Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3788/13.5YYPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
NULIDADE PROCESSUAL
CONVOLAÇÃO
RECLAMAÇÃO DA NULIDADE
Nº do Documento: RP201503053788/13.5YYPRT-A.P1
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Se o executado deduz embargos de executado, mas o que invoca é uma nulidade processual – falta de citação – os embargos devem ser convolados numa reclamação por nulidade (art. 193.º, nº. 3, do CPC), se os embargos tiverem sido intentados no prazo da reclamação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Embargos de execução 3788/13.5YYPRT-A do Juiz 4 da 1ª Secção de Execução do Porto

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

B… e outros obtiveram uma sentença de condenação genérica contra C…, confirmada por acórdão da Relação e este por acórdão do STJ de 26/06/1991.
Em data anterior a 31/01/2012, B… e outros deduziram contra C…, naquele processo, um incidente de liquidação daquela condenação genérica, nos termos dos arts. 378 e 379 do CPC na redacção então em vigor.
Em 31/01/2012, a Vara Cível onde o processo tinha corrido julgou-se incompetente, em razão da matéria, para o incidente, considerando que os competentes eram os juízos de execução do Porto, visto que as normas que regulavam o incidente de liquidação deduzido, com a redacção do DL 38/2003, de 08/03, alterada pelo DL 199/2003, de 10/09, apenas eram aplicáveis aos processos declarativos pendentes em 15/09/2003, o que não era o caso por aquele já ter sido decidido definitivamente em 26/06/1991; pelo que o regime aplicável era antes o regime da liquidação dos arts. 806 e segs do CPC na redacção anterior à reforma de 2003; pelo que se lhes impunha a dedução de uma acção executiva para pagamento de quantia certa com prévia liquidação.
Em 03/07/2013, B… e outros vieram então requerer execução com prévia liquidação da sentença de condenação genérica contra C…, especificando no respectivo requerimento inicial os valores que consideravam compreendidos na prestação devida e indicando o respectivo agente de execução; invocaram de novo os termos dos arts. 378 e 379 do CPC, mas juntaram a decisão de 31/01/2012 da Vara Cível.
Em 24/07/2013, o AE, veio requerer, ao abrigo do art. 861-A do CPC na redacção anterior à reforma de 2013, que o tribunal autorizasse o levantamento do sigilo bancário relativamente ao executado mencionado e a consequente penhora de depósitos bancários.
Sobre este requerimento recaiu despacho de 25/09/2013 com o seguinte conteúdo: “atento o disposto no actual art. 716/5 do CPC vigente (aprovado pela Lei 41/2013, de 26/06, de aplicação imediata às execuções pendentes), é aqui aplicável o disposto no nº. 4 do mesmo artigo – solução legal que, de resto, corresponde à que no antigo CPC vigorava para os casos de liquidação aí previstos. Assim, deve o AE citar o executado nos termos e para os efeitos do art. 716, nº 4 e nº. 5, do CPC vigente. Notifique.”
Depois deste despacho, foi junto ao processo executivo (a fls. 126-A = 183 deste apenso) um a/r, de 24/09/2013, em que o destinatário era a D…, Lda, entidade patronal do executado (no despacho judicial de 19/02/2015 que ordena a extracção de certidão para junção a este apenso e a remessa do mesmo a este tribunal da relação, diz-se, por lapso, sem consequências, que se trata de um a/r de citação do executado).
E a fls. 127 a 130 (= 184 a 187 deste apenso) constam autos de penhoras (salário, imóvel, usufrutos – de 08/10/2013) efectuadas pelo Sr. AE.
Por carta de 22/11/2013, o executado vem requerer a junção aos autos de requerimento apresentado por si na Segurança social para apoio judiciário (fls. 188/193 – no carimbo da segurança social consta uma data que, neste apenso, não está suficientemente precisa, mas no despacho de 19/02/2015 diz-se ser também de 22/11/2013; o requerimento está assinado com data de 21/11/2013), do qual consta que pretende um advogado para apresentar oposição à execução e não pagar taxa de justiça e custas, bem como honorários. No ponto 5.1 do pedido de apoio judiciário, antes da assinatura do executado, consta a seguinte certificação do próprio: tomei conhecimento de que devo […] entregar cópia do presente requerimento no tribunal onde decorre a acção, no prazo que me foi fixado na citação/notificação (fls. 192 deste apenso).
A 05/03/2014, o AE vem requerer autorização para poder, junto dos serviços de finanças, requerer a identificação e os valores das rendas de todos os arrendatários do executado.
A 13/03/2014, o tribunal recorrido profere o seguinte despacho:
“Notifique, antes de mais, o Sr. AE para proceder, nos devidos termos e no prazo máximo de 10 dias, à remessa ao processo de requerimento devidamente identificado como tal, a remeter o comprovativo da realização a citação prévia do executado para os termos da execução (opor-se à execução por embargos no prazo de 20 dias e para contestar a liquidação efectuada no requerimento executivo), ou seja, remetendo, além do aviso de recepção - único elemento que consta do processo electrónico, apesar de não devidamente identificado como tal -, a nota completa da citação efectuada, contendo os termos em que o foi, a fim de ser possível proceder-se à subsequente e devida tramitação processual da presente execução (arts 716/4, 550/3b) e art. 748/1, als. b) e ou d), todos do CPC vigente).
Notifique ainda o Sr. AE para, em 10 dias, esclarecer o facto de (face ao que consta do processo) ter já efectuado actos de penhora do património do executado, sem que tenha procedido à prévia e devida junção aos autos do comprovativo da citação do executado, por forma à fixação do valor da quantia exequenda (cuja liquidação foi peticionada na petição inicial nos termos referidos nos arts 26 a 28 da exposição de factos - valor global de 289.799,39€), e sem lhe ter sido efectuada, pela secretaria, a notificação a que alude o actual art. 748/1b), do CPC (correspondente ao anterior art. 832/1c) e art. 805/2, ambos do CPC anterior ao vigente).”
Na sequência, o Sr. AE limitou-se a, no dia 19/03/2014, requerer “a junção aos autos comprovativo de citação prévia do executado para contestar a liquidação efectuada no requerimento executivo” e a informar “que o executado foi previamente citado para contestar a liquidação, já foram penhorados bens e o executado também já se encontra citado após a penhora. Os dois actos foram praticados e enviados na mesma carta ao executado.” [sic].
Na folha seguinte (197 deste apenso), com data de 08/10/2013 e como documento 45166330497, consta “objecto e fundamento da notificação – Fica V. Exa notificado nos termos e para os efeitos do art. 716, nº. 4 e nº. 5 do CPC. Documentos anexos – Identificação do AE.”.
Na outra folha (198 deste apenso) consta um a/r assinado pela mulher do executado (como resulta do pedido de apoio judiciário - fls. 190 deste apenso), de 23/10/2013 (como resulta de fls. 199).
E depois, a fls. 200, consta, com data de 08/10/2013, um outro documento, n.º 45166329750, de envio de carta para citação do executado nos termos do art. 856 do CPC (para os termos da execução com informação de que tem o prazo de 20 dias para pagar ou querendo deduzir oposição à execução e à penhora e notificado também para dar informações sobre os bens penhorados e de que pode requerer a substituição dos bens penhorados…).
Na subsequente carta enviada ao executado a 29/10/2013, em virtude da citação não ter sido feita na própria pessoa, o executado é informado daquela citação e da dilação de 5 dias. Na parte destinada aos documentos anexos escreve-se: “cópia de aviso e recepção dos CTT; nota de citação e identificação do AE.” [sic]
A 04/04/2014 é proferida, para além do mais, sentença de liquidação, considerando-se a mesma fixada nos termos do requerimento executivo dada a falta de contestação do executado, dizendo-se que o mesmo foi citado para o efeito a 23/10/2013.
A 15/04/2014 é junta aos autos comunicação da Ordem dos Advogados de que foi nomeada, para patrocínio, uma advogada ao executado e de que esta foi notificada nessa data da nomeação efectuada.
A 22/04/2014 é elaborada a notificação da sentença de liquidação ao mandatário dos exequentes e à patrona do executado (conforme certidão entretanto completada junta aos autos), pelo que os mesmos se consideram notificados a 27/04/2014 – 25 e 26 são fim-de-semana).
A 15/05/2014 o executado apresentou um articulado que identifica como de embargos de executado, com os seguintes fundamentos (que se passam a transcrever na íntegra):
“QUESTÃO PRÉVIA
Da Falta de citação do executado.
1º O requerimento executivo apresentado pelos exequentes tem como título uma sentença condenatória genérica carecendo de liquidação prévia. Por isso, os exequentes referem um incidente de liquidação dos danos, peticionando pela sua liquidação.
2º Para tanto, apresentam como titulo executivo uma sentença condenatória ilíquida.
3º Assim, não se verifica os pressupostos processuais mínimos, ou seja, a obrigação exequenda, não é certa, exigível e líquida, nos termos previstos no art. 713 do NCPC.
4º E o título executivo, por ser ilíquido, e não dependente de simples cálculo aritmético, obriga a que o primeiro acto a ser realizado seja o da citação do executado para contestar a liquidação, nos termos do art. 716, nº 4 e 5 do NCPC.
5º O que não sucedeu, tendo sido o executado citado nos termos do art. 856 do NCPC e notificado nos termos do 716 n. 4 e n. 5 do mesmo diploma legal, tendo sido efectuada a penhora de bens a 08/10/2013, sem ter sido efectuada a citação do executado para contestar a liquidação.
6º É de todo inviável a realização da penhora sem que a obrigação exequenda seja liquidada, pois não se pode executar o património antes de determinar a quantia devida.
7º Assim, a falta da citação do executado impõe a anulação de todo o processado incluindo a penhora efectuada.
EMBARGOS DE EXECUTADO
8º Fundando-se a execução em sentença o executado opõe-se à execução nos termos do art. 729, alínea a), por inexequibilidade do título, e alínea e) atenta a iliquidez da obrigação, não supridas na fase interlocutória da execução.
9º As quantias indicadas pelos exequentes no requerimento executivo carecem sempre de apuramento através da liquidação, pelo que se impugnam todos os valores ali descritos, liquidação essa não suprida na fase interlocutória da execução.
10. Não tendo sido liquidada a obrigação exequenda não é o título executivo válido.
11. Assim sendo, a falta, ou a inexequibilidade do título importa a extinção da execução nos termos do art. 732, nº do NCPC.
Termos em que os presentes embargos devem ser recebidos e considerados procedentes, por provados, considerando a questão prévia da falta de citação do executado com os devidos e legais efeitos declarando-se improcedente a execução por inexequibilidade do título executivo.
Para tanto, requer a notificação dos embargados para contestar, querendo, os presentes embargos, no prazo e sob cominação legais.”
Este articulado é subscrito por uma advogada que não é a nomeada pela Ordem dos Advogados; aquela advogada protestou juntar procuração. Na sequência foi a referida advogada notificada para juntar aos autos a procuração que protestou juntar, o que ela fez, juntando procuração de 16/05/2014 e dizendo ainda que o executado prescindia do apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono.
Seguiu-se, depois, o seguinte despacho de 23/05/2014:
“Os factos alegados na petição inicial de embargos não são passíveis de servirem de fundamento de defesa perante a execução (aptos a porem termo à mesma): integram antes a alegação de irregularidade na realização da citação – acto processual praticado pelo Sr. AE nos autos de execução – que o executado/embargante configura como geradoras da nulidade do acto em causa e actos subsequentes, incluindo as penhoras realizadas e a decisão proferida nos autos de execução.
Com efeito, ainda que se considerasse procedente a arguida nulidade, a conclusão nunca seria a pretendida pelo executado/ /embargante de inexequibilidade da obrigação exequenda, não suprida na fase interlocutória, uma vez que os exequentes procederam no requerimento executivo à devida alegação dos factos tendentes à liquidação da obrigação.
Assim, a julgar-se procedente a arguida nulidade, considerando que foi omitida a citação prévia do executado para a execução e que tal seria gerador da nulidade do acto praticado e demais actos praticados afectados pela irregularidade invocada, tal apenas determinaria a necessidade de anulação dos actos praticados afectados pela irregularidade cometida e repetição do acto irregular e nulo, mas não afectaria o acto de propositura da execução.
Em conformidade, conclui-se que os factos alegados como fundamento de embargos de executado são manifestamente improcedentes para a finalidade pretendida – extinção da execução por inexequibilidade do título e iliquidez da obrigação exequenda, não suprida na fase introdutória, pelo que, enquanto embargos de executado, estão os mesmos votados ao insucesso.
Em conformidade, indefiro liminarmente o requerimento apresentado enquanto petição inicial de embargos de executado, por os fundamentos não se ajustarem ao disposto no art. 729 do CPC, sendo, por conseguinte, manifestamente improcedente enquanto fundamento de tal incidente declarativo – art. 732/, als. b) e c), do CPC.
Custas pelo embargante/executado, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia.”
O executado vem agora interpor recurso desta decisão – para que seja “dado provimento à apelação declarando nulo o despacho de indeferimento liminar decidindo-se em conformidade proferindo acórdão revogando a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra a declarar a anulação de todo o processado ulterior ao recebimento do requerimento executivo, incluindo as penhoras” [sic] - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
i) O executado/embargante deduziu embargos de executado suscitando questão prévia com arguição da sua falta de citação para contestar liquidação de sentença.
ii) A falta de citação é uma nulidade processual [art. 188/1a) do CPC] que gera a nulidade de todo o processado a partir do requerimento executivo [art. 187a) do CPC] e é de conhecimento oficioso.
iii) Sendo atendida implicará a anulação do processado incluindo as penhoras prematuras, com excepção do requerimento inicial.
iv) Uma vez que se trata de nulidade de conhecimento oficioso, havendo nos autos os elementos necessários para se decidir, é poder-dever do juiz conhecer da referida nulidade, tirando daí as legais consequências.
v) O tribunal a quo deveria pronunciar-se e conhecer da referida falta de citação por consistir numa nulidade que impõe a anulação de todo o processado incluindo a penhora efectuada prematuramente e não o fazendo deverá ser declarado nulo o despacho de indeferimento liminar de embargos de executado, nos termos da al. d) n.º 1 do art. 615 do CPC.
A exequente apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso; entre o mais diz que: não houve omissão de pronúncia; o executado foi citado para contestar a liquidação; não tinha de ser citado para a contestar antes de ser citado para deduzir oposição; e aceitou a liquidação pois que não reagiu à sentença que a fixou.
A 19/02/2015 foi proferido despacho a mandar subir este apenso de recurso e em que se disse o seguinte sobre a arguição de nulidade da decisão de indeferimento liminar – pronúncia nos termos dos arts. 617/1 e 641/1, do CPC:
“Não existe, a nosso ver, qualquer nulidade.
O invocado art. 615/1d), do CPC, considera nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (não diz que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas).
A sentença não é nula se não for apreciada e decidida questão que o juiz não deve apreciar, porque inócua no âmbito da providência - pretensão - formulada. O tribunal não tem que estar a apreciar e decidir questões prévias irrelevantes para a sorte ou destino do incidente de embargos de executado; o que o tribunal tem que apreciar e decidir são as questões suscitadas que sejam relevantes ou pertinentes à decisão da pretensão formulada ao tribunal.
Outro entendimento levaria a concluir que, apenas porque a parte, no articulado, suscita qualquer questão, ainda que absolutamente espúria no âmbito da finalidade e razão de ser de determinada acção ou procedimento (no caso, a extinção da execução por inexequibilidade do título, que é o pedido deduzido nos embargos de executado), a mesma tem que ser decidida, ainda que nenhuma relevância aí assuma e ainda que se conclua que, apesar da sua decisão, o incidente ou questão suscitada pela parte sempre teria que ser julgado/decidido da mesma forma (no caso, a manifesta improcedência da arguida inexequibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não suprida na fase interlocutória, dado que a consequência da procedência de tal fundamento dos embargos previsto no art. 729/g, do CPC é - tem que ser, nos termos do art. 732/4 do CPC - a extinção da execução, no todo ou em parte).
De todo o modo, sempre se dirá que se nos afigura que na decisão recorrida foi devidamente apreciada a relevância da alegada questão prévia (alegação da falta de citação do executado para contestar a liquidação, pois o executado foi citado nos termos do art. 856 do CPC e notificado nos termos do art. 716, n.º 4 e n.º 5, do CPC) enquanto pressuposto do invocado fundamento da oposição deduzida à execução pelo executado/embargante por embargos, a saber, a alegada inexequibilidade da sentença dada à execução, por força da iliquidez da obrigação, não suprida na fase interlocutória da execução.
Aí foi, inclusive, referido que, ainda que a nulidade arguida fosse procedente, tal nunca determinaria a inexequibilidade da obrigação exequenda (fundamento dos embargos) dado que os exequentes procederam no requerimento executivo à devida alegação dos factos tendentes à liquidação da obrigação, mas apenas a anulação dos actos praticados afectados pela irregularidade cometida e a repetição do acto irregular e nulo, nunca determinando - diferentemente do que é o próprio fundamento dos embargos de executado - a extinção, parcial ou total, da execução, com base num dos fundamentos do art. 729 do CPC, únicos que permitem que seja lançada mão deste meio processual.
Não se nos afigura, pois, que exista a arguida nulidade.
Em conformidade, nos termos do art. 617 do CPC, mantenho a decisão proferida, por entender que se não verifica a arguida nulidade.”
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Questões a decidir: se o despacho recorrido está ferido de nulidade por omissão de pronúncia sobre a questão da nulidade processual invocada nos embargos de executado.
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Os factos que interessam à decisão desta questão são os que constam do relatório que antecede.
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Não preenchimento de um dos fundamentos possíveis de embargos
Como decorre claramente das conclusões do recurso do executado e da pretensão com que ele o termina, aquilo que o executado pretende é obter a anulação de todo o processado desde o requerimento executivo, isto é, o reconhecimento de uma nulidade que inquina todo o processo à excepção daquele requerimento, nulidade que, segundo ele, é a falta de citação para contestar a liquidação [arts. 187a) e 188/1a), ambos do CPC]
Mas como aquela citação faz parte de um procedimento que levaria à liquidação da obrigação exequenda genérica, ele entende que aquela falta conduz à verificação de um dos fundamentos legalmente admitidos de oposição à execução de sentença, isto é, ou o do art. 729/1a) (inexistência ou inexequibilidade do título) ou o do art. 729/1e) do CPC (iliquidez da obrigação exequenda, não suprida na fase introdutória da execução).
Embora se entenda o raciocínio, não se acompanha o mesmo, desde logo porque a obrigação foi tornada liquida, mas, principalmente, porque a falta ou a nulidade da citação, no âmbito da execução, são vícios expressamente previstos noutras normas processuais, incluindo das executivas (art. 851 do CPC); estando previstas como objecto de reclamação de nulidade, não podem ser, ao mesmo tempo, objecto de embargos de executado.
E sendo objecto de reclamação e não de embargos, não se podem transmudar numa questão prévia destes.
Portanto, o despacho judicial está certo ao não admitir o articulado do executado como embargos de executado: a base do fundamento invocado pelo executado era uma nulidade processual que não é objecto próprio de embargos.
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Erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte
Só que apesar de ter sido invocada como base de um fundamento de embargos, aquilo que o executado realmente quer, bem ou mal não interessa por ora, é invocar a nulidade da sua falta de citação, que poderá ser antes uma arguição de nulidade da citação [arts. 187/188 e 191, todos do CPC].
Invocação de nulidade que, para as execuções, está prevista no art. 851 do CPC, sendo depois aplicáveis “as disposições dos arts. 187 a 191 do CPC que não estejam em contradição com o art. 851/1” do CPC (a parte entre aspas pertence a Lebre de Freitas, A acção executiva… 6ª edição, Coimbra Editora, 2013, pág. 417).
Ou seja, está-se num caso em que uma parte utiliza um meio processual errado para o fim que se propõe. Uma nulidade processual argúi-se numa reclamação para o juiz, não como questão prévia de uns embargos de executado.
A situação está prevista no art. 193/3 do CPC: O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.
Assim, poderia pôr-se a hipótese do tribunal recorrido dever ter tramitado o articulado em causa como uma reclamação de nulidade por falta ou nulidade da citação.
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Convolação
Neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, CPC anotado, vol. 1.º, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 379, dizem:
“O n.º 3 trata, já não do erro na forma do processo (global), mas do erro no meio processual utilizado pela parte no âmbito dum processo.
Autor e réu têm ao seu alcance, ao longo do processo, meios de actuação que a lei processual lhes disponibiliza para veicularem e fazerem vingar as suas pretensões ou oposições, quer no plano do mérito, quer no das questões processuais (articulados, requerimentos, respostas, reclamações, recursos, embargos). O n.º 3 cuida do erro da parte no acto de utilização de um desses meios, determinando o aproveitamento daquele que a parte haja inadequadamente qualificado, mas cujo conteúdo - subentende-se - se adeqúe ao meio que devia ter sido utilizado; o juiz, oficiosamente, observado o princípio do contraditório, corrige o erro e manda proceder à tramitação própria deste último. […]”
A seguir, dão um conjunto significativo de exemplos, entre eles os seguintes:
“[…] perante a decisão proferida pelo relator nos termos do art. 652-1-c, a parte recorre, em vez de reclamar para a conferência (art. 652-3); perante a penhora dum bem impenhorável, o executado embarga de terceiro, em vez de se opor nos termos do art. 784; […] a parte invoca a violação do princípio do contraditório recorrendo da decisão-surpresa, em vez de arguir a nulidade desta (art. 195-1); […].”
Miguel Teixeira de Sousa, em comentário a um ac. do TRE, na entrada de 08/02/2015 no blog do IPPC sob nulidade da citação; convolação de meio processual, diz:
“[…] atendendo a que o objecto do recurso era a nulidade da citação do requerido e que, segundo parece, a RE entende que o requerido, em vez de ter interposto o recurso, devia ter arguido a nulidade da citação depois de ter sido notificado da sentença que decretou a providência cautelar, verifica-se um erro no meio processual utilizado pelo requerido. O meio processual escolhido pelo requerido para invocar a nulidade da sua citação não é o adequado: devia ter sido a reclamação contra a nulidade, não a apelação interposta. Mas se assim é, então o que a RE deveria ter feito era analisar a aplicação ao caso sub iudice do (novo) art. 193/3 do CPC […]
Noutro âmbito, mas como a mesma razão de ser, diz o STJ nos seus acórdãos de 05/11/2009, de 25/02/2010 e de 02/03/2011, publicados, respectivamente, sob os nºs. 308/1999.C1.S1, 399/1999.C1.S1 e 823/06.7TBLLE.E1.-S1 da base de dados do IGFEJ: “a qualificação jurídica que a parte realiza quanto à pretensão de tutela processual que deduz não impede que o tribunal possa reconfigurar adequadamente tal pretensão, dando-lhe a adequada configuração jurídico-normativa, suprindo ou corrigindo o erro de direito da parte na formulação jurídica do pedido que deduz […]”.
Daí que, por exemplo, o STJ tenha dito, num acórdão de uniformização, de 20/01/2010, […], apresentado requerimento de interposição de recurso de decisão do relator […], este deverá admiti-lo como requerimento para a conferência (publicado no DRE http://www.dre.pt/pdf1s/2010/02/03600/0049400500.pdf).
Na síntese de uma das declarações de voto deste AUJ: “[…] deve prevalecer a intenção de impugnar a decisão, desde que inequivocamente expressa no correspondente requerimento. Procedem, para a convolação, as razões que justificam a possibilidade de correcção do erro na forma de processo.”
Por isso, no acórdão do TRL de 08/11/2012, 2634/11.9TBTVD.L1, considerou-se que um requerimento de uma parte se traduzia numa arguição de uma irregularidade cometida mesmo que aquele requerimento formalmente não se apresentasse como reclamação de tal nulidade; e na decisão singular do TRP de 21/02/2014, 3621/13.8TBPRD-D.P1, não publicada, considerou-se que se uma parte arguiu uma nulidade processual, num recurso, quando a devia ter arguido no tribunal de 1ª instância, a arguição devia ser convolada numa reclamação de nulidade, por aplicação do disposto no art. 193/3 do CPC (no mesmo sentido a decisão singular do TRP de 30/05/2014, processo 34716/13.7YIPRT.P1, também não publicada).
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Da impossibilidade do trânsito da sentença de liquidação
A apreciação da arguição da nulidade não ficaria prejudicada pelo facto de a parte não ter recorrido da decisão final.
Como dizem Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 698/699 e 379:
[…S]e um acto da sequência processual anterior à sentença estiver ferido de anulabilidade […] e esta tiver sido tempestivamente arguida, a sentença será anulada em conformidade com o disposto no art. 201-2. Neste caso, não é necessário o recurso da decisão final, com a finalidade de impedir o trânsito em julgado: este não se dá enquanto não for proferida decisão sobre a nulidade […]”
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De um dos requisitos da convolação – da dedução dentro do prazo
A convolação, no entanto, só pode ser admitida se o acto tiver sido praticado dentro do prazo que a parte teria para praticar o acto para o qual ele seria convolado.
É este o entendimento que tem sido seguido (como por exemplo, nas duas decisões singulares referidas acima) pois, caso contrário, a parte que tivesse perdido, pelo decurso do prazo, o direito de praticar certo acto, poderia ultrapassar esse obstáculo simplesmente praticando outro acto para o qual estivesse em tempo, embora com o conteúdo do outro, de modo a beneficiar de uma convolação processual posterior.
Foi este, por exemplo, o entendimento, fixado por acórdão de uniformização de jurisprudência do STA, n.º 3/2014, publicado no DI, Iª série, de 15/10/2014, para um caso paralelo: “I - Só é possível a convolação do requerimento de interposição de um recurso em reclamação para a conferência se o requerimento tiver dado entrada dentro do prazo da reclamação.”
Este acórdão acrescenta: [alguma prática jurisprudencial contrária] não tratava de modo igual os interesses da parte ao trânsito em julgado de decisão favorável e o interesse da parte contrária a ver admitida a reclamação para além desse prazo.”
Este acórdão tem 3 votos de vencido em 11, mas, no caso, com base “num quadro generalizado de confiança em que [aquele] era o meio processual adequado que a prática judiciária praticamente uniforme legitimava, [pelo que não] h[averia] risco de fraude à lei quanto aos prazos de impugnação […]”
E a interpretação subjacente ao AUJ já foi considerada constitucional pelo ac. do TC de 17/12/2014, nº. 884/2014, que decidiu, pelos mesmos fundamentos do acórdão 749/14 - que incidiu sobre artigo 193/1, do CPC, na interpretação normativa segundo a qual não é admissível a convolação do meio de reacção (recurso) à decisão de mérito, proferida por juiz administrativo de círculo em processo contencioso pré-contratual, por não ter sido observado o prazo previsto para o meio processual para o qual se pretende a convolação (reclamação para a conferência) -, “não julgar inconstitucional a norma constante dos arts. 7, 27/1i), 27/2, 29 e 142/1, do CPTA, quando interpretados no sentido de não admitir a convolação do recurso de apelação interposto em reclamação para a conferência, nas situações em que não tenha sido respeitado o prazo da reclamação).
Disse o TC: “o estabelecimento de requisitos para que a convolação possa operar, entre eles a observação tempestiva do prazo inerente ao meio de reacção a que haveria de se ter lançado mão, é uma consequência necessária e equilibrada em face da falta de diligência processual do recorrente na selecção do meio processual adequado e no cumprimento do prazo a que tal meio se encontra sujeito (v., em sentido semelhante, o ac. 270/05 […]). Percebe-se, na verdade, que tanto a realização da justiça, como o interesse público que subjaz ao encurtamento dos prazos de reacção estariam inelutavelmente comprometidos se aos intervenientes no processo fosse assegurada a convolação, à outrance, nos meios processuais correctos.”
Contra, no entanto, veja-se a posição do professor Miguel Teixeira de Sousa na entrada já citada de 08/02/2015 no blog do IPPC:
“Perante este preceito [o do art. 193/3 do CPC], a RE (como, aliás, o tribunal a quo, no momento de se pronunciar sobre a admissibilidade da apelação) poderia vir a tomar uma das seguintes decisões:
- Considerar que, como o recurso foi (muito provavelmente) interposto depois de passados os 10 dias para a arguição da nulidade da citação após a notificação da sentença final (cf. art. 149/1, CPC), a convolação permitida pelo art. 193/3, CPC não era admissível; a decisão não seria indiscutível, mas poderia colher algum apoio legal;
- Admitir, ainda assim (isto é, mesmo que o prazo para a arguição da nulidade da citação já se encontrasse esgotado), a aplicação do art. 193/3, CPC e aceitar a convolação do recurso interposto numa reclamação da nulidade da citação; esta opção, de acordo com uma certa perspectiva de prevalência do fundo (a invocação da nulidade) sobre a forma (o erro no meio processual), também era defensável.
4. O caso concreto demonstra que há que estar atento à aplicação pela jurisprudência do disposto no art. 193/3, CPC, nomeadamente no que se refere à admissibilidade da convolação quando, no momento da realização do acto convolado, já não seria possível a prática do acto adequado. No fundo, há que escolher entre a preclusão e a convolação. Seria desejável que a jurisprudência adoptasse uma orientação não formalista e se orientasse no sentido da prevalência da convolação sobre a preclusão.
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Do prazo para a arguição da nulidade
Esse prazo depende do vício que se verifique: a falta ou a nulidade da citação.
Ora, no caso, o executado não tem razão quanto à falta de citação. Ele foi citado para a execução, tendo-lhe sido dado um prazo para contestar o requerimento executivo, por embargos de executado. Por isso não se pode dizer que falte a citação (arts. 187a e 188/1, ambos do CPC), que pressuporia a pura inexistência do acto ou situações que, pela sua gravidade, lhe são equiparadas (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC citado, pág. 364).
O que se passou é que essa citação foi feita de forma a preterir as formalidades prescritas na lei (art. 191/1 do CPC):
O executado tinha de ser citado para contestar, querendo, a liquidação, dentro do prazo fixado para a dedução de embargos, com a explicita advertência da cominação relativa à falta de contestação e do ónus de cumular a oposição à liquidação com a dedução de embargos à execução, tudo nos termos do art. 806/2 do CPC na redacção anterior à reforma de 2003, que o despacho de 30/01/2012 explicitava ser a aplicável ao caso (o que ainda sucedia na data em que o AE recebeu o requerimento executivo). E, para além disso, era uma citação prévia à realização de quaisquer actos na execução.
Em vez disso, o executado foi, ao mesmo tempo que lhe eram penhorados os bens, citado, num documento, nos termos do art. 856 do CPC na redacção dada em 2013, dizendo-se-lhe que tinha o prazo de 20 dias para pagar ou querendo deduzir oposição à execução e à penhora e notificado para dar informações sobre os bens penhorados e de que podia requerer a substituição dos bens penhorados e notificado, noutro documento, nos termos e para os efeitos do art. 716, nº. 4 e nº. 5 do CPC naquela redacção (sem qualquer explicitação do teor destes artigos). E do documento enviado para citação não consta qualquer cominação para o caso de não contestação. E o que foi dito pelo Sr. AE sobre o assunto não corresponde ao que antecede: “o executado foi previamente citado para contestar a liquidação, já foram penhorados bens e o executado também já se encontra citado após a penhora. Os dois actos foram praticados e enviados na mesma carta ao executado.”
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Do prazo para a arguição da nulidade da citação
O art. 191/2 do CPC diz que o prazo para a arguição da nulidade da citação é o que tiver sido indicado para a contestação.
No caso, o prazo era de 20 dias, mais 5 de dilação.
O executado foi citado a 23/10/2013, o prazo de 25 dias terminava a 17/11/2013 que foi um domingo, pelo que se transferiu para 18/11/2013.
O executado só juntou aos autos o requerimento de apoio judiciário a 22/11/2013, isto é, no quarto dia depois do prazo (e seria este o único acto que poderia interromper o prazo que estava em curso, como resulta do art. 24/4, da Lei 34/2004, de 29/07: “Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência da acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo”; não interessando, por isso, a data da entrada do requerimento na segurança social que, no entanto, também terá ocorrido também em 22/11/2013).
Assim, já não podia arguir a nulidade da citação.
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Da (não) omissão de pronúncia
Conclui-se, assim, que a decisão recorrida não tinha razões para convolar oficiosamente os embargos de executado em arguição de nulidade processual por nulidade da citação, pelo que, embora por fundamento diverso do por ela avançado, não tinha que conhecer da reclamação da nulidade, pelo que não cometeu qualquer nulidade por omissão de pronúncia [art. 615/1d), 1ª alternativa, aplicável por força do art. 613/3, ambos do CPC].
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo executado, sem prejuízo do apoio judiciário.

Porto, 05/03/2015
Pedro Martins
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida