Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
915/21.2T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP20230308915/21.2T9VFR.P1
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELOS ASSISTENTES
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A acusação deve conter a alegação positiva da consciência da ilicitude por parte do agente do crime de modo a que essa prova possa ser feita em audiência de julgamento.
II - Dispensar tal alegação faria impender sobre a defesa o ónus de demonstrar a sua falta se estivermos perante um caso de erro, nos termos previstos nos artigos 16.º ou 17.º do Código Penal.
III - Cabe à acusação fazer prova plena dos factos imputados ao acusado, para afastar a presunção de inocência consagrada no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição; a defesa em processo penal pode limitar-se a uma alegação singela de inocência e a acusação terá de demonstrar, para além de toda a dúvida razoável, que estão reunidas as condições para a condenação em cada caso concreto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 915/21.2T9VFR.P1

1. Relatório
Nos autos de processo comum com julgamento perante tribunal singular com o nº 915/21.2T9VFR do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 2, foi em 10/10/2022 proferido despacho com o seguinte teor:
«Questões prévias
Da nulidade da acusação particular deduzida pelos assistentes AA e BB contra os arguidos CC e DD por falta de adequada narração dos factos:
A acusação (artigo 283.º) constitui a charneira entre o inquérito e o julgamento. Trata-se duma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo: a actividade do tribunal só pode ser exercida se um determinado conjunto de factos lhe for submetido por um órgão independente do julgador. Acusação e defesa são, assim, dois pólos dialécticos que não podem subsistir um sem o outro (Cunha Rodrigues). A defesa tem de estar, pois, numa situação de paridade relativamente à acusação. Nomeadamente, o processo não pode ser remetido para julgamento sem que o seu objecto tenha sido delimitado num documento (a acusação ou requerimento acusatório) que indique taxativamente os factos que o tribunal pode apreciar; e o arguido deve ter também a oportunidade de produzir um documento (a contestação) que contrarie o anterior. O arguido pode em julgamento questionar toda a matéria acusatória, sendo aí que o princípio do contraditório ganha a sua maior expressão, traduzindo-se no direito que o arguido tem de ser ouvido, de se defender e, designadamente, de se pronunciar sobre as alegações, as provas, os actos ou quaisquer iniciativas processuais da acusação. O princípio acusatório protege o arguido na medida em que lhe assegura que uma condenação só poderá ter sucesso se dois órgãos da administração da justiça — o acusador e o tribunal —, independentemente um do outro, chegarem ao convencimento de que ele é culpado (Roxin).
O artigo 283.º impõe (nº 3) que a acusação contenha, sob pena de nulidade: a) as indicações tendentes à identificação do arguido; b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) a indicação das disposições legais aplicáveis (…).
In casu, é a acusação particular deduzida pelos assistentes que vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. Como tal, deve conter todos os elementos de uma acusação, de sobremaneira a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar aos arguidos.
Com efeito, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos, – um inerente ao objectivo imediato do julgamento: a comprovação judicial dos factos acusados (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e – outro implícito a uma finalidade mediata mas essencial: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
No julgamento o juiz encontra-se limitado pelos factos descritos na acusação: o juiz não decide nunca os termos da acusação, decide unicamente sobre a acusação já deduzida; está vinculado aos termos da acusação, tal como ela foi deduzida ou ao despacho de pronúncia. Existindo duas ou mais acusações, como por vezes acontece, por ex., a do Ministério Público acompanhado pelo assistente, «(…) o juiz pode apenas acolher uma delas, quando entre si sejam incompatíveis, ou ambas, quando sejam complementares, mas não pode pronunciar o arguido por factos que sejam substancialmente distintos dos constantes numa daquelas acusações sob pena de nulidade da decisão instrutória (…).» (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, p. 154).
Vistos em traços largos o respectivo enquadramento jurídico importa agora analisar a acusação particular deduzida de folhas 185 a 187 à luz de tais princípios.
Segundo o enunciado fáctico vertido na acusação particular:
No dia 5 de Abril de 2021, a assistente mulher recebeu uma carta, datada de 31.03.2021, endereçada para a rua ..., ... ..., Santa Maria da Feira, a sua morada e do seu companheiro.
A mesma descreve termos injuriosos e ofensivos, atentatórios contra a honra e consideração dos assistentes. Diz o seguinte: “Quem anda a roubar és tu, Ó sua Puta, Sua ladra, sua badalhoca, sua bêbada. Das janelas de minha casa vi todos os assaltos que fizestes sua ladra, até galinhas roubastes durante a noite, tenho tudo filmado sua ladra. Toda a gente aqui no lugar sabe. Já dissestes a esse corno que está contigo que levavas o pito a casa do Sr. EE a troco de dinheiro? Ele também esta habituado a ser Corno e badalhoco. O teu inferno ainda nem começou, porque quando começar vais arder no meio dele.”
O assistente BB é companheiro da primeira assistente, vivem em união de facto há mais de cinco anos, como se de marido e esposa se tratassem.
Os denunciados, também marido e mulher, são os únicos vizinhos dos assistentes, com a traseira da sua habitação, constituída por várias janelas e portas voltadas para a casa dos assistentes.
Os denunciados eram à data da referida carta os únicos residentes da habitação a rua ..., ..., no ..., com traseira voltada para a casa e terreno dos assistentes.
Acontece que os denunciados pretenderam uns tempos antes da data da carta, comprar os bens imoveis onde residem os assistentes, pertencente à herança dos pais da assistente mulher, FF e GG.
No lugar da ..., ..., em período não determinado, mas antes do da carta, o denunciado CC chegou a gabar-se de que a casa já estava comprada e apalavrada com o irmão da AA e já não escapava.
O denunciado e a esposa ficaram incomodados com o insucesso da sua pretensão e despudoradamente remeteram por correio ao casal de assistentes a carta indicada com os dizeres aí constantes.
As referidas expressões foram proferidas, de forma escrita, publica e com a intenção de ofender, como efetivamente ofendeu, o bom nome, a honra, consideração e dignidade dos assistentes, que são pessoas sérias e honradas.
Os arguidos agiram livre e conscientemente, com a nítida intenção de ofender o bom nome e a consideração devidas aos assistentes, tendo-lhe causado enorme mau estar. (transcrição).
Desde logo, importa salientar que mesmo ao nível da descrição da factualidade que poderia integrar o tipo objectivo do imputado crime de injúria se afigura que a acusação particular padece de algumas deficiências e lacunas (nomeadamente, quanto à autoria e, eventual, co-autoria).
Todavia, é ao nível da descrição do tipo subjectivo de crime que se detectam as mais graves e evidentes omissões, pelo que cingiremos a apreciação a tal momento.
Com efeito, conforme é descrito na acusação particular no que ao elemento subjectivo respeita:
«(…) As referidas expressões foram proferidas, de forma escrita, publica e com a intenção de ofender, como efetivamente ofendeu, o bom nome, a honra, consideração e dignidade dos assistentes, que são pessoas sérias e honradas.
Os arguidos agiram livre e conscientemente, com a nítida intenção de ofender o bom nome e a consideração devidas aos assistentes, tendo-lhe causado enorme mau estar.».
Ora, tendo por referência o imputado crime de injúria, este, no seu momento subjectivo, suporá, naquele que actua, a intencional vontade de atingir a honra do ofendido, conhecendo a aptidão vexatória e atentatória do bom-nome do visado dos vocábulos que profere, intencionalidade e consciência que podem considerar-se insertas na acusação em análise.
Porém, no que respeita à consciência da ilicitude e punibilidade da conduta alegadamente empreendida pelos arguidos, nenhuma referência, nem mesmo deficiente, é efectuada.
Na realidade, dos factos vertidos na acusação particular não consta que os arguidos tivessem actuado com tal conhecimento e consciência.
Por conseguinte, os factos alegados são penalmente irrelevantes ou atípicos. Neste sentido e muito embora decidindo questão diversa – a inaplicabilidade do mecanismo previsto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, a situações como a agora em apreço –, pronunciou-se já o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, publicado no Diário da República n.º 18, Série I, de 27 de Janeiro de 2015, fixando-se o seguinte: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.».
Na fundamentação de tal aresto, escreve-se o seguinte:
(…) Ora, a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondam aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objectivo do ilícito, como os do tipo subjectivo.
Na verdade, os factos da vida real, os que se traduzem no recorte de um determinado pedaço de vida, ditos também “naturalísticos”, só têm interesse enquanto reportados a uma acção relevante do ponto de vista jurídico-penal, isto é, consubstanciando um crime. Este, na definição de FREDERICO ISASCA, vem a traduzir-se, precisamente, num «comportamento socialmente relevante tipificado pela ordem jurídica – portanto um comportamento formal e materialmente ilícito – susceptível de um juízo de culpa, isto é, de uma reprovação jurídico-penal, que se traduz na imposição de uma sanção, sempre e em última instância privativa de liberdade» (ob. cit., p. 117).
Entre os elementos relevantes que dão um sentido a uma determinada conduta ou acção emergentes num dado contexto social e histórico, ou a uma omissão que se traduza num desvalor, uma e outra enquanto referidas a uma acção ou omissão abstractamente tipificadas como crime, estão os que configuram os aspectos objectivos do tipo de ilícito e os que consubstanciam os seus aspectos subjectivos.
Com efeito, enquanto os elementos do tipo objectivo de ilícito definem o conteúdo ou objecto da acção ou omissão tipificadas como crime, os elementos subjectivos definem a relação do agente ou omitente com essa acção ou omissão, a sua particular ligação com elas, com o facto objectivo praticado ou omitido.
(…)
Tendo a acusação passado no crivo do art. 311.º, n.º 2, alínea a) e 3, alínea b), o tribunal não pode socorrer-se do disposto no art. 358.º do CPP para colmatar a deficiência encontrada. É que tal integração não consubstancia uma alteração não substancial dos factos.
Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objecto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.
Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1.º, alínea f) do CPP).
No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art. 358.º, mas o do art. 359.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis. Na circunstância, sendo o crime de natureza particular, não se imporia a comunicação ao M.º P.º e, por outro lado, não sendo os factos autonomizáveis, o procedimento criminal ficaria dependente do acordo referido e, principalmente, da boa vontade do arguido, o que seria grave se o crime fosse, por exemplo, um crime de homicídio.
Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.
(…)
Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.
Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.».
Concluindo, não constando da acusação particular que os arguidos actuaram cientes de que a conduta empreendida era proibida e punida por lei, não pode reconhecer-se qualquer relevância criminal à sua actuação, pelo que, por falta de narração dos factos que determinam a aplicação de uma pena, terá a mesma de ser rejeitada.
Com efeito, de acordo com o artigo 311.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal: «Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.», por sua vez o n.º 3 do mesmo preceito legal dispõe que: «(...) a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.».
Assim sendo, de todo o exposto, resulta claro que terá de ser rejeitada a acusação particular por falta de narração dos factos que integrariam a descrição do tipo de ilícito.
* Do pedido de indemnização civil:
Nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal e em conformidade com o princípio da adesão que aí se consagra, deve o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infracção cometida.
Pressuposto da possibilidade de apreciação do pedido cível deduzido em processo penal é que o facto constitutivo da sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil se possa incluir no âmbito do facto criminoso que é imputado ao arguido, de tal forma que, se não existirem ou simplesmente não se provarem os pressupostos da punição penal, a condenação em indemnização civil possa ainda subsistir sustentada na verificação dos pressupostos da ilicitude civil permitida pela apreciação da realidade factual em causa.
Em síntese: a dedução do pedido de indemnização civil pressupõe que no respectivo processo penal seja exercida acção penal com dedução de acusação com imputação de qualquer crime ao arguido que seja suporte do pedido cível, pois só assim este pode aderir à acção penal (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 02.12.93, CJ, T.V, pg.63 a 66).
Achando-se o pedido de indemnização civil tematicamente condicionado pelo objecto do processo, em face da rejeição da acusação particular deduzida, vedada se encontra aos demandantes a possibilidade de, nesta sede, obter dos demandados compensação pelos danos alegadamente sofridos em virtude da actuação dos arguidos, pelo que terá o mesmo de ser rejeitado in totum.
Sendo, assim, o Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado.
Pelo exposto, nos termos que conjugadamente resultam do preceituado na alínea a) do n.º 2 e na alínea b) do n.º 3, ambos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, decido rejeitar a acusação particular deduzida pelos assistentes AA e BB contra os arguidos CC e DD, de folhas 185 a 187.
Mais decido, julgar este Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado, o que, em conformidade se decide.
Custas a cargo dos assistentes, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal – artigo 515.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Sem custas cíveis – artigo 4.º, n.º 1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.
Após trânsito, arquive os autos.»
Inconformados com este despacho vieram os assistentes AA e BB, interpor o presente recurso, extraindo-se das respetivas conclusões, os seguintes argumentos que passamos a transcrever:
«A) O tribunal a quo não teve, na douta decisão proferida, a melhor consideração do disposto no art. 311º/n.º 3, al. b) do CPPenal, violando-o.
B) A acusação particular cumpre inteligivelmente os termos do disposto no nº3 do artº 283º do CPP.
C) Na eventualidade de não a cumprir, inexiste fundamento para rejeição da Acusação, devendo o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo suprir oficiosamente essa deficiência, eventualmente dirigindo convite aos Assistentes para completarem com maior detalhe a imputabilidade da “consciência da ilicitude e punibilidade da conduta alegadamente empreendida pelos arguidos” a identificação daquele.»
Terminam alegando:
«Termos em que merece censura a douta decisão do Tribunal a quo, ora posta em crise pelos Assistentes, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que:
Admita a Acusação Particular.
Assim se fazendo
JUSTIÇA, como compete aos Tribunais.»
O presente recurso foi admitido por despacho proferido nos autos em 10/11/2022.
Em primeira instância o MP veio responder ao recurso alegando em síntese que na acusação em lado algum se diz que a arguido atuou com a consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei, ou seja, com a consciência do desvalor da sua conduta e que com essa avaliação se conformou (consciência da ilicitude), facto que integra seguramente o elemento subjetivo da infração.
Entende que a consciência da ilicitude é uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do facto típico, e, acresce, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso). Logo, teria de constar da acusação, mas não consta.
Concluindo que o Tribunal a quo andou bem na decisão de rejeição da acusação particular por manifestamente infundada, a qual considera ser de manter nos seus exatos termos, não sendo admissível ao juiz determinar o aperfeiçoamento da acusação, dada a estrutura acusatória que o processo criminal assume por imposição constitucional – art.º 32º nº 5 da CRP.
Considera que o presente recurso deveria ser rejeitado por manifesta improcedência.
Também os arguidos apresentaram contra-alegações em primeira instância nas quais defendem o acerto da decisão recorrida.
Nesta Relação a Sr.ª Procuradora-geral-adjunta entende que consta da acusação particular o elemento volitivo do dolo e que estamos perante um tipo legal cujo conhecimento sobre a sua punibilidade pode ser presumida pela generalidade das pessoas.
Entende que não seria concebível que se admitisse que ao atuar da forma descrita na acusação particular não tinham os arguidos conhecimento da ilicitude dos factos praticados.
Em sua opinião o objeto do processo está delimitado, sem equívocos, na acusação particular deduzida, sendo os factos constantes da mesma suficientes, em termos objetivos e subjetivos- sem prejuízo de uma fórmula incompleta, mas suprível-, para imputar em termos indiciários aos arguidos a prática do crime de Injúria.
Emite parecer no sentido da procedência do recurso dos assistentes com vista a que venha a ser recebida a acusação particular deduzida nos autos.
Cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP vieram os arguidos responder ao recurso alegando que os factos que lhes são imputados são falsos e por isso inexiste qualquer consciência da ilicitude dado que não foram por si praticados. Pugnam pela manutenção da decisão recorrida cujo acerto defendem.
2. Fundamentos da decisão
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extraiu das respetivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso em análise a principal questão a apreciar é a de saber se a acusação particular deduzida nos autos podia ser rejeitada face aos critérios legais.
E em caso de resposta afirmativa à primeira questão, equacionar se anteriormente à rejeição deveria ter lugar despacho de aperfeiçoamento para os assistentes completarem aquela peça processual.
Cumpre apreciar!
Desde logo nos deparamos com a falta de alegação de que os arguidos agiram com consciência da ilicitude dos factos.
Nesta matéria há quem entenda que a falta da alegação positiva da consciência da ilicitude não obsta a que os factos possam se subsumíveis no tipo de crime desde que o dolo do tipo, (elemento volitivo), conste da acusação ou seja dado como provado.
Neste sentido vai o Acórdão da Relação de Évora, relatado por António João Latas em 06/02/2018 e publicado em www.dgsi.pt, onde se diz expressamente que : «…nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se insere o crime de injúria aqui em causa não tem que constar da acusação nem tem que ser alegado e provado em todos e cada caso, que o arguido bem sabia ser proibida por lei a sua conduta, ou que agiu consciente da ilicitude da sua conduta, contrariamente ao que sucede relativamente aos factos que correspondem ao dolo do tipo (art. 14º C. Penal) e, eventualmente, aos factos relativos a outros elementos subjetivos do tipo, uma vez que, em regra, a consciência da ilicitude decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (maxime o dolo do tipo), assumindo autonomia apenas nos casos em que se discuta a “falta de consciência da ilicitude”, enquanto causa de exclusão da culpa, nos termos do art. 17º do C.Penal.
Também do ponto de vista processual esta perspetiva se confirma, em nosso ver, pois ao contrário da factualidade que integra os elementos do tipo legal, que deve constar necessariamente da acusação, conforme expresso no art. 283º nº 3 al. b) do CPP, por imposição dos princípios do acusatório, do contraditório e da vinculação temática ao objeto do processo, estes princípios em nada são postos em causa com a falta de menção da apontada fórmula sacramental positiva (“o arguido agiu livre …bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta”) ou equivalente.»
E no mesmo sentido o Ac. desta Relação de 26/04/2017, relatado por Manuel Soares, onde se afirma : «Parece-nos que em bom rigor a demonstração positiva da consciência da ilicitude, para ter conteúdo substancial e não ser apenas um formalismo destituído de utilidade, só será relevante como objecto autónomo de prova em julgamento quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente e o seu conhecimento seja essencial para que se possa dizer que o agente sabia que praticava um crime; ou quando existam indícios de inimputabilidade ou de verificação de quaisquer causas de exclusão da culpa que a acusação deva afastar com prova positiva.»
Efetivamente a alegação e demonstração positiva da consciência da ilicitude é, a nosso ver, tanto mais importante quando estamos perante crimes axiologicamente neutros ou neocriminalizações que não estão enraizadas na consciência ética social. Porém, a nosso ver cumpre, não só nesses casos, mas sempre, alegar e demonstrar a consciência da ilicitude do agente aquando da prática objetiva dos factos, porquanto, isso é algo de emocional que acresce ao conhecimento das circunstâncias do facto, e por isso, a nosso ver, integra elemento cognitivo/intelectual do dolo, o conhecimento de que o comportamento é proibido e punido por lei. Dispensar tal alegação como se defende nos Acórdãos supra citados faria impender sobre a defesa o ónus de demonstrar a sua falta se estivermos perante um caso de erro, nos termos previstos no art. 16 ou 17 do CP.
Esta situação não é a nosso ver admissível face aos princípios do direito processual penal. Na verdade, cabe à acusação fazer prova plena dos factos imputados ao acusado, para afastar a presunção de inocência constitucionalmente consagrada no art. 32 nº2 da CRP.
A defesa em processo penal pode limitar-se a uma alegação singela de inocência e a acusação terá de demonstrar, para além de toda a dúvida razoável, que estão reunidas as condições para a condenação em cada caso concreto.
Não nos parece, pois, aceitável face a tais princípios que se dispense a alegação e prova positiva da consciência da ilicitude por parte do arguido ou arguidos.
No sentido por nós defendido passamos a citar um excerto do Curso de Processo Penal, Germano Marques da Silva, 1994, Vol. III, pág. 92, citado em Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, pág 1198
«Não basta a componente objetiva do comportamento do arguido, importa também que esse comportamento seja culpável e para tanto que o arguido tenha agido com vontade de praticar o ato ilícito e conscientemente desobedecido ao comando legal que lhe proibia a prática dos atos valorados pela norma como objetivamente ilícitos.»
E ainda no mesmo sentido João Conde Correia, in Questões Práticas Relativas ao Arquivamento e à Acusação e à sua Impugnação, 2007, pág. 114:
«É imprescindível que se indique o dolo e a consciência da ilicitude.»
Afigura-se-nos também importante fazer referência ao Ac. da Relação de Guimarães de 19/06/2017, relatado por Jorge Bispo e publicado em www.dgsi.pt:
«Para a posição tradicional defendida por Eduardo Correia, o elemento volitivo não se confunde com o aspeto psicológico, traduzido num simples ato de volição, em que o agente quer praticar o facto (naturalístico), tendo representado todos os seus elementos. O que caracteriza o dolo é a vontade do agente revelar a sua personalidade contrária ao direito, ou seja, a sua determinação em sobrepor os seus próprios sentimentos e interesses aos valores tutelados pelo direito criminal. Daí que, para esta posição, o dolo do tipo legal de crime contivesse já o chamado elemento emocional, traduzido na consciência, por parte do agente, de que realizava um tipo objetivo de ilícito e que tal supunha a sobreposição dos seus interesses egoístas aos valores tutelados pela lei.
Já a posição defendida por Figueiredo Dias distingue entre dolo do tipo (de ilícito) e o dolo enquanto pertencente ao tipo de culpa. Segundo esta conceção, «o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (por consequência, não é igual ao dolo do tipo), mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona ao elemento intelectual e volitivo contidos no "conhecimento e vontade de realização". (…); antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revele no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal» [Figueiredo Dias, in Direito Penal - Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Tomo 1º, Coimbra Editora, 2ª edição, 2007, págs. 350.], ou seja, uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo.
Assim, em resumo, de acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias [Ob. cit., pág. 529 e ss.], a culpa jurídico penal revela-se através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas.
Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objetivo (dolo do tipo), atue também com consciência do ilícito, isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito.
A consciência da ilicitude é também momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).
A acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo direto, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).
A esses elementos acresce o referido elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso.
Este elemento emocional é dado através da consciência da ilicitude e integra a forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso. Daí que só possa afirmar-se que o agente atuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo atuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.»
E por ultimo embora se aceite pacificamente que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª série, n.º 18, de 27.01.2015, com o seguinte teor: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal.», não teve especificamente em vista os casos de falta da alegação positiva da consciência da ilicitude, subscrevemos a posição assumida no Ac. da Relação de Lx de 12/02/2022, relatado por Braúlio Martins e publicado in www.dgsi.pt, no qual se refere: « …independentemente do acerto ou desacerto dessa orientação, é de todo aconselhável, mais não seja por uma questão de segurança e previsibilidade das decisões judiciais, segui-la, até porque é fortemente disciplinadora, do ponto de vista intelectual, naturalmente, daqueles que têm obrigação legal de proferir decisões que levem cidadãos a julgamento, sejam juízes ou magistrados do Ministério Público, tendo os seus erros e omissões nesta sede consequências processualmente catastróficas…»
No caso concreto em análise, para além desta omissão total quanto à falta de consciência da ilicitude, acresce que a acusação particular analisada pelo despacho recorrido, é a nosso ver, também, insuficiente quanto à autoria dos factos, pois, relativamente a esta questão apenas refere:
«O denunciado e a esposa ficaram incomodados com o insucesso da sua pretensão e despudoradamente remeteram por correio ao casal de assistentes a carta indicada com os dizeres aí constantes.»
Remeteram por correio ao casal de assistentes…, mas quem teve a ideia de proferir as expressões? Quem decidiu escrever a carta? Foi por acordo ou um deles apenas se limitou a colaborar?
Imensas questões que não estão claras na acusação particular e de que o despacho recorrido também dá nota ao referir:
«…mesmo ao nível da descrição da factualidade que poderia integrar o tipo objectivo do imputado crime de injúria se afigura que a acusação particular padece de algumas deficiências e lacunas (nomeadamente, quanto à autoria e, eventual, co-autoria).
Todavia, é ao nível da descrição do tipo subjectivo de crime que se detectam as mais graves e evidentes omissões, pelo que cingiremos a apreciação a tal momento.»
O Código de Processo Penal manda aplicar à acusação particular deduzida pelos assistentes as regras da acusação pública designadamente o disposto no art. 283 nº3 do CPP que dispõe:
«3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
h) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
i) A data e assinatura.»
Ora, como resulta do supra exposto, a acusação deduzida nestes autos pelos assistentes contém deficiências graves ao nível do requisito previsto na al. b) do citado preceito legal, o que é gerador de nulidade desta peça processual como refere o despacho recorrido, mas este vício teria de ser arguido pelos interessados, o que não aconteceu.
De acordo com o art. 311 nº2 al. a), remetido o processo para julgamento sem ter havido instrução, o juiz pode rejeitar a acusação quando a considerar manifestamente infundada.
E o nº 3 do preceito legal indica-nos os casos em que a acusação pode ser considerada manifestamente infundada:
«a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.»
Como ficou dito a acusação particular sob análise enferma de graves deficiências na descrição dos factos, não contendo uma descrição completa dos mesmos, o que seria gerador de nulidade da mesma, e também é causa de rejeição nos termos do nº3 al.b) do art. 311 do CPP.
A lei não prevê a possibilidade de despacho de aperfeiçoamento anterior ao despacho de rejeição da acusação, pelo que, nenhuma censura nos merece o despacho recorrido.
Neste sentido de que a lei não prevê a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento da acusação manifestamente infundada e também no sentido que a omissão da falta de consciência da ilicitude é motivo de rejeição da acusação, veja-se o Ac. da Relação de Coimbra de 9/05/2012, relatado por Calvário Nunes e publicado em www.dgsi.pt.

3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, tendo por base os fundamentos expostos, acordam os Juízes na 1ª secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso dos assistentes e confirmar integralmente o despacho recorrido.
Cada um dos recorrentes vai condenado em 3 Ucs de taxa de justiça e nas custas do processo.

Porto, 8.3.2023
Paula Guerreiro
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo [que lavra o seguinte voto:
«Embora concorde com a improcedência do recurso por insuficiente alegação quanto à autoria dos factos, já que da acusação particular não consta a que título é imputada a prática do crime a cada um dos arguidos, se em coautoria ou se um atuou como cúmplice do outro, já não podemos concordar com a parte que respeita à "falta de consciência da ilicitude".
Entendeu-se na decisão recorrida que «a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.
Concluindo, não constando da acusação particular que os arguidos actuaram cientes de que a conduta empreendida era proibida e punida por lei, não pode reconhecer-se qualquer relevância criminal à sua actuação, pelo que, por falta de narração dos factos que determinam a aplicação de uma pena, terá a mesma de ser rejeitada. (...) Assim sendo, de todo o exposto, resulta claro que terá de ser rejeitada a acusação particular por falta de narração dos factos que integrariam a descrição do tipo de ilícito.»
Sem necessidade de grandes explanações sobre a teoria do crime e dos seus elementos típicos[1] essenciais, tem-se por assente que qualquer tipo legal é composto de elementos objetivos e subjetivos. Traduzem os primeiros as condutas que encarnam a negação de valores jurídico-criminais e os segundos a censura subjetiva ao agente.
Quanto à falta de factos integradores do elemento subjetivo do tipo que a decisão recorrida refere como sendo a “consciência da ilicitude”, parece-nos manifesta a falta de fundamento legal do entendimento espelhado na decisão recorrida, que encerra duas questões autonomizáveis.
Em primeiro lugar, a de saber se o “conhecimento ou consciência da ilicitude” integra o elemento subjetivo do tipo.
Em segundo lugar se, respondida a primeira questão, a acusação particular contém – ou não - a narração dos factos que integram o elemento subjetivo do crime de injúria imputado aos arguidos.
Quanto à primeira questão, antecipamos a conclusão de que a “consciência da ilicitude” não integra o tipo, não se encontrando abrangido pelo dolo, respeitando antes à culpa.
Na verdade, o atual Código Penal parece ter-se afastado claramente do causalismo clássico e das teorias do dolo, desde logo porque, optando por definir o dolo nas alíneas do art. 14º, fá-lo corresponder, basicamente, ao conhecimento e vontade de realização do facto que preenche os elementos típicos objetivos do crime, omitindo qualquer alusão à consciência da ilicitude. A estrutura do “dolo” compreende dois elementos: inteletual e volitivo, os quais não são em si separáveis, “pois que nada pode ser querido sem que seja previamente conhecido”[2].
Em segundo lugar, a solução acolhida no art. 17º do C.Penal para o erro de proibição ou erro sobre a ilicitude, confirma a sua autonomia face ao dolo, ao mesmo tempo que situa a consciência da ilicitude na culpa.
Daí poder afirmar-se que as teorias do dolo, próprias do causalismo clássico, não são compatíveis com o direito penal português atual, que terá acolhido solução identificada com as teorias da culpa, sustentadas no finalismo, precisamente ao colocar o dolo na tipicidade (art. 14º) e ao deixar na culpa o conhecimento da ilicitude (art. 17º)[3].
Por último, o art. 16º não permite retirar conclusões sobre o enquadramento da falta de consciência da ilicitude no dolo, pois o erro sobre a ilicitude encontra-se previsto no art. 17º e implica a exclusão da culpa (e não do dolo) como vimos, não sendo confundível com o erro sobre proibições legais de que trata o art 16º nº1, 1ª parte, que tem por efeito a exclusão do dolo.
Como distingue, por todos, José António Veloso[4], o art. 17º e o art. 16º nº1, 2ª parte, incidem sobre objeto ou incriminações diferentes. Enquanto o art. 17º se refere aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida, e não é desculpável que não seja conhecida de todos os cidadãos normalmente socializados (“crimes naturais”, “crimes em si” ou “mala in se”), a 2ª parte do nº 1 do art. 16º reporta-se aos crimes relativamente aos quais não pode falar-se daquela presunção, nomeadamente por respeitarem a áreas em que os tipos legais se referem a condutas de pouca relevância axiológica, como sucede em muitos casos do chamado direito penal secundário, mas também em casos de novas incriminações, enquanto for aceitável o desconhecimento das novas normas.
Como ensina o Prof. F. Dias, “Excecionalmente, à afirmação do dolo do tipo torna-se ainda indispensável que o agente tenha atuado com conhecimento da proibição legal (…) Nos delicta mere prohibita existe entre os elementos pertencentes ao tipo objetivo de ilícito e a proibição legal uma conexão de tal modo inextricável que não pode fazer-se entre eles qualquer distinção normativa e teleológica para afirmação do dolo do tipo”[5].
Daí que a consciência da ilicitude enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tenha que ser alegada e provada em cada caso, pelo menos nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se insere o crime de injúria aqui em causa, contrariamente ao que sucede com os factos que correspondem ao dolo e, eventualmente, a outros elementos subjetivos do tipo[6].
Como realça Maia Gonçalves em anotação ao artº 17º do Cód. Penal, “a falta da consciência da ilicitude só exclui a culpa se o erro não for censurável. Isso apenas se verifica quando “o engano ou o erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamente em qualidade desvaliosa e juridicamente censurável da personalidade do agente”. Se o erro radicar numa “deficiência da própria consciência ética do agente, que não lhe permite apreender corretamente os valores jurídico-penais e que por isso revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal”, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo (art. 17 nº 2)[7].
É o caso que nos ocupa. Na nossa sociedade, se existir alguém que, sendo imputável, não souber que é proibido atentar contra a honra de outrem, nomeadamente com imputações como a referida na acusação particular (repete-se, proferida com a intenção de ofender, como vem alegado), então é porque possui uma personalidade desvaliosa que deve ser atribuída a deficiência da sua própria consciência ética. No atual patamar de civilização e de vivência da nossa comunidade não é admissível outro juízo. Não se descortina como se poderá colocar a hipótese de tal falta de consciência ser compatível com uma “atitude geral de fidelidade ao direito só frustrada no caso por circunstâncias especiais que o fizeram errar sobre a ilicitude do seu ato…” – ac. do STJ de 13.10.99, citado por Maia Gonçalves, em anotação ao art. 17 do Cod. Penal.
Já quanto à factualidade relativa ao dolo propriamente dito, parece não se verificarem atualmente divergências significativas na doutrina e jurisprudência sobre a necessidade da sua alegação e prova, tanto na acusação como na sentença, na medida em que os factos respetivos, integrando indiscutivelmente o objeto do processo, devem ser cabalmente provados para que o arguido possa ser penalmente responsabilizado, sob pena de violação do princípio da culpa. Daí que, sendo os factos psicológicos que traduzem o dolo do tipo factos típicos, contam-se necessariamente entre os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança a que se reporta a al. b) do nº3 do art. 283º do CPP-
Assim, os factos psicológicos que traduzem o dolo do tipo carecem de articulação e prova, pois apesar de os mesmos serem, em regra, objeto de prova indireta, ou seja, serem provados com base em inferências sobre factos materiais e objetivos analisados à luz das regras da experiência comum, os princípios da culpa, do contraditório, da acusação e da vinculação temática, impõem a sua articulação, permitindo, nomeadamente, que o arguido possa defender-se cabalmente de tais factos e que a investigação do tribunal para além deles apenas tenha lugar com o cumprimento das normas processuais que regulam a alteração de factos.
Nos crimes de difamação e injúria é hoje pacífico não ser exigido um qualquer dolo específico ou elemento especial do tipo subjetivo que se traduza no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração. Não distinguindo nem especificando, os respetivos tipos legais admitem qualquer das formas de dolo previstas no art. 14º do C. Penal, incluindo o dolo eventual. Basta, pois, que, grosso modo, o agente admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e atue conformando-se com ele (dolo eventual), para que se tenha por preenchido o elemento subjetivo do tipo, sem prejuízo, obviamente, de o agente praticar o facto com dolo direto ou necessário, ou seja, conhecendo e querendo o teor ofensivo da imputação ou juízo ou mesmo com o intuito ou propósito de atingir o ofendido na sua honra e consideração, indo para além da exigência típica mas contendo esta necessariamente.
Como se escreveu no acórdão desta Relação do Porto de 02.02.2005[8] «À afirmação do dolo do tipo – apesar de aconselhável... - nem sempre é indispensável que se verta na acusação – por desnecessário – que o agente atuou com conhecimento da proibição legal. Se isso é indispensável sempre que o tipo de ilícito objetivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. Já assim não é relativamente aos tipos de ilícito velhos de séculos, cuja ilicitude de todos é conhecida, como v.g. o homicídio, as ofensas corporais, o furto, as injúrias, em que é contrário à experiência e à realidade da vida, pôr em duvida se o agente sabe que é proibido, matar, ofender corporalmente, desapropriar, injuriar, etc. Ninguém duvidará que a arguida ao dirigir-se, de viva-voz, em tom agressivo, com clara intenção de ofender a honra, o bom nome e a consideração da ofendida e na presença desta, e ao proferir contra a mesma as expressões (...) não desconhecia a proibição desse comportamento. É que não é exigível o conhecimento do preceito, do artigo do Código Penal, a sua pena concreta! etc. Basta que o agente saiba que o seu comportamento viola as exigências da vida comunitária, que é proibido pelo direito [Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, parte general, vol. I pág.624]. Neste contexto, estando em causa uma conduta violadora de um direito fundamental clássico, quase tão velho quanto a humanidade, não releva, não pode relevar, o erro sobre a proibição, art.º 17º do Código Penal. Mesmo a relevar esse hipotético desconhecimento, porque censurável, o resultado não é a impunibilidade da conduta, mas apenas a punição com a pena aplicável ao crime doloso respetivo, a qual pode ser especialmente atenuada, art.º 17º n.º 2 do Código Penal. Conforme ensina F. Dias [Direito Penal, parte geral, tomo I, 2004, pág. 489] para justificar a punição a título de dolo, o facto deve revelar que, ao praticá-lo, o agente sobrepôs conscientemente os seus interesses ao desvalor do ilícito, o que conduziu a que a questão, durante muito tempo, se considerasse incindivelmente ligada ao problema da consciência do ilícito: uma punição a título de dolo suporia que, para além de o agente representar e querer a realização do tipo objetivo de ilícito, atuasse com consciência do ilícito, isto é, representasse por alguma forma que o facto intentado era proibido pelo direito. E o referido autor remata dizendo que uma tal concepção hoje não é necessária, nem sequer exata. Neste sentido tem decidido também a jurisprudência, Acórdão desta Relação 23.2.83, BMJ 324º, 620, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.9.97 [Citado por S. Santos e Leal Henriques, Código Penal anotado, 3ª ed. pág. 224.]».
No caso em apreço, os assistentes alegaram que "As referidas expressões foram proferidas, de forma escrita, pública e com a intenção de ofender, como efetivamente ofendeu, o bom nome, a honra, consideração e dignidade dos assistentes, que são pessoas sérias e honradas. Os arguidos agiram livre e conscientemente, com a nítida intenção de ofender o bom nome e a consideração devidas aos assistentes, tendo-lhe causado enorme mau estar."
Ora, estas últimas alegações factuais correspondem inequivocamente ao elemento intelectual ou cognitivo do dolo de injúria, na medida em que afirmam necessariamente o conhecimento por parte dos arguidos de que as imputações formuladas têm caráter ofensivo da honra e bom nome dos ofendidos e contêm ainda o respetivo elemento emocional ou volitivo por afirmarem a vontade dos arguidos de agirem em conformidade com tal conhecimento, ou seja, querendo a imputação ou a formulação de juízo correspondente.
Conclui-se, assim, que a acusação particular contém a alegação dos factos que correspondem ao elemento subjetivo, o dolo, correspondente ao crime de injúria que imputa aos arguidos.
O que o legislador pretende é que ao submeter-se uma pessoa a julgamento se defina aquilo que ela “fez” e a postura subjetiva com que agiu e não que se utilizem expressões sedimentadas pela prática que se aplicam a todos os casos.
Quando alguém se queixa de que outrem lhe chamou determinado nome ou lhe dirigiu certas expressões ou gestos vulgarmente tidos por injuriosos ou difamatórios, não está simplesmente a fazer uma narração dos factos mas, implicitamente, a dizer que tal nome, expressão ou gesto foram praticados com a intenção correspondente ao seu significado objetivo e que essa pessoa cometeu um crime.
A consciência da ilicitude ou a falta dela não se integra nos elementos objetivos ou subjetivos do tipo, pelo que a omissão da respetiva alegação na acusação não pode constituir fundamento de rejeição da acusação.»
_________________
[1] Cfr, por todos, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 1971, pág. 273 e ss. e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, 1981, págs. 201 e ss.
[2] Cfr. Cavaleiro de Ferreira, ob.cit., pág. 457.
[3] Cfr. Ac. R. Évora de 05.03.2013, Proc. nº 5689/11.2TDLSB.E1, Des. António João Latas, disponível em www.dgsi.pt.
[4] In Erro em Direito penal, 2ª ed.,1999, p. 23.
[5] In Direito Penal, Parte Geral I, 2ª ed. pp. 363 e 365.
[6] Em sentido contrário, ou seja, de que a acusação deve conter a alegação de que o agente atuou com consciência da ilicitude do facto, v., entre outros, Ac. R.Porto de 06.06.2012, Proc. nº 414/09.0PAMAI-B.P1, Des. Melo Lima e Ac. R. Porto de 20.10.2010, Proc. nº 872/09.3PBVLG.P1, Des. Élia São Pedro.
[7] V. Figueiredo Dias, Direito Penal, ed. 2004, pag. 503.
[8] Proferido no Proc. nº 0445385, Des. António Gama, disponível em www.dgsi.pt.]