Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1751/18.9T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO DE COISAS
QUALIFICAÇÃO
PRESTAÇÕES FRAGMENTÁRIAS
Nº do Documento: RP201906131751/18.9T8MTS.P1
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO COMUM
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 176, FLS 107-113)
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de fornecimento de coisas, muito embora tenha natureza atípica encontra-se geralmente centrado no contrato de compra e venda no âmbito de um programa contratual duradouro, integrando, por isso mesmo, uma pluralidade de prestações que prolongam-se no tempo, seja de um modo programado e escalonado (i), estando as prestações desde logo determinadas ou sendo inicialmente indeterminadas, seja mediante prévia solicitação (ii), como é característico nos contratos “just in time”.
II - Desdobrando-se um contrato quadro de fornecimento de coisas em diversos “contratos parciais”, tendo cada um deles uma relativa autonomia económica e jurídica, haverá que tratar cada uma destas prestações fragmentárias, como sendo um cumprimento parcial definitivo inserido naquela programação contratual duradoura, ou seja, como um contrato autónomo.
III - Para o efeito, o comprador tem que alegar os contornos factuais desses contratos de compra e venda parciais e não limitar-se a apresentar um registo contabilístico, que corresponde a uma extracto vulgarmente apelidado de conta-corrente, mas que não representa qualquer contrato comercial com esta última designação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 1751/18.9T8MTS.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos; Filipe Caroço; Judite Pires

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1.1 No processo n.º 1751/18.9T8MTS do Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim, J2, da Comarca do Porto, em que são:

Recorrente/Autora (A): B…, Lda.

Recorrida/Ré (R): C…, S.A.

foi proferida sentença em 20/nov./2018, decidindo nos seguintes termos:
“com base em todo o atrás exposto, julgo a ação parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência, condeno a requerida a pagar à requerente a quantia de 339,94€ (trezentos e trinta e nove euros e noventa e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa comercial, a contar desde a citação”
1.2 A A. na sua petição começou por invocar a celebração em 19/ago./2013 de um contrato geral de fornecimento, o qual veio a ser posteriormente alterado e cuja cópia juntou aos autos, e que por via do aludido contrato de fornecimento em conta corrente tem a seu favor um saldo de € 7.828,53, respeitante a acertos contabilísticos emergentes do fornecimento de artigos e equipamentos fotográficos e informáticos, conforme nota de débito emitida em 09/jun./2017 e vencida em 09/jul./2017, que corresponde às mercadorias referenciadas nos doc. 3, 4, 5 e 6, junto aos autos, que não foram pagas em virtude de ter alegado motivo de defeito ou avaria, os quais nunca foram comprovados de acordo com a cláusula 3.1.9, acrescendo juros de mora calculados nos termos do § 3 do artigo 102.º do Código Comercial e da Portaria n.º 277/2013, de 26/ago., estando então vencidos € 402,36. Terminou pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 8.230,89, acrescidos de juros de mora contados desde 03/abr./2018.
1.3 A R. contestou em 26/Abr./2018, começando por afirmar que desconhece a nota de débito correspondente ao referido saldo de € 7.828,53, nunca lhe tendo sido enviada. No demais e invocando defender-se por excepções afirma reconhecer a nota de débito …/………., reportando-se à reparação de artigos, sendo a mesma devida, mas foi entretanto cedida à D…, SA., não sendo devida a nota de débito …/………., porquanto é referente a uma factura que não é devida, porquanto não foi encomendado pela R., mas sim por outra empresa, pelo que foi emitida a correspondente nota de débito, enquanto a nota de débito ….. diz respeito a um artigo que foi devolvido e igualmente cedido à D…, SA, sendo a nota de débito …/………. igualmente devida à reparação de artigos, procedendo a R. à sua compensação, tendo sido justificado e levado ao conhecimento da A., o mesmo sucedendo com a nota de débito …/………., concluindo que nada devem à A., formulando um pedido reconvencional com base no anteriormente alegado, pugnando pela sua absolvição.
1.4 A A., notificado para o efeito por determinação do tribunal, respondeu àquelas designadas excepções, aceitando não ser devida a nota de débito …/………., reduzindo o valor da mesma em € 1.359,79, desconhecendo se os produtos referenciados como avariados estivessem mesmo defeituosos, não tendo os mesmos sido devolvidos e não podendo fiscalizar tais artigos, sendo a cedência efectuada não de créditos, mas de dívidas, sendo as mesmas inadmissíveis, pugnando pela improcedência da compensação/reconvenção
1.5 Por despacho proferido em 06/jun./2018 foi admitida a redução do pedido formulado pela A. no valor de € 1.359,79, mantendo-se em litígio € 6.871,10, não sendo admitido o pedido reconvencional, com base na falta da sua previsibilidade legal, sem que o correspondente incidente tenha sido tributado, invocando-se a sua “simplicidade”.
2. A A. insurgiu-se contra a mencionada sentença, tendo interposto recurso da mesma em 08/jan./2019, pedindo e alegando o seguinte:
1. A causa de pedir destes autos ancora-se num saldo de conta-corrente, favorável à Autora, em virtude do facto de a recorrente não aceitar as notas de débito emitidas pela recorrida, para o que esta invocou alegadas avarias.
2. O ponto 20.º da matéria de facto provada deve passar a ter a seguinte redação: “Dos 20 equipamentos referidos nas notas de débito enviadas à requerente, a requerida comunicou a existência de avaria em 8 equipamentos, referidos nos processos ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………. e ………..”
3. O ponto 14 da matéria de facto dada como provada deve ser dado como NÃO PROVADO
4. Da factualidade apurada no julgamento, a recorrida falhou completamente na prova de que os equipamentos continham, efectivamente, avaria.
5. Da conclusão apresentada supra apenas pode resultar uma consequência: a nota de débito emitida pela recorrente, na parte relativa à nota de débito …/………. emitida pela recorrida, é devida, uma vez que a referida nota de débito …/………. carece, in totum, de fundamento legal ou contratual.
6. Note-se que o cumprimento defeituoso do contrato é matéria de excepção, pelo que é da recorrida o ónus da prova da existência de avarias.
7. A sentença recorrida violou, por isso, a cláusula 3.1.9 do contrato geral, uma vez que a recorrida não logrou provar a existência de quaisquer produtos avariados ou anormais.
8. Inexistindo produtos comprovadamente avariados, a emissão da nota de débito …/………. emitida pela recorrida é contratualmente ilícita.
9. Assim, é a recorrida devedora desse valor, a título de saldo final de conta corrente.
3. A R. contra-alegou em 14/fev./2019 sustentando a improcedência do recurso, concluindo do seguinte do seguinte modo:
1. Nos presentes autos não existe qualquer contrato de conta corrente nem tal foi sequer dado por provado.
2. O pedido da recorrente ancora-se na alegada falta de pagamento da recorrida dos artigos que lhe foram fornecidos, pese embora não indique quais as faturas relativas a tal fornecimento.
3. Nesses pontos a recorrente é bem clara ao afirmar que o que está em causa é o pagamento não efetuado pela recorrida dos equipamentos que lhe forneceu.
4. No ponto 12 dos factos provados deu o tribunal a quo como demonstrado que “A requerida pagou à requerente o preço dos equipamentos adquiridos”, sendo que a testemunha da própria recorrente F… atestou isso mesmo no respetivo depoimento.
5. Se por um lado a recorrente pugna pela prova de um contrato de conta corrente entre as partes, por outro não recorre da matéria dada por não provada a esse respeito; se por um lado pugna pelo facto da causa de pedir consistir na falta de pagamento de determinados artigos, por outro não recorre do facto dado por provado a esse respeito e que diz exatamente o contrário; se por um lado assenta o seu pedido no não pagamento dos artigos fornecidos, os documentos que junta como prova a esse respeito não são as faturas de fornecimento, mas sim notas de débito da recorrida e, por fim, relativamente aos factos que alega (como por exemplo as notas de débito) argumenta o ónus de prova relativamente aos mesmos compete à recorrida.
6. Quanto às notas de débito n.º …/………. e n.º ….., tal como resulta dos factos dados por provados sob os pontos 15, 16 (respeitantes à nota de débito …/……….) bem como aos factos provados 18 e 19 (respeitantes à nota de débito …...) foram cedidas pela Recorrida à empresa D…, SA.
7. Relativamente a tal matéria a recorrente não impugna a decisão do tribunal a quo.
8. Tais factos atestam que os créditos em causa, ou seja, o valor titulado por tais documentos e que atestam um montante devido pela recorrente, foi cedido a outra entidade, tendo a recorrente sido notificada disso e nada tendo dito.
9. Como bem refletiu a decisão recorrida do tribunal a quo, a recorrente não pode ainda que assim não se entendesse o que apenas por mera cautela de patrocínio se pondera,
10. Ao contrário do propugnado pela recorrente, os artigos descritos nas notas de débito são os mesmos que estão descriminados nos e-mails juntos aos autos e retratados nas suas alegações.
11. Tanto assim é que a recorrente não sustenta sequer porque é que, em sua opinião, são artigos diferentes. Aqui importa referir (no que à matéria do ponto 20 diz respeito) que a diferença no número de reparação não se reporta ao artigo propriamente dito, razão pela qual não está em causa a divergência do artigo.
12. Não é verdade que o tribunal a quo não tenha tido em devida análise os e-mails juntos ao processo. O tribunal a quo, relativamente a tais documentos, diz de forma expressa na motivação da sentença que “Os emails não foram impugnados” – vide sentença.
13. A recorrida não aponta qualquer divergência na designação nem identificação dos artigos, sendo de forma manifesta que se tratam dos mesmos atenta, desde logo, a respetiva denominação.
14. Especificamente no que ao facto provado sob o ponto 14 diz respeito, é de relevo notar a mudança de posição da recorrente. Isto é, se até ao momento sustentava que não tinha recebido qualquer informação sobre qualquer avaria de qualquer um dos equipamentos fornecidos – vide, a título de exemplo, a Resposta apresentada à Contestação – por outro lado vem agora reconhecer que, afinal, pelo menos 8 (oito) dos equipamentos tinha já informação sobre as respetivas avarias.
15. Salvaguardando o devido respeito por melhor opinião, foi a A. e recorrente que optou por vir aos presentes autos pedir o pagamento dos montantes inerentes às notas de débito da Recorrida.
16. Por conseguinte, era à recorrida que incumbida produzir prova sobre esses factos que alegou.
17. A recorrente veio peticionar o fornecimento dos artigos, sustentada em notas de débito da recorrida e, para cúmulo, produzindo prova no sentido de que o fornecimento dos artigos havia sido pago pela recorrida “tanto mais que do depoimento da testemunha F… resulta que a requerida pagou os equipamentos vendidos”
4. Admitido o recurso, foi o mesmo remetido para esta Relação, onde foi autuado em 21/mar./2019, procedendo-se a exame preliminar, seguindo os vistos legais.
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O objecto deste recurso passa pelo reexame da matéria de facto (a) a qualificação do contrato aqui em causa e se é a quantia peticionada devida (b).
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
“Da prova produzida nos autos, o Tribunal dá como provados os seguintes factos:
1. A requerente tem por objecto, entre outros, a representação e venda a retalho de equipamentos e acessórios informáticos bem como de equipamentos e acessórios fotográficos.
2. Por seu turno, a requerida dedica-se ao fornecimento de artigos e equipamentos para o lar designadamente, electrodomésticos, equipamentos e acessórios informáticos, equipamentos e acessórios fotográficos, o que o faz sob a marca comercial “C…”.
3. No âmbito da actividade comercial a que ambas se dedicam foi celebrado entre as partes, em 19/08/2013, o contrato geral de fornecimento, ao qual foi atribuído o número ….-….., conforme documento das fls. 8v a 17, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
4. Esse contrato veio a ser posteriormente alterado, através de aditamento, conforme documento das fls. 7 e 8, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
5. A requerente emitiu a nota de débito nº ……….., no montante de €7.828,53, emitida em 09/06/2017 e com data de vencimento de 09/07/2017, conforme documento da fl. 19v.
6. Essa nota de débito visou anular as notas de débito emitidas pela requerida com os nºs …/………. datada de 30/06/2014, …/………. datada de 21/07/2014, ….. datada de 07/04/2016 e …/………. datada de 30/07/2014.
7. A requerente enviou à requerida para pagamento a nota de débito referida em 5, através de email datado de 09/06/2017, conforme documento da fl. 40.
8. No âmbito do contrato celebrado entre as partes, obrigou-se a requerente a atribuir/conceder à requerida determinadas contrapartidas pelo fornecimento e a reparar, retomar e substituir produtos que a requerida lhe devolvesse.
9. Condições essas previstas nas cláusulas 2.2.12 e 3.1.10 do referido contrato, no que à reparação, devolução e substituição dos artigos fornecidos diz respeito.
10. E no anexo I do mesmo contrato, mais concretamente ponto 2.4.
11. Relativamente à nota de débito nº …/………., a requerente reconhece ter havido erro da sua parte, não sendo o seu valor (1.359,79 euros) devido pela requerida.
12. A requerida pagou à requerente o preço dos equipamentos adquiridos.
13. Relativamente à nota de débito nº …/………. a requerida aceita/confessa dever o respectivo montante à requerente (339,94 euros).
14. Relativamente à nota de débito nº …/………., emitida pela requerida, a mesma reporta-se à reparação de artigos e que foram substituídos pela requerida ao cliente final, por conta da requerente, conforme documento da fl. 20v, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
15. Esta nota de débito emitida pela requerida foi cedida por esta em 2014 à D…, SA.
16. Esta cedência foi comunicada à requerente por carta registada com AR, no dia 28 de julho de 2014, conforme documento das fls. 60 e 61.
17. Relativamente à nota de débito nº ….., emitida pela requerida, a mesma é referente à devolução do artigo …, descrito na própria nota de débito, conforme documento da fl. 22, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
18. Esta nota de débito emitida pela requerida foi cedida por esta em 2016 à D…, SA.
19. Esta cedência foi comunicada à requerente por carta registada com AR, no dia 14 de outubro de 2016, conforme documento das fls. 64v a 66.
20. A requerida comunicou à requerente a existência de avarias em equipamento, solicitando os dados de quem faria a assistência técnica, conforme mails das fls. 73v a 76.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que:
1. Por via do aludido contrato de fornecimento em conta corrente, resultou a favor da requerente um saldo credor no montante global de € 7.828,53 (sete mil oitocentos e vinte e oito euros e cinquenta e três cêntimos), respeitante a acertos contabilísticos emergentes do fornecimento de artigos e equipamentos fotográficos e informáticos por parte da requerente à requerida.
2. A nota de débito referida em 5 dos factos provados respeita a valores devidos pelo fornecimento de mercadorias que não foram pagas pela requerida à requerente.
3. A requerida não comprovou por qualquer meio a avaria ou anormalidade dos aparelhos, não dando à requerente satisfação alguma que não fossem as notas de débito.
4. Permanecem, assim, por pagar, por referência ao documento n.º …/………., as seguintes mercadorias: 1. Uma unidade de “Action Cam Gopro Heroe 3 + Silver” da marca “Gopro”; 2. Uma unidade de “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 3. Uma unidade de “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 4. Uma “Câmera de Vídeo Gopro HD Heroe Whithe” da marca “Gopro”; 5. Uma “Câmera de Vídeo Gopro HD Heroe Whithe” da marca “Gopro”; 6. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 7. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro” 8. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro” 9. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro” 10. Uma “Camera de Vídeo Gopro HD Heroe White” da maraca “Gopro”; 11. Uma “Action Cam Gopro HD Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 12. Uma “Action Cam Gopro HD Heroe 3 + Silver” da marca “Gopro”; 13. Uma “Camera de Vídeo Gopro HD Heroe White” da maraca “Gopro”; 14. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 15. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 16. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 17. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 18. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”; 19. Uma “Action Cam Gopro Heroe 3 + Black” da marca “Gopro”;
5. Relativamente ao documento nº …/………., permanece por pagar a seguinte mercadoria: 1. Quatro Câmeras Heroe 3 + Black Edition – Adventure 6. Relativamente ao documento n.º …/…….., está o fornecimento de uma “Gopro Heroe Black”.
7. Relativamente ao documento n.º ….., o mesmo respeita ao fornecimento por parte da requerente à requerida da seguinte mercadoria: 1. Uma “pendrive” da marca Photofast de 64GB.
8. A requerida não efectuou o pagamento à requerente do preço acordado das mercadorias por si encomendadas e, por si recebidas, assistindo à requerente a emissão da nota de débito nº ………...
9. Relativamente ao referido em 17 dos factos provados, tal artigo foi efetivamente devolvido à requerente com a guia de devolução …-…… de 07/04/16.
10. A requerida devolveu à requerente os demais aparelhos avariados.
A demais matéria contida nos articulados não releva para a decisão da causa, consubstanciando matéria conclusiva, repetida ou considerações de direito, pelo que não foi aqui considerada.
MOTIVAÇÃO:
No apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração crítica e conjugada dos meios de prova juntos aos autos e produzidos em audiência final, atentas as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.
No que concerne aos factos dados como provados sob os nº 1 a 4 não foram os mesmos impugnados, pelo que se têm admitidos por acordo, nos termos do disposto no art. 574º nº2 do Código de Processo Civil.
Acresce que se trata de matéria essencialmente resultante de prova documental que não foi impugnada traduzida, no essencial, na actividade de cada uma das partes e no teor do contrato e aditamento em causa que se mostram juntos aos autos.
Quanto à demais matéria dada como provada, o Tribunal teve em conta o somatório de toda a prova oral produzida, na sua conjugação com a prova documental.
O Tribunal ateve aos depoimentos das testemunhas E…, F…, da requerente e G…, H… e I…, que se nos afiguraram objectivos, coerentes e convincentes.
Contudo, do somatório da prova testemunhal com a prova documental, resultou para o Tribunal uma prova confusa, pouco consistente, insuficiente e algo vaga.
Assim, convencemo-nos da emissão das notas de débito tal como juntas ao processo.
Quanto ao demais, afigura-se que ocorreu uma falta de diálogo entre as partes, houve documentação que não chegou ao conhecimento de quem estava encarregue da situação, houve falta de comunicação, falta de respostas e os documentos (essencialmente notas de débito) iam sendo emitidas pelas partes à medida que entendiam que as deveria emitir.
De qualquer das formas, entende o Tribunal que a prova no âmbito dos presentes autos foi parca e pouco palpável, sendo que as partes se apoiaram em notas de débito para justificar a resolução das situações.
À medida que a prova ia sendo produzida, lá se fez luz relativamente ao fim visado pela emissão da nota de débito peticionada nos autos (a nota com o nº ………..): visou anular ou descontar as notas de débito que por sua vez, haviam sido emitidas pela requerida.
Ou seja, emitiu-se nota de débito para anular outras notas de débito, o que a nosso ver, revela a dita falta de comunicação entre as partes e uma confusão contabilística.
As notas de débito …/………. e …/………. foram respectivamente retirada (a primeira) ou aceite (a segunda) pelas partes.
O Tribunal convenceu-se do envio das notas de débito, bem como do reporte de avarias, com base nos documentos que o comprovam: fls. 40, 73v a 76, atestados pelas respectivas testemunhas de cada uma das partes. Os emails não foram impugnados.
A cedência das notas de débito à D… foi dada como provada com base nos respectivos documentos (fls. 60 a 61v e 64v a 66), cedência essa confirmada pela testemunha I….
No que concerne aos factos não provados, a decisão do Tribunal alicerçou-se na falta ou insuficiência de prova sobre a sua realidade.
Na verdade, trata-se de matéria da qual as testemunhas não atestaram, dela não se convencendo o Tribunal.
O que equivale a dizer que ficou por apurar a versão da requerente, ou seja, que a nota de débito cujo pagamento vem peticionar se refere a equipamentos não pagos, tanto mais que do depoimento da testemunha F… resulta que a requerida pagou os equipamentos vendidos.
Por último, nenhuma testemunha atestou que algum equipamento tivesse sido efectivamente devolvido à requerente pela requerida.”
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2. Fundamentos do recurso
a) Reexame da matéria de facto
O Novo Código de Processo Civil (NCPC) estabelece no seu artigo 640.º, n.º 1 que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”. Acrescenta-se no seu n.º 2 que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Nesta conformidade e para se proceder ao reexame da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente: (i) indicar os factos impugnados; (ii) a prova de que se pretende fazer valer; (iii) identificar o vício do julgamento de facto, o qual se encontra expresso na motivação probatória. Nesta última vertente assume particular relevância afastar a prova ou o sentido conferido pelo tribunal recorrido, demonstrando que o julgamento dos factos foi errado, devendo o mesmo ser substituído por outros juízos, alicerçados pela prova indicada pelo recorrente.
Assim, tal reexame passa, em primeiro lugar, pela reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (recurso de apelação limitada). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia, possibilitando-se o seu conhecimento pela Relação, que formará a sua própria convicção sobre a factualidade impugnada (Acs. STJ de 04/mai./2010, Cons. Paulo Sá; 14/fev./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt). Porém, fica sempre em aberto, quando tal for admissível, a possibilidade do tribunal de recurso, designadamente por sua iniciativa e perante o mesmo, renovar ou produzir novos meios de prova (662.º, n.º 2, al. a) e b) NCPC), alargando estes para o reexame da factualidade impugnada (recurso de apelação ampliada). Mas em ambas as situações, sob pena de excesso de pronúncia e de nulidade do acórdão (666.º, 615.º, n.º 1, al. d) parte final), o tribunal de recurso continua a estar vinculado ao ónus de alegação das partes (5.º) e ao ónus de alegação recursiva (640.º) – de acordo com a primeira consideram-se como não escritos o excesso de factos que venham a ser fixados, face à segunda o tribunal superior não conhece de questões não suscitadas, salvo se for de conhecimento oficioso (Ac. STJ de 11/dez./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt).
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A recorrente começa por impugnar o item 20.º dos factos provados cuja redação é a seguinte:
“20. A requerida comunicou à requerente a existência de avarias em equipamento, solicitando os dados de quem faria a assistência técnica, conforme mails das fls. 73v a 76”.
Para o efeito, a mesma pretende que passa a constar o seguinte
“Dos 20 equipamentos referidos nas notas de débito enviadas à requerente, a requerida comunicou a existência de avaria em 8 equipamentos, referidos nos processos ………, ………, ………, ………, ………, ………, ………. e ………..”
Na sua impugnação, a recorrente invoca os e-mails enviados pela R. à A. em 15/abr. e 30/jun. ambos de 2014. Tais e-mails são precisamente aqueles para os quais o item 20 dos factos provados remete. Como se pode constatar, os processos em referência dizem respeito precisamente ao e-mail enviado em 15/abr./2014, quando no mail de 30/jun. surge a referência a outros processos, designadamente: ………, ………, ………, ………, ………, ……….. E estando apenas em causa esta impugnação no que concerne ao item 20.º, naturalmente que a sua descrição factual nunca podia restringir-se aos 8 processos indicados no seu recurso, porquanto deviam ser acrescentados mais 6 processos, independentemente se saber se a que dizem respeito. Porém, para melhor precisar a factualidade em causa, o item 20.º passará a ter a seguinte redação:
“A requerida comunicou à requerente a existência de avarias em equipamento, solicitando os dados de quem faria a assistência técnica, conforme e-mails das fls. 73v a 76, reportando-se o e-mail de 15/abr./2014 aos processos ………, ………, ………, ………, …….., ………, ………. e ………. e o e-mail de 30/jun./2014 aos processos, ………, ………, ………, ………, ………, ………”
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No que concerne ao item 14 que a recorrente pretende dar como não provado, consta o seguinte:
14. Relativamente à nota de débito nº …/………., emitida pela requerida, a mesma reporta-se à reparação de artigos e que foram substituídos pela requerida ao cliente final, por conta da requerente, conforme documento da fl. 20v, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
A recorrente parte essencialmente do depoimento da testemunhas G…, referenciando que a mesma nada soube dizer quanto às avarias (minuto 13:20 em 12/nov./2018), o mesmo sucedendo com o depoimento da testemunha H…, tanto mais que o mesmo não viu qualquer dos equipamentos em causa (9:20 em 12/nov./2018).
No entanto, o documento em causa, que é a tal nota de débito n.º …/………., muito embora seja da autoria da R., foi junto pela A. e aqui recorrente como documento n.º 3, aceitando o pleno teor do mesmo, pelo que esta Relação tem sérias dificuldades em perceber o sentido da presente impugnação factual.
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b) O contrato celebrado entre as partes
O Código Civil não estabelece qualquer noção legal de contrato de fornecimento, ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, como é o caso do Codice Civile italiano – neste e no seu artigo 1559.º menciona-se que “La somministrazione e' il contratto con il quale una parte si obbliga, verso corrispettivo di un prezzo, a eseguire, a favore dell'altra, prestazioni periodiche o continuative di cose”, que poderá traduzir-se como “... o contrato pelo qual uma parte se obriga, mediante pagamento de um preço, a executar a favor da outra, prestações periódicas ou continuadas de coisas”, estando a sua disciplina regulada daquele artigo 1559.º até ao artigo 1570.º.
No entanto e apesar dessa falta de previsão legal específica no nosso ordenamento jurídico, nada impede que tal contrato seja assumido com base no regime da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º do Código Civil. Neste normativo enquanto o seu n.º 1 estabelece que “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente os conteúdos dos contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir as cláusulas que lhes aprouver”, no seu n.º 2 acrescenta-se que “As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”. Daí que as partes possam estabelecer entre si um contrato de fornecimento de coisas, que pode até corresponder a um quadro contratual com diversas constelações, que apesar de ter natureza atípica encontra-se geralmente centrado no contrato de compra e venda com prestações sucessivas – de acordo com o 874.º do Código Civil “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”. Quando tal sucede, para além do acordado entre as partes e das regras gerais do direito, podemos aqui aplicar o regime jurídico próprio da compra e venda, de acordo com a regra de integração das lacunas da lei consagrada no artigo 10.º, n.º 1 do Código Civil.
Tratando-se de prestações que prolongam-se no tempo, daí serem designadas como duradouras (v.g. fornecimento de artigos), as mesmas tanto podem ser de execução continuada, como de execução periódica ou de trato sucessivo. As prestações de execução continuada prolongam-se ininterruptamente no tempo (v.g. fornecimento de água, gás, eletricidade, a cedência do locado e em geral as prestações de facto negativo), enquanto as prestações periódicas ou com trato sucessivo realizam-se mediante prestações singulares consecutivas (v.g. pagamento da renda ou aluguer, o pagamento dos fornecimentos luz, água, gás, pagamento dos abastecimentos de cerveja ou refrigerantes), podendo as mesmas ser reiteradas ou não, como sucede com a prestação de serviços (v. g. reparação de um edifício ou de um automóvel). Por contraponto, temos as prestações instantâneas (quae unico actu perficiuntur), as quais esgotam-se num só momento ou então num bastante diminuto período de tempo. Por sua vez, as prestações duradouras podem assumir essencialmente duas modalidades: i) contrato programado e escalonado, com objecto inicialmente determinado ou indeterminado; ii) como contrato mediante solicitação, como é característico nos contratos “just in time”. Desdobrando-se, no entanto, um contrato quadro de fornecimento de coisas em diversos “contratos parciais”, tendo cada um deles uma relativa autonomia económica e jurídica, haverá que tratar cada uma destas prestações individuais, como sendo um cumprimento parcial definitivo daquela programação contratual duradoura, ou seja, como um contrato autónomo, como habitualmente sucede com o designado contrato de compra e venda com prestações sucessivas.
Assim e como decorre da disciplina do contrato de compra e venda, mormente dos seus efeitos essenciais consagrado no artigo 879.º do Código Civil, para aqui transplantado para cada uma das prestações autónomas, temos a obrigação por parte de vendedor de entregar a coisa (alínea a)) e do comprador de pagar o preço (alínea c)). Porém, existe sempre uma presunção de culpa que incide sobre o devedor, tal como decorre do artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil – aqui preceitua-se que “Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua”.
Por sua vez, a noção legal do contrato de conta corrente encontra-se no artigo 344.º, do Código Comercial segundo o qual “Dá-se contrato de conta corrente toda as vezes que duas pessoas, tendo de entregar valores uma a outra, se obrigam a transformar os seus créditos em artigos de "deve" e "há-de haver", de sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação seja exigível”. Como se pode constatar esta modalidade contratual pressupõe que os dois contraentes tenham estipulado ou contratado lançar a débito e crédito os valores que mutuamente entregaram um ao outro, obrigando-se apenas a exigir o saldo final. Ora, distinto do mesmo é a existência de um extracto apelidado de conta-corrente, o qual apenas tem o significado de documentar a organização contabilística de uma empresa e nada mais.
Nesta conformidade e estando em causa distintos contratos parciais do programa contratual geral de fornecimento, haverá que alegar não apenas o contrato-quadro, mas também os contornos factuais desses precisos contratos de compra e venda parciais. Daí não ser sustentável que no âmbito de um contrato de fornecimento de coisa, quem pretende fazer valer-se do mesmo limite-se a apresentar um mero registo contabilístico, o qual corresponde a um extracto vulgarmente apelidado de conta-corrente, tratando-se eventualmente de um meio de prova, mas que não tem a virtualidade de configurar um contrato comercial de conta corrente.
Como se pode constatar e como resulta dos factos provados, mormente do item 3.º, a A. e a R. celebraram aquilo que designaram como “contrato geral de fornecimento”, conforme consta de documento de fls. 8v a 17. Trata-se de um contrato quadro de fornecimento de produtos, a solicitação da R. e subsequente entrega da A., mediante as condições aí estipuladas. Tal contrato não estabeleceu desde logo os produtos que iriam ser fornecidos nem o seu calendário de entrega, mas apenas os termos em que tal deveria ser processado. Para o efeito, teria a A. que precisar o fornecimento dos produtos em causa, cabendo à R. demonstrar que os tinha pago ou então que tais produtos apresentavam defeito, atento o ónus de prova e a presunção resultante, respectivamente do n.º 2 do artigos 342.º e do n.º 1 do artigo 799.º, ambos do Código Civil.
No caso em apreço a A. começou por invocar a existência de um contrato geral de fornecimento celebrado entre si e a R. (item 3.º), para depois sustentar tratar-se de um contrato de fornecimento em conta-corrente (item 4.º). Porém, não resulta dos factos provados que entre ambas as partes tenha sido outorgado qualquer contrato comercial de conta corrente.
No entanto, a A. alegou que no trato comercial existente entre si e a R, existe a favor da primeira “um saldo credor no montante global de € 7.828,53”, tal como resulta da nota de débito n.º ………... Para o efeito e com o nítido propósito de sustentar esse saldo expressa no item 6.º o seguinte: “Essa nota de débito corresponde a valores devidos pelo fornecimento de mercadorias descritas no documento n.º …/………., datado de 30/06/2014 (DOC. 3), no documento n.º …/………., datado de 21/07/2014 (DOC. 4), no documento n.º ….., datado de 07/04/2016 (DOC 5), e no documento n.º …/………., datado de 30/07/2014 (DOC. 6) as quais foram entregues à Ré ao abrigo do contrato de fornecimento junto como documento n.º 1 e não foram pagas à Autora, por alegado motivo de defeito ou avaria.” Mas como se pode constatar estes documentos não correspondem ao fornecimento pela A. de qualquer bem com um certo preço, mediante solicitação da R. – os tais contratos de compra e venda parciais –, mas antes despesas tidas por esta última com as reparações dos produtos fornecidos pela primeira. Daí que a R. tenha considerado tratarem-se de débitos da A., ou seja, créditos da primeira em relação à segunda, pelo que e s.m.o. não tem qualquer sustentabilidade o que esta última desde logo alegou na sua petição inicial. Assim e sem necessidade de mais considerações, o presente recurso não merece provimento, sendo de manter a sentença recorrida, ainda que por razões distintas.
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As custas deste recurso ficam a cargo da recorrente, por ser a parte vencida – cfr. 527.º, n.º 1 e 2 NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto por B… contra C…, S.A. e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, sem prejuízo da alteração dos factos provados no que concerne ao seu item 20.º

Custas deste recurso a cargo da A.

Notifique

Porto, 13 de junho de 2019
Joaquim Correia Gomes
Filipe Caroço
Judite Pires