Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
156/14.5TTMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO
INTERPRETAÇÃO DA CLÁUSULA
COMISSÃO ARBITRAL PARITÁRIA
Nº do Documento: RP20141103156/14.5TTMAI.P1
Data do Acordão: 11/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I. O contrato de trabalho desportivo é um negócio formal, não podendo a interpretação das suas cláusulas deixar de ter um mínimo de correspondência no texto das mesmas.
II. Estabelecendo as partes uma cláusula segundo a qual “Para dirimir conflitos entre si emergentes, as Partes acordam em submeter a respectiva resolução à Comissão Arbitral Paritária constituída nos termos do artigo 55º do CCT referido na cláusula anterior”, a interpretação da mesma, segundo os princípios constantes dos artigos 236º e 238º do Código Civil não permite considerar que só vale durante o tempo pelo qual dura o contrato, e que caducado este, a competência pertence ao Tribunal do Trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 156/14.5TTMAI.P1
Apelação

Relator: Eduardo Petersen Silva (reg. nº 407)
Adjunto: Desembargadora Paula Maria Roberto
Adjunto: Desembargadora Fernanda Soares

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B…, jogador profissional de futebol, residente na Maia, veio intentar a presente acção declarativa de condenação com processo comum emergente de contrato de trabalho (desportivo) contra C…, S.A.D., com sede em …, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 2.085,00€ referentes à retribuição mensal ilíquida vencida a 8 de Junho de 2013 e não paga, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, e 2.500,00€ a título de danos patrimoniais[1], também acrescida de juros de mora.
Alegou em síntese que celebrou com a Ré contrato de trabalho desportivo para profissionais de futebol, por duas épocas, com início a 1.7.2011 e termo a 30.6.2013, as quais cumpriu, sendo porém que a Ré não pagou a retribuição peticionada, o que causou danos morais ao A.
A Ré, pugnando pela improcedência da acção, contestou, por impugnação e excepcionando dilatoriamente a violação da cláusula compromissória atributiva de competência exclusiva a uma comissão arbitral, e excepcionando peremptoriamente o pagamento, e invocando litigância de má-fé, peticionando indemnização não inferior a 2.500,00€.
O A. respondeu, e para o que aqui interessa, à excepção de incompetência, sustentando que o recurso à Comissão Arbitral Paritária apenas foi estabelecido para enquanto durasse o contrato, e não para após a sua cessação por caducidade, caso em que o litígio passava a estar submetido à jurisdição dos tribunais judiciais, concretamente, do Tribunal do Trabalho da Maia.

Foi então proferida a seguinte decisão:
“Da competência absoluta
Veio o réu C…, SAD, arguir a incompetência absoluta deste tribunal por preterição de tribunal arbitral, alegando que no contrato de trabalho celebrado entre si e o autor foi convencionado submeter os litígios decorrentes do mesmo à Comissão Arbitral Paritária prevista na cláusula 54.ª do Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (publicada no Boletim do Trabalho e do Emprego, 1.ª série, n.º 33, 08/09/1999, págs. 2778 e ss.).
Respondeu o autor, alegando que tal cláusula apenas seria válida durante a vigência do contrato, tendo sido nessa perspetiva que acordou em celebrar o contrato de trabalho e sendo essa a interpretação que um declaratário normal retira da cláusula do contrato de trabalho celebrado.
Cumpre decidir, sendo este o momento adequado para tal – art.º 98.º do Código de Processo Civil.
As partes estão de acordo em terem celebrado o contrato junto a fls. 8v. e ss., denominado “contrato de trabalho desportivo”, que dispõe na sua cláusula 18.ª o seguinte: “para dirimir conflitos entre si emergentes, as partes acordam em submeter a respetiva resolução à Comissão Arbitral Paritária constituída nos termos do disposto no artigo 55.º do C.C.T. referido na cláusula anterior”.
As cláusulas 54.ª e 55.ª do Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol dispõem o seguinte:
“Artigo 54.º
Conflitos entre as partes
Em caso de conflito decorrente do contrato de trabalho desportivo, será o mesmo submetido à apreciação da Comissão Arbitral Paritária constituída nos termos previstos no artigo seguinte, a qual decidirá, segundo o direito aplicável e o presente CCT e de acordo com o regulamento previsto no anexo II, que faz parte integrante deste CCT, não havendo lugar a recurso judicial das suas decisões.”
“Artigo 55.º
Comissão Arbitral Paritária
Durante a vigência deste CCT é constituída uma Comissão Arbitral, que será composta por seis membros, sendo três nomeados pela LPFP, três pelo SJPF, cujo funcionamento está previsto no anexo II do presente CCT, tendo fundamentalmente as seguintes atribuições:
a) Dirimir os litígios de natureza laboral existentes entre os jogadores de futebol e os clubes ou sociedades desportivas;
b) Interpretar a aplicação das cláusulas do presente CCT;
c) Vigiar o cumprimento do regulamentado;
d) Estudar a evolução das relações entre as partes contratantes;
e) Outras atividades tendentes à maior eficácia prática deste CCT.”
Nenhuma das partes põe em causa a celebração do contrato e a cláusula que prevê o recurso à Comissão Arbitral Paritária, baseando-se a discordância do autor na interpretação que faz de tal cláusula como sendo apenas destinada a vigorar durante a execução do contrato de trabalho e não após a sua cessação, momento em que poderão as partes livremente recorrer aos tribunais.
Ora, salvo sempre o devido respeito por tal posição defendida pelo autor, entendo que da cláusula contratual e das cláusulas da CCT acima transcritas não pode ser essa a interpretação correta.
No que toca à cláusula do contrato, nada permite que se retire da mesma a conclusão de que se destinava apenas a vigorar durante a execução do contrato. Por um lado, não há qualquer menção literal expressa a essa situação – apenas se referem “conflitos entre si emergentes”, não sendo estabelecido qualquer limite temporal. Por outro lado, a interpretação da cláusula tem de ser feita em conjugação com o resto do contrato e tratando-se de um contrato de trabalho, logicamente a previsão de recurso à Comissão Arbitral tem de abranger qualquer conflito emergente de tal contrato, independentemente de estar o mesmo ainda em execução ou não. É sabido e notório que a esmagadora maioria dos conflitos emergentes de contratos de trabalho surgem num momento em que o contrato já não vigora, prendam-se eles com a cessação propriamente dita (despedimento promovido pelo empregador ou resolução por justa causa invocada pelo trabalhador) ou com créditos decorrentes da execução do contrato mas não pagos após a sua cessação. Além disso, remetendo a cláusula para a CCT, a análise desta também aponta claramente para que o recurso à Comissão Arbitral seja obrigatório quer o contrato ainda dure, quer já tenha cessado, desde que o conflito se baseie na relação de trabalho desportivo – na supra transcrita cláusula 54.ª apenas se refere “conflito decorrente do contrato de trabalho desportivo” e na cláusula 55.ª apenas se fala em “dirimir os litígios de natureza laboral existentes entre os jogadores de futebol e os clubes ou sociedades desportivas”. Ora, não há qualquer dúvida quanto a estarmos perante um litígio de natureza laboral entre o autor e o réu, pelo que cabe integralmente na esfera de competência da Comissão Arbitral Paritária. Na jurisprudência pode ver-se o acórdão da Relação de Lisboa de 01/06/2011 (disponível em www.dgsi.pt, com o n.º de processo: 261/10.7TTFUN.L1-4), que decidiu neste mesmo sentido num caso em que o contrato também já não estava em execução.
Mais se diga que, não estando neste caso em apreciação a licitude ou ilicitude de um despedimento, não se coloca a questão de ter a situação de ser obrigatoriamente decidida pelos tribunais por estar excluída da disponibilidade das partes a sua sujeição a um tribunal arbitral – veja-se, por todos, o que nesse caso se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2008 (disponível em www.dgsi.pt, com o n.º de processo: 08S1690).
Em conclusão, ao instaurar a ação diretamente no tribunal sem recorrer à Comissão Arbitral Paritária, o autor violou a convenção de arbitragem constante do contrato celebrado com o réu.
Tal violação origina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96.º, alínea b) do Código de Processo Civil), exceção dilatória (art.º 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil) que foi tempestiva e validamente arguida (art.º 97.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), sendo este o momento para a sua apreciação (art.º 98.º do Código de Processo Civil) e que leva à absolvição do réu da instância (art.º 576.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
Nestes termos, e pelo exposto, julgo procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta invocada na contestação e, consequentemente, absolvo o réu C…, SAD da instância.
(…)
Custas pelo autor – art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Valor da ação: 4.585,00€ (quatro mil, quinhentos e oitenta e cinco euros)” (fim de citação).

Inconformado, interpôs o autor o presente recurso, apresentando a final as seguintes conclusões:
1. (…)
2. Em termos de apreciação da competência de um qualquer tribunal em razão da matéria, para a apreciação ou conhecimento de um determinado litígio, deveremos verificar qual a pretensão que, em concreto, é formulada pelo autor e quais os fundamentos (causa de pedir) pelo mesmo invocados na petição como suporte dessa pretensão e, a partir daí, verificar se, aquela e estes cabem no âmbito de jurisdição ou poder jurisdicional conferidos por lei ao tribunal onde a acção surge proposta.
3. Sob a epígrafe “Lei reguladora da competência”, estabelece o artigo 22º da actual Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei nº 3/99 de 13-01, que “A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente”.
4. Ora, estabelece o art. 64º do Cód. Proc. Civil – aqui aplicável por força do art. 1º nº 2 al. a) do Cod. Proc. Trabalho – que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, estipulando o art.º 65º do mesmo diploma que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”.
5. Os tribunais do trabalho constituem, efectivamente, uma jurisdição especializada como decorre do disposto na Secção III do Capítulo V da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) aprovada pela Lei nº 3/99 de 13-01.
6. De acordo com a alínea b) do artigo 85º da (…) LOFTJ, “Compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho”.
7. No caso dos autos, o recurso à Comissão Arbitral Paritária (CAP) da Liga Portuguesa de Futebol Profissional foi estabelecido pelas partes para vigorar somente enquanto durasse o contrato de trabalho desportivo celebrado.
8. Ou seja, as partes acordaram em submeter à Comissão Arbitral Paritária a resolução dos conflitos e/ou litígios que surgissem durante a vigência e eficácia do contrato.
9. Como se alegou na p.i., (…), o contrato entre as partes vigorou desde 1 de Julho de 2011 até 30 de Junho de 2013, data em que cessou os seus efeitos por caducidade.
10. A partir dessa altura, os conflitos entre as partes decorrentes da relação laboral deixaram de estar submetidos por convenção de arbitragem à CAP.
11. Para passarem a estar submetidos à jurisdição dos tribunais judiciais, desde logo do Tribunal do Trabalho da Maia.
12. Tendo esta sido a vontade real e declarada das partes e, designadamente, do A., aqui recorrente, pois se outro fosse o entendimento jamais o recorrente teria aceite tal convenção arbitral.
13. Tal é, também, o sentido normal da declaração do ponto de vista de um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, assim como para efeitos de integração da declaração negocial – cfr. artigos 236º e 239º, ambos do C.C.
14. Por conseguinte, a acção não foi instaurada com preterição da Comissão Arbitral, não tendo o aqui recorrente infringido a competência convencional da Comissão Arbitral, de tal modo que não ocorreu a excepção dilatória da violação da cláusula compromissória atributiva da competência exclusiva a uma comissão arbitral.
15. Ora, a convenção de arbitragem consiste, antes de mais, num negócio jurídico para cuja interpretação há que atender às regras constantes do artº 236º do Código Civil.
16. Resulta inequivocamente do texto da cláusula 18ª do “Contrato de Trabalho Desportivo” que não foi vontade das partes sujeitar os litígios ocorridos após a cessação do contrato à apreciação de Tribunal Arbitral.
17. Pelo contrário foi intenção das partes limitar a apreciação do Tribunal Arbitral apenas aos litígios emergentes na vigência do Contrato.
18. Este objectivo primordial da Cláusula Compromissória não poderá ser atingido a partir do momento em que o Contrato cessou os seus efeitos por caducidade.
Sem prescindir,
19. O Tribunal Arbitral é a única entidade competente para aferir da própria competência – princípio da Kompetenz-Kompetenz.
20. Assim, os Tribunais Judiciais apenas se podem limitar a remeter a questão para ser analisada pelo Tribunal Arbitral e, caso este se considere incompetente, pronunciando-se pela ineficácia da convenção arbitral, aqueles Tribunais Judiciais ficarão vinculados a tal decisão (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Fevereiro de 2009, publicado in www.dgsi.pt).
21. Para todos os efeitos, o Tribunal do Trabalho é competente em razão da matéria para apreciar e decidir o presente litígio.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, o que não se concede ou concebe, mais se alega o que segue:
22. Dita o artº 99º nº 2 do CPC que se a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta.
23. Assim sendo, caso se entenda pela incompetência do Tribunal do Trabalho, desde já se requer a remessa oficiosa do presente processo para a Comissão Arbitral Paritária (CAP) da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido do recurso não merecer provimento, ao qual a recorrida respondeu, aderindo, e ao qual o recorrente respondeu, reiterando os termos do seu recurso.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões do recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, a única questão a decidir é a de saber se o Tribunal do Trabalho é materialmente competente para o conhecimento da acção, e se assim não for entendido, se deve ser ordenada a remessa dos autos à Comissão Arbitral Paritária.

III. Matéria de facto
A constante do relatório que antecede, e ainda que o contrato de trabalho desportivo foi celebrado pelo prazo de duas épocas desportivas, com início em 1.7.2011 e termo em 30.6.2013., constando da cláusula 17ª do mesmo que “Os casos e situações não previstos no presente contrato regem-se pelo Contrato Colectivo de Trabalho outorgado entre o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e pela demais legislação laboral aplicável subsidiariamente” e constando da cláusula 18ª que “Para dirimir conflitos entre si emergentes, as Partes acordam em submeter a respectiva resolução à Comissão Arbitral Paritária constituída nos termos do artigo 55º do CCT referido na cláusula anterior”.

Apreciando:
Começando, desde já e pela sua simplicidade, pela questão subsidiária da remessa dos autos à Comissão Arbitral Paritária em caso de improcedência da questão principal do recurso, diga-se que o tribunal de recurso se destina a reapreciar decisões judiciais – artigo 627º nº 1 do CPC – e que o tribunal recorrido não deu nenhuma decisão neste sentido que deva ser reapreciada, pelo que a decisão dessa questão, por este tribunal, sempre importaria na violação do princípio do duplo grau de jurisdição. Esta porém nem é a razão principal: - o recorrente invoca o artigo 99º do CPC, mas não atenta no nº 3 do mesmo, que estabelece precisamente que a possibilidade de requerer a remessa dos autos ao tribunal competente é excluída no caso da preterição de tribunal arbitral. Por outro lado, o nº 2 do mesmo preceito, ao prever a possibilidade de pedir a remessa dos autos, sempre coloca esta possibilidade no momento temporal posterior ao trânsito em julgado da decisão que declara a incompetência, pelo que o pedido em causa, mesmo que fosse admissível, e não é, pelas razões citadas, sempre seria prematuro e por isso intempestivo.
Improcede pois a questão subsidiária.

Quanto à questão principal, o recorrente não põe em causa a legalidade da submissão do conflito a que os autos se reportam – créditos salariais não pagos, reclamados após a cessação do contrato, e indemnização por danos morais, justamente de natureza disponível após a cessação do contrato – à Comissão Arbitral Paritária, não estando pois em discussão a ilegalidade da cláusula compromissória arbitral celebrada entre as partes. O recorrente apenas coloca em causa a vigência dessa cláusula para o momento posterior ao cumprimento do contrato, defendendo que na sua vigência e duração, efectivamente acordou a submissão de conflitos emergentes da execução contratual à Comissão Arbitral Paritária, mas que não celebrou tal submissão para conflitos que surgissem posteriormente ao termo do contrato. E assim defende a partir das regras de interpretação da declaração negocial, visto que a cláusula compromissória constitui um negócio jurídico.
Como segundo argumento, defende que é o tribunal arbitral o competente para decidir da sua própria competência e por isso o tribunal judicial devia limitar-se a remeter a questão da competência para o tribunal arbitral e depois conformar-se com a decisão deste.

A Lei 63/2011 de 14 de Dezembro veio regular a Arbitragem Voluntária, revogando a Lei 31/86 de 29 de Agosto, com a redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei nº 38/2003 de 8 de Março, mantendo porém a norma constante do artigo 1º nº 1 desta Lei 31/86 para a arbitragem de litígios emergentes de ou relativos a contratos de trabalho – artigo 5º nº 1 da Lei nº 63/2011. A Lei 63/2011 entrou em vigor três meses após a sua publicação e portanto posteriormente à celebração do contrato de trabalho desportivo dos autos,
É assim inteiramente pertinente o reporte à jurisprudência que sobre esta questão já foi produzida, e citada precisamente na decisão recorrida, no domínio da lei anterior, jurisprudência relativamente à qual não temos razão para nos afastar, na medida em que explana os princípios orientadores do regime jurídico aplicável.
Lê-se no acórdão do STJ de 19.11.2008, consultável em www.dgsi.pt sob o nº SJ200811190016904:
“3. 1. A institucionalização, por lei, de instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos, designadamente de tribunais arbitrais, está expressamente prevista na Constituição da República Portuguesa (artigos 202.º, n.º 4 e 209.º, n.º 2).
Sob a epígrafe Convenção de arbitragem, dispõe o artigo 1.º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto (Lei da Arbitragem Voluntária): “1 – Desde que, por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros”; “2 – A convenção de arbitragem pode ter por objecto um litígio actual, ainda que se encontre afecto a tribunal judicial (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória)”; “3 – As partes podem acordar em considerar abrangidas no conceito de litígio, para além das questões de natureza contenciosa em sentido estrito, quaisquer outras, designadamente as relacionadas com a necessidade de precisar, completar, actualizar ou mesmo rever os contratos ou as relações jurídicas que estão na origem da convenção de arbitragem”; “4 – O Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizados por lei especial ou se elas tiverem por objecto de litígios respeitantes a relações de direito privado”. (fim de citação).
Por seu turno, o artigo 2º da mesma Lei estabelecia:
“1-A convenção de arbitragem deve ser reduzida a escrito.
2 - Considera-se reduzida a escrito a convenção de arbitragem constante ou de documento assinado pelas partes, ou de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de telecomunicação de que fique prova escrita, quer esses instrumentos contenham directamente a convenção, quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que uma convenção esteja contida.
3 - O compromisso arbitral deve determinar com precisão o objecto do litígio; a cláusula compromissória deve especificar a relação jurídica a que os litígios respeitem.
4 - A convenção de arbitragem pode ser revogada, até à pronúncia da decisão arbitral, por escrito assinado pelas partes”.
Lê-se no acórdão da Relação de Lisboa citado na decisão recorrida:
“As partes podem recorrer à arbitragem voluntária através de uma convenção de arbitragem. Esta convenção designa-se compromisso arbitral quando respeita a um litígio actual, e cláusula compromissória quando se refere a litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (nº 2 do artº 1º da citada Lei).
(…)
Como decorre do artº 30º, nº 1, da Lei nº 28/98, de 26/6, é facultada às partes a faculdade de recorrer à arbitragem para a resolução de quaisquer conflitos de natureza laboral emergentes da celebração de contrato de trabalho desportivo.
O CCT para os profissionais de futebol aplicável é o celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, publicado no Boletim de Trabalho e Emprego, I Série, nº 33, de 8/9/1999.
O artº 55º de tal CCT, para o qual as partes expressamente remeteram, dispõe:
“Durante a vigência deste CCT é constituída uma Comissão Arbitral (...) tendo fundamentalmente as seguintes atribuições:
a) Dirimir os litígios de natureza laboral existentes entre os jogadores de futebol e os clubes ou sociedades desportivas (...)”.
Disposição estabelecida na sequência do artº 54º do mesmo CCT, que determina o seguinte:
“Em caso de conflito decorrente do contrato de trabalho desportivo, será o mesmo submetido à apreciação da Comissão Arbitral Paritária constituída nos termos previstos no artigo seguinte, a qual decidirá, segundo o direito aplicável e o presente CCT e de acordo com o regulamento previsto no anexo II, que faz parte integrante deste CCT, não havendo lugar a recurso judicial das suas decisões”. (fim de citação).
Isto posto, que era pacífico, qual o sentido em que se deve interpretar a declaração negocial das partes contida na cláusula 18ª do contrato?
Em primeiro lugar, note-se que nos termos do artigo 5º nº 2 da Lei 28/98 de 26 de Junho, o contrato de trabalho desportivo só é válido se for celebrado por escrito, o que significa que é um negócio formal – cfr artigo 219º do Código Civil – e portanto a regra geral de interpretação constante do artigo 236º do Código Civil, tem de ser enquadrada pelo disposto no artigo 238º do mesmo diploma, isto é, não pode valer a interpretação que não tenha um mínimo de correspondência no texto negocial, ainda que imperfeitamente expresso.
O artigo 236º do Código Civil estabelece que:
“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.
Não está em causa nos autos, por não ter sido alegado, a previsão do nº 2 do preceito.
Importa pois colocar um declaratário normal na posição do real declaratário, a deduzir o sentido da declaração do declarante de acordo com o seu comportamento.
Ora, estamos no âmbito dum contrato de trabalho e a cláusula 18ª reza: ““Para dirimir conflitos entre si emergentes, as Partes acordam em submeter a respectiva resolução à Comissão Arbitral Paritária constituída nos termos do artigo 55º do CCT referido na cláusula anterior”.
Em primeiro lugar, no texto contratual não se encontra qualquer referência a um termo final destes conflitos, não se lê “enquanto durar a relação contratual, acordamos submeter os conflitos que nessa duração sobrevierem, à Comissão Arbitral”, k nem há qualquer menção, nesta cláusula ou noutra, que integre a previsão duma expressão imperfeita, a que se refere o artigo 238º do Código Civil. Já por aqui soçobraria o entendimento do recorrente.
Qual é o entendimento normal, para um empregador médio – ou para o trabalhador, é o mesmo – do que sejam os “conflitos entre si emergentes”?
Posto que o contrato de trabalho faz nascer direitos e obrigações, o conflito é normalmente associado ao incumprimento desses direitos e obrigações. Assim, por exemplo, o pagamento da retribuição é seguramente uma das obrigações que nascem da celebração do contrato de trabalho que mais relevo tem, e que pode ser incumprida ou deficientemente cumprida. Este conflito pode emergir – e seguramente quando emerge é contemporâneo do incumprimento pontual da retribuição, obviamente na pendência do contrato, independentemente da data em que o trabalhador reclama, do empregador, o cumprimento em falta. Como bem se refere na decisão recorrida, a experiência diz-nos aliás que a maior parte dos conflitos, originados na pendência da relação laboral, só vêm acompanhados do pedido da sua resolução em juízo após o termo da relação. A origem desse conflito – falta de pagamento pontual da retribuição – nasce na pendência do contrato. Isto para dizer que, nem que tivesse sido estabelecida a cláusula compromissória para dirimir conflitos emergentes na pendência da relação, ainda seria discutível se, pelo prazo de prescrição dos direitos incumpridos, isto é, pelo prazo de um ano subsequente à cessação da relação laboral, a competência de resolução do conflito não estava atribuída à Comissão Arbitral.
É também inteiramente pertinente a observação da decisão recorrida no sentido de recorrer à cláusula 54ª do CCT: “Além disso, remetendo a cláusula para a CCT, a análise desta também aponta claramente para que o recurso à Comissão Arbitral seja obrigatório quer o contrato ainda dure, quer já tenha cessado, desde que o conflito se baseie na relação de trabalho desportivo – na supra transcrita cláusula 54.ª apenas se refere “conflito decorrente do contrato de trabalho desportivo” e na cláusula 55.ª apenas se fala em “dirimir os litígios de natureza laboral existentes entre os jogadores de futebol e os clubes ou sociedades desportivas”.

A interpretação pretendida pelo recorrente importa numa dicotomia ou distinção temporal que é estranha, salvo o devido respeito, ao declaratário normal: a de que o conflito só emerge quando a parte prejudicada decide reagir, e até este momento, mesmo que a contraparte tenha grosseiramente violado o contrato, não há conflito nenhum. Isto não é verdade nem do ponto de vista psicológico. O declaratário normal não faz esta distinção especiosa entre a causa do conflito e o tempo em que o conflito é abertamente declarado.
Julgamos pois que está dentro do entendimento que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário teria feito, considerar que o conflito emergente do contrato é aquele que é originado pelo incumprimento do contrato e que qualquer que seja a data em que for pretendida a resolução do mesmo pela instância competente, antes ou depois da cessação do contrato, esta instância é a Comissão Arbitral Paritária.
Quanto ao argumento da competência para decidir a competência pertencer à Comissão, a referência que o recorrente faz ao acórdão da Relação de Lisboa não é pertinente, porque o caso não é idêntico: - não estando em causa que a competência para decidir a sua própria competência é da Comissão, isso colocava a questão de saber se o tribunal devia apreciar a validade da cláusula compromissória ou se lhe bastava verificar que a convenção não era patentemente nula e a matéria não estava reservada por lei aos tribunais, para que o tribunal remetesse a causa à instância arbitral. O acórdão optou pela segunda alternativa, decidindo afinal a incompetência material do tribunal do Trabalho: isto é, basta que se verifique uma aparência de legalidade da cláusula compromissória – que não seja patentemente nula e que não incida sobre, o caso a decidir não seja o de, uma matéria legalmente vedada à instância arbitral, para que o tribunal, neste caso, de Trabalho, se possa declarar materialmente incompetente.
Não colhe pois também este segundo argumento do recurso, e o mesmo improcede na sua totalidade, devendo confirmar-se a decisão recorrida.
Tendo decaído no recurso, é o recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.

IV. Decisão
Nos termos supra expostos acordam negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.

Porto, 3 de Novembro de 2014
Eduardo Petersen Silva
Paula Maria Roberto
Fernanda Soares
___________
[1] Embora se refira “danos patrimoniais”, trata-se certamente de lapso, pois a causa de pedir vem assente na alegação de factos relativos a danos não patrimoniais.
___________
Sumário a que se refere o artigo 663º, nº 7 do actual CPC:
I. O contrato de trabalho desportivo é um negócio formal, não podendo a interpretação das suas cláusulas deixar de ter um mínimo de correspondência no texto das mesmas.
II. Estabelecendo as partes uma cláusula segundo a qual “Para dirimir conflitos entre si emergentes, as Partes acordam em submeter a respectiva resolução à Comissão Arbitral Paritária constituída nos termos do artigo 55º do CCT referido na cláusula anterior”, a interpretação da mesma, segundo os princípios constantes dos artigos 236º e 238º do Código Civil não permite considerar que só vale durante o tempo pelo qual dura o contrato, e que caducado este, a competência pertence ao Tribunal do Trabalho.

Eduardo Petersen Silva
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos (artigo 138º nº 5 do Código de Processo Civil).