em 09-05-2013 remetido ao autor cópia das condições gerais, especiais e particulares.
24. A ré nunca recebeu qualquer participação de sinistro por parte dos autores.
25. Os autores assinaram pelo seu próprio punho o documento onde consta que:
«São exactas e completas as declarações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-me sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo».
«Tanto o tomador do seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como das possibilidades de realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do capital com a idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida, pelo que as garantias do seguro de vida só serão accionadas após aceitação pela D…, SA e comunicação ao Tomador de Seguro/Pessoa Segura».
26. Nunca os autores participaram por escrito ao banco a ocorrência de qualquer sinistro.
27. A ré não deu seguimento ao procedimento de justificação e reconhecimento do direito às garantias contratuais por não ter uma participação escrita, e não pôde constatar qualquer situação de invalidez que afecte o autor.
28. Constatação essa que teria obrigatoriamente de ser efectuada através da comprovação cumulativa do impedimento do exercício de uma actividade remunerada (documento da Segurança Social ou de outra entidade oficial com a atribuição de pensão de invalidez) e possuir um grau de desvalorização superior a 66,6% determinado com base na Tabela Nacional de Incapacidades – Atestado Médico de Incapacidade Multiusos) – art. 1º, al. e) das condições especiais da cobertura de invalidez total e permanente.
29. O autor foi remetido em 1994 para consulta de Hematologia Clínica para estudo de “poliglobulia”.
30. O estudo efectuado na consulta externa da referida especialidade no Centro Hospitalar de … foi compatível com “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos.
31. O autor iniciou medicação nesse ano, tendo em 1996 alterado a medicação, sempre associado a flebotomias.
32. Caso a ré tivesse conhecimento destes factos, teria o contrato de seguro sido aceite com um agravamento de 400% do prémio na cobertura de morte, e teria sido recusada a cobertura de invalidez total e permanente.
33. Desde 2004, o autor faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores.
34. Em 2003 e 2001, o autor foi seguido na consulta externa de Cardiologia do mesmo Hospital, por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca.
35. Trata-se de outro factor que agravaria a cobertura de morte já que a invalidez total e permanente seria recusada.
36. Verifica-se pré-existência de doenças que motivaram a actual invalidez, cobertura que teria sido recusada aquando da aceitação do contrato de seguro, pela existência dos antecedentes clínicos do autor.
37. Os antecedentes clínicos do autor eram do seu perfeito conhecimento e foram omitidos deliberadamente pelo autor, quer na proposta de adesão, em 2007, quer na petição inicial.
38. Se as referidas patologias tivessem sido declaradas na proposta de adesão (o autor respondeu negativamente a todas as questões do questionário médico…), condicionavam a análise e aceitação do risco, sendo que a ré teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.
39. Nenhum dos autores preencheu o formulário/proposta de seguro.
40. Os sinais apostos nos quadrados correspondentes aos antecedentes e estado de saúde não são do punho do autor nem da sua mulher e não lhes foram previamente feitas quaisquer perguntas para o preenchimento desses quadrados.
41. Os autores não têm consciência de qualquer terem incorrido em qualquer omissão na subscrição do contrato de seguro: à data, o autor fazia um trabalho duro, como fundidor por conta de outrem, ocupava horas vagas na agricultura no seu terreno e tinha um estado de saúde perfeitamente estabilizado, sentindo-se bem.
42. Os problemas de saúde que teve em 1994 não afligiam o autor, pois a sua hipertensão estava perfeitamente controlada, e fazia a sua vida normal, com trabalho duro e esforçado.

II. Matéria de facto julgada não provada em 1.ª instância com interesse para o cumprimento do determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça:

Por terem interesse para a compreensão do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, consigna-se que a 1.ª instância julgou não provados, entre outros, os seguintes factos:
«b) Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os AA. contactaram uma “agência de serviços” sita na Av.ª …, em …, cuja gerente tratou de todo o expediente, preencheu a documentação necessária, pedindo seguidamente a cada um deles que subscrevesse os documentos que lhes apresentou, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida.
g) Foram os AA. que prestaram as declarações relativas à sua saúde constantes da proposta de adesão por eles subscrita.
j) Pouco tempo antes do empréstimo, o A., sua mulher, e uma irmã daquele, a quem iam comprar um apartamento, dirigiram-se ao escritório de uma colaboradora do E…, para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário.
k) Aí chegados, a colaboradora do E… – D. F… – pediu aos AA que assinassem a papelada já integralmente preenchida, indicando o local onde se faziam as assinaturas, e pouco tempo aí permaneceram.
l) Entre os formulários respectivos para o empréstimo estavam certamente os das propostas de seguros de vida dos AA., visto que as não tinham assinado antes e depois disso só assinaram a escritura no notário.
m) Não fez a dita colaboradora qualquer pergunta aos AA., designadamente para o preenchimento dos formulários de seguro de vida, que já dispunha de todos os elementos de identificação dos AA. (que lhe haviam sido entregues previamente pela irmã do A., G…).»

III. Contradições na matéria de facto assinaladas pelo Supremo Tribunal de Justiça:

Quanto à matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça assinalou o seguinte no respectivo Acórdão (os sublinhados são nossos):
«Tal como se encontram formulados, identifica-se uma contradição insanável entre o facto provado 9 (“Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os autores contactaram uma terceira pessoa que tratou da documentação necessária, esclarecendo-se que acompanhou os autores ao banco, onde estes subscreveram os documentos que lhes foram apresentados, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida”), em si mesmo considerado, e também como interpretado pela Relação, isto é, com o sentido de que o preenchimento do inquérito médico foi feito por terceira pessoa (de seu nome F…) contactada pelos AA., e o ponto b) dos factos não provados (“Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os AA. contactaram uma “agência de serviços” sita na Av.ª …, em …, cuja gerente tratou de todo o expediente, preencheu a documentação necessária, pedindo seguidamente a cada um deles que subscrevesse os documentos que lhes apresentou, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida”), assim como, ao menos parcialmente, também com os pontos j), k) e l) dos factos não provados.
Assim, o que importa esclarecer, de forma rigorosa, é se o preenchimento do questionário médico foi feito por terceira pessoa, contactada pelos AA. para o efeito, ou se tal preenchimento foi realizado por funcionário/a do banco tomador do seguro; ou ainda se se verificou alguma outra situação relevante ou, no limite, se não se prova quem procedeu ao preenchimento do inquérito.
Também o facto provado 37 (“Os antecedentes clínicos do autor eram do seu perfeito conhecimento e foram omitidos deliberadamente pelo autor (...)”) contradiz, ao menos no sentido comum da linguagem utilizada, o facto provado 41 (“Os autores não têm consciência de qualquer [rectius: os autores não têm qualquer consciência de] terem incorrido em qualquer omissão na subscrição do contrato de seguro (...)”).
Importa, pois, compatibilizar entre si o teor dos factos 37 e 41, harmonizando-os também com os demais factos provados, designadamente com os factos relativos à autoria material do preenchimento do questionário médico e à conduta dos AA.»

IV. Decisão sobre os factos assinalados pelo Supremo Tribunal de Justiça:
Nos termos do artigo 662.º, n.º 1, e n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, havendo contradição na decisão proferida pela 1.ª instância sobre alguns pontos da matéria de facto e tendo a Relação à sua disposição a totalidade dos meios de prova produzidos em 1.ª instância, a Relação deve, ainda que oficiosamente, alterar a decisão sobre a matéria de facto para suprir as contradições.
Nessa medida, para decidir os pontos de factos assinalados pelo Supremo Tribunal de Justiça procedemos à audição integral dos depoimentos gravados e à análise dos documentos juntos aos autos.
Os meios de prova que revelam interesse para a decisão sobre os factos em questão são os depoimentos dos autores e de H…, F… e G… que são as pessoas que estiveram envolvidos nestes factos.
A autora afirmou que quando tomaram a decisão de comprar a casa à irmã do marido, esta, por indicação de uma familiar de nome I… e com a profissão de contabilista, lhe indicou a F… para tratar da obtenção do empréstimo de que necessitavam para fazer a compra. Segundo a autora foi a F… que tratou de todos os papéis para a contratação do empréstimo, papéis que foram assinados no escritório desta e sem que a F… lhes tenha feito qualquer pergunta, apenas lhes disse para assinarem e onde o fazerem e os autores assinaram porque confiaram nas pessoas. Afirmou ainda a autora que só foi ao banco para a escritura (nota: isto não é verdade, porque conforme documento junto a escritura não foi celebrada no banco nas no Cartório Notarial da Notária J…, o que significa que a autora afinal sempre foi ao banco mas antes disso e com outra finalidade).
O autor afirmou basicamente o mesmo: que foi a irmã, a vendedora da casa, por intermédio da prima I…, contabilista, que arranjou e lhe indicou a F… para tratar das coisas para obter o empréstimo, tendo sido estas três mulheres que trataram de tudo depois de ele lhes entregar cópias dos documentos pessoais que lhe pediram. O autor declarou que nem sequer sabe quais os documentos que assinou, por confiar nelas assinou tudo o que lhe disseram para assinar, foi a F… que fez a papelada toda e pôs os papéis à frente do autor para assinar, o que este fez. O autor reconhece que foi ao banco «assinar os papéis para transferir a conta», mas curiosamente revela dificuldades em dizer onde se localiza o balcão do banco onde foi, tal como o escritório da F… onde afirma ter assinado os papéis.
A testemunha H… era funcionária do banco réu e prestava serviço no balcão onde foi apresentada a proposta de seguro, sendo sua a assinatura do funcionário a reconhecer as assinaturas dos autores na referida proposta, dizendo terem sido feitas na sua presença.
Esta testemunha confirmou que a proposta, na parte com conteúdo impresso, foi preenchida por si através do seu computador porque nessa parte se trata de um formulário electrónico que tem de ser preenchido no sistema informático, após o que o documento é impresso e dado ao proponente para assinar. Porque não lhe foi perguntado a testemunha não referiu ter sido também ela a apor os sinais nas quadrículas de resposta ao questionário médico, mas depreende-se que tal tenha ocorrido uma vez que o preenchimento electrónico foi, segundo ela, realizado através do seu computador. A testemunha garantiu ainda que a proposta foi assinada perante si pelos proponentes, uma vez que conferiu a assinatura (conforme consta do documento) e só faz isso quando as pessoas assinam na sua presença.
A testemunha F… é referida nos autos que forma imprecisa como colaboradora do banco, mas, segundo o respectivo depoimento e o depoimento de H…, tratava-se de uma pessoa que se dedicava profissionalmente à prestação de serviços de solicitadoria, consultadoria, aconselhamento ou ajuda na obtenção de créditos a pessoas que a procuravam para o efeito, dispondo para o efeito de instalações próprias para o desenvolvimento da sua actividade profissional. Além da relação de prestação de serviços que estabelecia com os que designou por «seus clientes» e onde incluiu os autores, a testemunha tinha acordado com vários bancos o recebimento de um prémio financeiro do banco que aceitasse o pedido de crédito que lhes apresentava por conta dos seus clientes.
Esta testemunha afirmou que foi contactada por uma prima dos autores (a I…, contabilista de profissão) para tratar da obtenção de um crédito para estes comprarem (a uma irmã do autor) uma casa, e que na sequência disso fez diligências para obter a aprovação do crédito, no caso neste banco. Segundo a testemunha os autores nunca se deslocaram ao seu escritório, foi a I… que lhe fez chegar os documentos pessoais dos autores necessários para a pré-aprovação do crédito. Depois de obtida a pré-aprovação, o autor foi ao balcão do banco para ordenar a transferência da conta bancária que tinha noutro balcão do banco para aquele balcão onde o empréstimo iria ser concedido, tendo sido nessa altura que conheceu o autor. Depois disso foi feita a avaliação e uma vez esta feita os autores deslocaram-se ao balcão onde assinaram tudo o que foi necessário para a concretização do empréstimo, designadamente os documentos para o seguro. A proposta foi preenchida no sistema informático do banco, tendo a funcionária do banco feito as perguntas e preenchido o impresso de acordo com as respostas dos autores, após o que imprimiu o documento e os autores assinaram-no.
Refira-se que no artigo 5 º da petição inicial os autores afirmaram que «para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os AA. contactaram uma “agência de serviços”, que lhes foi indicada, sita na Avª da …. em …, cuja gerente tratou de todo o expediente, preencheu a documentação necessária, pedindo seguidamente a cada um deles que subscrevesse os documentos que lhes apresentou, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida». Desse modo, naquela peça os autores não atribuem aos serviços do banco o preenchimento do questionário médico da proposta, atribuem-na sim à «agência de serviços» que contactaram para tratar de todo o expediente por sua conta (isto é, à testemunha F…).
Na resposta ao articulado superveniente, a posição dos autores apenas muda num pormenor. O que os autores passam a alegar é que «(10) Pouco tempo antes do empréstimo, o A., sua mulher, e uma irmã daquele, a quem iam comprar um apartamento, dirigiram-se ao escritório de uma colaboradora do E…, para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário. (11) Aí chegados, a colaboradora do E… – D. F… – pediu aos AA que assinassem a papelada já integralmente preenchida, indicando o local onde se faziam as assinaturas, e pouco tempo aí permaneceram. (12) Entre os formulários respectivos para o empréstimo estavam certamente os das propostas de seguros de vida dos AA., visto que as não tinham assinado antes e depois disso só assinaram a escritura no notário. (13) Não fez a dita colaboradora qualquer pergunta aos AA., designadamente para o preenchimento dos formulários de seguro de vida.».
Portanto, a diferença consistiu na conversão da «agência de serviços» pela «D. F…» e na designação desta como «colaboradora do E…», embora os autores aleguem que se deslocaram ao escritório desta e não ao balcão da agência bancária. O que se retira desta alegação é que os autores continuam a atribuir a autoria do preenchimento do questionário médico à D. F…, não a qualquer funcionário ou colaborador do banco. Nos seus depoimentos de parte os autores mantiveram essencialmente essa versão.
A testemunha G…, irmã do autor, afirmou que o irmão lhe entregou os documentos pessoais e foi ela que por indicação da prima I…, contabilista, recorreu à F… para esta «tratar de tudo» quanto fosse necessário para obter o empréstimo e celebrar a escritura. Segundo a testemunha o irmão limitou-se a dar-lhe os documentos depois foi ela que tratou de tudo junto da F…, a qual tirou fotocópias dos documentos e tratou de tudo.
Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, o Mmo. Juiz a quo afirma que «atendendo à discrepância dos dados constantes da proposta com os dados físicos dos AA., conforme por estes declarado, admite-se (sic) que tenham sido preenchidos “a olho”, sem que tenham sido efectuadas quaisquer perguntas aos AA., colocando-se a normal resposta de “não” nas questões relativas aos antecedentes clínicos e patologias de risco – sendo certo que a testemunha que preencheu a proposta de seguro, H…, não confirmou ter colocado as questões constantes do questionário aos AA., como lhe competia».
Trata-se de uma motivação que não podemos acompanhar. A admissão de uma possibilidade (admite-se que…) não é, em circunstância alguma, um meio de prova, muito menos a afirmação de uma probabilidade que é o critério que releva para efeito da decisão. Por outro lado, em relação ao depoimento da testemunha H… não é correcto afirmar que ela «não confirmou ter colocado as questões constantes do questionário». O que sucede é que do seu depoimento nada se retira sobre esse aspecto porque a questão não chegou a ser-lhe colocada de forma explícita e/ou expressa, pelo que em rigor o que se deve dizer é que ela não confirmou nem desmentiu. O que ela confessou, aliás de modo bastante sincero, foi somente que não deu aos autores qualquer explicação sobre as condições do contrato de seguro.
Finalmente, não se vê como pode ser julgado provado que «a funcionária do banco preencheu ela mesma o questionário sem perguntar nada aos propoentes» quando nenhuma testemunha o afirmou (houve sim uma testemunha a afirmar o contrário e outra a quem não foi feita explicitamente a pergunta) e os próprios autores não o alegaram nem referiram no seu depoimento de parte (exactamente porque atribuem o preenchimento não à funcionária do banco, H…, mas à «D. F…»).
Tal como não se concebe que se pudesse julgar provado que «nada foi perguntado aos autores, por quem preencheu o questionário, sobre o seu estado de saúde», apenas com base no depoimento de parte dos autores (na motivação da decisão não é mencionado outro meio de prova desse facto e ele não foi produzido) tratando-se de um facto favorável aos autores e com a relevância que o mesmo tem no caso concreto.
Sublinhe-se que as únicas pessoas que podiam ter interesse em escamotear a informação relativa ao seu estado de saúde eram os próprios autores. A funcionária do banco e a F…, não tendo informação dos problemas de saúde do autor, também não tinham qualquer interesse pessoal em falsear a informação para a aprovação do empréstimo. A única interessada nisso seria afinal de contas a vendedora e irmã do autor porque só assim conseguiria concretizar a venda do imóvel e realizar a entrada de dinheiro de que necessitava, segundo se apurou na audiência, para colocar no seu negócio que estava a enfrentar dificuldades financeiras.
Por outro lado, não consta que houvesse qualquer dificuldade em obter a deslocação dos autores para tratar destes assuntos, designadamente ao banco, tanto assim que estes reconhecem que efectivamente ali se deslocaram, embora divergindo quanto ao momento e quanto à finalidade. Não se vislumbra pois por que motivo haveria a funcionária do banco de preencher falsamente a proposta e inventar uma conferência das assinaturas, quando sabia que esses actos estavam compreendidos nas suas funções.
Também não podemos acompanhar a afirmação do Mmo. Juiz a quo de admitir «que os AA. incorram em erro, podendo ter sido atendidos num gabinete do balcão do banco réu pensando tratar-se do escritório da testemunha F…». Essa circunstância é absolutamente inverosímil porque os balcões dos bancos possuem equipamentos específicos inconfundíveis e layouts perfeitamente notórios e distintos, compostos por um conjunto de imagens e símbolos alusivos à marca e à actividade do banco, que nenhuma pessoa que ali se desloca pode ignorar ou não ver.
Assim, ponderando a prova produzida, decide-se introduzir na matéria de facto indicada pelo Supremo Tribunal de Justiça as seguintes alterações:
i. O facto provado n.º 9 para a ter a seguinte redacção:
«Com vista à obtenção do empréstimo bancário e concretização da celebração da escritura de compra e venda, os autores encarregaram a irmã do autor e, através dela, outra pessoa indicada por esta, de nome F…, de realizar junto do banco as diligências necessárias e tratar de toda a documentação indispensável
ii. Acrescenta-se aos factos provados o ponto 9i, com a seguinte redacção:
«A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram
iii. O facto provado n.º 37 passa a ter a seguinte redacção:
«O autor conhecia os problemas de saúde a que vinha sendo acompanhado medicamente, os quais foram omitidos na proposta de seguro de vida
iv. O ponto 41 é eliminado dos factos provados e transita para a matéria de facto não provada, com a seguinte redacção:
«Os autores não têm consciência de terem omitido qualquer informação sobre o estado de saúde do autor.»
v. A demais matéria de facto não provada referida pelo Supremo Tribunal de Justiça passa a ter a seguinte redacção:
«b) A F… preencheu a proposta de seguro e a seguir pediu aos autores para assinarem o documento que lhes apresentou.
g) Os AA. prestaram, pessoalmente, à funcionária do banco as declarações relativas à sua saúde constantes da proposta de adesão por eles assinada.
j) O A., sua mulher, e uma irmã daquele, dirigiram-se ao escritório de uma colaboradora do E…, para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário.
k) Aí chegados, a colaboradora do E… – D. F… – pediu aos AA que assinassem a papelada já integralmente preenchida, indicando o local onde se faziam as assinaturas.
l) A proposta de seguro de vida estava nessa papelada.
m) Não fez a dita colaboradora qualquer pergunta aos AA., designadamente para o preenchimento dos formulários de seguro de vida.»
Apesar de o Supremo Tribunal de Justiça ter entendido que a matéria de facto encerra contradições que impedem o conhecimento do mérito mas não ter assinalado o ponto 40 dos factos provados, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que também este gera uma contradição com a restante matéria de facto provada que urge sanar.
Nesse sentido decide-se:
vi. O facto provado n.º 40 passa a ter a seguinte redacção:
«Os quadrados com a resposta ao questionário clínico foram preenchidos electronicamente, não tendo os respectivos «vistos» sido feitos pelo punho dos autores».
vii. Acrescenta-se à matéria de facto não provada o seguinte ponto:
«n) O preenchimento do questionário clínico não foi antecedido da formulação de quaisquer perguntas aos autores.»

B: Subsunção jurídica dos factos tendo presente o objecto do recurso de apelação:[1]

I. Questões a decidir:
Nas alegações de recurso, a recorrente suscita duas questões que cabe decidir:
i) Saber se a situação de invalidez em que se encontra actualmente o autor tem origem numa patologia pré-existente à celebração do contrato de seguro, conhecida do autor e não informada por este e, na afirmativa, se essa situação gera a nulidade do contrato de seguro.
ii) Saber se ao apresentar a sua proposta de adesão ao seguro de grupo o autor escondeu à seguradora informações sobre o seu estado de saúde por si conhecidas e essas informações eram relevante para a celebração do contrato ou para os termos do mesmo e, na afirmativa, qual a consequência dessa omissão de informação.

II. O mérito do recurso:
A presente acção tem como causa de pedir um contrato de seguro de grupo do ramo vida, através do qual a ré seguradora, em resultado da aceitação da proposta de adesão dos autores, se obrigou a pagar ao banco réu um montante indexado ao valor em dívida num contrato de mútuo para aquisição de habitação própria celebrado pelos autores com este banco, no caso de se verificarem certos eventos relativos às pessoas dos autores, mais concretamente, no que interessa para efeitos da acção, a sua invalidez permanente.
O contrato de seguro é um contrato bilateral, de execução continuada e de adesão que pode ser definido como a convenção através da qual uma das partes – o segurador – se obriga, mediante retribuição – o prémio – paga pela outra parte – o segurado – a assumir um risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.
É ainda um contrato aleatório pois as partes submetem-se a uma álea, à possibilidade de ganhar ou perder, e oneroso na medida em que apesar de ambas as partes estarem sujeitas ao risco de perder, no final de contas só uma virá a ganhar – cf. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra, 2005, pág. 403 -.
Nas palavras de Moitinho de Almeida, in O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Lisboa, págs. 23-24, o contrato de seguro é «aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos ou, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de pretensão a realizar em data determinada».
Na data em que o contrato a que respeitam os autos foi celebrado vigoravam ainda as disposições legais anteriores ao regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, designadamente as do Código Comercial de 1888.
Nos termos do artigo 3.º do citado Decreto-Lei as disposições do regime jurídico do contrato de seguro aplicam-se aos contratos de seguro com renovação periódica - é o caso do presente que foi celebrado por um ano com renovações automáticas por igual período até ao final do contrato de mútuo que tem por referência - a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do Decreto-Lei, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.
Por conseguinte, estando em causa na acção precisamente as circunstâncias e os vícios na formação do contrato, as disposições do regime jurídico do contrato de seguro não são ainda aplicáveis ao caso.
Nos termos do artigo 426º do Código Comercial, o contrato de seguro era um contrato formal, devendo ser reduzido a escrito num instrumento que constituía a apólice de seguro, a qual devia enunciar, além do mais, o objecto do seguro, os riscos cobertos e, em geral, todas as condições estipuladas pelas partes.
Além disso, nos termos dos artigos 427º e 3.º do mesmo diploma, o contrato de seguro regia-se pelas estipulações e cláusulas da respectiva apólice não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do próprio Código Comercial e, subsidiariamente, ainda pelas regras do próprio Código Civil.
Este tipo contratual encontra-se especialmente subordinado às imposições normativas do princípio da boa fé, devendo a seguradora e os proponentes do contrato de seguro orientar as respectivas condutas, na fase pré-contratual tal como depois na fase do cumprimento do contrato, segundo os ditames de um correcto proceder, característica que leva a doutrina e a jurisprudência a qualificar o seguro como um contrato de «Uberrima Fides» - v.g. Luis Poças, in O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Coimbra, 2013, pág. 36 e seg. -.
Para Mafalda Miranda Barbosa, in Causalidade no universo dos seguros: o não cumprimento da declaração inicial de risco e o seu regime …, www.revistadedireitocomercial.com, «à luz da boa-fé, um contraente honesto, leal e correto oferecerá à contraparte a informação que se situa na sua esfera pessoal e que pode ser relevante para a decisão de contratar e para a conformação dos termos da contratação (..). A declaração inicial de risco deve ser lida a essa luz, como uma exigência da boa-fé (..). É, aliás, a boa-fé que nos deve guiar na modelação do tipo de informação que deve ser prestada. As informações razoavelmente tidas por significativas são aquelas que um contraente médio, agindo de boa-fé, colocado na situação do real tomador do seguro, pode considerar como tal, o que significa que a boa-fé, enquanto padrão normativo de conduta, nos oferece um critério objectivo (embora mitigado) de determinação do conteúdo da declaração inicial do risco».
No âmbito dos contratos de seguro as informações sobre o objecto a que respeita o risco a segurar são essenciais para a formação e a execução do contrato. Por isso, quem celebra um contrato de seguro tem o dever de informar a seguradora de todos os factos ou circunstâncias que possam influenciar a decisão da seguradora no tocante à celebração do contrato ou à definição das respectivas condições. É o chamado dever de declaração inicial do risco, regulado no artigo 429.º do Código Comercial.
Segundo Luís Poças, in O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, Coimbra, 2013, pág. 47, nota 123, considerando que, «no plano estritamente jurídico – e porque o risco é (…) um elemento fundamental do contrato, dependendo as condições deste da aferição daquele pelo segurador –, o papel de proponente é formalmente assumido pelo candidato a tomador do seguro, que apresenta ao segurador uma declaração negocial (proposta contratual), em regra mediante o preenchimento e subscrição de um formulário previamente fornecido pelo segurador, onde aquele concretiza algumas das condições pretendidas e descreve o risco que pretende fazer segurar, concluindo-se o contrato com a aceitação do segurador».
A declaração inicial do risco por parte do tomador do seguro ou pelo segurado na proposta de seguro tem por objecto o conjunto de informações destinadas a permitir à seguradora calcular o risco e decidir sobre a aceitação da proposta e sobre o valor do prémio pelo qual está disposta a assegurar esse risco.
O proponente do seguro é normalmente quem dispõe de um conhecimento mais aprofundado acerca dos dados ou elementos relevantes do risco que pretende cobrir com o contrato de seguro proposto. A seguradora, sendo embora a parte económica, técnica e socialmente mais forte na relação contratual, encontra-se particularmente dependente das informações que lhe sejam transmitidas pelo proponente do seguro.
Para o efeito, o proponente deve responder com verdade às perguntas do questionário que lhe é apresentado pela seguradora para ser preenchido. Esse dever pressupõe naturalmente que a pessoa tenha conhecimento dos factos ou circunstâncias relevantes, sendo censurável somente a omissão ou falseamento do que era do seu conhecimento.
A esse respeito considera Júlio Gomes, in O Dever de Informação do (candidato a) do tomador do seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril - Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II, Coimbra, 2011, pág. 405 e seguintes que que a solução que confina o dever de esclarecimento às circunstâncias conhecidas do segurador é a mais razoável; não se trata de impor ao tomador do seguro ou ao segurado um ónus de averiguação ou de investigação, convertendo-os no “segurador do segurador”, mas apenas de consagrar o dever de declarar com exactidão aquilo que se sabe, o que se conhece – apud Albuquerque Matos, in O Regulamento de protecção de dados pessoais (2016/679) no contexto dos desafios da actividade seguradora - o caso particular dos seguros de saúde, Revista Online Banca, Bolsa e Seguros, n.º 3, pág. 68 -. Existe no entanto doutrina que defende que o dever de esclarecimento deve incluir ainda as circunstâncias cognoscíveis, as circunstâncias que o tomador do seguro, actuando com a necessária diligência, deveria conhecer.
O artigo 429º do Código Comercial, aplicável ao caso, sob a epígrafe «nulidade do seguro por inexactidões ou omissões», dispunha o seguinte:
«Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tomam o seguro nulo. § único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio
Esta estatuição consagrava pois a invalidade do contrato de seguro nos casos em que o segurado fizesse declaração inexacta ou reticente sobre factos ou circunstâncias que conhecia e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato.
Declarações inexactas serão as que contém afirmações de factos que não correspondem, total ou parcialmente, à verdade; declarações reticentes são aquelas que revelam apenas uma parte dos factos e omitem propositadamente algo que se devia ou podia dizer e que é assim deixado na penumbra para não ser apreendido pelo destinatário.
Confrontada com a desactualização da terminologia jurídica do preceito, a jurisprudência assumiu de forma consensual que a cominação prevista no preceito corresponde à figura da anulabilidade do contrato, razão pela qual carece de ser arguida pelo interessado com legitimidade para o fazer, não pode ser conhecida oficiosamente, a sua invocação está sujeita a prazo de caducidade e o vício pode ser objecto de convalidação nos mesmos termos da anulabilidade dos negócios jurídicos em geral.
Afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2012, processo n.º 64/09.TBSJM.P1.S1, in www.dgsi.pt, que os tribunais superiores foram ao longo do tempo consolidando o entendimento de considerar ilegítima a invocação da invalidade contratual, por parte do segurador, em determinadas circunstâncias, designadamente: a) Quando falte um nexo de adequação entre a actuação do segurado ou do tomador e o resultado; b) Quando o segurador revele inércia na sua actuação posterior; c) Quando tenha havido omissão manifesta de deveres de diligência por parte do segurador ou, em geral; d) Sempre que tenham sido adoptados comportamentos susceptíveis de integrarem a figura do abuso de direito, nas suas diversas dimensões, com especial destaque para comportamentos contraditórios, criação de expectativas legítimas ou demora irrazoável na detecção ou superação das situações de desconformidade entre o que fora declarado pelo tomador do seguro ou pelo segurado e a realidade existente à data das declarações.
Assinala-se no mesmo Acórdão que «a verificação do referido vício depende da existência de um nexo de causalidade entre as inexactidões ou reticências do tomador do seguro sobre os factos e circunstâncias relevantes e a outorga do contrato ou, ao menos, sobre o seu clausulado, máxime, sobre as exclusões do âmbito de cobertura ou sobre o prémio a suportar pelo tomador em função do risco calculado assumido pelo segurador. Como se refere no Ac. do STJ, de 4-3-04, CJSTJ, tomo I, pág. 102, não é qualquer declaração inexacta ou reticente que desencadeia a possibilidade de anulação do seguro, sendo indispensável que a inexactidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria ou teria contratado em diversas condições se as conhecesse, sendo, assim, relevantes apenas as declarações inexactas ou reticentes respeitantes a factos ou circunstâncias que servem para a exacta apreciação do risco. […] Acresce que recai sobre o segurador o ónus da prova do nexo de causalidade entre as informações inverídicas ou reticentes e a outorga do contrato de seguro, dependendo a procedência da defesa assente na invalidade da demonstração de que o segurado exarou declarações falsas ou reticentes de factos ou circunstâncias dele conhecidas susceptíveis de influir na formação do contrato e suas condições, enquanto relacionadas com a avaliação do risco a assumir…»
Isto posto entremos agora na análise das questões suscitadas pela recorrente.

A) A situação de invalidez em que se encontra actualmente o autor tem origem numa patologia pré-existente à celebração do contrato de seguro, conhecida do autor e não informada por este.

Tanto quanto julgamos, o recorrente pretende suscitar a questão da inexistência do risco no momento da celebração do contrato.
Sendo o contrato de seguro, como vimos, um contrato aleatório, cujo objecto seguro é o risco de verificação de um determinado evento, a validade do contrato pressupõe naturalmente que no momento da sua celebração o risco exista, melhor dizendo que a verificação da situação cujo perigo de ocorrência está na génese e justifica a celebração do contrato seja ainda uma mera possibilidade, uma eventualidade de verificação incerta. O que significa que o risco seguro tem de se reportar sempre a uma modificação futura do estado de coisas vigente ao tempo da celebração do contrato.
Se alguém, em representação ou por conta de outrem, celebra um seguro de vida do representado e este afinal já tinha falecido no momento da celebração do seguro, o contrato é nulo, ainda que a pessoa que celebrou o contrato desconhecesse esse facto. Se o proponente pretende garantir o risco de invalidez permanente é necessário que no momento da celebração do seguro o segurado não se encontre ainda numa situação de efectiva (ainda que não declarada clinica ou administrativamente) invalidez; caso contrário o contrato é nulo por falta de um dos seus elementos essenciais.
Essa é a solução legal que o artigo 44º do Decreto-Lei n.º 72/2008, 16 de Abril, consagra para as situações de inexistência de risco, norma que como vimos não se aplica ao caso concreto mas cujo desfecho Luís Poças, loc. cit., pág. 87, considera resulta igualmente do disposto no artigo 280º Código Civil, relativo à nulidade por impossibilidade do objecto do negócio.
Como quer que seja, não cremos que essa solução seja aplicável ao caso concreto.
O seguro em causa não é um seguro de saúde cujo objecto seja a cobertura de riscos relacionados com a prestação de cuidados de saúde tornados necessários no caso de surgimento de doenças. Trata-se sim de um seguro de vida, no qual o segurador cobre os riscos de óbito ou de incapacidade permanente da pessoa segura.
O risco coberto pelo seguro é o risco de invalidez permanente da pessoa segura, não é o risco de ele vir a padecer de qualquer doença que possa gerar aquela consequência ao nível da respectiva capacidade de trabalho.
Excepto se estivermos perante uma doença cujo aparecimento determine sempre, de imediato e em qualquer circunstância, uma situação de incapacidade tal qual esta se encontra prevista na apólice de seguro, em condições normais uma doença pode ter vários estadios e manifestações, manifestar-se naquela pessoa em concreto com mais ou menos gravidade no tocante quer ao estado de saúde quer à sua repercussão na capacidade de trabalho do doente. Mesmo que haja uma relação de causalidade entre a doença e a incapacidade que sobreveio para o doente, esta há-se surgir se e quando a gravidade da evolução da doença determinar a incapacidade, não antes disso.
Ainda que se tenha julgado provado que a actual invalidez da pessoa segura foi motivada por doenças pré-existentes, não estando demonstrado que tais doenças desencadeariam sempre, em qualquer circunstância, a invalidez do doente – que assim deixaria de ser uma mera possibilidade para passar a ser uma certeza ainda que de manifestação futura –, não é possível concluir que o risco de invalidez coberto pelo seguro já estava verificado quando o contrato de seguro foi celebrado e que por isso possa ser julgado nulo.
Questão diferente, note-se, é a de saber se a cobertura está excluída em relação a doenças pré-existentes, rectius, se para efeitos de funcionamento da cobertura a invalidez tem de ser consequência de doença que surja apenas depois da celebração do contrato. Esta problemática já não respeita à questão da inexistência do risco, respeita sim à delimitação do risco garantido por via da interpretação das respectivas cláusulas de definição do risco e de exclusão da respectiva cobertura. Já não estaremos pois a falar da invalidade do contrato, estaremos a falar da interpretação das cláusulas da apólice para determinar o objecto do contrato (situação em que se poderá então suscitar a questão da validade e/ou eficácia das cláusulas da apólice, designadamente à face do regime das cláusulas contratuais gerais).
Por ora, portanto, basta concluir que a argumentação no sentido da defesa da invalidade do contrato por no momento da sua celebração já não existir o risco – por estar verificado o evento correspondente ao risco – é improcedente, não sendo o contrato inválido por tal ordem de razões.

B) Ao apresentar a sua proposta de adesão ao seguro de grupo o autor escondeu à seguradora informações sobre o seu estado de saúde por si conhecidas e essas informações eram relevante para a celebração do contrato ou para os termos do mesmo

Da proposta de seguro que os autores apresentaram à ré seguradora consta um questionário médico com seis perguntas, para as quais são apresentadas duas respostas possíveis, sim ou não.
A primeira pergunta é se o proponente já foi aconselhado a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica. Na quarta pergunta questiona-se entre outras coisas se o proponente tem alguma alteração física ou funcional.
Em resposta a todas as questões foi colocado visto na quadrícula «não», dando-lhes assim resposta sempre negativa.
Resulta dos autos que a proposta de seguro foi apresentada e aceite em Março de 2007, tendo o seguro tido início em Abril de 2007.
Não obstante isso, provou-se que:
Em 1994, o autor foi remetido para consulta de Hematologia Clínica num Hospital para estudo de “poliglobulia”, vindo a apurar-se em resultado desse estudo que o autor sofria de patologia compatível com “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos.
1 - O autor iniciou nesse ano medicação a essa patologia, tendo em 1996 alterado a medicação, sempre associado a flebotomias.
2.- Em 2001 e 2003 o autor foi seguido na consulta externa de Cardiologia Hospital, por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca.
3 - Desde 2004, o autor faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores.
4 - Em 2011, o autor começou a ter queixas de cefaleias, tonturas, mialgia e astenia e inchaço na perna esquerda, com situações de febre, bem como um cansaço permanente, vindo a apurar-se que o autor sofria de “uma doença no sangue”, em virtude da qual tinha de se submeter regularmente a flebotomias com risco de progressão para neoplasia ou leucemia.
Parece dever concluir-se que as respostas dadas ao questionário médico não correspondiam à verdade. À data o autor não apenas já tinha sido aconselhado a consultar médicos, como fizeram inclusivamente consultas de duas especialidades que haviam detectado patologias com alguma gravidade e que demandavam tratamento medicamentoso continuo. As declarações constante da proposta são assim falsas e/ou reticentes.
Provou-se ainda que o autor conhecia os problemas de saúde a que vinha sendo acompanhado medicamente, apesar do que eles foram omitidos na resposta ao questionário médico (37).
Coloca-se a questão de saber se esta falha é imputável aos autores.
Está provado o seguinte com relevo para essa questão:
Com vista à obtenção do empréstimo bancário e concretização da celebração da escritura de compra e venda, os autores encarregaram a irmã do autor e, através dela, outra pessoa indicada por esta, de nome F…, de realizar junto do banco as diligências necessárias e tratar de toda a documentação indispensável (ponto 9).
A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram (ponto 9i).
Os quadrados com a resposta ao questionário clínico foram preenchidos electronicamente, não tendo os respectivos «vistos» sido feitos pelo punho dos autores (ponto 40).
Nenhum dos autores preencheu o formulário/proposta de seguro (39).
Está ainda provado (25) que os autores assinaram pelo seu próprio punho o documento onde consta que:
«São exactas e completas as declarações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-me sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo».
«Tanto o tomador do seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como das possibilidades de realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do capital com a idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida, pelo que as garantias do seguro de vida só serão accionadas após aceitação pela D…, SA e comunicação ao Tomador de Seguro/Pessoa Segura».
O que revelam estes factos?
A proposta de seguro é a declaração negocial dos proponentes que visa ser transmitida à seguradora para esta decidir se a aceita. É pois uma declaração dos autores.
A proposta de seguro encontra-se assinada pelos autores, como não podia deixar de ser, sob pena de não existir proposta, logo de nem sequer existir contrato de seguro.
A aposição da assinatura de uma pessoa num documento significa a sua vinculação aos termos do mesmo, nos precisos moldes em que o teor ou conteúdo do documento se reporta à pessoa que assina. A aposição da assinatura num documento, a não ser que se trate de um acto inconsciente ou resultante de algum vício da vontade, consiste assim na assunção da autoria do documento, em fazer sua a declaração contida no documento.
Para ficar vinculado nesses termos o autor da assinatura não necessita de ser em simultâneo a pessoa que redige ou preenche o documento, este pode ser-lhe apresentado com uma redacção feita por outra pessoa e, por ser de sua vontade assumir o que consta do documento, a pessoa limitar-se a fazer nele a sua assinatura, assumindo como seu o teor do documento.
A proposta de adesão ao seguro é um formulário que tem espaços para serem preenchidos, sendo uma parte relativa à identificação dos proponentes e aos dados do mútuo para cuja garantia se pretendia celebrar o contrato de seguro, e outra parte relativa ao inquérito médico que se destina a ser preenchida apenas com a colocação de um sinal na quadrícula correspondente à resposta.
Quanto ao preenchimento do inquérito médico resultou provado que não foram os autores que efectuaram esse preenchimento (facto 39) uma vez que o documento era um documento electrónico que se encontrava no sistema informático do banco e cujo preenchimento foi feito pelo funcionário do banco, através do respectivo computador, que colocou no documento os vistos assinalando as respostas com as informações dos autores que lhe foram fornecidas (facto 9i).
Em face disso e estando ainda provado que para a obterem o empréstimo bancário e concretizarem a celebração da escritura de compra e venda os autores encarregaram a irmã do autor e, através dela, outra pessoa indicada por esta, de nome F…, de realizar junto do banco as diligências necessárias e tratar de toda a documentação indispensável, não pode deixar de se imputar à esfera de actuação dos próprios autores (e/ou da pessoa que contactaram para o efeito e que desse modo actuou se não em seu nome, pelo menos por sua conta) o modo como foi feito o preenchimento do questionário médico.
Isso determina que ao nível do preenchimento do inquérito médico os autores (ou alguém cuja actuação é, no caso, imputável à esfera de interesse dos autores) prestaram informações falsas ou reticentes sobre o estado de saúde do autor.
Esse facto importa a anulabilidade do contrato?
A resposta, face à matéria de facto provada, parece-nos clara.
Por um lado está demonstrado que as patologias que o autor já apresentava e em relação às quais o autor vinha tendo consultas médicas para diagnóstico e posterior acompanhamento e vinha fazendo tratamentos regulares com medicamentos, são o motivo (a causa) da actual situação de invalidez. Está pois demonstrada a existência de um nexo entre as informações omitidas e o risco coberto pelo contrato de seguro.
Por outro lado, está demonstrado que as informações médicas omitidas interferem claramente com a avaliação do risco por parte da seguradora (condicionavam a análise e aceitação do risco) e que se a seguradora tivesse sido informada dos antecedentes clínicos do autor teria recusado assumir o risco da invalidez total e permanente. Está, por isso, demonstrada a influência da informação omitida para a formação da vontade negocial da seguradora e bem assim qual seria a vontade negocial da seguradora no caso de possuir essa informação.
Independentemente da discussão teórica que no domínio da legislação anterior ao regime jurídico do contrato de seguro se travava sobre a necessidade ou desnecessidade destes requisitos para gerar a invalidade (a anulabilidade) do contrato, no caso, uma vez que ambos os requisitos estão demonstrados parece inevitável concluir que o contrato de seguro é efectivamente inválido, pelo menos no tocante ao risco da invalidez total e permanente que é aquele que no caso se discute.
Em suma, a acção deveria ter sido julgada improcedente e, não o tendo sido, o recurso procede.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, absolvendo os réus dos pedidos dos autores.
Custas da acção e do recurso pelos autores.
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Porto, 21 de Outubro de 2021.
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Os Juízes Desembargadores

Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 642)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]
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[1] Doravante, uma vez que o seu conteúdo não foi nesta parte colocado em crise pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça, seguir-se-á de perto o Acórdão antes proferido, introduzindo-se apenas as alterações justificadas pela modificação da matéria de facto.