Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
911/13.3TBMAI.P2.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: DIREITO REAL DE HABITAÇÃO
UNIÃO DE FACTO
CASAMENTO
UNIDO DE FACTO
TERCEIRO
DATA DA MORTE
PROPRIETÁRIO
HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP20180206911/13.3TBMAI.P2.P1
Data do Acordão: 02/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º810, FLS.121-124)
Área Temática: .
Sumário: I - O direito real de habitação é atribuído em caso de morte da pessoa proprietária da casa de morada comum às “pessoas que com ela tenham vivido em economia comum há mais de dois anos nas condições previstas na presente lei” (cf. art.º 5.º n.º 1 da Lei nº6/2001).
II - Este direito tem um prazo de cinco anos, durante os quais o seu beneficiário tem ainda direito de preferência na venda da casa de morada comum.
III - A circunstância da a pessoa sobreviva viver em união de facto com o proprietário da casa de morada comum não retira o direito em causa ainda que aquela seja casada com terceiro à data da morte do proprietário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 911/13.3TBMAI.P2.P1
I – Relatório
Recorrente(s): B…;
Recorrido(s): C….
Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível da Maia.
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B… intentou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra C…, na qualidade de cabeça de casal da herança de D… alegando, em síntese, que viveu com o falecido D… durante 11 anos, como se fossem marido e mulher, tendo sido, após a morte do referido D…, posta fora da residência comum pelos filhos deste. Pretende, pois, que lhe seja reconhecido o direito real de habitação sobre o imóvel em causa.
Assim, requerendo que a presente acção seja julgada procedente, pede que seja declarado que:
a) A Autora e D…a viviam à data da morte deste em condições análogas às dos cônjuges;
b) Existia uma economia comum entre a Autora e o falecido;
c) A Autora tem direito a um direito real de habitação sobre o imóvel sito na Rua …, nº …, …. - … Maia;
d) A Autora tem esse direito pelo período de cinco anos;
e) A Autora tem direito, no mesmo prazo, de preferência na venda do imóvel sito na Rua …, nº…, …. - … Maia;
f) E o Réu condenado a reconhecê-los com as legais consequências.
O Réu C…, na qualidade de cabeça de casal da herança de D…, contestou alegando corresponder à verdade que o falecido pai e a Autora viveram em união de facto mas que a Autora não pode beneficiar do direito reclamado porquanto a mesma em toda a constância da convivência com o falecido, foi casada com um terceiro, do qual só veio a divorciar-se após o falecimento daquele. Mais esclarece que a Autora nunca foi posta fora da alegada residência.
Com tais fundamentos concluiu requerendo que a presente acção seja julgada improcedente.
Dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador vieram a ser fixados o objecto do litígio e os temas de prova, que foram alvo de reclamação.
Uma vez realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, ora sob recurso, a qual se reproduz na parte dispositiva:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se julgar a presente acção improcedente, por não provada e, em conformidade, absolver o Réu C…, na qualidade de cabeça de casal da herança de D… de todos os pedidos contra si formulados.
Custas pela Autora.
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Inconformada a autora deduziu o presente recurso onde formula as seguintes conclusões:
A - No âmbito de uma união de facto se apliquem as regras da sociedade de facto, o fundamental é que , na vigência de uma vivência comum de duas pessoas em condições análogas às dos cônjuges.
B - Não existindo um qualquer quadro legal adequado e específico que regulamente os efeitos patrimoniais decorrentes da união de facto, para efeitos de liquidação e partilha do património que aquela gere importa recorrer ao instituto de direito comum que melhor se enquadre na situação fáctica a resolver.
C - O conceito de "economia comum" pressupõe uma comunhão de vida, com base num lar em sentido familiar, moral, e social, uma convivência conjunta com especial "affectio" ou ligação entre as pessoas coenvolvidas, convivência essa que não impõe a permanência no sentido físico, antes admitindo eventuais ausências, sem intenção de deixar a habitação, com sujeição a uma economia doméstica comum com a quebra dos laços estabelecidos, verificando-se, assim, apenas uma única economia doméstica, contribuindo todos ou só alguns para os gastos comuns.
D - Assim, para que, no ambiente jurídico, se tenha por preenchida uma situação de economia comum, é mister que os sujeitos envolvidos comunguem da mesma mesa e habitação, norteando a sua actuação por impulsos de ajuda mútua ou de partilha dos recursos, granjeados pelo conjunto e disponíveis.
E - O erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa.
F - O regime jurídico de proteção das pessoas que vivam em economia comum constante da Lei n.º 6/2001, de 11 de maio (denominada Lei da Economia Comum - LEC), aplica-se à situação de pessoas que residam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos.
G - A matéria de facto considerada pertinente e provada na douta sentença inclui-se na previsão do art. 2.º, n.º 1 da citada LEC.
H - O estatuto legal da união de facto é incompatível com casamento não dissolvido de um dos companheiros, o que não obsta à eventual relevância da figura da “economia comum” e da protecção legal que lhe está associada, mormente em matéria de direito real de habitação da casa de morada de família.
Termina a recorrente peticionando que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e, em consequência, se substituía por outra que condene o réu.
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II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;
O objecto do recurso é delimitado pelas alegações e decorrentes conclusões, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
Deste modo, em causa nos autos estará apenas determinar se se aplicam às situações de economia comum as normas legais relativas à união de facto.
III – Factos Provados
Resultaram apurados os seguintes factos:
1 - A Autora B… casou civilmente com E… a 13 de Janeiro de 1989;
2 - Desde 2001, a Autora viveu com D…, até à data da morte deste último;
3 - Durante os anos que viveram juntos, a Autora sempre se dedicou inteiramente e em exclusivo a D…;
4 - Partilhavam a mesma cama e relacionavam-se afectiva e sexualmente;
5 - Tomavam refeições em conjunto;
6 - Passeavam e saíam juntos;
7 - Tinham o mesmo círculo de amizades;
8 - Auxiliavam-se mutuamente;
9 - Cuidavam um do outro quando um deles estava doente;
10 - Amparavam-se e protegiam-se um ao outro;
11 - A 7 de Fevereiro de 2011, D…, divorciado, faleceu;
12 - O cabeça de casal da herança de D… é o Réu, C…;
13 - Os filhos do falecido D… apresentaram um documento no qual se comprometiam a permitir à Autora residir no imóvel sito na Rua …, n.º …, …. - … Maia, ficando a cargo da Autora liquidar os custos inerentes à manutenção do imóvel, designadamente água, electricidade e gás;
14 - A Autora não assinou o documento referido em 13);
15 - Após a morte de D…, a Autora residiu durante cerca de um ano no imóvel sito na Rua …, n.º …, …. - … Maia;
16 - A Autora e E… divorciaram-se a 3 de Abril de 2013.
IV - Direito Aplicável
A autora fundamenta a pretensão feita valer em juízo no disposto no art.º 5º, n.º 1, da Lei n.º 6/2001, de 11.5, que prevê que “em caso de morte da pessoa proprietária da casa de morada comum, as pessoas que com ela tenham vivido em economia comum há mais de dois anos nas condições previstas na presente lei têm direito real de habitação sobre a mesma, pelo prazo de cinco anos (…)”.
Por sua vez, a sentença apelada entendeu diversamente.
Assim, se uma situação factual se reconduz à união de facto, e inevitavelmente, à economia comum – como é o caso dos autos – deverão ser aplicados em conjunto os dois regimes, incluindo todas as excepções de cada regime. Donde, terá que se aplicar também aos casos de economia comum a excepção prevista no art.º 2.º al. c) da Lei nº7/2001 que não considera como protegida a união de facto em que alguma das pessoas seja casada, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens.
Note-se que, como ficou provado, a autora era casada com um terceiro, E…, embora vivesse como se de um casal se tratasse com o falecido D….
Terá que ser assim, acrescenta a douta decisão, pois de outro modo teríamos a subversão do objectivo do legislador. E prossegue a sentença: “Como já afirmado, duas pessoas que vivam em união de facto vivem, inevitavelmente, em economia comum. Ora, se não se aplicassem os requisitos negativos de um e outro regime a estas situações, bastaria que fosse invocado o regime da economia comum para contornar as restrições aplicáveis à união de facto.”
Salvo o devido respeito por opinião contrária, e embora se trate de matéria controversa, dissentimos de tal douto entendimento elaboradamente fundamentado na decisão recorrida.
Ainda no campo das hipóteses, e numa situação oposta, dir-se-ia que, caso a autora apenas vivesse em economia comum com o falecido companheiro, não existindo qualquer intimidade entre ambos, aquela gozaria do direito real de habitação, ainda que fosse casada com outrem e independentemente da intimidade subjacente a tal casamento; mas existindo intimidade com aquele que consigo compartilhava a casa já perderia o direito em causa.
Julgamos que a interpretação mais assertiva será aquela que se atem ao preceituado legal; deste modo, considerados os factos apurados (a existência, ao longo da coabitação “more uxorio” e à data da morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum de casamento anterior não dissolvido por parte do membro sobrevivo), considerando que o art.º 2º, alínea c) da Lei n.º 7/2001 estabelece como facto impeditivo dos efeitos jurídicos decorrentes da mesma Lei, entre outros, o “casamento anterior não dissolvido, salvo se tiver sido decretada separação judicial de pessoas e bens”, concluímos estar no presente caso apartado o regime jurídico relativo às uniões de facto mas a autora sempre poderá beneficiar das medidas de protecção das pessoas que vivam em economia comum tanto mais que a Lei n.º 6/2001, de 11.5, que contem o regime de protecção das pessoas que vivam em economia comum há mais de dois anos, é clara ao estatuir que não constitui facto impeditivo da aplicação do respectivo regime jurídico a coabitação em união de facto (cf. art.º 1º).
Destarte, considerando-se economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos (art.º 2º, n.º 1, idem), dúvidas não restam de que a requerente viveu com o falecido em economia comum e poderá beneficiar da medida de protecção prevista no cit. art.º 5º, n.º 1, ou seja, do direito real de habitação na medida em que se verificam todos os requisitos da sua atribuição.
A razão de ser desta protecção no que concerne à casa de morada nada tem a ver com a intimidade, ou ausência dela, entre aqueles que a habitam; nada se incomodará, em nada relevando, a existência de relações de índole matrimonial com terceiros por parte dos ocupantes do imóvel. Imaginemos uma economia comum entre várias pessoas unidas pela partilha da casa apenas por motivos de natureza profissional ou de amizade, por exemplo; também aqui existiria economia comum independentemente de existirem, ou não, relações de proximidade afectiva, presentes, passadas ou futuras, com os habitantes da casa ou com quaisquer outros terceiros.
O que releva, no essencial, é a protecção dos ocupantes – sejam dois ou mais - que, em economia comum, habitam uma dada casa e, por isso, nela devem poder permanecer, mesmo após o falecimento de um deles, o proprietário daquela.
Nesta medida, note-se como o n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 7/2001 (União de Facto) dispõe que "[n]enhuma norma da presente lei prejudica a aplicação de qualquer outra disposição legal ou regulamentar em vigor tendente à protecção jurídica de uniões de facto ou de situações de economia comum".
É a chamada "cláusula de não retrocesso" relativamente ao âmbito de protecção jurídica das situações de união de facto. Nada justificará, como vimos, que ignoremos esta estatuição normativa desaplicando o regime relativo às situações de economia comum.
E nem se diga que as excepções previstas no art. 2º da Lei 7/2001 nunca seriam aplicáveis. Bastará atentar nos casos de direito às prestações por morte do companheiro, não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, beneficiário de qualquer regime público de segurança social.
Em síntese conclusiva, irá revogar-se a sentença proferida, procedendo o recurso em apreço nos moldes peticionados pela apelante.
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Resta sumariar a fundamentação nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC:
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V – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso deduzido, revogando-se a sentença apelada e condenando-se o réu a reconhecer que existia uma economia comum entre a Autora e o falecido D…, gozando a Autora de um direito real de habitação sobre o imóvel sito na Rua …, nº …, …. - … Maia pelo período de cinco anos e tendo a mesma ainda direito, no mesmo prazo, de preferência na venda desse imóvel.
Custas pelo recorrido.

Porto, 6 de Fevereiro de 2018
José Igreja Matos
Rui Moreira
Lina Baptista