Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
775/13.7GDGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE COACÇÃO
IMPUTAÇÕES GENÉRICAS
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RP20150930775/13.7GDGDM.P1
Data do Acordão: 09/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa devem considerar-se não escritas.
II - Coação é a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade, violando a sua liberdade de autodeterminação.
III - A consumação de tal crime basta-se com o simples início da execução da conduta coagida.
IV - Há tentativa punível quando o coagido adopta um comportamento que objectivamente está conforme à imposição do coactor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 775/13.7GDGDM.P1

Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
No processo comum [com intervenção do tribunal singular] n.º775/13.7GDGDM da Comarca do Porto, Instância Local de Gondomar, Secção Criminal, J1, por sentença proferida em 29/1/2015 e depositada na mesma data, foi decidido:
- condenar o arguido B… pelo cometimento, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º, n.ºs 1, a) e 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
- nos termos dos artigos 50º, n.ºs 1 e 5, 51º, n.º 1, a), 52º, n.ºs 1 e 2, 53º, n.º 1 e 54º do Código Penal, suspender a execução da pena de prisão por igual período, com regime de prova, e condicionada à obrigação de o arguido pagar a C…, no prazo de 1 ano a contar do trânsito em julgado da presente decisão, o valor fixado a título de indemnização civil e de frequentar um curso de prevenção da violência doméstica a indicar pela DGRS.
-julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por C… e, em consequência, condenar o demandado B… a pagar-lhe a quantia de € 4.000,00 a título de indemnização por danos morais, quantia que vencerá juros de mora legais a partir da presente decisão.
Inconformado com a decisão condenatória, o arguido interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
A- A matéria de facto que infra se descreve, correspondente ao ponto II- 1 a 18 (numeração nossa) e cujos teores por razões de economia processual aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais, mostram-se erradamente julgados pelo Tribunal “a quo”, que os considerou assentes e provados;
B- A matéria de facto produzida em audiência de julgamento, assente nos depoimentos que infra se descrevem impõe diversa apreciação da mesma, a qual não poderia, por manifesto erro de julgamento, ter sido dada como assente e provada;

No que concerne, aos factos provados sob os itens 1) a 14), o tribunal considerou, para além das declarações da assistente, o depoimento da testemunha D…, filho do casal.

O arguido optou por prestar declarações, apresentando uma versão dos factos diferente, que todavia não logrou convencer o tribunal.

No que respeita aos factos constantes dos itens 5, 6, 9, 10, 11 e 12, as mesmas apenas relatam meras discussões familiares.

Em momento algum às datas em questão estão associados actos de violência física ou verbal.

A Testemunha D…, filho do casal, única com suposto conhecimento directo dos factos, como aliás decorre da douta sentença de fls., depôs notoriamente ressentido e de más relações com o pai, acabando por revelar que nunca assistiu directamente porque estava sempre no quarto.

A título exemplificativo poderá atentar-se nas declarações por este proferidas aos minutos 32:00 “L: O senhor está com o seu pai? T: Eu… não. L: O senhor fala com o seu pai? T: Falo, mando-lhe emails. L: O senhor telefona ao seu pai? T: Não. … L: O senhor aceita as prendas do seu pai? T: Se eu não recebo mais nada, porquê é que não haverei de aceitar.”
Aos minutos 33:00 “L: Há aí uma revolta em si? T: Há, porque eu desde pequeno que sempre fui obrigado, neste caso, a fazer tarefas que acho que não eram para a minha idade, tudo bem que tinha aprender a fazer tarefas como varrer o chão, mas acho que há coisas que foram em excesso, por exemplo, era revoltante para uma criança de 14/15 anos estar a ver a jogarem bola, ou estarem a jogar playstation, e eu ter que varrer um pátio de cima a abaixo, ou ter de andar a pregos para espetar uma parede ou ter de acordar às 7 da manhã para limpar a casa dos meus avós e acho que são atitudes que eu não tinha de ter na altura, se calhar agora, pronto já tenho 18 anos, é diferente.”

Aos minutos 23:00 a testemunha referiu “Ad: O senhor D… disse que não tinha de intervir mas disse aqui também que acabava por assistir às discussões dos seus pais.
T: Acabava por assistir mas nunca directamente, estava sempre no meu quarto. …
Mais referiu aos minutos 36:00 “L: Olhe, o senhor, destes factos que o senhor reporta, mas não concretizou quando é que aconteceram, quando é que o seu pai deu um estalo à sua mãe, quando é que lhe deu um soco.
T: É assim, porque não ando aqui com um papel quando as coisas aconteceram. As coisas iam simplesmente acontecendo e eu nunca me imaginei nesta posição. Se estou nesta posição, a culpa é de alguém. …
L: Algum dia em que tenha sucedido alguma agressão o senhor possa dizer onde aconteceu, julgo que foi na altura tal ou no ano tal.
T: Posso dizer a agressão de 11 de agosto em que lhe deu um pontapé e eu tive que intervir na situação, tive que os afastar, a minha posição neste meio não era tomar partido nem para um lado nem para outro. Era de estar no meio e separá-los porque eu não tenho nada a ver com os assuntos dos meus pais.
L: Olhe como é que foi isso?
T: Estava cá em baixo, a minha mãe estava lá em cima com a minha irmã a arrumar as coisas porque nós não fomos à praia como já estava proposto, foi tudo cancelado à última da hora e então o meu pai chegou lá em cima e pelo que a minha mãe e a minha irmã confirmam, ele deu-lhe um pontapé e depois saiu de casa para dizer…
L: A sua mãe e a sua irmã, então o senhor não viu?
T: Não, ouvi só e cheguei lá eles estavam os dois brutos e antes que se pegassem tive que os separar.
L: Mas eu pedia-lhe uma situação que o senhor tivesse visto?
T: Ainda há bocado referi, foi quando a minha mãe, ele estava por cima da minha mãe no quarto e eu tive de ir lá em gancho tirá-lo fora de lá que ele estava a ameaça-la, e eu tive de o tirar fora e o afastar, e empurra-lo fora do quarto, quando não sei dizer.
L: Mas sabe mais ou menos em que ano isso sucedeu?
T: Foi durante o tempo do café, antes desse ponto e antes de a minha avó falecer não havia problema nenhum. Foi a partir do momento em que a minha avó faleceu e que nós tivemos o café que os problemas começaram a surgir.
L: O senhor também disse que durante o tempo em que tiveram o café que as coisas corriam normalmente, que havia dinheiro para férias.
T: Sim, havia dinheiro para férias mas havia sempre problemas porque faltava sempre um café, que alguém tinha roubado, bastava faltar alguma coisa que havia logo problemas que havia logo discussões e a minha mãe tinha saber onde estavam as coisas.”

Da análise do depoimento em questão apenas se pode concluir que a testemunha diz ter assistido a uma única situação concreta, que não consta sequer da acusação e curiosamente nunca antes relatada pela mesma, nem tão pouco pela assistente.

Acresce que, no que concerne a situação relatada do dia 31 de Outubro de 2013, as declarações da assistente e o depoimento da referida testemunha mostram-se contraditórios, mas essencialmente não suportam sequer uma tentativa de agressão do arguido à assistente conforme foi dado como provado pela Meritíssima Juiz “a quo” no item 11.

A testemunha D… disse aos minutos 15:06 “P: E quando disse que ia-se virar à mãe, o que é lhe ia fazer e que não fez que o senhor impediu?
T: Não sei o que ele ia fazer porque não chegou a fazer. … A primeira vez que o encostei à parede foi em modo de defesa se não ia levar, a segunda vez ele puxou mesmo o braço atrás e não chegou a acertar porque eu voltei a encosta-lo à parede e a minha mãe entretanto foi chamar o meu vizinho e polícia para controlar a situação. E depois ficou muito admirado, muito espantado com a situação, estava estupefacto com a situação mas na verdade ele sabia perfeitamente a relação que eu tinha com ele, (negrito e sublinhado nossos) … “

A assistente, aos minutos 23:30 disse “M: Esta situação de 31 de Outubro o que é que foi?
A: É assim, ele estava constantemente a fazer reuniões desde 11 de Agosto, portanto ele não falava directamente comigo, ele levantava o filho, chamava o filho à cozinha para que fosse chamar-me a mim e ele transmitia ao filho o que me queria dizer a mim, mandava o filho transmitir, mas o filho não chegava a transmitir porque eu respondia. E depois como ele não me entregava dinheiro nem para sustentar os miúdos nem para nada disso, portanto em 31 de Outubro, quando eu chamei a polícia, (negrito e sublinhado nossos) ele punha sempre o prato dele na mesa, ele chegava, eu servia os miúdos e ele pegava no resto e metia para prato dele. Nesse dia eu não coloquei a mesa para ele, coloquei a mesa para mim e para os miúdos e ele chegou e perguntou onde estava o prato dele para comer, o meu filho disse que ele não tinha direito a comer, porque ele também não contribuía. …”

Mais referiu aos 57:00 minutos “Ad: Muito bem, agora só mais outra questão. A situação de Outubro de 2013 que já pormenorizou aqui ao Tribunal e que no fundo foi essa situação que deu origem a este processo, porque foi na consequência dessa situação que foi à polícia e que deu origem a este processo, eu pergunto e a resposta também é muito simples. Essa situação que deu origem a uma discussão em que o seu filho se colocou a senhora e o seu ainda marido, houve agressões físicas?
A: Não houve agressões físicas. Está lá fora o meu vizinho que nos ajudou, pode-lhe perguntar a ele se viu alguém machucado, pisado, pode-lhe perguntar a ele. (negrito e sublinhado nossos)
Ad: O seu marido nesse dia chegou-lhe a bater-lhe?
A: Chegou a dar-me um murro (negrito e sublinhado nossos) e o D… meteu-se a meio e encostou-o à parede.”

As declarações da assistente não merecem credibilidade, por ostensivamente contraditórias, ora não houve quaisquer agressões, ora chegou a levar um murro, (o que nesta parte é totalmente contraditório com o depoimento da testemunha D…).

Igualmente nunca poderia ter sido dado como provado que o D… empurrou o pai para o afastar da mãe, nem tão pouco que a C… fugiu para a sala e telefonou para a polícia, uma vez que tal não resulta das declarações da assistente nem do depoimento da testemunha.

Quanto aos factos do dia 03-11-2013, a assistente C… referiu aos minutos 13:00 “A: Sim, sim. Mais que uma vez por semana. E depois de se chamar a polícia lá em casa, quando nós fomos forçados a sair de casa ele estava constantemente a acordar o meu filho de madrugada para termos reuniões, que ele queria reuniões. A última reunião que se realizou foi a um domingo às 5 da manhã (negrito e sublinhado nossos) em que ele exigia que eu retirasse a queixa doméstica senão ia levar o D… para …, que o D… jamais entraria na faculdade, jamais seria alguém porque ele tinha que limpar a honra dele. (negrito e sublinhado nossos) Nesse dia fiquei bastante mal. Exigia que eu retirasse a queixa doméstica e eu sabia que não podia tirar porque a GNR disse que não havia volta a dar.
M: O seu filho ia para … como?
A: Não sei, isso só o pai é que sabe. O meu filho acho que ia passar o natal a …, que ele ia destruir a vida do D… porque ele tinha que limpar a honra dele, ele falou isto ao meu filho.

Já a testemunha D… disse aos minutos 19:00 “T: Sim, sim, vivíamos todos na mesma casa, entretanto ele soube da notificação que tínhamos feito quando a polícia lá foi e isso foi numa quinta feira à noite que aconteceu esta situação toda, sexta feira foi um dia normal, depois sábado de madrugada às 8 da manhã, acordou-nos todos a fazer chantagem para tirarmos a queixa na polícia que ele também ia pôr queixas contra a minha mãe e que ia fazer chantagem para tirarmos a queixa de violência doméstica. (negrito e sublinhado nossos) Não aconteceu, no dia a seguir, acordou-nos às 3 da manhã a chorar perdidamente, a dizer que já tinha ido consultar as entidades e que ia ter que apresentar queixa contra mim de me ter virado a ele e que depois ia-me barrar a entrada na faculdade, que não ia poder entrar para o exército que era um objectivo que eu na altura tinha, que não ia poder entrar para o exército porque ia ficar com cadastro e que ia estar a barrar-me uma fortuna, foi basicamente isto, (negrito e sublinhado nossos) e que até sexta-feira saía de casa, ia só ao sótão buscar uma quantia de dinheiro que lá existia em dólares e em euros, e para, para além do sótão, fazer as malas até sexta-feira, que sexta-feira ele saía de casa sem problema e punha a casa em meu nome e da minha irmã. Que não ia levar nada de casa, que deixava-nos tudo e ficava tudo resolvido por bem, e assim não aconteceu, nós tivemos que sair de casa porque ele trancava o sótão à chave, dormia fechado em casa, nós por seguinte também dormíamos de porta fechado com medo que ele fizesse alguma coisa enquanto nós estivéssemos a dormir e era assim um ambiente um bocado louco que a gente vivia lá em casa, e então nós tivemos que abandonar a casa porque não era um bom ambiente para eu e a minha irmã ficarmos.

Uma vez mais, o depoimento da testemunha não corrobora as declarações da assistente, nem tão pouco na data e hora da suposta “reunião”, bem como que a assistente C… se limitou a chorar e não lhe respondeu, pelo que os factos constantes do item 12 não poderiam ser dados como provados.

No que respeita ao dia 08-11-2013, a assistente relatou aos minutos 25:09 “M: Então no dia 8, aconteceu alguma coisa nesse dia, para que decidisse nesse dia?
A: Não, nada.
M; Então?
A: É assim, o que aconteceu é que o senhor B… prometeu ao filho que saía de casa até ao fim de semana. Como ele não saiu, saímos nós.
M: Até hoje?
A: Até hoje.”

Sendo que, a este propósito a testemunha D… disse aos minutos 44:00 “L: Sobre esse facto que o senhor reporta que perdeu o quarto, que perdeu a sua cama, a sua secretária, tudo isso, o senhor vinha acompanhando a situação? O senhor sabia que a sua mãe já tinha advogado nessa altura e que o seu pai também?
T: Certo.
L: E que o seu pai tinha dito que ia sair de casa?
T: Não, disse que ia sair de casa até sexta-feira. Até sexta-feira nós não vimos andamento nenhum neste caso dele, para sair de uma casa não se sai de um dia para o outro. Não se tira as coisas todas de um dia para o outro, ainda para mais, ele é uma pessoa organizada, gosta de pôr as coisas, a roupa toda dobradinha e tudo direitinho para sair de casa, ele até sexta-feira não tinha andamento neste caso nenhum para isso acontecer, portanto saímos nós de casa porque como eu já frisei, o ambiente que lá ocorria não era um ambiente saudável para mim e para a minha irmã, porque era um ambiente de medo, nunca sabíamos o que é que ia acontecer.
L: Oh senhor D…, qual é a diferença entre esperar mais dois ou três dias para aquilo que os senhores reportam uma série de anos de tortura.
T: Qual é a diferença? É a diferença de eu estar à espera desde Outubro de 2013 para ir para casa e ainda não estou em minha casa, estou à espera que o meu pai resolva o acordo, porque diz que há dinheiro que não há, é casas que há e que não há.”
Ora, em momento algum resulta das declarações prestadas e aqui transcritas que “já esgotada com toda esta situação e não aguentando mais humilhações, C… abandonou a casa de morada de família”.

Sendo que, apenas resultou provado, que a assistente saiu de casa, com os filhos, no dia 8 de Novembro, em virtude do arguido não o ter feito.

Os factos dados como provados no item 4, igualmente merecem a dissidência do aqui Recorrente porquanto resultou apenas provado que a assistente nunca recebeu assistência médica ou hospitalar.

A este propósito, aos minutos 15:00, a assistente declarou “M: Nunca foi ao Hospital?
A: Não, nunca fui ao hospital. …”
M: Porquê?
A: Para já, achei que quando chegasse ao Hospital tinha que o denunciar, certo? Se eu nunca tinha chamado a polícia a casa por vergonha, também não era agora, achei que não, e quando eu chamei foi por desespero, um desespero muito grande, achei que tudo tinha chegado ao limite máximo.”

A testemunha D… relatou aos minutos 07:00 “P: Ela precisou de ir ao hospital, ao centro de saúde, alguma vez fez isso?
T: Não, isso nunca foi necessário, nunca chegou a esse ponto, porque lá está, eu metia-me sempre na situação, mas ir ao hospital nunca foi necessário.”(negrito e sublinhado nossos).

Quanto aos itens 7 e 8, os mesmos não têm qualquer sustento probatório.

Ainda que a Meritíssima Juiz “a quo” considerasse o uso pelo arguido do termo reunião, daí não pode decorrer o uso de linguagem de gestão empresarial.

Sendo que, para concluir tal teria que resultar provado o uso de outras expressões passiveis de serem enquadradas na dita gestão empresarial, o que não sucedeu.

Igualmente não se alcança qualquer humilhação nas alegadas considerações, embora não provadas, da assistente, como “não proactiva, nem empreendedora”.

Acresce que não alcança o Recorrente, as concretas provas em que se baseou a Meritíssima Juiz “a quo” quando considerou provado que “O arguido entendia que era o único a ter o poder de decisão em casa e que todos teriam que acatar as suas pretensões.”

Voltando aos factos dados como provados para efeitos de Pedido de Indemnização Cível, constantes dos itens 15 a 18, os mesmos não têm qualquer sustento provatório.

Reitera-se que apenas resultou provado o sofrimento e angústia da Assistente por não estar a residir na casa de morada de família, facto esse não imputável ao Recorrente.

A testemunha E… disse aos minutos 10:20 “Ad: Oh senhor E…, e diga-me uma coisa, a sua filha nada preocupada com esta situação?
T: Anda preocupada, tem que andar preocupada, sem condições depois de ter uma casa de luxo à capitalista, eu como pai eu dizia-lhe que isto dá cabo de mim. “Ainda falta muito dinheiro para pagar a casa?” eu assim para minha filha, e ela dizia que não, que faltavam para aí uns 10 mil euros. E ele sempre… eu perdi-me.

No mesmo sentido o depoimento da testemunha F… aos 17:00 minutos “Ad: Oh doutora F,…, estes factos todos que foi falando aqui que foi percepcionando, acha que isto e nomeadamente desde que a Dona C… deixaram de viver em casa, na casa de morada de família, acha que a Dona C…, que isto tem causado nervosismo, tensão para a Dona C…, ou que ela é uma pessoa tranquila, bem disposta, alegre?
T: Ela não é tranquila, está sempre com medo, quer dizer, está com ânsia de chegar a casa e dar bem estar aos filhos, para que a miúda possa ir para o quarto dela e ter espaço dela, que ela está a dormir com a C… e o miúdo deixa-se estar no sofá do pai dela e ela quer que vá para o quarto dele onde ele tinha as coisas dele, ou então que consigam vender a casa ou que seja e que cada qual tenha uma casa para eles, agora que ela é uma pessoa que ande feliz e contente não, tanto que eu às vezes pergunto para ela sair e ela diz que não porque então quero, porque estou assim, imensas vezes, às vezes parece que é transmissão de pensamentos por telefone, ela está muito em baixo.
Ad: Acha que ela anda triste, desanimada e que a preocupação dela é com ela ou é com os filhos?
T: É essencialmente com os filhos, tanto que ela quando fala, fala sempre nos filhos, ela não fala “ai eu quero o meu quarto”, ela fala “eu quero a minha filha no quarto dela com as coisas dela”, portanto que ela dorme com ela, e o miúdo tem também o quarto dele e o espaço dele, é assim, eles no fundo estão na casa de outra pessoa, não é? Embora seja o pai da C…, mas eles invadiram, ente aspas, uma casa que vivia lá uma pessoas e agora vivem não sei quantas, portanto temos uma casa que esteve algum tempo desocupada, quem está lá a viver começa a retocar o espaço todo, a meter roupas lá, nós depois estamos lá a invadir, e não é a mesma coisa de estarmos em nossa casa claro.

Sendo que, o estado triste e desanimado da assistente só poderá resultar da depressão de que padece pelo menos desde o falecimento da sua progenitora.(negrito e sublinhado nossos).

Com o qual o Recorrente manifestou sempre preocupação, também deturpada pela testemunha F…, que aos minutos 15: 22 lhe tentou atribuir outro sentido “eu posso-lhe dizer que no dia do funeral, do velório da mãe dela, ouvi constantemente o marido da C…, o sr. B… “olha os antidepressivos, toma os antidepressivos”, aquilo parecia uma injecção. Antidepressivos, antidepressivos, e ela sempre a dizer que não.” (negrito e sublinhado nossos)
C- A descrição da alegada conduta do Recorrente mostra-se indefinida, vaga e genérica, em relação ao tempo, ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e injúria e respectiva motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas e pontapés em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidos, ao local do corpo da ofendida atingido e suas consequências, em termos de lesões corporais e desconhece-se também a motivação da conduta em causa.
Sem prejuízo, nomeadamente no que concerne às agressões descritas no item 3, nunca poderia resultar provado, por não corroborado pelas declarações da assistente nem pelos depoimentos das testemunhas, ainda que falsamente, que o arguido a empurrava para cima da cama.
Igualmente não poderia a Meritíssima Juiz “ a quo” dar como provado que o arguido lhe chegou a apertar o pescoço, na medida em que apesar de referido pela assistente, nenhuma testemunha atestou nesse sentido, nem mesmo o filho, D….
Nem tão pouco que lhe desferia bofetadas e pontapés em qualquer parte do corpo, referindo a mesma, apenas “A: Deu-me pontapés, murros.” (12:00 minutos), sem concretizar.
D- Os vários actos parciais alegadamente cometidos pelo arguido, aqui Recorrente, que justificariam o comportamento reiterado e contínuo deviam estar concretizados e não descritos, como acontece no caso em análise, de forma genérica e conclusiva.
E- Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, consagrado no art. 32º da Constituição, traduzindo aquela uma mera imputação genérica que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal.
F- Neste sentido, se pronunciaram os Acórdãos de STJ de 06-05-2004, Proc. 908/04-5ª, de 21-02-2007, proc. 4341/06-3ª, de 02-04-08, proc. 4197/07-3ª e de 15-11-2007, proc.3236/07-5ª, in www.dgsi.pt.;
G- A Sentença “ a quo” viola o disposto no - art. 152º n.ºs 1, a) e 2 do Código Penal, art. 50º, n.º 1, a) e art. 52º n.º 2, todos do Código Código Penal e o art. 410º nº 2, al. a) e c), do Código do Processo Penal;
H- A sentença de fls. mostra-se violadora das regras da experiência comum.
Não é credível a versão apresentada pela assistente.
Nomeadamente pelo facto de nenhuma marca de agressão ter sido vista por familiares ou amigos.
Nunca o vizinho de uma habitação geminada, a testemunha G…, se ter apercebido sequer de qualquer outra discussão, senão a ocorrida em 31 de Outubro de 2013.
Nenhuma das testemunhas ter corroborado o depoimento da assistente na parte em que refere que desabafava com a cunhada e uma amiga “A: Também relatava a uma amiga pessoal que tenho. A senhora disse no seu depoimento que reportava a familiares próximos… A: Sim, à minha cunhada. L: E amigos? A: A uma amiga minha. (aos 52:00 minutos).
A testemunha H…, cunhada da assistente referiu aos minutos 04:20 “Ad: E alguma vez lhe foram relatadas situações de agressões? T: Não, só depois disto ter acontecido é que realmente a C… começou-me a contar coisa que aconteciam, porque até aí ela tentava sempre esconder.”
A testemunha F…, disse aos minutos 30:24 “L: Ou se a dona C… ou os filhos se queixaram à senhora de alguma dessas situações? T: A C… chegou-se a queixar mas há bocado para eu não reportar coisas que eu não tivesse visto. Portanto, a C… chegou-me a reportar e chegou-me a dizer já está numa fase final que eu até fiquei zangada com ela que eu disse “Nós somos amigas há tantos, porquê que nunca me contaste?” Mas está lá, não sou pessoa de puxar por ela, e eu lembro-me de ela falar do caso de meter a cabeça no caixote do lixo, uma coisa qualquer. L: Isso foi uma coisa que lhe disse agora recentemente? T: Recentemente, não foi assim tão recentemente. L: Quando iniciou este processo? T: Mais ou menos.”
Mas essencialmente o facto da assistente não desejar o divorcio, conforme pretendia o Arguido e ter mesmo confessado ter chorado muito quando ele a abordou para esse efeito.(negrito e sublinhado nossos).
Aos minutos 36:00 declarou “L: E se o senhor B… manifestou, como a senhora disse, intenção de se divorciar… A: Ele disse que ia esperar o final do ano lectivo e a comunhão da menina. L: Estamos a falar em 2000 e? A: 2012. L. 2012 ou 2013? A: Estou confusa. Estamos em 2015. M: Não, não estamos em 2015, peço desculpa. A: Não, eu estava na confeitaria ainda, Fevereiro de 2012. Esse foi o ano que deixamos a confeitaria. L: Independentemente disso, a senhora que nessa altura era muito menos feliz que os últimos 10 ou 15 anos, como é que recebeu essa notícia?
A: Fiquei muito mal, fartei-me de chorar, perguntei o que é que seria dos nosso filhos, ele disse que eu me ia safar de qualquer maneira, tinha família que me apoiassem que não ia deixar que nada, que para os nosso filhos não ia faltar nada, ele é que se ia embora, ia só deixa acabar o ano lectivo e que a menina fosse à 1ª comunhão e que ele próprio ia-se embora. Mas, se as coisas se compusessem, que eu nunca cheguei a perguntar o que é significa o compusessem, que ele provavelmente nem iria. L: Dona C…, a senhora fartou-se de chorar porquê? A: Porque eu não chorava por mim, L: Não era um alívio essa notícia? A: Para mim era. Mas pelos meus filhos. L: Olhe a senhora acaba-me de dizer que o senhor B… disse-lhe que nada faltaria aos filhos. A: Não. Que nada ia faltar aos meus filhos, que eu tinha família, que nada deixava de faltar aos meus filhos. L: A senhora explicou e nós ouvimos com atenção o seu depoimento, que o senhor B…, que era uma pessoa que queria mais. A: Mais, mais, mais. L: Para quê? A: Essa pergunta terá que perguntar a ele. L: Não seria para que nada faltasse aos filhos. A: Acha que o dinheiro monetário paga tudo? L: Como é que ele era como pai? A Como pai, com o filho ele era extremamente exigente, espicardava-o, fazia pouco, o filho está lá fora, pode relatar tudo. L: Dona C…, a exigência é algo de negativo? A: Não, acho algo muito positivo numa educação, mas depende do tipo de exigência. L: Olhe, o que eu gostava que o caracterizasse como pai, a senhora fez questão de reportar aqui algumas situações e eu acho que era importante que a senhora reportasse a este tribunal qual é a relação, ou qual foi a relação que o seu ainda marido teve com os filhos até à separação e qual é a relação que tem hoje? A: É assim, sempre foi um bom pai.”
Não faz sentido que a assistente chorasse, outrossim sentisse alívio, caso fosse vitima das alegadas agressões e injurias reiteradas, nem pelos filhos, uma vez que esta declarou que estes assistiram a todas as discussões e agressões.
Que mãe desejaria sujeitar os filhos a uma vivência como a alegadamente ocorrida e descrita.
Todas as situações descritas, com datas concretas, tenham ocorrido em data posterior à abordagem do arguido à assistente, para efeitos de divórcio.
O aqui Recorrente efectivamente pretendia o divórcio, como inclusive manifestou à testemunha arrolada pela assistente, F…, aos minutos 26:20 L: A senhora referenciou que o senhor B… lhe chegou a falar que pretendia o divórcio, a senhora disse que inclusive que ele estava farto, farto de quê? T:É o que eu digo, quando o senhor B… me falou nisso, eu não sabia que ia a Tribunal agora, por que se não eu tinha fixado essas coisas todas. Olhe, nós estávamos na garagem, á beira da janela, e ele disse-me que estava farto, e estávamos a falar, “eu estou farto disto”, ás vezes há coisa que é melhor uma pessoa não saber. L: Mostrou-se cansado do relacionamento que tinha? T: Desculpe. L: Estava cansado do relacionamento que tinha? T: Se calhar do relacionamento, da vida, de toda aquela dinâmica, isso aí não lhe posso dizer, é assim, eu também muitas vezes digo coisas à Dona C…, é assim, quando as pessoas querem falar comigo elas falam e conversam e eu na medida ou calo-me porque às vezes as pessoas querem falar mas não querem que ninguém dê opinião, e lá está ali naquela altura eu senti que havia uma necessidade de falar mas não era de dar opiniões. L: Foi um desabafo. T: Exactamente. L: Alguma vez a Dona C… lhe transmitiu o mesmo? T: A não ser nesta faz, pronto, destas coisas todas que sucederam, que eu cheguei-lhe a dizer várias vezes… L: Nesta fase? T: Já depois de se iniciar este processo, que eu cheguei-lhe a dizer, se tu voltas atrás eu nunca te vou dizer nada, tu é que sabes e ela não, eu nunca vou voltar atrás, eu vou querer o divórcio. L: Até aí… T: Até aí nada. Lembro-me uma vez de ela me telefonar a dizer que o B… tinha ido a uma reunião da escola dizer que ele queria o divórcio. L: Era uma preocupação da Dona C…? T: Era. O não querer o divórcio. L: Ela não queria o divórcio? T: Não sei, pelo menos por causa das pessoas, da vida, mas chegou a certa altura que não havia mais solução, mas acho que há alturas que procuramos todas mais soluções para que consigamos aquilo que nós pensamos, o nosso sonho até ao fim, mas chega certa altura que se calhar não se consegue.”
A comprovada pretensão do aqui Recorrente aos olhos do homem médio e das regras da experiência comum, é bastante para concluir que este não exercia qualquer domínio sobre a assistente, nomeadamente de forma a privá-la da sua dignidade e liberdade no seio conjugal.
Aliás, é de senso comum que as vítimas de violência domestica, vêm-se privadas da possibilidade de se socorrerem do divórcio, por medo das represálias que poderão ser vítima com a tentativa de libertação do opressor.
Igualmente não podemos considerar conduta típica de um agressor, desabafos perante terceiros, conforme sucedeu com o arguido que demonstrou o seu desagrado com o relacionamento conjugal e intensão de se divorciar.
Tal resulta nomeadamente do depoimento da testemunha arrolada pela assistente F… aos minutos 15:30 “Ad: O que eu pergunto é se algum deles desabafou consigo no sentido de que esta relação só fica bem se acabar num divórcio?
T: É assim, o sr. B… chegou a falar-me disso, enquanto eu achava a C… jamais teria de coragem de falar, o B… falou nisso efetivamente. Eu tinha ido lá a casa um dia à noite e estávamos na cave, normalmente ficávamos pela cave, não era pela sala principal. Ele estava na cave a fazer qualquer coisa e estávamos a conversar e ele disse que estava farto daquilo, pronto, resumidamente que eu não posso estar a dizer tudo e mais alguma coisa que estivemos a conversar, ele disse que estava farto disto e não sei quê, eu vou-me divorciar, eu quero divorciar-me, estou farto disto, não sei quê que mais, e pronto, e foi nesse seguimento, se não me falha a memória, que mais tarde quando eu fui, quando eu estava a ver que o casamento… pronto, quando eles depois foram de férias que eu disse “agora vocês vão ter muito tempo para namorar” e não sei quê, pronto, porque eu achava que a coisa andava um bocadinho e isso aí a mãe da C… já tinha falecido. Ad: Mas quando o senhor B… lhe disse isso não lhe explicou o motivo? T: Disse que estava cansado, cansado do casamento, da vida, da vida familiar digamos assim, mas não entrou em muitos detalhes e eu sinceramente também achei que não queria saber.” Do supra exposto, a que acresce o facto do filho do casal ter manifestado em todo o seu depoimento uma postura protectora da mãe, a assistente, sobressaindo a sua condição física, capaz de imobilizar o pai, facilmente se alcança que os factos reportados nunca poderiam ter ocorrido e muito menos seriam passiveis de se enquadrar no crime de violência domestica.
I- «A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais” e da actual descrição do tipo do artigo 152°, resultante da Lei 59/2007, de 4 de Setembro resulta que a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tractos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
J- A necessidade prática desta neo-criminalização, resultou, por um lado, do facto de muitos destes comportamentos não configurarem em si, crime de ofensas corporais simples e, por outro, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos, consagrando-se a ideia de que a família não mais podia ser vista como um feudo sagrado, onde o direito penal se tinha de abster de intervir.
K- A razão de ser deste tipo legal, no entanto não é a protecção da comunidade familiar ou conjugal, antes a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
L- Com esta incriminação visa-se assegurar uma “tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação - geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores - constituam uma situação de maus tractos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível”.
M- Pode-se dizer que os bens jurídicos protegidos pela incriminação deste tipo, são, em geral, os da dignidade humana, particularmente a saúde, compreendendo-se aqui o bem estar físico, psíquico e mental, podendo a sua violação ocorrer por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade do cônjuge e seja susceptível de pôr em causa qualquer dos bens acima mencionados.
N- O relevante é que os factos praticados, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, sejam susceptíveis de colocar a vítima na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal.
A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, o que, inequivocamente não resulta dos autos, por maior que se evidencia o desiderato do Tribunal “ a quo” ; Até porque, resultou provada a existência de discussões entre o casal, inexistindo submissão, também comprovada pela falta de controlo dos gastos da assistente.

Pelo contrário, a assistente confessa responder ao Recorrente, quando não concordava com algo, facto corroborado pelo filho do casal, a testemunha D….

A assistente disse aos 13:00 minutos “M: A senhora respondia, portanto havia sempre uma discussão?
A: Sempre.”
Bem como mencionou aos minutos 18:00 minutos “M: Nunca o seu marido controlou os seus gastos?
A: Não.”
A testemunha D… confirmou aos minutos 28:30 “L: As discussões eram mútuas? O seu pai e a sua mãe…
T: O meu pai provoca a discussão e claro que a minha mãe não ficava atrás, não vai estar a ouvir sem estar a responder.”

Reitera-se, a assistente não demonstrou ou provou uma postura submissa, sempre respondeu, o arguido nunca controlou os gastos da mesma, a qual sempre auferiu rendimentos provenientes do seu trabalho ou fundo de desemprego, que geriu como bem entendeu, factos demonstrativos da sua liberdade e dignidade.

Sendo que, em relação à situação de desemprego, não podemos ignorar que a assistente, alega que os problemas começaram em 2006, altura em que passou a auferir 1042,00€ a título de subsídio.

Valor esse, que se mostra bastante razoável, sendo por isso pouco plausível que a redução de rendimento afectasse de tal modo o relacionamento do casal.

Acresce que, a assistente apesar de desempregada e ter recebido uma indemnização de 25.000,00, como a mesma confessou, continuou a auferir rendimentos provenientes de outras empresas do grupo.

Facto que resulta do depoimento do Recorrente aos minutos 01:50 “Em 2006 a mãe dos mues filhos, isto em meados de Agosto, Setembro, fazia a contabilidade e tinha o estatuto numa empresa, de um grupo económico em que ela foi despedida. Independentemente de ter sido despedida e de ter recebido uma indemnização choruda… ahhh… porque recebeu uma indemnização choruda das… de uma financeira.. de uma pessoa que trabalha com contabilidades.. prontos… com uma identidade patronal fazem-se se calhar situações menos obscuras com a justiça. Independentemente de ter vindo para casa continuou a trabalhar com outras empresas do grupo, se era em part time, se recebia ou não recebia pouco interessa, legalmente estava em casa.”

Depoimento que apesar de não valorado, na integra, pela Meritíssima Juiz “a quo” merece toda a credibilidade, pela coerência do discurso, espontaneidade de resposta e franqueza.

Sendo que, contrariamente à consideração tecida pela Meritíssima Juiz “a quo” o mesmo não prestou declarações de forma fria, nem revelou uma permanente preocupação com questões monetárias.

A tónica sobre estas questões esteve sempre presente nas declarações da assistente e do filho, de tal forma que a matéria dada como provada no âmbito do Pedido de Indemnização Cível, que abordaremos adiante, merece igualmente reparo se atentarmos na prova produzida, toda no sentido do sofrimento da assistente advir do facto de não estar a residir na casa de morada de família.

Aliás casa essa de onde saiu, não por medo mas por simplesmente o Recorrente não o ter feito.

E mesmo sabendo que tal iria suceder em virtude de existir negociações entre mandatários já constituídos, certamente por aconselhamento.

A assistente não saiu apenas com alguns objectos pessoais, conforme referiu numa postura vitimizadora, não coincidente com diversas atitudes e postura demonstrada inclusive em sede de audiência de discussão e julgamento.

A este propósito, o depoimento do Assistente aos minutos 35:00 “Arguido: mas preciso eu para defender a minha integridade. No dia 8 vou pra Lisboa, vou sair mais cedo, vou sair mais cedo, dia 8, por volta das 3, 4 da manhã, resolvo os problemas da empresa e regresso, por isso o pai não vai estar dois dias fora. Qual foi o meu espanto, no dia 8 atravessei a ponte, fui visitar o meu pai ao lar, fui para casa, cheguei a casa e vi a minha casa totalmente despida. Inclusive, primeiro momento que tive foi ligar com a senhora doutora, e disse “Sôtôra chamo a GNR?” e ela disse “chama a GNR e chama duas testemunhas”. Chamei duas testemunhas que foi o Q… e a minha irmã I…, que estão ali. Pediu para tirar fotografias, tirei fotografias de tudo, e inclusive houve uma situação caricata, e posso mostrar a minha ingenuidade e a macaquice das pessoas, porque estão lá conforme estavam no dia 8. A doutora disse-me assim “senhor B… como é que estão as coisas?” e eu disse-lhe assim “olhe levaram tudo que era faqueiros de prata, levaram tudo que eram loiças da Vista Alegre, tudo que era do bom e do melhor esta casa teve o saque” e ela disse-me “vá ao cofre “que era onde havia o ouro. E eu abri o cofre e ingenuamente disse assim para a Sôtôra.. pode olhar para mim que é verdade! Abri o cofre e disse assim…

O Recorrente mostrou-se não frio, mas sereno, atenta a consciência e certeza da inocência que inclusive o levou à recusa de aceitação de injunção em sede de inquérito.

Postura que se louva, face às declarações prestadas pelo filho e até pelo sogro, a testemunha E…, que chegou mesmo a dizer que a esposa morreu de desgosto de ter um genro assim e que este era responsável pela deficiência motora do pai do Recorrente acamado há vários anos “T: Antigamente era a minha mulher mas ele fazia tantas desfeitas, tantas desfeitas e tão mentiroso, tão mentiroso, que nunca vi mentiroso como isto e causava todos os problemas em casa, a minha mulher, a minha mulher morreu por desgosto de ter assim um genro e o pai dele está doente, também foi ele que ajudou para o pai estar doente” (Exma. Juiz sobrepõe-se: “Sr. E…, ouça perguntas concretas, assim não serve de nada”) (aos 03:00).

Ainda em referência à falta de submissão da assistente podemos atentar no depoimento da testemunha I…, cunhada da assistente e ex-funcionária.

A mesma, aos minutos 06:00 “L: Olhe, daquilo que eu sei, porque o seu irmão disse-me, a senhora foi funcionária do casal, num estabelecimento comercial?T: sim, num café, fui a 1ª funcionário, porque na altura estava a passar uma situação delicada, estava a separar-me, e o meu irmão tentou-me ajudar e disse-me que dava-me emprego lá e eu também tinha alguma experiência em cafés e me punha lá a trabalhar. E fui trabalhar para lá 5 meses e a minha cunhada era gerente daquilo, e nunca tive lá muito bem porque ela nunca me tratou muito bem, inclusive num fim de semana que eles foram passar fora de férias, ela disse que eu tinha ficado de fazer uma sopa e a outra funcionária disse que não, e depois a minha cunhada acusou-me de roubar e obrigou o meu irmão a despedir-me porque ela acusou-me de roubar. L:Olhe, essa cafetaria é uma cafetaria que estava implementada no M… em …? T: Sim.

Na verdade o Assistente apoiou a esposa na sua teoria, que esteve na origem do despedimento da irmã, em situação precária.

Inexiste assim qualquer ascendente sobre a mesma.

O depoimento em questão descredibiliza igualmente a teoria da assistente e do filho do casal, na parte que referem que era o Recorrente que acusava os funcionários de roubar e por isso responsabilizava a assistente, discutindo e mostrando-se agressivo.

Aos 08:00 minutos a assistente disse “A: Piorou. Houve um dia, à noite… aliás ele achava diariamente que as empregadas nos roubavam rissóis, croquetes, bolos, etc.,”.

O filho, D… também referiu aos minutos 05:20 “T: Sim, neste caso a minha mãe geria o estabelecimento e o me pai tratava do inventário. Se faltasse um café nas contas que ficaram feitas, acordava-se a casa a perguntar onde estava o café, quem é que tinha sido a roubar o café, ou quem é que tinha tomado o café, onde é que estava o dinheiro do café, quem é que dava fiado a esta ou a outra pessoa, porquê é que falta x dinheiro nas caixas e era um bocado por aí.”

Esta situação concreta demonstra a forma como as situações ocorridas foram manipuladas e deturpadas em prol da versão apresentada pela assistente.

Assim nunca poderia o facto constante do item 9 ser dado como provado.
Baseia-se ainda a Meritíssima Juiz “a quo” para fundamentar o pressuposto de ascendente do arguido sobre a assistente, o facto constante do item 10, atinente à suposta retirada de todos os cartões.

Ora, tal não demonstrou provado, não obstante, das declarações da mesma decorre que esta tinha acesso à conta onde caía o seu subsídio e o Recorrente à conta onde caía o seu salário.

Bem como das declarações do Recorrente aos minutos 19:08 “Juíza: mas voltou nessa noite? Arguido: Sôtôra, depois com os conselhos dos meus pais, o meu pai é uma pessoa doente, uma pessoa que teve um AVC, tentou demover-me e fez-me ver que uma vida de trabalho, para ter calma, levarmos a vida de uma forma integra, cheguei a casa, independentemente disso já tinha dito ao D…, para separar dinheiros, porque nós tínhamos dinheiros, investimentos em moeda estrangeira, prontos e o D… fez-me isso cordialmente. Cheguei a casa já estavam os meus sacos na porta, mas eu entrei, e então chegamos a um consenso, em que, não foi naquele dia foi naquela semana, em que a C… ficaria com a conta do J…, por isso ela recebia do J… e eu ficaria com a conta do K…, onde eu recebia o meu ordenado, do K…. Eu dei-lhe o meu cartão de multibanco do J… e ela deu-me o cartão do banco K…, e todas as despesas eram pagas entre nós apresentando facturas ou dividíamos as despesas como qualquer casal que eventualmente prontos, tivesse sentido essa, desde do principio, essa gestão familiar. (negrito e sublinhado nossos) Pronto e nós tomamos isso partindo do pressuposto em que nós teríamos que encontrar um advogado que não fosse conhecido entre nós os dois, porque ela conhecia advogados pela actividade que tinha, eu também conhecia pela actividade que tinha, alguém neutro para nos gerir o divórcio. A dona C… nunca tomou essa pro actividade e eu em Outubro tomei a iniciativa e dei um sinal por uma habitação, porque alertei a dona C… que ia sair de casa e desde que ela me fizesse o consentimento por um papel escrito, porque não queria que ela dissesse que abandonei o lar, que abandonei a família, fins de Novem., fins de Outubro princípios de Novembro, e a dona C… nunca aceitou isso.”

Não tendo a mesma, ficado economicamente dependente do Recorrente.

É manifesto que a convicção alcançada pelo tribunal a quo não tem suporte na prova produzida em audiência.

Resulta evidente o uso do processo crime, pela assistente, numa tentativa de obter proveito económico em sede de processo de partilha de bens sequente a divorcio.

O timing e a orquestrada estratégia, em particular, utilizada não deixa margem para dúvidas.
O- Impondo-se, outrossim, a absolvição do Arguido/Recorrente, uma vez que não cometeu, nem se mostram provados, os factos constantes que o Tribunal “a quo”, deu, mal, como assentes e provados.
O Ministério Público junto da instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.483 a 486].
A assistente C… apresentou resposta, em que suscita como questão prévia a extemporaneidade do recurso e, sem prescindir, defende que a decisão recorrida deve ser confirmada [fls.492 a 503].
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do ar.416.º, n.º1, do C.P.Penal, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer que se pronunciou pela improcedência do recurso [fls.515 a 516].
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
A sentença recorrida deu como provados e não provados os factos que a seguir se enumeram [procedemos à enumeração da factualidade provada e não provada de forma a tornar-se mais fácil a remissão para a factualidade na apreciação da impugnação da matéria de facto] e respetiva fundamentação:
«1-C… e o arguido contraíram matrimónio em 31 de Dezembro de 1992.
2-Dessa união nasceram dois filhos, L… com 11 anos de idade e D… com 18 anos de idade.
3-Desde há vários anos que o casal estabeleceu a casa de morada de família na Rua …, n.º …, em …, Gondomar.
4-Desde 2006, quando C… ficou desempregada, que o arguido começou a revelar-se agressivo para com a mesma.
5-Desde essa altura, em datas não concretamente apuradas, mas não raras vezes, o arguido começou a iniciar discussões com a esposa e, sem motivo aparente, insultava-a frequentemente chamando-lhe “filha da puta”, “sostra”, “que só queria dormir e que não fazia nada para alterar a vida”.
6-Várias vezes e com bastante frequência, o arguido agredia a esposa, desferindo-lhe bofetadas e pontapés em qualquer parte do corpo e empurrava-a para cima da cama, bem como lhe chegou a apertar o pescoço com as mãos. Nessas alturas, o arguido só parava porque o filho D… se metia entre ambos para impedir que o arguido continuasse a agredir e insultar a sua mãe.
7-Por vergonha e esperando que o arguido alterasse o seu comportamento, C… nunca denunciou tais factos e também nunca recorreu a assistência médica ou hospitalar.
8-Tais agressões físicas e verbais ocorriam geralmente no interior da habitação, na presença dos filhos menores, pois quando se encontravam fora da habitação e perante outras pessoas, o arguido fazia de conta que tudo corria bem e queria que parecessem um casal perfeito e harmonioso.
9-A relação entre ambos agravou-se a partir de Outubro de 2012, altura em que cessaram a exploração de um estabelecimento de café no estabelecimento “M…”, em …. Foi desde aí que o arguido ainda se tornou mais agressivo para com a sua mulher e passou a ofendê-la e humilhá-la mais frequentemente, como pessoa e também enquanto sua mulher.
10-O arguido mantinha uma linguagem para com a esposa sem qualquer afeto e de gestão empresarial, humilhando-a permanentemente, dizendo-lhe que “não era proativa, nem empreendedora”.
11-O arguido entendia que era o único a ter o poder de decisão em casa e que todos teriam que acatar as suas pretensões.
12-A partir de certa altura, o arguido deixou de falar com C… e passou a comunicar com a mesma através do seu filho D….
13-A título exemplificativo, em Abril de 2010, em data não concretamente apurada, alguns dias antes do casamento do irmão de C…, o arguido desentendeu-se com a mesma porque entendia que as empregadas do estabelecimento de café estavam a “furtar” no estabelecimento.
14-A partir de 11 de Agosto de 2013, após mais uma discussão, o arguido retirou a C… todos os cartões bancários de crédito e de débito, deixando-lhe apenas o cartão de débito de uma conta bancária onde a ofendida recebia o subsídio de desemprego.
15-No dia 31 de Outubro de 2013, pelas 20H00, o arguido foi à cozinha para jantar, tendo reparado que a esposa não tinha colocado o seu prato na mesa. Esta disse que o tinha feito pois já era tempo de deixar de o sustentar, pois o mesmo não contribuía para as despesas domésticas.
16-Foi aí que o arguido reagiu violentamente e irritou-se com a filha L… pelo facto desta começar a chorar, questionando-a sobre o motivo porque chorava. O filho D… respondeu-lhe dizendo-lhe que, se não dava dinheiro para comerem, também não tinha direito a comer.
17-O arguido exaltou-se ainda mais e canalizou a agressividade para C…, tendo tentado agredi-la. Só não conseguiu pelo facto do filho D… o ter impedido, colocando-se entre os progenitores. O filho D… empurrou o pai para o afastar da mãe e manteve-o encostado a uma das paredes da cozinha, para que não se aproximasse daquela.
18-C… fugiu para a sala e telefonou para a GNR solicitando auxílio, após o que se dirigiu para o exterior da habitação, onde se sentia mais segura. Nessa altura, pediu ajuda ao vizinho G….
19-A dada altura, o arguido veio ao exterior falar com o vizinho G…, tendo-lhe dito: “ó vizinho, esta gaja só me fode a vida”.
20-A seguir, o arguido regressou ao interior da habitação e decidiu dirigir-se ao Posto da GNR de …, levando consigo o seu filho D….
21-No dia 3 de Novembro de 2013, pelas 05H30, o arguido retirou o filho D… e a esposa da cama para reunirem. Nessa reunião, o arguido exigiu à mesma que retirasse a queixa que deu origem aos presentes autos pois, caso não o fizesse, “iria por o filho em …e assim ele jamais iria para a faculdade”. Referiu ainda o arguido que “tinha que limpar a sua honra, nem que para isso fosse preciso colocar o filho na cadeia”.
22-Constrangida com a situação, C… limitou-se a chorar e não lhe respondeu. No entanto, acordaram que o arguido sairia da casa de morada de família.
23-Porém, como o arguido não saiu da residência, no dia 8 de Novembro de 2013, já esgotada com toda esta situação e não aguentando mais humilhações, C… abandonou a casa de morada de família, tendo ido residir para casa do seu pai, juntamente com os dois filhos L… e D….
24-Ao agir do modo acabado de descrever o arguido previu e quis, agredir física e psicologicamente a esposa C…, tratando-a de modo desumano, maldoso e humilhante, de forma reiterada e habitual, sem existir motivo para tal, o que fez.
25-Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas.
26-As discussões, agressões e faltas de respeito durante o casamento sempre causaram angústia e frustração a C…, que sempre tentou construir um lar estável e saudável que permitisse o são desenvolvimento físico e intelectual dos filhos.
27-Desde que iniciaram as situações de violência que C… teme pela sua segurança.
28-Sente-se triste e desanimada, chorando com facilidade e sem motivo aparente, fazendo um esforço para manter a alegria de viver em prol dos filhos e com a sua ajuda.
29-Pelo ambiente que viveu, C… teme pela sua segurança, o que faz estar sempre alerta em espaços públicos com receio de encontrar o arguido e de ser alvo de algum acto de violência praticado pelo mesmo.
30-O arguido não tem antecedentes criminais.
31-Nasceu em Angola, onde viveu até aos 6 anos, num contexto familiar estruturado ao nível socio-afectivo, com uma condição socioeconómica modesta e adequada às suas necessidades básicas. Integrava o núcleo familiar composto pelo pai, motorista, a mãe, operária fabril no ramo têxtil, e duas irmãs, num processo de supervisão educativo adequado, pautado por uma orientação convencional e exigente.
Ingressou no sistema escolar aos 6 anos em Angola e sofreu três retenções, no 5º, 8º e 12º anos de escolaridade, tendo concluído o ensino secundário no período nocturno.
Aos 14 anos, e atendendo à necessidade de autonomia e independência financeira, começou a trabalhar como moço de recados numa empresa de acessórios de automóveis, mantendo todavia a trajectória académica. Manteve essa actividade até aos 18/19 anos, interrompendo-a para cumprir serviço militar durante cerca de 6 meses, continuando o vínculo laboral com a empresa que efectuou o pagamento dos seus salários durante o período de cumprimento militar. Reintegrou posteriormente a mesma empresa onde permaneceu até aos 21 anos como responsável de expediente de encomendas.
Por intermédio de um amigo e com vista a melhorar a sua condição financeira, investiu num novo projecto profissional no ramo da construção civil, integrando mais tarde a empresa N…, onde esteve cerca de 12 anos até ao nascimento do filho mais velho, altura em que saiu pela carga horária e dificuldade de conciliar com a sua vida familiar.
De seguida trabalhou por conta da O…, na área de gestão de vendas e controlo financeiro, durante cerca de 5 anos.
Em 2007, para melhoria da condição salarial, iniciou funções na P…, entidade onde labora actualmente como coordenador comercial; nesse mesmo ano constituiu negócio próprio na área da restauração/cafetaria, após situação e desemprego da esposa, que cessou em 2012.
À data dos factos, o arguido vivia com a esposa e os filhos em moradia própria adquirida através de empréstimo bancário, onde o mesmo se mantém. As condições materiais de subsistência do agregado eram asseguradas pelos rendimentos do trabalho do arguido (cerca de € 1.600,00 mensais). A esposa, que ficou desempregada em 2007, recebia subsídio de desemprego. Recebiam ainda, até 2012, quantitativos da exploração do estabelecimento comercial.
Como encargos mensais arcavam a prestação bancária (€ 125,00) e as despesas correntes de gestão da habitação e de sustento dos filhos, a cargo de C….
Actualmente o arguido vive sozinho na casa que era de morada de família, mantendo-se como coordenador comercial na P…, no que aufere € 1.600,00 mensais; suporta as despesas correntes com habitação e necessidades básicas e paga € 125,00 por mês de pensão de alimentos à filha menor.
Desde Maio de 2014 iniciou relacionamento de namoro com terceira pessoa.
*
Não resultaram provados outros factos com interesse para a decisão da causa, nomeadamente que:
1-Quando a ofendida ficava com hematomas, em consequência das agressões perpetradas pelo arguido, colocava gelo.
2-O arguido começou a controlar a ofendida, bem todos os seus gastos. E quando a ofendida tomava qualquer decisão sem o consultar, ainda que fosse de índole pessoal, tal já era motivo para o arguido a insultar e agredir da forma supra descrita.
3-O simples facto da ofendida não arrumar as roupas do arguido, da forma que o mesmo queria que fossem arrumadas, já era suficiente para que o arguido a insultasse e agredisse.
4-Várias vezes o arguido terminava as discussões, calando a ofendida, desferindo-lhe um estalo na face.
5-Na situação de Abril de 2010, como a ofendida não concordava, no decurso da discussão, o arguido pegou num cesto de papéis e enfiou-o na cabeça da ofendida, ferindo-a na face.
6-No Natal de 2012, encontravam-se na residência com o pai da ofendida, tendo o arguido dito que era o último Natal que passavam juntos, que estava a “cagar-se” para a ofendida e que, no ano seguinte, iria passar o Natal com os filhos e com a sua própria família.
7-Na situação de 31-10-2013, e uma vez no Posto, o arguido começou a gritar com os guardas que ali se encontravam e após estes se terem apercebido que se tratava de uma situação de violência doméstica, disseram ao arguido para moderar o tom de voz.
8-Desde que iniciaram as situações de violência que C… tem dificuldades de dormir, padecendo de insónias e pesadelos.
*
Motivação
O Tribunal formou a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento e constante dos autos.
A data do casamento consta do averbamento ao assento de nascimento do arguido de fls. 138.
A ausência de antecedentes criminais do arguido é retirada do CRC de fls. 232 e as suas condições de vida passadas e actuais do relatório social de fls.261-266.
A identificação e idade dos filhos, bem como a morada do casal, a data da separação e a manutenção de C… e dos filhos em casa do pai dela desde então, foram admitidos por arguido e assistente.
Quanto ao relacionamento do casal, as posições do arguido e da assistente foram opostas.
O arguido prestou declarações de forma fria, revelando uma permanente preocupação com questões monetárias, quer durante o casamento, quer após a separação. Referiu que a partir de 2007, com as sucessivas depressões da assistente e o falecimento da mãe desta (pilar da gestão da sua casa e do acompanhamento aos seus filhos), a situação familiar, que considerava harmoniosa, foi alterada, o que tentou combater com a abertura de um negócio de cafetaria a cargo da esposa; contudo, porque o negócio se tornou impraticável face às depressões e desconfianças de C…, decidiram terminá-lo em 2012. Em Fevereiro de 2013, porque se sentia sozinho, manifestou à esposa a sua intenção de se divorciar, o que fariam após o ano lectivo, momento a partir do qual o casal deixou de comunicar directamente e C… deixou de lhe cuidar da roupa e da alimentação.
Em Agosto desse ano, sentindo-se colocado de parte pela família, decidiu sair de casa, mas voltou na mesma noite por insistência dos seus pais, e em Outubro reiterou essa sua intenção, o que a esposa nunca aceitou. Nunca chegou a concretizar a saída porque só o faria se a esposa abdicasse expressamente do seu direito a pensão de alimentos, pese embora mantenha um discurso de aparente preocupação exclusiva com os filhos, privados (como o mesmo refere) do seu conforto e bens há mais de 1 ano.
Quanto às situações descritas na acusação, repudiou veementemente qualquer acto de agressão física ou verbal e frisou que em Abril de 2010 deu um pontapé no cesto dos papéis e que, assim, o amassou e que em 31-10-2013 foi agredido pelo filho.
A assistente C… descreveu um cenário muito diverso. Segundo a mesma, desde que ficou desempregada em 31-12-2006 que o arguido lhe dizia que não iria sustentá-la, que deixasse de ser sostra, que fosse proactiva e empreendedora. Nessa altura, recorrentemente chamava-lhe “badalhoca”, “não sabes ser mãe”, “aborto da sociedade”, “puta”, “filha da puta”, “vaca”, o que se intensificou para um registo quase diário a partir do encerramento da cafetaria em 2012. Simultaneamente, e desde finais de 2012 mais do que uma vez por semana, desferia-lhe estalos, pontapés, murros, apertava-lhe o pescoço, empurrava-a, atirava objectos, o que só cessava porque o filho intervinha. Apesar de ficar fisicamente marcada das agressões, nunca foi ao hospital nem apresentou queixa por vergonha e porque colocava o bem-estar dos filhos acima do seu, rejeitando a ideia de uma separação.
Em Fevereiro de 2012 o arguido falou-lhe pela primeira vez em divórcio e a partir de Agosto de 2013, após uma situação de conflito, tirou-lhe o acesso à conta conjunta e respectivos cartões, ficando a assistente apenas com acesso à conta onde era depositado o seu subsídio de desemprego, na altura de € 464,00, que era utilizado para todas as despesas dos filhos e metade da prestação da casa.
Uma a uma, C… confirmou todas as situações concretas mencionadas na acusação, de forma peremptória e calma, frisando que muitas vezes os filhos presenciaram as situações que sempre decorriam entre as quatro paredes de casa, mostrando-se o arguido gentil perante terceiros.
Ora, dos autos não consta qualquer registo hospitalar de assistência prestada à assistente em virtude de qualquer agressão.
E nenhuma testemunha, para além do filho, alguma vez a viu com alguma marca que pudesse provir de uma agressão.
F…, amiga do casal, e H…, sua cunhada, sempre notaram um relacionamento tenso entre o casal, em que o arguido se sobrepunha e C… não lhe respondia, submissa. Mas nunca viram qualquer agressão ou marca de agressão (frisando F… que a assistente se maquilhava muito, o que poderia disfarçar alguma marca) ou ouviram qualquer insulto, tendo tomado conhecimento de alguns factos por relato da assistente já após a separação.
Por sua vez, E…, pai da assistente (muito exaltado em audiência e com extrema animosidade para com o arguido), Q…, amigo do casal, I… e S…, irmãs do arguido, e T…, mãe deste, nunca assistiram a discussões, nem agressões, nem marcas, sendo certo, contudo, que, quanto aos quatro últimos, o convívio era esporádico, mormente a partir de 2007, data que coincidiu com o falecimento da mãe da assistente e em que esta se afastou da família do arguido. Já o pai da assistente frequentava assiduamente a casa do casal, pois apoiava na educação dos netos e jantava lá diariamente; mesmo assim, nunca a nada assistiu.
As únicas testemunhas com conhecimento directo sobre factos da acusação foram o filho do casal, D…, de 18 anos, e G…, vizinho de uma habitação geminada.
Este apenas depôs sobre o episódio de 31-10-2013, noite em que lhe apareceu C… aflita por causa de um episódio de agressividade entre o arguido e o filho, solicitando-lhe ajuda; logo após encontrou o arguido que lhe disse a expressão dada como provada; e posteriormente foi buscar D… à esquadra a pedido da assistente. Nada mais sabia e nunca se tinha apercebido de conflitos entre o casal.
Assim, a única testemunha de factos realmente importantes neste processo foi o filho do casal, D…. Este, notoriamente ressentido e de más relações com o pai, falando dele com distanciamento e ressentimento, mas percebendo-se que se tratava da única pessoa (além da irmã menor) que presenciou situações ocorridas no lar e num tom convincente, confirmou que o ambiente conjugal se alterou quando C… ficou desempregada porque o arguido afirmava recusar-se a sustentá-la, o que levou a muitas discussões, nomeadamente durante o período em que exploraram a cafetaria; nesse período, e de forma ainda mais rigorosa e frequente após 2012, o arguido agredia C… com socos, estalos e pontapés, em que D… intervinha, e insultava-a, chamando-lhe nomeadamente “sostra”, “aborto”, “não serves para nada”, tornando-se este um estilo de tratamento frequente.
Quanto às concretas situações da acusação, confirmou na íntegra, nos termos dados como provados, as de 31-10-2013, 03-11-2013 e 08-11-2013; às outras não assistiu e, quanto a essas, não se deram como provadas por termos apenas a palavra do arguido contra a da assistente.
Mais adiantou D… com interesse que, pelo menos desde Agosto de 2013, todos dormiam fechados nos seus quartos com receio do arguido.
Pese embora a sua postura para com o pai, o depoimento de D… teve-se por credível, não se vislumbrando o menor sinal de que estivesse a mentir, de que é sintomático o facto de ter admitido não ter assistido a algumas situações; se o seu depoimento fosse inventado abarcaria seguramente todos os factos.
Assim, deram-se como assentes os factos relatados por C… que o mesmo confirmou, que são bem demonstrativos do tipo de tratamento que o arguido dava à esposa.
O facto de nenhuma outra testemunha, nomeadamente familiares directos da assistente e do arguido, ter assistido a nenhuma situação de conflito não é de estranhar, pois, como esclareceram a assistente e D…, tudo se passava no recato do lar e do agregado familiar nuclear, mantendo o arguido uma postura gentil e simpática para com terceiros que, naturalmente, atenta a falta de queixas de C…, de nada sabiam.
Atento todo o quadro factual descrito, entendeu o Tribunal mostrar-se provado o tipo e a continuidade da actuação do arguido para com a esposa, o que é reconhecidamente tido como proibido e tão ampla e publicamente recriminado.
F…, H… e E… foram ainda peremptórios e coincidentes quanto à descrição do estado actual de ânimo de C…, referindo que está triste, angustiada e desanimada, mantendo receio de encontrar o arguido na rua.
Quantos aos factos não provados, não foram confirmados por ninguém para além de C…; e quanto às dificuldades de dormir, ninguém sobre tal depôs.»

Apreciação
Questão prévia: da extemporaneidade do recurso
O assistente suscita como questão prévia que o recurso foi interposto fora de prazo, pelo que deve ser rejeitado, nos termos do disposto no art.420.º, n.º1, al.b), do C.P.Penal.
Alega para tanto que o texto enviado em suporte de papel deve corresponder ao texto previamente enviado por fax, sendo que no caso presente o fax contém 26 folhas, tendo sido enviado no dia 4/3/2015, o qual correspondia ao 2ºdia dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo em que o ato pode ser praticado, mediante o pagamento de multa, enquanto o texto em suporte de papel deu entrada na secretaria judicial no dia 12/3/2015 e tem 41 folhas, ou seja, vai para além do texto enviado por fax.
Decidindo.
O envio de peças processuais por fax é regulado pelo DL 28/92, de 27/2, que prevê que a data da receção do documento é a que figura na telecópia recebida no Tribunal [art.4º, n.º6]
Ora, na telecópia enviada – fls. 355 – a data de receção é 4/3/2015, ou seja, o 2º dia útil ao termo do prazo previsto para a interposição do recurso.
Em 12/3/2015, o recorrente apresentou o original do recurso, mas com um texto mais extenso - com 41 folhas - do que o enviado por fax – com 22 folhas [texto da motivação] - e com conclusões, sendo que a telecópia não as tem.
Qual a motivação do recurso a apreciar - a motivação apresentada em 4/3/2015 ou a de 12/3/2015?
O documento de interposição de recurso de 12/3/2015 não pode ser entendido como o original do recurso apresentado em 4/3/2015, pois o documento enviado por fax só tinha preenchidas 22 folhas enquanto o documento apresentado em 12/3/2015 tem 41 folhas. O documento enviado em 4/3/2015 está apenas parcialmente elaborado, contendo a quase totalidade da motivação e sem conclusões.
A falta de motivação determina a rejeição do recurso – art.414º, n.º2, do C.P.Penal. Já a falta de conclusões dá lugar ao convite ao recorrente a apresentá-las no prazo de 10 dias sob pena de o recurso ser rejeitado – art.417.º, n.º3, do C.P.Penal.
Uma vez que o recorrente em 12/3/2015 veio apresentar o que diz ser o original do recurso interposto, no qual contém as conclusões, não se justificaria convidá-lo a apresentar conclusões, quando ele já as apresentou, sob pena de se estar a praticar um ato inútil, o que a lei proíbe.
Tendo sido apresentada uma motivação ainda que parcial e apresentadas conclusões, cabe conhecer as questões recursivas suscitadas no texto da motivação apresentada em tempo em 4/3/2015 e nas conclusões referentes a tais questões[1].
Nestes termos e com o âmbito assim delimitado, considera-se tempestivo o recurso interposto por fax em 4/3/2015.
*
O âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as quais devem sintetizar as razões do pedido, sem prejuízo do tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal.
No caso vertente, as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
-impugnação da matéria de facto, concretamente dos pontos 4 a 29 [numeração efetuada por este tribunal ad quem por forma a tornar-se mais fácil a referência à factualidade questionada]
-não preenchimento do crime de violência doméstica
*
O recorrente impugna a matéria de facto dada como provada nos pontos 4 a 29 [numeração por nós efetuada], invocando os vícios previstos no art.410.º, n.º2, al.a) e c), do C.P.Penal.
O recorrente confunde a impugnação ampla da matéria de facto com a revista alargada, pois embora pretenda a reapreciação da prova gravada invoca os vícios do art.410.º n.º2 al.a) e c) do C.P.Penal.
É consabido que a matéria de facto pode ser impugnada por duas vias: invocando os vícios do art. 410.º, n.º2, do C.P.Penal, a designada “revista alargada” ou através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.º3 e 4, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido art. 410.º, os quais têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova produzida em audiência, mas dentro dos limites do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art.412.º do C.P.Penal.
Dispõe o art.412.º, n.º3, do C.P.Penal «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente provados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
E o n.º4 do mesmo dispositivo estabelece «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação
O uso pela relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados. Daí a imprescindibilidade de os recorrentes indicarem concretamente os pontos de facto que se encontram incorretamente julgados e especificarem as provas que impõem decisão diversa, em relação a esses pontos de facto.
O art.412.º, n.º3, al.b do C.P.Penal refere «As provas que impõem decisão diversa da recorrida» e não as que permitiriam uma decisão diversa, pois há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência comum permitem mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, ela é inatacável pois foi proferida de acordo com o princípio da livre apreciação – art.127.º do C.P.Penal –, sendo que a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte este princípio que está deferido ao tribunal da primeira instância, o qual beneficia da imediação e da oralidade.
Analisando o recurso interposto, verifica-se que o recorrente impugna genericamente os factos dados como provados sob os pontos 4 a 29 [na numeração do recorrente 1 a 18], fazendo a transcrição parcial das declarações da assistente e do depoimento da testemunha D…, contrapondo-os em alguns aspetos aos depoimentos das testemunhas H… e F…, concluindo que a versão da assistente não merece credibilidade e que a testemunha D…, manifestou ressentimento e estar de más relações com o pai, o ora recorrente, pelo que o tribunal não podia formar a sua convicção, como fez, com base nas declarações da assistente e no depoimento do D….
A impugnação da matéria de facto é feita por via da credibilidade atribuída pelo tribunal a quo às declarações da assistente e ao depoimento do seu filho, a testemunha D…, entendendo o recorrente que revelam contradições e imprecisões, mas não apontando erros de julgamento.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode (…) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 184/2004, de 24/11/2004, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
O recorrente esquece o princípio da livre apreciação da prova.
Dispõe o art.127.º do C.P.Penal [livre apreciação da prova] «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»
Este princípio assume particular relevo na fase de julgamento. Se é certo que a convicção do juiz não pode ser puramente subjetiva, imotivável e por isso, o art.374.º n.º2 do C.P.Penal exige que a sentença contenha «uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação do exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal», também não se pode esquecer que a decisão do juiz é sempre uma convicção pessoal, «até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais» in Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, edição 1974, pág.204.
Ao princípio da livre apreciação da prova, estão intimamente associados os princípios da imediação e da oralidade.
A avaliação da prova produzida em audiência não se resume ao conteúdo literal de algumas expressões usadas pelos participantes na audiência, antes pressupõe uma análise global de todas as provas à luz de critérios de experiência comum. Só essa avaliação global permite a formação de um juízo sobre a consistência de um depoimento. Acresce que o juiz não tem de aceitar um depoimento na sua totalidade, cabendo-lhe a tarefa de destrinçar aquilo que lhe merece crédito, explicando as razões para tanto.
Na situação em apreço, decorre da fundamentação de facto constante da sentença que está explicitado de forma clara o raciocínio lógico-dedutivo percorrido pela Sra.Juíza na formação da sua convicção, raciocínio esse que se mostre de acordo com as regras da experiência comum.
Nesta decorrência, a impugnação da matéria de facto não assenta na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida, mas tão só na análise pessoal da prova feita pelo recorrente, que pretende sobrepor à do tribunal.
Afastada a impugnação ampla da matéria de facto, coloca-se a questão de saber se se verifica algum dos vícios previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal, vícios de conhecimento oficioso e que, aliás, o recorrente invoca os previstos nas alíneas a) e c) do citado dipositivo legal.
Dispõe o art.410.º nº2 do C.P.Penal: «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando há uma incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através do texto da decisão recorrida, entre os factos provados, entre factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detetado pelo homem médio.
Através da indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador e do seu exame crítico, o tribunal ad quem verifica se o tribunal a quo seguiu ou não um processo lógico e racional na apreciação da prova.
Analisando a decisão recorrida, não se verificam quaisquer dos vícios do art.410.º n.º2 do C.P.Penal.
O recorrente invoca que a prova produzida em audiência de julgamento não permitia dar como provados os factos que o tribunal a quo deu como assentes.
O recorrente confunde o vício previsto no art.410.º n.º2 al.a) com a insuficiência de prova produzida. O vício em causa não se reporta à insuficiência de prova na perspetiva do recorrente mas antes à insuficiência dos factos apurados para a decisão que veio a ser proferida. «Quando o recorrente pretende contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos à convicção que o tribunal (…) teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invocar como vício a alínea a) do artigo 410º do CPP, está a confundir a insuficiência da matéria de facto com insuficiência da prova para decidir, sendo a sua convicção irrelevante» – Ac. STJ 09.12.1998, BMJ 482,68. No mesmo sentido, Ac. STJ 21.06.2007, Proc. 07P2268, relatado pelo Conselheiro Simas Santos.
No caso vertente, não ocorre o vício previsto no art.410.º, n.º2, al.a) do C.P.Penal.
Tão-pouco se verificam os vícios previstos nas al.b) e c) do mencionado preceito legal. Analisado o texto da decisão recorrida, o raciocínio explanado pelo tribunal a quo na formação da sua convicção é perfeitamente claro, explicando as razões que o levaram a dar como provados os factos, percebendo-se o raciocínio efetuado.
Porém, há um reparo a fazer à factualidade dada como provada, com repercussões a nível do enquadramento jurídico.
No ponto 4 refere-se «Desde 2006, quando C… ficou desempregada, que o arguido começou a revelar-se agressivo com a mesma», no ponto 5 «Desde essa altura, em datas não concretamente apuradas, mas não raras vezes, o arguido começou a iniciar discussões com a esposa e, sem motivo aparente, insultava-a frequentemente chamando-lhe filha da puta, sostra, que só queria dormir e que não fazia nada para alterar a vida», no ponto 6 «Várias vezes e com bastante frequência, o arguido agredia a esposa, desferindo-lhe bofetadas e pontapés em qualquer parte do corpo e empurrava-a par cima da cama, bem como lhe chegou a apertar o pescoço com as mãos. Nessas alturas, o arguido só parava porque o filho D… se metia entre ambos para impedir que o arguido continuasse a agredir e insultar a sua mãe», no ponto 7 «Por vergonha e esperando que o arguido alterasse o seu comportamento, C… nunca denunciou tais factos e também nunca recorreu a assistência médica ou hospitalar», no ponto 8 «Tais agressões físicas e verbais ocorriam geralmente no interior da habitação...», no ponto 9 «A relação entre ambos agravou-se a partir de Outubro de 2010 (…). Foi desde aí que o arguido se tornou ainda mais agressivo para com a sua mulher e passou a ofendê-la e a humilhá-la mais frequentemente, como pessoa e enquanto sua mulher», no ponto 10 «O arguido mantinha uma linguagem com a esposa sem qualquer afeto e de gestão empresarial, humilhando-a permanentemente, dizendo-lhe que não era proativa, nem empreendedora», no ponto 12 «A partir de certa altura, o arguido deixou de falar com C… e passou a comunicar com a mesma através do seu filho D…»
A descrição de acontecimentos nestes pontos, dada a indefinição temporal que encerra, não permite o contraditório, impossibilitando qualquer defesa.
As imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no art.32.º, n.º1, da CRP, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.[2]
Como se afirma no A.R.Porto de 8/7/2015, proc.n.º1133/13.9PHMTS.P1, relatado pelo Desembargador José Carreto, in www.dgsi.pt «O crime de violência domestica não é, nem pode ser, um crime que no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando, retroactivamente o que foi a vivência conjugal ou familiar, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de “regime”. Nem tão pouco é um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime específico ou especial. Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados / imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos».
No crime de violência doméstica, «o tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus tratos que são passíveis de activar a reacção penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado. (…) a comissão de crime de maus tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de actos de violência, ou a prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade». [3]
No caso em apreço, uma vez que as imputações são genéricas, sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizando um efetivo direito de defesa, concluímos que os factos dados como provados nos pontos 4 a 12, se devem considerar como não escritos.[4]
E como não escritos se devem considerar, também, os factos que deles dependem – os constantes dos pontos 24, 26, 27 e 29 dos factos provados.
Face à alteração da matéria de facto, cabe proceder a enquadramento jurídico dos factos.
O arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.152.º, n.º1, al.a), e 2 do C.Penal.
Dispõe a al.a) do n.º1 do referido preceito que, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Por sua vez, o n.º2 estabelece que no caso previso no número anterior, se o agente praticar o facto na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos
Desde logo, há que traçar a fronteira entre este tipo legal e os crimes de ofensa à integridade física simples [art. 143.º n.º 1 do C.Penal], ameaça [art.153.º n.º 1 do C.Penal] ou injúria [art. 181.º n.º 1 do C.Penal] pois a prática de qualquer destes crimes não configura um crime de violência doméstica só por a vítima ser cônjuge ou ex-cônjuge do agente; é necessário que se verifiquem “maus tratos físicos ou psíquicos”.
A jurisprudência discutiu durante muito tempo se os maus tratos pressupunham a reiteração das condutas em causa. Porém, essa discussão está hoje ultrapassada, pois com a Lei n.º59/2007, de 4/7, que procedeu à 23ª alteração do Código Penal, para o preenchimento do crime de violência doméstica não é necessária a reiteração de condutas. Atualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo do n.º1 do art.152.º é inequívoco no sentido de que pode bastar um só comportamento, pela gravidade intrínseca do mesmo, para integrar o tipo legal em apreço.
O traço distintivo baseia-se no bem jurídico protegido através da incriminação em apreço.
O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental –, o qual pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge[5]. Deste modo, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal. «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos» – Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ n.º8, pág.305.
O crime de violência doméstica pressupõe, assim, a existência de maus tratos, físicos ou psíquicos e estes traduzem-se em atos que revelam crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima.
No caso vertente, face à alteração da matéria de facto, verifica-se que como suporte à qualificação jurídica da conduta do arguido restam as seguintes situações:
- Em Abril de 2010, alguns dias antes do casamento do irmão da assistente, o arguido desentendeu-se com a mesma porque entendia que as empregadas do estabelecimento de café estavam a “furtar” no estabelecimento;
- A partir de 11 de Agosto de 2013, após mais uma discussão, o arguido retirou a assistente os cartões bancários de crédito e de débito, apenas lhe deixando o cartão de débito de uma conta bancária onde a assistente recebia o subsídio de desemprego;
-No dia 31 de Outubro de 2013, pelas 20 horas, o arguido foi à cozinha para jantar, tendo reparado que a esposa não tinha colocado o seu prato na mesa. Esta disse que o tinha feito pois já era tempo de deixar de o sustentar, pois o mesmo não contribuía para as despesas domésticas. Foi aí que o arguido reagiu violentamente e irritou-se com a filha L… pelo facto desta começar a chorar, questionando-a sobre o motivo porque chorava. O filho D… respondeu-lhe dizendo-lhe que, se não dava dinheiro para comerem, também não tinha direito a comer.
-O arguido exaltou-se ainda mais e canalizou a agressividade para C…, tendo tentado agredi-la. Só não conseguiu pelo facto do filho D… o ter impedido, colocando-se entre os progenitores. O filho D… empurrou o pai para o afastar da mãe e manteve-o encostado a uma das paredes da cozinha, para que não e aproximasse daquela.
C… fugiu para a sala e telefonou para a GNR solicitando auxílio, após o que se dirigiu para o exterior da habitação, onde se sentia mais segura. Nessa altura, pediu ajuda ao vizinho G….
-A dada altura, o arguido veio ao exterior falar com o vizinho G…, tendo-lhe dito: “ó vizinho, esta gaja só me fode a vida”.
-A seguir, o arguido regressou ao interior da habitação e decidiu dirigir-se ao Posto da GNR de …, levando consigo o seu filho D….
-No dia 3 de Novembro de 2013, pelas 05H30, o arguido retirou o filho D… e a esposa da cama para reunirem. Nessa reunião, o arguido exigiu à mesma que retirasse a queixa que deu origem aos presentes autos pois, caso não o fizesse, “iria por o filho em … e assim ele jamais iria para a faculdade”. Referiu ainda o arguido que “tinha que limpar a sua honra, nem que para isso fosse preciso colocar o filho na cadeia”.
-Constrangida com a situação, C… limitou-se a chorar e não lhe respondeu. No entanto, acordaram que o arguido sairia da casa de morada de família.
Estes atos isolada ou conjuntamente apreciados, em vista de uma vivência conjugal em que havia discussões, não põem em causa a dignidade pessoal da esposa nem revelam um tratamento desumano ou degradante que ofenda a dignidade da pessoa humana. Na verdade, a situação ocorrida em Abril de 2010 é inócua, traduzindo-se tão-só numa discussão. Do mesmo modo, o facto do arguido ter retirado os cartões de crédito e de débito à ofendida, apenas lhe deixando um, revela que entre o casal havia desentendimentos quanto à economia da casa, mas o arguido não retirou à assistente todos os meios de subsistência, ofendendo de forma significativa a sua dignidade humana.
A situação ocorrida em 31 de Outubro de 2013 não está concretizada, desconhecendo-se o que o arguido iria fazer. Não basta afirmar que o arguido canalizou a sua agressividade para a assistente, tentando agredi-la. Trata-se de um a mera conclusão. Afinal, o que pretendia o arguido fazer? Pontapear a assistente? Dar-lhe um murro? Desconhece-se em absoluto, apensa resultando que o arguido se aproximou da assistente.
Também a situação em que o arguido quis que a assistente desistisse da queixa apresentada, pois se não fizesse colocava o filho de ambos na prisão, é um comportamento muito reprovável, mas o juízo de censura que a conduta do arguido suscita, nas concretas circunstâncias do caso, não tem aquele especial desvalor que permita o seu enquadramento no crime de violência doméstica.
Posto isto, o arguido tem de ser absolvido do crime de violência doméstica pelo qual foi acusado.
E será que a conduta do arguido ao pretender que a assistente desistisse da queixa integra o crime de coação, na forma tentada?
Dispõe o art.154.º do C.Penal [coação]
«1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.»
Da leitura deste preceito, resulta que o que se pretende proteger com tal normativo é o direito individual de liberdade de ação.
Veja-se o Acórdão RE, de 30/1/1996, CJ, 1996, I, pág. 285, onde se lê que «I - No crime de coacção o interesse protegido é a livre determinação da vontade e da livre expressão da mesma, por parte do ofendido, sendo que a violência em que se consubstancia tanto pode ser física como moral (ou intimidação). II - A inidoneidade do meio ou a carência de objecto (salvo quando manifestas) não constituem obstáculo à incriminação.»
A coação é, pois, a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade.
E a violência constitui o ato de força, físico ou psíquico, que leva alguém a atuar de determinada maneira.
No entanto, como aferir se o ato é ou não suscetível de desencadear o efeito pretendido no ameaçado?
Refere Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricence do Código Penal, parte especial, tomo I, pag.359 que «a consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta coagida. Se o objecto da coacção foi a prática de uma acção, a coacção consuma-se quando o coagido iniciar esta acção. Se o objecto da coacção for a omissão ou a tolerância de uma determinada acção, a coacção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou reagir».
Veja-se, ainda, o Acórdão do S.T.J., de 17-4-1990 (p. 41 610), B.M.J., 396, 222, onde se lê que «I - Pressuposto do crime de coacção simples ou agravada (artigos 156º e 157º do Código Penal) é a perda da liberdade de determinação, o constrangimento em consequência de violências ilegítimas físicas ou morais levando o sujeito a praticar um acto que não deseja ou a não fazer algo que se deseja fazer, ou a ter de suportar, contra vontade uma actividade alheia afectando a livre determinação do indivíduo, protegida constitucionalmente através da inviolabilidade da integridade moral e física de cada um - artigo 24º, nº 1 da Constituição da República. II - O crime de coacção consuma-se no momento em que alguém é violentado a fazer, a omitir ou a suportar o que não quer relevando a permanência do constrangimento não para a consumação mas para a determinação do ilícito.»
A coação é, pois, a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade.
Consubstancia-se, como diz a lei, no constrangimento ilegal de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim.
Sendo que, constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação.
E a violência constitui o ato de força, físico ou psíquico, que leva alguém a atuar de determinada maneira.
No entanto, como aferir se o ato é ou não suscetível de desencadear o efeito pretendido no ameaçado?
Segundo Taipa de Carvalho, in ob.cit, pag.358, «o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (...) do ameaçado(...)».
O mesmo autor, refere igualmente que «a consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta coagida. Se o objecto da coacção foi a prática de uma acção, a coacção consuma-se quando o coagido iniciar esta acção. Se o objecto da coacção for a omissão ou a tolerância de uma determinada acção, a coacção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou reagir», ob. cit, pág.359.
E haverá tentativa punível, «quando o destinatário da adequada acção de coacção adopta um comportamento que objectivamente está conforme a imposição do coactor, mas não por medo da coacção, mas exclusivamente porque tal corresponde à sua vontade, quer esta vontade já se tenha decidido antes da acção de constrangimento (antes de receber a ameaça coactiva) ou só se tenha formado posteriormente», ob. cit., pág.365.
No caso em apreço, a assistente limitou-se a chorar quando o arguido lhe disse que se não desistia da queixa, punha o filho de ambos na cadeia, ou seja, não adotou qualquer comportamento.
Em jeito conclusivo, a referida factualidade, ocorrida em 3 de Novembro de 2013, não integra o crime de coação na forma tentada.
Impõe-se, assim, a absolvição do arguido quanto à parte crime.
Face à absolvição crime, há que extrair as suas consequências em termos de responsabilidade civil.
Dispõe o art. 403.º, n.º 3, do C.P.Penal que «a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.»
Por outro lado «a sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização cível, sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no art. 82º, nº 3 do C.P.Penal» – art. 377.º nº 1 do C.P.Penal.
O art.483.º n.º1 do C.Civil estabelece que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil do lesante a existência de um facto ilícito, voluntário e imputável ao arguido que seja consequência direta e adequada da produção dos danos no lesado.
Face à factualidade dada como não escrita, que abrangeu os danos decorrentes de uma descrição vaga, sem qualquer concretização, no espaço e no tempo, dos comportamentos imputados ao arguido, relativamente aos quais não pôde exercer efetivamente o seu direito de defesa, impõe-se a absolvição do arguido/demandado quanto ao pedido de indemnização civil.

III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso procedente e em consequência absolver o arguido B… do crime de violência doméstica pelo qual foi acusado, assim como do pedido de indemnização formulado pela Assistente/demandante C….
Custas pela assistente, fixando-se em 4 Ucs a taxa de justiça [art.515.º, n.º1, al.b), do C.P.Penal.
[texto elaborado pela relatora e revisto por ambas as signatárias]

Porto, 30/9/2015
Maria Luísa Arantes
Ana Bacelar
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[1] v. neste sentido Ac.R.Porto de 9/10/2013, proc. n.º496/07.0GEGDM.P1, relatado pelo Desembargador José Carreto, in www.dgsi.pt.
[2] Ac.STJ 21/2/2007, Proc 06P3932, «O arguido só pode contrariar a acusação ou a pronúncia, de forma adequada e eficaz, se naquelas peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, isto é, o caso concreto ou particular submetido a julgamento. De outro modo, ou seja, perante uma acusação ou uma pronúncia constituídas por factos genéricos, não individualizados, fica ou pode ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender.»
[3] Ricardo Bragança de Matos, in “Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima”, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, págs.100-101).
[4] No sentido de que as imputações genéricas devem dar-se como não escritas, v., entre outros, Ac.TJ de 6/5/2004, proc.04P908, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho e Ac.STJ de 2/4/2008, proc.n.º07P4197, relatado pelo Conselheiro Raul Borges
[5] Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332.