Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1774/19.0T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
NATUREZA ANTECIPATÓRIA
IMPROCEDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP201909121774/19.0T8PRD.P1
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 181, FLS.267-273)
Área Temática: .
Sumário: I - A providência cautelar comum não se esgota na natureza conservatória do direito; pode ter natureza antecipatória, o que acontece quando visa a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e será objeto de execução.
II - Neste procedimento, a manifesta improcedência a que se referem os art.ºs 226º, nº 4, al. b) e 590º, nº 1, do Código de Processo Civil, não pode deixar de se revelar por uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de Direito indispensáveis ao exercício cautelar do direito, de tal modo que torne inútil qualquer instrução e discussão posteriores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1774/19.0T8PRD.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto - Juízo de Família e Menores de Paredes – J 4

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
B…, divorciada, NIF ………., residente na Rua …, nº .., …. - … …, Penafiel, instaurou procedimento cautelar não especificado contra C…, divorciado, NIF ………., com indicação da mesma residência, alegando essencialmente que foi casada com o Requerido, que no âmbito do divórcio a casa de morada de família foi, por acordo devidamente homologado, atribuída àquele seu ex-cônjuge até à partilha, a qual já foi requerida em 12.07.2017, que vive com o filho maior do casal, nascido em 08.11.2000, o qual está desempregado e incapacitado por doença de exercer qualquer profissão pelo menos até 18.07.2019, que depende de si, uma vez que realiza tratamento psiquiátrico em ambulatório, carecendo da sua acção e vigilância na toma da medicação, que este teve comportamentos aditivos com evidência de esquizofrenia, que se alteraram as circunstâncias que ditaram o acordo quanto à atribuição da casa de morada de família e vai instaurar a respetiva ação para se proceder a tal alteração, que antes do divórcio teve de abandonar a casa de morada de família, por força dos maus-tratos que o Requerido lhe infligia, tendo arrendado, em período limitado (5 anos), uma habitação tipo T1, pela renda mensal de €180,00, que a senhoria reiterou formalmente a necessidade de desocupação desse apartamento T1, que deveria ficar livre até 30 de agosto de 2019, mas por insistência daquela, em meados de junho, entregou o locado e não conseguiu obter nenhum outro arrendado pelo mesmo preço da renda ou valor compatível com os seus rendimentos (aufere €635,07), que lhe permitisse acomodar-se conjuntamente com o filho, que se alojou com ele na casa que foi a de morada de família, que tem três quartos, que a entrega antecipada em mês e meio do locado ao senhorio aconteceu também para poder alojar-se na casa de morada de família, na falta de outro local disponível para residirem, porquanto o Requerido anunciava a sua vinda do estrangeiro no mês de agosto e com ele em …, tal mudança seria impossível, que o ex-cônjuge passou a trabalhar no estrangeiro durante todo o ano, que só por pequenos períodos de tempo e principalmente no verão é que aparece por casa e por períodos de 10 a 15 dias, que recentemente vem ameaçando que irá estar mais tempo, que não se preocupa com o seu filho nem com o sustento, doença ou tratamentos médicos, que é a Requerente que vem assegurando, sem qualquer comparticipação financeira ou outra do Requerido, que tão pouco tem pago aquilo a que se obrigou, quando este era menor a ponto de se ter obrigado em janeiro de 2019 a pagar-lhe €1.950,00, a €150,00 mês, e neste momento ainda só pagou €500,00, que tem medo do Requerido e do seu comportamento pelo que receia pela sua integridade física e bem-estar quando este chegar a …, o que ocorrerá em meados do mês de julho, já que referiu que a iria por fora de casa, de qualquer maneira, que a doença do filho é inventada, que quando chegar a … o filho irá parar com os medicamentos, sendo que o Requerido foi já condenado no processo nº 96/15.0GEPNF que correu termos pelo Tribunal de Penafiel por violência doméstica exercida contra si, no período compreendido entre julho de 2015 e março de 2016, que além da pena de dois anos e três meses de prisão suspensa por igual período de tempo foi-lhe ainda aplicada a pena acessória de afastamento da sua residência e local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio durante o período de suspensão, o que tudo justifica o forte receio que a leva a temer pela sua integridade física e moral, bem como a do filho, que trabalhando em Irivo e tendo o filho consigo e com os tratamentos e medicação a que está sujeito neste momento, não têm outro local para residir, não podendo o filho residir sozinho, como os médicos lhe referem, pela necessidade da tomada controlada e regular dos medicamentos e das regulares consultas médicas, tanto mais que se o seu filho se recusar a tomar a medicação poderá ter de ser internado compulsivamente para a tomar.
Receia ainda que o Requerido, tendo em vista impedi-la de residir na casa de morada de família a torne inabitável pela eventual destruição de todo o recheio da mesma e dos componentes da própria casa (paredes, janelas e portas).
Por último refere que está disponível para, dentro das suas disponibilidades, e na eventualidade de lhe ser atribuída a casa de morada de família, desde já em sede de providência cautelar, de compensar o requerente com €150,00, fixando-se um valor global de €300,00, que é o adequado a uma casa semelhante na freguesia de ….
Conclui dizendo que se encontram preenchidos todos os pressupostos, quer para a alteração da atribuição da casa de morada de família, quer para a procedência da presente providência cautelar, quer ainda para a não audição prévia do Requerido, e requer que seja a presente providência deferida, sem tal audição e, em consequência, que se lhe atribua provisoriamente, até à decisão da ação principal, a casa de morada de família sita no nº .. da Rua …, em …, Penafiel, por existirem indícios sérios que demonstram a alteração substancial das circunstâncias que levaram à atribuição da casa de morada de família ao Requerido, bem como o justo receio de que o mesmo cause lesão grave ao direito da Requerente que se pretende acautelar, fixando-se uma compensação de €150,00 a favor daquele até à decisão final a proferir na ação principal, com todas as legais consequências.
Resulta ainda dos autos e acompanhando o relatório da decisão recorrida:
1) A Requerente e o Requerido contraíram casamento entre si no dia 29 de outubro de 2000, sem precedência de convenção antenupcial (cf. cópia de assento de nascimento da Requerente junto com o r.i.).
2) No dia 09.11.2015, na Conservatória do Registo Civil de Penafiel, no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 2577/2015, realizou-se a conferência com a presença dos Requerentes, C… e B…, os quais declararam manter o propósito em se divorciar, assim como as declarações prestadas no requerimento inicial e nos acordos que anexaram, tendo a Sra. Adjunta de Conservador apreciado os acordos sobre o exercício das responsabilidades parentais e sobre o destino da casa de morada de família e decidido que estão reunidos todos os pressupostos legais, que foram juntos todos os documentos legalmente previstos, que se encontram acautelados os interesses dos cônjuges e do jovem, tendo nessa sequência homologado o acordo quanto ao destino da casa de morada de família, no que concerne ao direito de habitação que é atribuído ao Requerente marido, assim como o acordo quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais, referente ao jovem D… e decretado o divórcio por mútuo consentimento entre a Requerente e o Requerido, declarando-se dissolvido o casamento aludido em 1) (cf. doc. junto com o r.i.)
3) D… nasceu no dia 08.11.2000 (cf. doc. referido em 2).
4) Intitulado «Acordo quanto à casa de morada de família» Requerente e Requerido declararam que «A casa de morada de família corresponde ao prédio urbano, sito na rua …, n.º .. (…. - …), freguesia de …, concelho de Penafiel, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2668. Os Requerentes acordam atribuir durante a pendência do processo e após ser decretado o divórcio, ao cônjuge marido, a casa de morada de família atrás identificada, até à partilha do imóvel. Penafiel, 13 de julho de 2015» (cf. doc. aludido em 2).
5) Designado «Acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais» os ora Requerente e Requerido declararam, além do mais, que «(…) O pai pagará a título de alimentos, a quantia de 250,00 euros (…), até ao dia 8 de cada mês.
(…). 3 – Todas as despesas que os pais entendam necessárias ou convenientes para a formação e bem-estar do menor serão divididas por ambos em partes iguais.» (cf. doc. aludido em 2).
6) No dia 12.07.2017 a aqui Requerente B… instaurou inventário para partilha de bens por divórcio (cf. doc. junto com o r.i., que ora se dá por reproduzido).
7) Corre termos neste Juízo de Família e Menores, J3, a ação de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais, sob o n.º 123/17.7T8PRD, no âmbito da qual, por decisão de 08.01.2019, se julgou verificado o incumprimento, fixando-se a quantia em dívida no valor global vencido de € 1.950,00, obrigando-se o progenitor a liquidar a mesma em prestações mensais no valor de € 150,00, vencendo-se a primeira em fevereiro de 2019 (cf. doc. junto com o r.i. cujo teor se dá por reproduzido).

No dia 15.7.2019, o tribunal proferiu despacho liminar de indeferimento deste requerimento inicial invocando manifesta improcedência do pedido, nos seguintes termos:
«Pelo exposto, é manifesto que a pretensão da Requerente não pode proceder, por se não verificarem os respetivos pressupostos legais, pelo que se decide, em consequência, indeferir liminarmente a presente providência cautelar (artigos 226º, n.º 4, al. b) e 590º, n.º 1, ambos do CPC).
Custas pela Requerente (artigo 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil).»
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Notificada daquela decisão e com ela inconformada, a Requerente apelou, tendo alegado com as seguintes CONCLUSÕES:
«A - A providencia cautelar requerida preenche os pressupostos legais, pelo menos para a produção de prova e audição do requerido antes ou depois do decretamento da providencia como o refere o artigo 356 do C.P.C.
B - Pelo que se justifica o recebimento da mesma com despacho para produção de prova e posterior decisão
B - Já que se encontram alegados factos que demonstram a existência do direito ameaçado
C - Bem como factos que demonstram o “periculum in mora”
D -Violou o douto despacho em crise o disposto no artigo 352 do C.P.C» (sic)
Terminou no sentido de que o despacho que colocou em crise seja revogado e substituído por outro que ordene o recebimento da providência cautelar.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
As questões a decidir, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2, do Código de Processo Civil), estão delimitadas pelas conclusões da apelação da Requerente, acima transcritas (art.ºs 635º e 639º daquele código), sendo que apenas se conhece do objeto da decisão recorrida e não sobre matéria nova.
Está para decidir se há fundamento para rejeição liminar do procedimento cautelar requerido, por falta dos respetivos pressupostos.
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III.
Releva para a decisão a matéria alegada no requerimento inicial, no essencial, a que foi reproduzida no relatório que antecede.
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IV.
As providências cautelares são meios de antecipação e preparação de uma providência ulterior; não são um fim em si mesmas. Destinam-se a obter medidas que assegurem os efeitos de um outro procedimento que há de definir, em termos definitivos, a relação jurídica litigiosa. Têm, portanto, um carácter instrumental. Justificam-se atento o periculum in mora, ou seja, com elas pretende-se defender o presumível titular do direito contra os danos e prejuízos que lhe pode causar a formação lenta e demorada da decisão definitiva nos autos principais. O seu carácter é provisório, na medida em que supre temporariamente, a falta da providência final.[1]
Estes procedimentos visam, portanto, acautelar o efeito útil da ação a que alude genericamente o artigo 2.º do Código de Processo Civil, impedindo “que durante a pendência de qualquer acção, declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica”.[2]
A composição provisória realizada através das providências cautelares pode prosseguir uma de três finalidades: pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela pretendida ou requerida. No primeiro caso, tomam-se providências que garantem a utilidade da composição definitiva; no segundo as providências definem uma situação provisória ou transitória; no terceiro, por fim, as providências atribuem o mesmo que se pode obter na composição definitiva. A diferença qualitativa entre a composição provisória e a tutela atribuída pela ação principal decorre dos seus pressupostos específicos e, nomeadamente da suficiência da probabilidade da existência do direito acautelado.[3]
Os procedimentos cautelares, dado o seu carácter de meios expeditos para acautelamento do direito ameaçado de lesão, bastam-se com um juízo de verosimilhança ou de probabilidade, sendo as suas decisões assentes numa prova sumária, perfunctória, não passando, por isso, de meros indícios (summaria cognitio). A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão, e pode ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (artigo 387º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).[4]
O procedimento cautelar comum, forma processual de que a Requerente lançou mão, e que tem cariz residual face às providências especificadas, está previsto nos art.ºs 362º e seg.s do Código de Processo Civil.
Estabelece aquele primeiro normativo:
«1- Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
2- O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.
3- (…)
4- (…)».
A providência cautelar comum não se esgota na natureza conservatória do direito, podendo ter natureza antecipatória, ou seja, as providências cautelares são conservatórias se visam acautelar o efeito útil da acção principal, assegurando a permanência da situação existente, e são antecipatórias se visam a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e será objeto de execução.
As medidas deste tipo excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidade das providências ficando a um passo das que são inseridas em processo de execução para pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto positivo ou negativo. Garante-se desde logo e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter caracter definitivo.[5]
A admissibilidade liminar da providência requerida depende da alegação de factos que consubstanciem a probabilidade séria da existência do direito tido por ameaçado, do fundado receio da sua lesão grave e de difícil reparação, da adequação da providência à remoção do periculum in mora concretamente verificado e ainda da garantia de que visa assegurar a efectividade do direito ameaçado e, bem assim, da insusceptibilidade de o decretamento implicar prejuízo superior ao dano que visa evitar.
Quanto ao primeiro, basta um juízo de probabilidade ou de verosimilhança, ou seja, a aparência do direito, normalmente designada por fumus boni juris.
Já o periculum in mora depende da prova do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, ou seja, por regra, que na altura da instauração do procedimento cautelar ocorra uma situação de lesão iminente, isto é, que ainda não tenha ocorrido, ou que esteja em curso, ou seja, ainda não integralmente consumada, ou, no caso contrário, que indicie a ocorrência de novas lesões ao mesmo direito. Não é necessário que ocorra um prejuízo concreto e actual. Mas só lesões graves e dificilmente reparáveis podem justificar uma decisão judicial que salvaguarde o requerente da previsível lesão de um direito da sua titularidade. A gravidade da previsível lesão deve aferir-se à luz da sua repercussão na esfera jurídica do requerente.
Tem-se entendido que o correto entendimento será, pois, o de que a providência deve ser decretada, sempre que, se esteja ante uma lesão grave, atenta importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objeto mediato) e que está em risco de ser sacrificado, e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível.
Como bem explica ainda Abrantes Geraldes[6], os efeitos produzidos por este género de providências cautelares não deixam de surpreender e de, eventualmente, provocar em quem tem de decidir, algum temor quanto aos riscos derivados de uma injusta decisão cautelar. (…) esse risco aumenta exponencialmente quando se está perante medidas cautelares de carácter antecipatório (…) apesar disso as consequências foram assumidas pelo legislador (…) há que assumi-lo sem rodeios - o sistema convive com a possibilidade de ser adoptada uma medida cautelar causadora de prejuízos ao requerido que, a final, se revela inadequada (…) tem o juiz a possibilidade de condicionar, em determinadas circunstâncias, a concessão de providência antecipada à prestação de caução, que sendo adequada, permitirá compensar o requerido pelos prejuízos derivados da providência (…) é bom que fique claro que, com caução ou sem ela, a assunção de uma providência insere-se no "risco social" intermediado pelos tribunais, permitindo que o sistema adopte medidas que apesar de, a posteriori, se verificar serem infundadas, nem por isso deixam de se considerar legítimas, por decorrerem do exercício do direito de acção cautelar.
Quando está em causa a tutela cautelar antecipatória, a summaria cognitio deverá ser integrada por um juízo de probabilidade especialmente forte, em todo o caso no respeito pela lógica do processo cautelar, incompatível com a indagação exaustiva de questões cuja solução cabe no processo principal. Se na base da tutela cautelar antecipatória pretendida estiver um direito ameaçado do requerente de provável existência contra um direito do requerido de improvável existência, o sentido da decisão penderá favoravelmente ao requerente.

A Requerente pretende que lhe seja cautelarmente atribuída a casa de morada família, propriedade ainda indivisa do casal, propondo-se pagar uma retribuição pelo seu uso até à partilha e instaurar a ação principal destinada àquele mesmo fim.
Nos termos do art.º 1793º do Código Civil:
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.

Como observámos, o interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou, antecipadamente, em direito emergente de decisão a proferir.
Justifica a Requerente a sua pretensão provisória com uma alteração das circunstâncias de facto surgida após o acordo (homologado) havido entre ela e o seu ex-cônjuge, o Requerido, que considera suficiente para que o direito deixe de ser exercido por este e seja atribuído à própria, também até à partilha, como ficara estabelecido no referido acordo.
A atribuição da casa de mora de família é uma providência de jurisdição voluntária, podendo, por isso, a sua resolução ser alterada, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes, ou seja, todas aquelas que ocorram posteriormente à decisão e ainda as que, sendo anteriores, não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (art.ºs 988º, nº 1 e 990º do Código de Processo Civil).
Para que lhe seja atribuído o direito em causa, a Requerente aduz essencialmente que, desde a data em que, por acordo homologado em 9.11.2015, foi atribuída ao Requerido a casa de morada de família até à partilha dos bens comuns do extinto casal, se alteraram as circunstâncias da sua vida, da vida do Requerido e do filho, integrando este o seu agregado familiar. O contrato de arrendamento relativo à sua casa de habitação e do filho extinguiu-se, ficando o agregado sem meios para fazer face à renda de casa que teria de suportar com um novo arrendamento, não conseguindo, aliás, obter na mesma zona outro espaço habitacional para arrendar pelo mesmo ou mais favorável preço de renda. Não obstante acompanhamento clínico psiquiátrico anterior, revelou-se a doença grave do filho do foro psicótico (esquizofrenia), está desempregado e incapacitado, e tem necessidade de acompanhamento e vigilância na toma do medicamento em ambulatório, sob pena de agravamento sensível da doença. O seu agregado não tem meios financeiros para fazer face a um novo arrendamento compatível com as suas necessidades.
O Requerido emigrou e, por isso, deixou de residir na casa de morada de família, que passou a frequentar apenas por curtos períodos de tempo, designadamente nas suas férias laborais de verão. Não cumpriu devidamente as suas obrigações alimentares relativamente ao filho enquanto este foi menor, com valor elevado em dívida e em vias de cobrança coerciva, não se preocupa com a sua situação de doença atual nem colabora nos encargos que daí advêm, pelo que é a Requerente que tem vindo a suportar sozinha todas as suas despesas, apesar de ter como único rendimento a sua retribuição laboral mensal de apenas €635,07.
Tudo isto foi alegado no requerimento inicial com melhor concretização. Mesmo que se admita que tais factos carecem de alguma complementaridade, designadamente quanto à sua superveniência relativamente à data em que foi homologado o acordo das partes quanto à atribuição do direito à casa de morada de família - o que sempre pode ser viabilizado através do mecanismo que o art.º 5º, nº 2, do Código de Processo Civil prevê - a matéria alegada revela um agravamento apreciável do estado de necessidade da casa de morada de família por parte da Requerente e do filho e uma significativa atenuação da necessidade da mesma casa por parte do Requerido por ter passado a residir no estrangeiro, suficientes para que não se possa concluir, ao menos por agora, que existe uma manifesta improcedência da providência requerida.
A psicose, em particular a esquizofrenia, é uma doença psiquiátrica grave e crónica, cujo programa de medicação em ambulatório necessita de vigilância e acompanhamento permanente de terceira pessoa, para obstar a interrupções e recidivas com agravamento da doença.
A Requerente alega que se “só se mudasse em final de Agosto e já com a presença do Requerido em Portugal e na casa, tal mudança seria impossível e a requerente não tinha qualquer outra alternativa”. O Requerido foi já condenado “no processo nº 96/15.0GEPNF que correu termos pelo Tribunal de Penafiel por violência doméstica exercida contra a requerente no período compreendido entre Julho de 2015 e Março de 2016 (cfr. doc. 8 e para além da pena de 2 anos e três meses de prisão suspensa por igual período de tempo foi-lhe ainda aplicada a sanção acessória de “Afastamento da requerente, da sua residência e local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio durante o período de suspensão - dois anos e três meses-…”). A invocada situação de necessidade, a ser demonstrada, desculpabiliza, em alguma medida, a ocupação da casa que a Requerente efectuou sem providência judicial e não pode justificar o não reconhecimento cautelar de um direito previsível.
O direito à habitação é um direito constitucionalmente garantido. O não exercício desse direito pela Requerente através do uso da casa de morada da família, pelo seu estado de carência e do filho e pela importância económica que tal exercício acarreta para esse agregado familiar, é susceptível de revelar o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, face à alegada posição do Requerido.
A ser verdade o que mais alega a Requerente, existe da parte dela um estado de carência de habitação que pode ser suprido pelo exercício do provável direito à casa de morada de família pela preponderância do seu interesse (e do filho) sobre o interesse do Requerido, fortemente reduzido pela sua ausência no estrangeiro, propondo-se ela pagar-lhe uma compensação.
A providência cautelar instaurada não está ab initio condenada ao fracasso. A manifesta improcedência a que se referem os art.ºs 226º, nº 4, al. b) e 590º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicados na decisão recorrida, não pode deixar de se revelar por uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de Direito indispensáveis ao exercício do direito, entre eles a falta da causa de pedir, não uma causa de pedir que seja apenas deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta, por isso aperfeiçoável, sendo evidente naquele código a adoção de mecanismos demonstrativos de séria preocupação com a realização da justiça material e concreta[7].
Já o Prof. Alberto dos Reis escrevia que o pedido é manifestamente improcedente quando lhe falte alguma das condições para que o tribunal, ao julgar de mérito, possa acolhê-lo, como sucede se o autor não tiver o direito material que se arroga contra o réu.[8]
Mais recentemente, Salvador da Costa[9] refere que a pretensão formulada pelo autor é manifestamente improcedente ou manifestamente inviável porque a lei a não comporta ou porque os factos apurados - face ao direito aplicável - a não justificam, acrescentando que a “ideia de manifesta improcedência corresponde à de ostensiva inviabilidade o que raro se verifica, pelo que o juiz tem de ser muito prudente na formulação do juízo de insucesso a que a lei se reporta”.
Para Abrantes Geraldes[10] a manifesta improcedência reconduz-se “aos casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência”.
A manifesta improcedência é a evidência, a notoriedade, da improcedência, sendo entendimento tradicionalmente dominante que o indeferimento da petição, com tal fundamento, só deve ocorrer quando a improcedência ou a inviabilidade da pretensão do autor se apresente de forma tão evidente, que torne inútil qualquer instrução e discussão posteriores, isto é, que faça perder qualquer razão de ser à continuação do processo, levando a um desperdício manifesto se (não fosse logo atalhada) da actividade judicial, ou, por outras palavras ainda, quando é evidente ou que a pretensão do autor carece de fundamento, o que deve ser aferido casuisticamente, perante cada caso concreto, em função do pedido e dos seus fundamentos de facto e de direito.[11]
A providência cautelar instaurada pela Requerente é viável.
A apelação deve proceder, com admissão da providência por não haver manifesta improcedência que justifique o indeferimento liminar (a questão do recurso).
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se o recebimento liminar da providência.
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As custas da apelação serão suportadas pela parte vencida a final (art.ºs 527º, nºs 1 e 2 e 539º, nº 2, do Código de Processo Civil).
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Porto, 12 de setembro de 2019
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Acórdão da Relação de Lisboa de 31.1.2013, proc. 1357/12.6TYLSB.L1-8, in www.dgsi.pt.
[2] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pág. 23.
[3] Miguel T. Sousa Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág.s 227 e 228.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.06, in www.dgsi.pt.
[5] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, 2ª ed ição, pág.s 92 e 93.
[6] Ob. cit., Vol. III, pág.s 94 a 97.
[7] De que é exemplo o mecanismo do art.º 5º, nº 2, do Código de Processo Civil a que atrás já aludimos.
[8] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 379.
[9] A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5.ª edição, pág.s 95 e 96.
[10] Temas da Reforma do Processo Civil, 2ª ed., Almedina, pág. 162.
[11]. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, págs. 377 e 378, Antunes Varela e outros, in “Manual do Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 259, Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil, Anotado, vol. 1º, Coimbra Editora, pág. 399/400 e Acórdão da Relação de Évora de 24.10,1985, Colectânea de Jurisprudência, T. IV, pág. 302.