Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9268/07.0TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL
CONVENÇÃO CMR
RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
Nº do Documento: RP201210259268/07.0TBMAI.P1
Data do Acordão: 10/25/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Na acção baseada em incumprimento de contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, a que se aplicam as regras da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (vulgo CMR), ao interessado (expedidor ou destinatário) basta provar que fez a entrega da mercadoria ao transportador e que este não a entregou no destino ou que a entregou com avarias, competindo ao transportador a prova de qualquer circunstância que o isente de responsabilidade pelo sucedido ou que seja limitativa da sua responsabilidade.
II – Provando o transportador que a perda ou avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais riscos particulares previstos no n.º 4 do art.º 17.º da CMR, haverá presunção de que aquela resultou destes, podendo o interessado provar que o prejuízo não teve por causa, total ou parcial, um desses riscos.
III – Também constituem excepção à regra da responsabilidade do transportador, as situações provenientes de caso fortuito, força maior, vício do objecto e culpa do expedidor ou do destinatário.
IV – O furto de veículo transportado em camião estacionado num parque não vigiado e não reservado, onde foi deixado sozinho, não pode ser considerado caso fortuito, porque previsível, agindo com negligência grosseira os motoristas que assim procederam.
V - A negligência grosseira não pode ser equiparada ao dolo para efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 29.º da CMR.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 9268/07.0TBMAI.P1 – 3ª Secção (Apelação)
Acção Ordinária – 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Maia

Rel. Deolinda Varão (657)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Carlos Portela

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, SA instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra C…, SA.
Pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 237.881,51, acrescida de juros de mora comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Como fundamento, alegou, em síntese, que foi condenada a pagar uma indemnização a terceira pessoa, que lhe pediu que diligenciasse pelo transporte de um veículo para Itália para reparar, sendo que o mesmo foi furtado por incúria dos condutores do camião que efectuavam o transporte; mais alegou que tem direito de regresso relativamente à ré, já que celebrou com esta um contrato de transporte internacional, que foi incumprido culposamente, ao que acresce que por culpa desta o veículo não estava segurado, conforme tinha sido pedido.
A ré contestou, impugnando parte dos factos alegados pela autora.
Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 237.881,51, acrescida de juros de mora comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento.

A ré recorreu, formulando, em síntese, as seguintes
Conclusões
1ª – À matéria dos quesitos 6º, 7º, 8º e 9º o Mº Juiz “a quo” deu resposta positiva e à matéria dos quesitos 12º e 14º a 21º deu resposta negativa.
2ª – O Mº Juiz “a quo” para fundamentar estas respostas atribuiu sempre maior credibilidade às testemunhas da autora, nomeadamente atribuiu maior credibilidade à testemunha da autora, D…, em detrimento da testemunha da ré, E…, cuja razão de ciência é exactamente a mesma.
3ª – A testemunha, D…, não tinha qualquer conhecimento directo dos factos em questão, pela simples razão de que não assistiu à conversa telefónica efectuada pelo seu colega de trabalho com a testemunha da ré, F….
4ª – O Tribunal recorrido também valorou positivamente o depoimento da testemunha da autora, G…, embora este tenha sido prestado no âmbito do primeiro processo em que a aqui autora foi condenada, na qualidade de ré, a pagar uma indemnização ao seu cliente e dono …, o Sr. Eng.º H….
5ª – A razão da atribuição de credibilidade ao depoimento de G… prende-se com o facto de o mesmo ter sido prestado quando o Sr. G… já não trabalhava por conta da ora recorrida.
6ª – Tal argumento é frágil e pouco consistente porque a testemunha, G…, foi trabalhador da recorrida até 30.06.02, tendo o depoimento sido prestado em 20.05.03, ou seja, passados apenas cerca de onze meses após ter cessado a sua relação laboral com a B….
7ª – A invocação num determinado processo dum depoimento produzido num outro tem de ser feita com uma cautela especialmente reforçada, porquanto deixa de se verificar a consagrada imediação na valoração da prova.
8ª – O Juiz da segunda causa tem de fazer a sua própria valoração da prova, não importando acriticamente o valor que a essa prova foi atribuído por outro Juiz, noutra altura e noutras circunstâncias.
9ª – O Mº Juiz “a quo” não valorou, como devia, o depoimento da testemunha da ré, F…, que era a única testemunha que tinha conhecimento directo dos factos em apreço e a única que, nessa qualidade, prestou depoimento nos presentes autos.
10ª – Impõe-se, assim, assim, uma resposta de “Não Provado” aos artºs 6º, 7º, 8º e 9º e aos artºs 12º e 14º a 21ª da base instrutória de “Provado”.
11ª – Na operação de subsunção jurídica dos factos ao direito, o Tribunal recorrido entendeu que a conduta dos motoristas, tal como resultou provada, configura uma actuação grosseiramente negligente e equiparou tal negligência ao dolo, para efeito da desaplicação da limitação de responsabilidade das entidades transportadoras prevista no capítulo IV da Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (“CMR”).
12ª – O artº 29º da CMR prevê que as entidades transportadoras não podem valer-se da limitação da responsabilidade, tal como prevista nos artigos precedentes, em caso de dolo ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.
13ª – E, de acordo com o ordenamento jurídico português, a negligência, ainda que grosseira, não é equiparável ao dolo.
14ª – Acresce que, salvo o devido respeito por melhor entendimento, o comportamento dos condutores que resultou provada nos autos não configura, sequer, um caso de negligência grosseira.
15ª – Na verdade, não se tratava de uma mercadoria facilmente amovível, esta encontrava-se devidamente acondicionada num semi-reboque seguro e fechado e o camião foi estacionado num local como tantos outros existentes nas estradas europeias, onde é frequente os camiões de transporte de mercadorias ficarem estacionados, e do qual os motoristas se ausentaram apenas por breves minutos.
16ª – Acresce que não existem muitos parques guardados e vigiados na Europa, sendo que a grande maioria dos parques existentes são parques não vigiados.
17ª – Não é comportável, nem funcional, exigir-se aos motoristas de longo curso que apenas estacionem os camiões em parques vigiados e guardados, precisamente, porque há poucos, os que há são bastante caros e este procedimento redundaria, a final, no incumprimento da legislação comunitária que obriga ao repouso de quatro horas e meia em quatro horas e meia. Com efeito, não existem parques vigiados que permitissem o cumprimento deste intervalo de descanso.
18ª – Para além disso, não era crível que o afastamento dos motoristas por breves instantes pudesse acarretar um perigo sério para a carga transportada, que estava devidamente acondicionada e não visível.
19ª – Impor-se-á afirmar que o infortúnio que sucedeu ao camião é um caso fortuito, porquanto o mesmo, num contexto de diligência mediana, não era previsível, ou seja, os motoristas não podiam, razoavelmente, antecipar que a sua ausência momentânea pudesse dar origem ao furto.
20ª – Nestas circunstâncias, jamais se poderá falar em actuação grosseiramente negligente ou dolosa.
21ª – Mas, ainda que o comportamento dos motoristas fosse passível de ser classificado como de negligência grosseira, o que não se aceita, certo é que não há, no direito português - que é o que aqui releva -, qualquer equiparação do dolo à negligência.
22ª – Neste sentido, veja-se, entre outros, o Ac. do STJ de 06.07.06, o Ac. da RL de 19.03.09, o Ac. da RP de 29.10.09 e o Ac. da RC de 15.11.11.
23ª – Mas, se os argumentos jurisprudenciais não bastassem, existe um elemento interpretativo que deve ser tido na devida consideração aquando da interpretação do artigo 29º da CMR e que é o elemento teleológico.
24ª – O legislador português, colocado na necessidade de regular o contrato de transporte rodoviário de mercadorias em território nacional, harmonizando tal regime com o regime congénere do contrato internacional, importou a norma de exclusão da limitação da responsabilidade das entidades transportadoras, mas clarificou que essa exclusão só se verifica em casos de dolo, não deixando margem para dúvidas.
25ª – Daqui resulta que o legislador português entendeu que só o dolo justifica a exclusão da limitação da responsabilidade da transportadora.
26ª – Assim, a indemnização não poderá ser calculada nos termos constantes da petição inicial e seguidos na sentença objecto de recurso, porquanto a limitação da responsabilidade da transportadora constante do capítulo IV da CMR é inteiramente aplicável.
27ª – Temos que, ao abrigo da Convenção CMR, a indemnização que poderá ser julgada como devida à autora não pode exceder 9996 direitos de saque especiais e o respectivo montante de juros de mora calculados à indicada taxa de 5% ao ano.
28ª – Considerando que o valor corrente de um direito de saque especial é de € 1,18034 (cf. informação publicada pelo Banco de Portugal), o valor indemnizatório pela perda da mercadoria em causa nestes autos nunca poderia exceder € 11.798,68 (9996 DSE x € 1,1803).

A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
A sociedade I…, Lda. foi constituída em 1968. (A)
Em 09.09.03, a referida sociedade fundiu-se, por incorporação, na sociedade J…, Lda., transmitindo para esta última todo o activo e passivo, direitos e obrigações. (B)
Nessas circunstâncias, a sociedade J…, Lda. alterou a sua denominação para I…, Lda. (C)
No início de 2004, por cisão, foi cindido da sociedade I…, Lda. todo o activo e passivo referente à actividade económica relacionada com as áreas dos transportes, marítimo e aéreo e da logística, o qual passou para a sociedade K…, Lda. (D)
Na sequência dessa cisão, a sociedade I…, Lda. alterou a sua firma para L…, Lda. (E)
Esta sociedade incorporou as sociedades M…, SA, N…, Lda., O…, Lda., P…, Lda. e Q…, Lda. (F)
Tendo desde aí adoptado a denominação C…, Lda. (G)
A autora dedica-se à importação, representação e comercialização de veículos automóveis. (H)
A ré dedica-se ao transporte de mercadorias. (I)
Na sequência de uma avaria, o mencionado H… solicitou à autora para tratar do transporte do veículo de matrícula ..-..-KA, de Lisboa para Itália, e para tratar do respectivo seguro que garantisse, entre outros riscos, o furto e o roubo. (M)
O veículo de matrícula ..-..-KA não foi vendido ao mencionado H… pela autora. (2º)
A solicitação do mencionado H…, a autora prontificou-se a providenciar pelo transporte do automóvel através de um transportador credenciado (a ré) e a solicitar a sua reparação por conta do proprietário. (3º)
No dia 03.03.97, a autora comunicou ao mencionado H… que existia um transporte para o dia seguinte, às 11.00 horas, com o preço de 130.000$00. (N)
Nessas circunstâncias, o mencionado H… perguntou se o preço incluía o seguro, tendo a aqui autora respondido negativamente. (O)
Tendo o mencionado H… recordado que pretendia que fosse efectuado o seguro. (P)
No dia 03.03.97, após pedido do mencionado H…, a autora contactou telefonicamente a ré, questionando se esta poderia tratar do seguro do …, bem como qual seria o respectivo preço. (6º)
Nessa ocasião, a ré respondeu afirmativamente, tendo informado que o prémio de seguro seria de 40.000$00. (7º)
Nesse mesmo dia foi transmitido ao mencionado H… pela aqui autora que o seguro custaria 40.000$00 e que iria ser emitida a apólice. (Q)
No próprio dia 03.03, a autora informou a ré da aceitação do valor proposto. (8º)
A ré contactou a seguradora S…, tendo-lhe sido dito que para fazer o seguro e emitir a apólice seria necessário fazer uma peritagem ao veículo. (LL)
O contacto aludido em LL) foi efectuado na sequência do pedido mencionado em 8º. (9º)
Sendo que nessa altura já o transporte tinha sido iniciado. (10º)
Não tendo a ré dado instruções para parar o transporte do veículo, nem diligenciado no sentido de encontrar outra seguradora. (11º).
Por lhe ter sido dada a garantia de emissão da apólice, o mencionado H… autorizou o transporte do … de matrícula ..-..-KA para Itália, solicitando ao T… a sua entrega nas instalações da autora. (R)
O que aconteceu na manhã de 04.03.97. (S)
O veículo de matrícula ..-..-KA foi carregado nas instalações da autora no camião da sociedade U…, Lda., contratado para o efeito pela ré. (BB)
A autora só tomou conhecimento que seria a sociedade U…, Lda. a executar o transporte quando o camião chegou às suas instalações para efectuar o carregamento do veículo de matrícula ..-..-KA. (4º)
O carregamento do veículo de matrícula ..-..-KA ocorreu no dia 04.03.97, sendo que nesse mesmo dia, por volta das 9.30/10.00 da manhã, a autora contactou telefonicamente a ré, informando que o camião já se encontrava nas instalações para carregar o … do mencionado H…. (GG)
Nessas circunstâncias, a autora informou que a operação iria demorar algum tempo e deveria estar concluída ao final da manhã. (HH)
O carregamento foi concluído na final da manha do dia 04.03.97, tendo o camião saído das instalações da autora. (II)
O camião saiu das instalações da A. a seguir à hora de almoço, no dia 04.03.97. (13º)
Com data de 04.03.97, foi emitido o respectivo aviso de expedição, que só foi enviado à autora em 12.03.97. (5º)
Nessa tarde, a aqui autora comunicou ao mencionado H… que a viagem se iniciara sem problemas e que a chegada estava prevista para a manhã de 07.03.97. (T)
O serviço foi efectuado num transporte com dois condutores, em camião semireboque. (JJ)
Na noite de 06 para 07.03.97, em …, Itália, o camião que transportava o … foi furtado, juntamente com toda a sua mercadoria, tendo o furto ocorrido no momento em que o motorista e o co-piloto se ausentaram, deixando o camião e a carga fora de um parque reservado e guardado. (DD)
A viatura de matrícula ..-..-KA tinha o peso bruto de 1.200 Kg. (23º)
No dia 07.03.97, a aqui autora comunicou ao mencionado H… que o camião que transportava o … tinha sido furtado na noite anterior, com toda a sua carga. (U)
Nessas circunstâncias, a aqui autora comunicou ao mencionado H… que tinha solicitado a execução do transporte à ré e que estava a aguardar que esta lhe transmitisse o ocorrido em Itália. (V)
E que não tinha sido emitida a apólice de seguro. (X)
Mas que a ré tinha sido encarregada do transporte e da emissão da apólice. (Z)
Após o desaparecimento do veículo de matrícula ..-..-KA (na 2a feira seguinte) teve lugar uma reunião nas instalações da ré entre esta e a autora. (CC)
No dia 10.03.97, teve lugar uma reunião nas instalações da ré, em que estiveram presentes o Eng. D…, o Sr. G… da parte da autora, o Sr. E… (Director Nacional de Gestão de Frota) e a Sra. F1…, da parte da ré. (EE)
Nessa reunião, a ré referiu não ter efectuado o seguro que lhe fora solicitado. (FF)
No dia 18.03.97, por sugestão do mencionado H…, decorreu uma reunião com a autora e com a ré, na qual esta referiu ter contratado a sociedade U…, Lda. para efectuar o transporte. (AA)
Em 1997, H… intentou uma acção declarativa de condenação contra a autora, a sociedade I…, Lda. e a sociedade U…, Lda., a qual correu termos na 2ª Secção da 14ª Vara de Lisboa sob o n° 620/97, conforme documento junto a fls. 79 a 98 dos autos. (J)
No âmbito da acção aludida em J), mediante decisão transitada em julgado, a autora foi condenada a pagar a H… a quantia de € 149.639,37, incluindo juros desde a citação, conforme documentos juntos a fls. 79 a 127 dos autos. (L)
Em 12.09.06, na sequência das decisões mencionadas em L), a autora pagou a H… a quantia de € 237.881,51. (1º)
*
III.
As questões a decidir – delimitadas pelas conclusões da alegação da apelante (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC, na redacção anterior ao DL 303/07, de 24.08) – são as seguintes:
- Se devem ser alteradas as respostas que foram dadas aos quesitos 6º a 9º, 12º e 14º a 21º;
- Ainda que tais respostas não sejam alteradas, se a ré não é responsável pelo pagamento da quantia pedida pela autora;
- Caso se entenda que existe responsabilidade da ré, se a mesma deve ser limitada ao pagamento da quantia de € 11.798,68.

1. Alteração da matéria de facto
Q. 6º: No dia 03.03.97, após pedido do mencionado H…, a autora contactou telefonicamente a ré, questionando se esta poderia tratar do seguro do …, bem como qual seria o respectivo preço?
Q. 7º: Nessa ocasião, a ré respondeu afirmativamente, tendo informado que o prémio de seguro seria de 40.000$00?
Q. 8º: No próprio dia 03.03, a autora informou a ré da aceitação do valor proposto?
Q. 9º: O contacto aludido em LL) – [a ré contactou a seguradora S…, tendo-lhe sido dito que para fazer o seguro e emitir a apólice seria necessário fazer uma peritagem ao veículo] – foi efectuado na sequência do pedido mencionado em 8º?
Q. 12º: Na sequência do contacto aludido em 7º, a autora esclareceu que iria comparar o custo do seguro com o da sua seguradora?
Q. 14º: Cerca das 17.00 horas do dia 04.03.97, a autora contactou a ré, solicitando a esta que fosse efectuado o seguro de transporte da viatura?
Q. 15º: Quando recebeu o pedido de seguro apresentado pela autora, esta diligenciou de imediato pela realização do mesmo?
Q. 16º: À hora em que a autora solicitou o mesmo, a S… já tinha os seus serviços encerrados, tendo tomado conhecimento do mesmo na manhã do dia seguinte?
Q. 17º: No dia 05.03.97, a ré foi informada pela S… que a companhia de seguros não tinha aceite o pedido do seguro apresentado?
Q. 18º: Essa informação foi imediatamente comunicada à autora, a quem foi sugerido que junto da sua seguradora tentasse a colocação do seguro?
Q. 19º: A partir desse momento, a autora não deu mais qualquer indicação à ré sobre o seguro?
Q. 20º: Nem deu quaisquer instruções à ré sobre a realização do transporte?
Q. 21º: A autora tinha conhecimento que o camião iniciou o transporte sem que o seguro tivesse sido sequer pedido à ré?

Os quesitos 6º a 9º obtiveram respostas positivas, sustentando a ré que as respostas devem ser negativas.
Ao invés, os quesitos 12º e 14º a 21º obtiveram respostas negativas, sustentando a ré que as respostas devem ser positivas.
A factualidade impugnada reporta-se à forma como decorreram as negociações entre a autora e a ré com vista à celebração de um contrato de seguro que garantisse, entre outros, os riscos de furto e roubo do veículo automóvel de matrícula ..-..-KA, que a ré ia transportar para Itália a pedido da autora, e às razões por que esse contrato não chegou a ser celebrado.
Os depoimentos de maior relevo são os de G…, que foi funcionário da autora durante cerca de 12 anos, até 30.06.02, e F1…, funcionária da ré desde 1982, pois que foi entre estas duas testemunhas que foram feitos os contactos com vista ao transporte do veículo e à efectivação do respectivo seguro.
O depoimento de G… não foi prestado na audiência de julgamento dos presentes autos, mas sim na audiência de julgamento da acção declarativa aludida em J), que correu termos na 2ª Secção da 14ª Vara de Lisboa, sob o nº 620/97, instaurada por H… (proprietário do KA) contra a autora e a ré da presente, encontrando-se transcrito a fls. 227 e seguintes.

Diz o nº 1 do artº 522º do CPC que os depoimentos e arbitramentos produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artº 355º do CC; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e arbitramentos produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
As expressões “depoimentos” e “arbitramentos” abrangem a prova por depoimento de parte, por inquirição de testemunhas e por perícia; ficam excluídas a prova documental e a prova por inspecção judicial[2].
O nº 1 do preceito citado exige que a parte contra quem a prova é invocada, isto é, aquela que resulta desfavorecida com o resultado probatório, tenha sido parte no primeiro processo e que nele tenha sido respeitado o princípio da audiência contraditória, ou seja, que a parte tenha sido convocada para os actos de preparação e produção da prova e admitida a neles intervir, independentemente de neles ter estado efectivamente presente e ter tido intervenção efectiva (artº 517º). Se esse princípio tiver sido violado ou a parte tiver sido revel, a eficácia extraprocessual da prova está excluída[3].
Ressalvadas as limitações ao princípio do valor extraprocessual das provas ínsita na 2ª parte do nº 1 e no nº 2 do artº 522º do CPC, o juiz da causa está perante a prova produzida noutro processo, que aquele preceito permite invocar, na mesma posição em que está perante a prova produzida no processo que dirige[4].

No caso, estão reunidos todos os pressupostos para que os depoimentos prestados na acção declarativa aludida em J) possam ser valorados nos presentes autos, tal como entendeu o Mº Juiz a quo.
O facto de o depoimento de G… não ter sido prestado nos presentes autos, não é, só por si, fundamento para que o mesmo seja desvalorizado em confronto com o depoimento de F1….

Vejamos, então:
G… afirmou que, no dia 03.03.97, a ré informou que o valor do seguro era de 40.000$00, mas que, por volta das 17.30 desse dia, recebeu um telefonema de F1…, informando-o que o valor do seguro era de € 55.000$00. De seguida, telefonou à testemunha D… [que, na altura, era Director dos Serviços Técnicos da autora], transmitindo-lhe essa informação, que aquele, por sua vez, transmitiu a H…, proprietário do KA, tendo este aceitado o valor do seguro (fls. 272 e 273).
Segundo G…, todo aquele processo demorou pouco tempo e, por volta das 18 horas, telefonou a F1…, informando-a de que o proprietário do veículo tinha aceitado o valor e adjudicando o transporte com o seguro, o que foi aceite pela ré (fls. 273 e 284).
“Não sei se foi meia hora, se foi uma hora, foi tudo seguido. No próprio dia, tratou-se de tudo.” (fls. 284).
Mais disse que, no dia 04.03.97, de manhã, falou com F1… e esta disse-lhe que o camião ficaria a aguardar que o veículo chegasse para poder avançar (fls. 275).
A testemunha negou que quando lhe foi dito que o valor era de € 55.000$00, tenha dito que ia comparar preços com outras seguradoras (fls. 276 e 277).
Disse que F1… lhe telefonou no dia 05.03.97 a dizer que não tinham feito o seguro e ele lhe disse para bloquear o camião, ao que ela respondeu que iria pressionar a seguradora (fls. 278).
Foi só então, nesse dia 05.03 que contactou a corretora da autora que o informou que em veículos de valor superior a 25.000.000$00 era obrigatório fazer-se uma peritagem ao veículo (fls. 278).
“Nós só soubemos que era necessário efectuar uma peritagem no dia 5 de Março.” (fls. 287)
Segundo a testemunha, ligou para a F1… e contou-lhe da peritagem, aquela “ficou atrapalhada” e disse que iam pressionar a seguradora (fls. 278).
Mais disse que na reunião de 11.03.97, a ré transmitiu que não houve tempo para fazer o seguro porque a seguradora exigia uma peritagem (fls. 282).

A testemunha F1… começou por dizer que, no dia do carregamento do veículo para o transporte [04.03.97], o G… veio pedir-lhe para ser efectuado um seguro. Foi feito um contacto com a seguradora e o G… ficou de comparar as condições com a sua seguradora. Ao final desse dia, o G… veio pedir para fazer o seguro, deu a informação para o colega do departamento próprio e no dia seguinte ao carregamento teve a informação de que a seguradora queria fazer uma peritagem (fls. 842 e 843).
Porém, mais à frente (fls. 844), a testemunha já disse que teve conversas anteriores com o G… sobre o seguro, mas que só no dia do carregamento este lhe confirmou que aceitava o seguro. E ainda mais à frente, disse que o seguro foi pedido logo quando foi pedido o transporte (fls. 852).
A testemunha afirmou que o valor de que se terá falado inicialmente foi de 40.000$00 e que o valor dado pela seguradora no dia do carregamento foi de 55.000$00 e que o G… ficou de comparar (fls. 844).
Na parte da manhã do dia do carregamento, o G… telefonou a dizer que o veículo estava a ser carregado, que o carregamento ainda ia levar algum tempo e foi nesse contacto que lhe pediu para efectuar o seguro (fls. 846), que ela informou que o preço era de 55.000$00 e que ele ficou de ir comparar. E que só ao final desse dia, o G… telefonou a dizer para fazer o seguro, por volta das 17 horas (fls. 846 e 847).
Ela passou então o assunto ao colega V…, que enviou um fax para a seguradora e no dia seguinte (05.03.97], de manhã, recebeu uma informação da seguradora a dizer que queria fazer uma peritagem ao veículo. Ela deu conhecimento disso ao G…, que respondeu que ia tentar colocar o seguro na seguradora dele (fls. 849).

Mesmo sem recurso a outros meios de prova, entendemos ser mais credível o depoimento de G…, sobretudo pela coerência que o depoimento de F1… não demonstrou, designadamente revelando alguma confusão acerca da altura em que a autora solicitou à ré a realização do seguro, como se alcança da súmula que acima fizemos.
Ademais, o depoimento de G… foi confirmado, no essencial, pelo depoimento de D…, que era, à data dos factos, Director dos Serviços Técnicos da autora, tendo o seu depoimento sido prestado na audiência de julgamento da presente acção.
Esta testemunha disse que, com vista à realização do transporte do veículo para Itália, contactou o chefe dos transportes da autora (de cujo nome já não se recordava), tendo intermediado os contactos deste com H…, o dono do veículo (fls. 762, 763 e 773).
Disse que foi a ré que informou a autora que o preço do seguro seria de 40.000$00, não tendo a autora tido contacto directo com qualquer seguradora (fls. 766 e 767).
Disse que o seguro foi aceite antes do transporte se iniciar, tendo essa aceitação sido transmitida pela autora à ré no dia anterior ao do início do transporte (fls. 768).
A aceitação foi feita pelo responsável dos transportes da autora, encontrando-se o depoente perto, embora não tenha escutado o teor da comunicação (fls. 775 a 777).
Já depois de o camião ter seguido viagem, houve uma informação por parte da rede que o seguro não tinha feito porque a seguradora tinha exigido fazer uma peritagem (fls. 769).
Também a testemunha W…, sobrinho por afinidade de H…, proprietário do veículo (que prestou depoimento na acção aludida em J)) afirmou que no dia anterior ao início do transporte do veículo (03.03.97), D… comunicou ao seu tio que tinham tratado de tudo aquilo que tinham sido incumbidos [o que incluía o seguro – cfr. al. P)] e que o carro estava em condições de seguir no dia seguinte para Itália. (fls. 233).
E ainda que o mesmo D…, ao comunicar o furto do veículo ao H…, lhe comunicou igualmente que a ré não havia feito o seguro, mostrando-se absolutamente indignado com a situação: Não queria acreditar que uma coisa destas pudesse acontecer, uma leviandade destas pudesse acontecer. (fls. 235).
Por outro lado, a testemunha V… – funcionário da autora desde 1989 e que era, à data dos factos, responsável pela organização de transportes de X… – disse que a testemunha F1… apenas foi contactada para fazer o seguro no próprio dia do carregamento do veículo (que se recordava de ser numa 3ª-feira, por ser este o dia normal de saída dos camiões para Itália) (fls. 869 e 872).
Disse que no fim da tarde desse dia, por volta das 17 horas, tentou colocar o seguro e só no dia seguinte foi informado de que o seguro não tinha sido aceite (fls. 872 e 874). E que só no dia seguinte de manhã, a seguradora informou que tinham de fazer uma peritagem e comunicou esse facto à F1….
Entendemos, no entanto, que este depoimento não é suficiente para afastar as inconsistências e incongruências do depoimento da testemunha F1…, nem para retirar credibilidade aos depoimentos das testemunhas G… e D…, dos quais ressalta, em abundância, que a questão do seguro ficou toda resolvida no dia 03.03.97, antes do transporte se iniciar.
No essencial, mostra-se assim provada a versão da autora e não provada a da ré no que respeita às circunstâncias em que foi negociado o seguro em causa.
Pelo exposto, entendemos que não ocorreu erro na apreciação da prova, por isso se mantendo as respostas positivas que foram dadas aos quesitos 6º, 7º, 8º e 9º e as respostas negativas que foram dadas aos quesitos 12, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º e 21º e, em consequência, mantendo-se a matéria de facto que foi considerada provada pelo Tribunal recorrido.

2. Responsabilidade da ré
Não se discute que o contrato cujo incumprimento a autora imputa à ré é um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, ao qual se aplicam as regras da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, designada pela sigla CMR – à qual pertencem todas as normas adiante designadas sem menção de origem – assumindo a autora a função de expedidora e a ré a de transportadora.
O contrato de transporte é um contrato de resultado, que apenas se mostra cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário, entendendo-se mesmo que é essa a essa a obrigação essencial do transportador, de tal forma assumindo importância, que deve ser autonomizada da obrigação de deslocar a mercadoria onde costuma vir integrada[5].
Por isso, a entrega não se confunde com a descarga; esta é uma operação material, enquanto a entrega é um acto jurídico, podendo decompor-se em dois momentos, a apresentação da mercadoria ao destinatário e a sua aceitação. A entrega só acontece quando o destinatário aceita a mercadoria e entrega a declaração de recepção ao transportador[6].
A falta de entrega da mercadoria configura incumprimento contratual e pode dever-se a perda, destruição, morte do animal, extravio, retenção, arresto, penhora, ou qualquer outro acto da autoridade ou de terceiro[7].
Ao interessado (expedidor ou destinatário) bastará a prova de que fez a entrega da mercadoria ao transportador e que este não a entregou no destino ou que a entregou com avarias. Ao transportador incumbirá a prova de qualquer circunstância que o isente de responsabilidade pelo sucedido ou seja limitativa da sua responsabilidade[8].
Com efeito, diz o artº 17º, nº 1 que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento da avaria e o da entrega, assim como pela demora na entrega.
E, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado [expedidor ou destinatário], uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.
Nos termos do nº 1 do artº 18º, compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no nº 2 do artº 17º.
No nº 4 do artº 17º, prevê-se a isenção da responsabilidade do transportador quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes aos factos discriminados nas suas diversas alíneas.
E, segundo o nº 2 do artº 18º, quando o transportador provar que a perda ou avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais dos riscos particulares previstos no nº 4 do artº 17, haverá presunção de que aquela resultou destes. O interessado poderá, no entanto, provar que o prejuízo não teve por causa, total ou parcial, um desses riscos.
Como se escreveu na sentença recorrida, “Também constituem excepção à regra da responsabilidade da transportadora pela perda da mercadoria até à sua entrega ao destinatário, as situações provenientes de caso fortuito, força maior, vício do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário, como resulta do preceituado pelas disposições combinadas dos artigos 383º e 376º do Código Comercial.”

Sustenta a ré que a conduta dos motoristas que efectuaram o transporte do veículo KA não lhes pode ser imputada a título de negligência e, ainda menos, de negligência grosseira, por não poderem os motoristas razoavelmente antecipar que a sua ausência momentânea pudesse dar origem ao furto – devendo, por isso, considerar-se o furto do veículo como um caso fortuito.

Adiantamos já que, nesta parte, concordamos inteiramente com a conclusão a que se chegou na sentença recorrida, no sentido de classificar como negligência grosseira a conduta dos motoristas que realizaram o transporte, bem como com a respectiva fundamentação, que a seguir se transcreve:
“De todas as causas excludentes apenas cabe equacionar se o furto do veículo poderá qualificar-se como caso fortuito, pois quanto às demais causas excludentes ostensivamente não se verificam.
Uma coisa é certa, sendo um facto excludente da responsabilidade da Ré, competia a esta prová-lo.
Caso fortuito, em matéria de obrigações, são os acontecimentos imprevisíveis que se tivessem sido previstos, poderiam evitar-se.
Ora, da matéria dada como provada não resulta que o furto era imprevisível.
Na verdade, provou-se que na noite de 6 para 7 de Março de 1997, em … — Itália, o camião que transportava o … foi furtado, juntamente com toda a sua mercadoria, tendo o furto ocorrido no momento em que o motorista e o co-piloto se ausentaram, deixando o camião e a carga fora de um parque reservado e guardado.
Ora, considerando a mercadoria valiosa que transportavam, os inúmeros furtos que existem no transporte internacional, o facto de se ausentarem simultaneamente os dois motoristas do camião, deixando-o sozinho, num parque que nem sequer era guardado, objectivamente aumenta os riscos de um furto, que se torna previsível neste quadro, e que infelizmente sucedeu.
Não poderá portanto apelidar-se o furto de um caso fortuito, uma vez que à luz de todos estes factos era previsível que sucedesse um assalto, não se verificando a excludente da responsabilidade.
A este propósito, em situações semelhantes, já se decidiu não poder ser considerado caso fortuito e, portanto, “facto imprevisível o furto de mercadorias tiradas de um veículo em que eram transportadas deixado estacionado toda a noite numa praça de Lisboa, ainda que iluminada e policiada, e daí também furtado”[STJ, de 17-5-1984, BMJ nº 337, 386], ou “tendo o motorista estacionado o camião num parque aberto e público, do qual foi furtada, por desconhecidos, parte da mercadoria transportada, enquanto aquele dormia”[RL, de 15-5-2001, Pº nº 0014867, www.dgsi.pt] – acórdãos citados no já referido acórdão do S.T.J., processo n.º 437/05.9TBANG.C1.S1, de 14.06.2011.
No caso dos autos, o comportamento dos motoristas foi altamente censurável, e só levianamente confiaram que a mercadoria não poderia ser furtada. Na verdade, transportando uma mercadoria de milhares de euros, e abandonando-a num parque não vigiado, pois nenhum dos motoristas ficou no camião, demonstra uma actuação imprudente, não zelosa e não correspondente à diligência que seria exigível a motoristas cientes das responsabilidades e perigos que a sua conduta poderia despoletar para a carga, afastando-se assim do exigível ao bonus pater familiae – art. 487.º, n.º 2 do CC.
Estamos assim no domínio da negligência consciente, pois não poderia ter deixado de lhes ter ocorrido que deixando um … num parque não vigiado e não reservado, sem qualquer motorista, que eventualmente poderia ocorrer um assalto, embora levianamente acreditaram que tal não sucederia.
E poderá apelidar-se de grosseira, pois sendo dois motoristas, e ausentando-se ambos simultaneamente, ainda para mais num parque não vigiado, violaram as mais elementares regras de prudência, segurança e zelo.”.
Nada mais se nos oferece dizer, de relevante, para além do acima transcrito.
Acrescentamos apenas que não colhe aqui a asserção da ré de que não é comportável, nem funcional, que os motoristas apenas estacionem os camiões em parques guardados e vigiados, porque há poucos, e esse procedimento redundaria no incumprimento da legislação comunitária que obriga ao repouso de quatro horas e meia em quatro horas e meia.
Efectivamente, não era exigível que os motoristas estacionassem o camião num parque vigiado, se a procura por um parque desses levasse ao incumprimento das horas de descanso legalmente estabelecidas.
Mas já lhes era exigível que, tendo estacionado o camião num parque não vigiado, pelo menos um dos motoristas permanecesse dentro do camião enquanto o outro se ausentava.

Não mostra, pois, excluída a responsabilidade da ré pela perda do veículo KA, improcedendo as suas conclusões também nesta parte.

2. Limitação da responsabilidade da ré
Diz o nº 1 do artº 23º que quando for debitada ao transportador uma indemnização por perda total ou parcial da mercadoria, em virtude das disposições da presente Convenção, essa indemnização será calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que for aceite para transporte.
Segundo o nº 2 do mesmo preceito, o valor da mercadoria será determinado pela cotação da bolsa, ou, na falta desta, pelo preço constante do mercado, ou, na falta de ambas, pelo valor usual da mesma natureza e qualidade.
A indemnização não poderá, porém, ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma do peso bruto em falta (nº 3 do preceito citado).
Estipula ainda o nº 4 do mesmo artº 23º que, além disso, serão reembolsados o preço do transporte, os direitos aduaneiros e as outras despesas provenientes do transporte da mercadoria, na totalidade no caso de perda total e em proporção no caso de perda parcial; não serão devidas outras indemnizações de perdas e danos.
Por seu turno, os nºs 7, 8 e 9 do mesmo artº 23º, fazem equivaler a unidade de conta referida na CMR ao direito de saque especial, tal como é definido pelo Fundo Monetário Internacional e explicam qual a forma de cálculo e de conversão desse valor.
No entanto, diz o artº 29º, nº 1 que o transportador não tem direito a aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitem a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja equivalente ao dolo.
Trata-se de uma norma de evidente protecção do transportador, no âmbito do princípio, dominante em matéria de transportes internacionais de mercadorias, da responsabilidade do transportador, temperado pelo da sua exclusão ou limitação nos casos previstos[9].
É controvertida a questão de saber se, para efeitos do disposto no nº 1 do artº 29º, a negligência grosseira pode ser equiparada ao dolo.
Alfredo Proença e J. Espanha Proença[10] entendem que a interpretação (acima expressa) de que a perda corresponde a todas as situações de falta ou não entrega da mercadoria no seu destino, por estimular a fraude, deve ser mitigada, além do mais, pela equiparação ao dolo da negligência grosseira.
No mesmo sentido e com o mesmo fundamento se pronunciou o Ac. do STJ de 14.06.11[11], citado na sentença recorrida.
Nesta se entendeu que, sendo a negligência ou mera culpa e o dolo duas modalidades da culpa lato sensu, a equivalência daquelas duas modalidades a nível contratual flui logo do artº 798º do CC, em que para existir responsabilidade contratual é indiferente uma conduta dolosa ou negligente, apenas se exigindo como pressuposto a culpa lato sensu.
Em sentido contrário, decidiu-se nos Acs. do STJ de 06.07.06, desta Relação de 29.10.09 e da RL de 09.03.09[12] que a negligência grosseira não pode ser equiparada ao dolo para efeitos de não aplicação das exclusões e limitações previstas no Cap. IV da CMR.
Nos primeiros dois arestos citados, entendeu-se que o nosso sistema jurídico não consente a equiparação da negligência, em qualquer das suas formas, ao dolo: a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu pontualmente, como novidade, com a reforma processual civil operada em 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé (cfr. artº 456º do CPC).
Concordamos com o expendido nos arestos citados, entendendo nós que do disposto no artº 798º do CC não se pode extrair um argumento em sentido contrário, como se fez na sentença recorrida.
Daquele preceito apenas decorre que existe responsabilidade contratual independentemente da modalidade de culpa lato sensu do agente (mera culpa ou dolo); dele não se pode concluir que, para o efeito de quaisquer disposições especiais que estabeleçam limitações ou exclusões à responsabilidade contratual, algumas formas de negligência se equiparem ao dolo: para tanto, terá a lei de o dizer expressamente – o que já vimos que não faz, a não ser no caso específico da litigância de má fé de que acima falámos.

Assim, no caso, não tem aplicação o disposto no nº 1 do artº 29º, pelo que a indemnização a pagar pela ré à autora terá de ser calculada dentro dos limites impostos pelo artº 23º.
E como os autos não contêm todos os elementos para que a indemnização seja determinada (sobretudo, tendo em conta o disposto no nº 4 do preceito), terá essa determinação de ser relegada para ulterior fase incidental, ao abrigo do disposto no artº 661º, nº 2 do CPC.

Procedem, assim, as conclusões da ré, nesta parte, pelo que a sentença terá de ser alterada em conformidade.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se, em parte, a sentença recorrida e, em consequência:
- Condena-se a ré a pagar à autora a indemnização a liquidar em fase ulterior, equivalente à perda do veículo automóvel de matrícula ..-..-KA, no montante que vier a ser apurado nos termos do artº 23º da CMR.
Custas pela apelada.
***
Porto, 25 de Outubro de 2012
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
Carlos Jorge Ferreira Portela
_________________
[1] Alterou-se a sistematização na discriminação dos factos provados, ordenando-os todos de forma que julgamos ser mais lógica e coerente, a fim de se retirar um sentido útil desse encadeamento e facilitar a respectiva análise e apreciação (a este respeito ver Pinto de Almeida, “Fundamentação da Sentença Cível”, Estudos, www.trp.pt.).
[2] Cfr. Alberto dos Reis, CPC Anotado, III, 3ª ed., pág. 344.
[3] Cfr. Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2º, 2ª ed., pág. 449.
[4] Cfr. Alberto dos Reis, obra citada, pág. 346.
[5] Cfr. Francisco Costeira da Rocha, O Contrato de Transporte de Mercadorias, pág. 65.
[6] Francisco Costeira da Rocha, obra citada, págs. 66 e 168.
[7] Alfredo Proença e J. Espanha Proença, Transporte de Mercadorias, pág. 119.
[8] Alfredo Proença e J. Espanha Proença, obra e lugar citados.
[9] Alfredo Proença e J. Espanha Proença, obra citada, pág. 120.
[10] Obra citada, pág. 121.
[11] www.dgsi.pt.
[12] Todos em www.dgsi.pt.