Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3481/18.2T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: INSPECÇÃO AO LOCAL
FALTA DE AUTO DE INSPECÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
REAPRECIAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FOTOGRAFIAS
FORÇA PROBATÓRIA
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE DE TRABALHO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RP202207133481/18.2T8VFR.P1
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo sido efectuada inspecção ao local onde ocorreu o acidente (de trabalho), na qual, para além do que foi constatado da sua observação, foram também dadas explicações pela A. quanto ao modo de ocorrência do acidente, mas não tendo sido elaborado auto de inspecção, nem consignadas as explicações dadas, e resultando da fundamentação da decisão da matéria de facto que tal diligência de prova se mostrou relevante no sentido da decisão proferida, foi cometida nulidade processual (art. 195º do CPC/2013) que, não tendo sido arguida até às alegações orais proferidas em audiência de julgamento ou, sequer, no prazo de 10 dias a contar da notificação da sentença, se encontra sanada (art. 199º, nº 1, do mesmo).
II - Para a reapreciação pela Relação da decisão da matéria de facto, salvo a possibilidade de alteração por virtude de matéria que se encontre plenamente provada por acordo das partes nos articulados, por documentos ou por confissão reduzida a escrito (art. 607º, nº 4, do CPC/2013), é necessário, no que toca à prova sujeita à livre apreciação do julgador, que aquela disponha de todos os meios de prova de que a 1ª instância dispôs para formar a sua convicção, o que não sucede no caso referido em I, designadamente no que toca ao concreto local e posição da A/sinistrada aquando da ocorrência do acidente.
III - A força probatória plena, nos termos do art. 368º do Cód. Civil, reporta-se ao que se encontra retratado nas fotografias e que permitam uma correcta percepção do retratado, não sendo extensiva ao que nelas não se encontre objectivamente reproduzido e/ou ao que delas não se possa retirar por mera visualização das mesmas, designadamente ao que não possa ser totalmente perceptível e às ilações que, em conjugação com outra prova, possam ser extraídas da realidade que representam.
IV - Para que, nos termos e para os efeitos do art. 14º, nºs 1, al. b) e 3, da Lei 98/2009, ocorra negligência grosseira, não basta a mera negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário em alto e relevante grau e, bem assim, que o acidente seja imputável exclusivamente ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado.
V - Nada impede que, na sentença em que se reconhece a existência de acidente de trabalho, ainda que não tenha a sinistrada ficado afectada de IPATH, mas apenas de IPP, se lhe reconheça o direito às prestações previstas no 25º da Lei 98/2009 caso delas venha a necessitar, o que não é inconstitucional (por alegada violação dos princípios da certeza, confiança e da segurança jurídicas).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 3481/18.2T8VFR.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1284)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Na presente acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, participado, aos 15/10/2018, acidente de trabalho de que teria sido vítima a A., AA, quando trabalhava por conta da Ré, BB, representada por CC, seu tutor, realizou-se, na fase conciliatória do processo, tentativa de conciliação que se frustrou em virtude de a empregadora não ter aceitado a existência de um acidente de trabalho, por considerar que a queda que vitimou a sinistrada ocorreu na propriedade vizinha, contígua à propriedade da empregadora e, nessa medida, fora do exercício das suas funções, assim como não aceitou o período de ITA e grau final de IPP atribuído no exame médico singular que teve lugar em tal fase.

A A. veio requerer a abertura da fase contenciosa, apresentando petição inicial contra a Ré, alegando que sofreu um acidente de trabalho, em 11/09/2018, quando se encontrava a apanhar maracujás em cima do terraço localizado na parte lateral da casa da ré e se desequilibrou, caindo em cima de uma chapa existente na habitação contígua. Não tendo a ré transferido a responsabilidade emergente de acidente de trabalho para qualquer entidade seguradora, é a mesma responsável pela reparação do acidente que a vitimou.
Pediu a condenação da ré a pagar-lhe:
a) O capital de remição resultante da pensão anual obrigatoriamente remível de €588,29, devido desde 02/06/2019, dia seguinte ao da alta;
b) O montante de €4.404,38, a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta;
c) O montante de €30,00, referente a despesas de transporte;
d) Juros de mora, à taxa legal de 4%, sobre as ditas quantias, contados desde o seu vencimento e até efectivo e integral pagamento;
e) Os tratamentos que se venham a mostrar-se indicados à sua situação.
Mais requereu a fixação de uma pensão provisória.

Foi citado o Instituto da Segurança Social, I.P., não tendo o mesmo deduzido pedido de reembolso.

Regularmente citada, a Ré contestou, impugnando que o acidente tenha ocorrido da forma descrita na petição inicial, porquanto não é possível que um desequilíbrio da autora no terraço existente na parte lateral da habitação da ré determinasse a sua queda em cima da chapa existente na propriedade contígua, que se situa a uma cota superior.
Por isso, o acidente ocorreu quando a autora subiu ao terraço de cobertura da garagem existente na propriedade contígua e se colocou em cima da chapa/placa em material plástico para apanhar maracujás, de onde caiu. Não ocorreu, pois, no seu local de trabalho nem em local onde a autora devesse dirigir-se em virtude do seu trabalho.
Ademais, a apanha de maracujás não estava compreendida na actividade para a qual a autora foi contratada nem da mesma nunca resultaria, como não resultou, qualquer proveito económico para a ré ou os seus filhos.
Ainda que assim não se considere, o acidente deverá ser descaracterizado, porque decorrente de negligência grosseira da autora.
Como meios de prova requereu, para além do mais a inspecção judicial ao local do acidente.

Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, seleccionados os factos assentes e enunciados os temas da prova [do seguinte modo: “1. Tarefas concretamente executadas pela Autora no âmbito das funções referidas em 4.º. 2. Circunstâncias de tempo, modo e lugar da ocorrência do acidente. 3. Lesões derivadas do acidente. 4. Sequelas derivadas do acidente. 5. Período de Incapacidade Temporária Absoluta decorrente do acidente. 6. Incapacidade Permanente derivada do acidente. 7. Despesas de transporte incorridas com o acidente referido em 2.º”]
Foi determinado o desdobramento do processo, tendo sido proferido despacho a declarar a inutilidade superveniente do apenso de fixação de incapacidade, em face da concordância entretanto expressa pela ré com a descrição das sequelas, grau de IPP e período de ITA fixados no exame singular realizado durante a fase conciliatória do processo, assim como da posição da autora, no sentido de prescindir da realização da junta médica.

Realizou-se, no dia 11.11.2021, a audiência de discussão e julgamento, na qual estiveram presentes a A., o tutor da Ré e os ilustres mandatários das partes, no decurso da qual foi determinada a realização de inspecção judicial ao local do acidente, constando da acta da referida audiência, para além do mais, o seguinte:
“(…)
No decorrer do depoimento da sinistrada, a Mmª Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO
Uma vez que foi requerida pela Ré / Entidade Patronal a inspeção judicial ao local do sinistro, em face das declarações da Sinistrada e de modo a melhor se aferir como o acidente ocorreu, defere-se a requerida inspeção ao local, a efectuar-se de imediato.
(…)
**
Seguidamente, o tribunal deslocou-se ao local.
**
Finda a inspeção ao local o tribunal continuou a ouvir a Autora / Sinistrada”, tendo a audiência prosseguido com a inquirição de testemunhas e, após, finalizado com as alegações orais proferidas pelos ilustres mandatários das partes.

Aos 15.12.2021 foi proferida sentença, notificada aos ilustres mandatários das partes, via citius, com data de elaboração de 16.12.2021, a qual decidiu nos seguintes termos:
“A) Condena-se a ré BB no pagamento à autora AA:
1) Da quantia de €30,00 (trinta euros), a título de despesas de transporte ao GML de Santa Maria da Feira e ao Tribunal, acrescidos dos juros de mora, à taxa legal, desde 25/02/2021 até efectivo e integral pagamento.
2) Do capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia, no montante de €588,29 (quinhentos e oitenta e oito euros e vinte e nove cêntimos), acrescido dos juros de mora, à taxa legal, desde 02/06/2019 até efectivo e integral pagamento.
3) Da quantia de €4.095,59 (quatro mil e noventa e cinco euros e cinquenta e nove cêntimos), correspondente à indemnização por incapacidade temporária absoluta, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde 12/09/2018 até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se da ré do demais peticionado.
B) Reconhece-se à autora o direito às prestações em espécie previstas no artigo 25.º, da Lei n.º 98/2009, designadamente, tratamentos assistenciais, hospitalares, médicos e medicamentosos de que tenha necessidade no futuro, condenando-se a ré a prestar-lhas.
C) Condena-se a autora e a ré no pagamento das custas processuais, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em de 2,69% e 97,31%, respectivamente.
*
Valor da acção – € 11.337,44 - artigo 120.º, do Código de Processo do Trabalho.
*
Uma vez que a sinistrada deverá receber um capital de remição, após trânsito, cumpra o disposto nos artigos 148.º nºs. 3 e 4 e 149.º, do Código de Processo do Trabalho.
*
Registe e notifique, sendo a autora também para, em 10 dias, esclarecer se mantém o pedido de fixação de pensão provisória.”.

A A. informou manter o interesse na fixação da pensão provisória

Inconformada, a Ré, aos 17.01.2022, recorreu da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
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Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, se dignem julgar procedente o presente recurso, por provado, e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que julgue totalmente improcedente a acção especial emergente de acidente de trabalho.”

A A. contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
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………………………………
Foi pela 1ª instância proferido despacho indeferindo a invocada nulidade por entender inexistir fundamento legal para o efeito, bem como a julgar a caução validamente prestada, a admitir o recurso e a fixar-lhe efeito suspensivo.

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, ao qual apenas respondeu a Recorrida, com ele concordando.

Colheram-se os vistos legais.
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II. Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância

É a seguinte a decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância:
“II-A. FACTOS PROVADOS.
Com relevo para a decisão da presente causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1) A autora AA nasceu em .../.../1963.
2) A autora é beneficiária da Segurança Social com o n.º ....
3) Por sentença proferida em 1 de Setembro de 2016, no âmbito do proc. n.º 136/16.6T8VFR, da então Instância Local Cível de Santa Maria da Feira, J3, foi decretada a interdição da ré BB, tendo sido fixado o começo da incapacidade no início do ano de 2005.
4) Desde Janeiro de 2010, e até pelo menos 11 de Setembro de 2018, a autora desempenhou funções de serviço doméstico, sob a autoridade e direcção de BB, mediante o pagamento de uma retribuição mensal de €580,00 x 14 meses.
5) A autora detinha a categoria profissional de empregada doméstica e cuidadora de pessoa idosa.
6) O pagamento do vencimento era efectuado da seguinte forma:
a. Durante o período de vida do marido da ré, o vencimento era liquidado parcialmente em numerário e o remanescente era pago através de cheque;
b. Após o falecimento do marido da ré, o vencimento era liquidado pelos filhos da ré em numerário, com excepção do mês de Setembro de 2018, em que foi liquidado parcialmente o vencimento através da entrega de cheque, tendo sido este o último mês em que a autora auferiu salário.
7) A ré não tinha a sua responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho transferida para qualquer Companhia de Seguros.
8) No dia 11/09/2018, a autora efectuou a limpeza habitual da ré, tendo procedido à muda de roupa da mesma e da respectiva cama.
9) Após a lavagem da roupa, deslocou-se à parte superior do terraço/placa localizada na parte lateral da habitação da ré, para colocar a roupa a secar.
10) Após isso, a autora procedeu à apanha de maracujás ali existentes.
11) Durante a apanha dos maracujás, quando se encontrava ainda em cima do dito terraço/placa, a autora debruçou-se por cima de uma chapa existente na habitação contígua e desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa.
12) Em virtude dessa chapa ter cedido, a autora caiu, de uma altura de cerca de 2 metros, no chão daquela habitação.
13) No exercício da actividade contratada, era pedido à autora que prestasse vigilância e assistência à ré, lavasse e tratasse das roupas, limpasse e arrumasse a casa e confeccionasse refeições.
14) Além disso, a autora, por ordem e fiscalização da ré, através de instruções emanadas pelos seus filhos, incluindo o seu tutor, prestava ainda, de forma constante e reiterada, os seguintes serviços:
a. Deslocava-se à frutaria;
b. Deslocava-se ao cemitério, após a morte do marido da ré, para limpeza da campa;
c. Plantava no quintal da casa, alface, coentros, salsa;
d. Efectuava recados.
15) A autora habitualmente procedia à apanha de maracujás, os quais se destinavam, entre outros, à ré e aos filhos desta, incluindo o seu tutor.
16) Em virtude da queda descrita, a autora sofreu traumatismo na região dorsal e do ombro esquerdo, do qual resultou fractura complexa da omoplata esquerda, tendo sido imobilizada com suspensão braquial e fractura de D11, sem necessidade de imobilização.
17) Em 23/09/2020, aquando da realização do exame no GML, a autora apresentava à observação médica as seguintes lesões e/ou sequelas relacionáveis com o sinistro:
a) ráquis: lombalgia, sem irradiação, que refere agravar-se com a realização de esforços; reflexos osteotendinosos presentes e simétricos; laségue negativo; marcha em bicos de pés e calcanhares sem alterações;
b) membro superior esquerdo: limitação funcional do ombro esquerdo, não conseguindo levar a mão à nuca e levando com dificuldade ao ombro oposto e região lombar; antepulsão até 120º, retropulsão até 20º e abdução até 80º.
18) Em virtude do sinistro, esteve a autora afectada de incapacidade temporária absoluta para o trabalho desde 12/09/2018 até 01/06/2019 (263 dias), data da alta médica.
19) Por via das sequelas descritas, a autora está afectada de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 10,35% (Cap. I 1.1.1.b) da TNI – raquialgia residual; Cap. I 3.2.7.3. b) da TNI – rigidez do ombro esquerdo), incluindo o factor de bonificação 1,5 em virtude da idade.
20) Tais sequelas justificam um prejuízo para o desempenho da actividade profissional da autora, na dimensão da IPP atribuída, mas não importam uma IPATH.
21) Em 24/02/2021, a autora interpelou a ré para pagamento da quantia de €30,00, relativa a despesas que suportou com deslocações ao Tribunal e ao GMLF de Entre Douro e Vouga.
22) O terraço/placa que pertence ao prédio da ré situa-se a uma cota inferior em relação à placa a ele contígua, pertencente ao prédio vizinho.
23) E situa-se a uma cota inferior à chapa existente nessa placa contígua ao prédio da ré.
24) Essa chapa é em material plástico.
25) A árvore de maracujás cresceu de forma espontânea.
26) Não era cuidada, muito menos com qualquer finalidade económica.
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II-B. FACTOS NÃO PROVADOS.
Com relevância para a decisão, não se consideram provados os seguintes factos:
27) A IPP de que a autora se encontra afectada ascende a 10,38%.
28) À autora apenas era pedido que efectuasse os trabalhos referidos em 13) e 14.a).
29) Para além do referido em 14) e nos termos aí mencionados, a autora plantou também maracujás.
30) A apanha dos maracujás pela autora ocorria na sequência do mencionado em 29).
31) O acesso à placa/chapa existente no prédio contíguo ao da ré só é possível através da invasão do terraço de cobertura da garagem da propriedade contígua, mediante a subida, a partir do terraço da ré, da cobertura da garagem.
32) A autora subiu ao terraço de cobertura da garagem contígua.
33) A autora colocou-se em cima da chapa de plástico para apanhar maracujás.
34) A apanha de maracujás não está compreendida na actividade contratada com a autora, nem se enquadra nas tarefas habitualmente por si exercidas.
35) A ré, fosse directamente ou por intermédio dos seus filhos, não deu ordens para que a autora procedesse à apanha de maracujás.
36) Tal actividade não foi pela ré ou os seus filhos consentida.
37) Da apanha de maracujás não resultou qualquer proveito económico para a ré ou os seus filhos.
38) A autora apanhou maracujás, por sua livre e espontânea vontade e para seu proveito próprio.”
***
III. Fundamentação

1. Salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, são as seguintes as questões suscitadas pela Recorrente:
- Da inexistência do auto de inspecção judicial e da anulação da sentença ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1 e n.º 2 alínea c), do Código de Processo Civil [para apuramento e ampliação da decisão da matéria de facto relativamente ao local do acidente e ao modo como o acidente aconteceu, com repetição da inspecção judicial ao local, a realizar com intervenção de técnico que tenha competência/habilitações para auxiliar e elucidar o Tribunal na tarefa de reconstituir o acidente.]
- Impugnação da decisão da matéria de facto.
- Inexistência de acidente de trabalho;
- Descaracterização de acidente de trabalho com o fundamento previsto no artigo 14.º, n.º 1 alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro [negligência grosseira da A.].
- Da condenação nas prestações em espécie.

2. Da inexistência do auto de inspecção judicial e da anulação da sentença ao abrigo do disposto no 662.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do CPC.

Diz a Recorrente, em síntese que, ao contrário do que deveria, não foi elaborado auto da inspecção judicial ao local do acidente, inspecção esta que, como decorre da fundamentação da decisão da matéria de facto, foi relevante para a convicção da Mmª Juiz no sentido do que decidiu; as considerações que, sobre o observado na diligência de inspecção judicial ao local, se teçam na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto, não substituem tal auto; a sua inexistência leva a que o Tribunal de recurso se veja impedido de proceder a um cabal controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, não a podendo alterar por não dispor de todos os meios de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados; diante das lacunas e dúvidas expostas no corpo das alegações, quer quanto ao local do acidente, quer quanto ao modo como o acidente aconteceu, a decisão proferida sobre a matéria de facto não ficou suficientemente esclarecida, sendo (também) deficiente, obscura ou contraditória; daí que se imponha, nos termos do artigo 662.º, n.º 2 alínea c), do Código de Processo Civil, a anulação da sentença recorrida para apuramento e ampliação da decisão da matéria de facto relativamente ao local do acidente e ao modo como o acidente aconteceu, com repetição da inspecção judicial ao local, a realizar com intervenção de técnico que tenha competência/habilitações para auxiliar e elucidar o Tribunal na tarefa de reconstituir o acidente.

2.1. Dispõe o art. 390º do Cód. Civil que a prova por inspecção tem por fim a percepção directa de factos pelo tribunal e, o art. 391º do mesmo, que o seu resultado é apreciado livremente.
Por sua vez, no CPC/2013, dispõe-se no:
- No art. 490º, nº 1, que: “1. O tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com a ressalva da intimidade da vida provada e familiar e da dignidade humana, inspeccionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária
- No art. 493º: “Da diligência é lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, Almedina, pág. 350, em anotação ao art. 493º do CPC/2013, referem que: <<3. Omitindo o auto de inspecção os elementos úteis a que o preceito sob anotação se refere, há que aplicar o regime geral das nulidades dos atos processuais (ac. do TRP de 2.12.08, Vieira e Cunha, www.dgsi.pt, proc. 0826753>>, acórdão este do qual consta o seguinte:
<< Quanto ao “auto de inspecção ao local”, a fls. 156 do processo, é um facto que, do mesmo auto, não decorrem directamente os “elementos úteis”, na expressão do artº 615º C.P.Civ. de que, mais tarde, a Mmª Juiz “a quo” lançou mão, na fundamentação da matéria que considerou provada – desta forma, impõe-se a conclusão de que o citado normativo não foi obedecido na elaboração do auto, e fossem quais fossem as “observações” ou “elementos úteis” relevantes para a decisão que viessem a constar do auto.
Foi desta forma cometida uma nulidade, no sentido em que “a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa”, tendo a inspecção judicial influenciado, como influenciou, a convicção formada pela Mmª Juiz “a quo” – artº 201º nº1 C.P.Civ.
Porém, tal nulidade encontrava-se sujeita a prazo de arguição, nos termos dos artºs 205º nº1 e 204º C.P.Civ. – tal prazo, nos termos do primeiro dos normativos citados, acabava no momento em que o acto findasse, já que as partes se encontravam presentes no momento da inspecção efectuada; na verdade, quem deseja valer-se da nulidade, deve sindicar todos os passos de validade do acto e alertar o tribunal para que tome as providências necessárias (desde que o tribunal não supra as condições de validade oficiosamente – artº 205º nº2 C.P.Civ. – enquanto o acto se não mostrar concluído) – neste sentido, vejam-se Ac.R.P. 6/6/06 in www.dgsi.pt, pº nº 0621050, relator: Henrique Araújo, e Ac.R.P. 7/2/00 in www.dgsi.pt, pº nº 9951096, relator: Aníbal Jerónimo.
Não havendo qualquer reacção, a nulidade cometida ficou sanada, sendo manifesta a extemporaneidade da sua arguição apenas nas alegações de recurso, ligando à decisão sobre a matéria de facto uma nulidade cometida anteriormente (ut Ac. R.E. 16/2/95 Bol.444/732).
Sanada a nulidade, quer isto também dizer que, enquanto a decisão sobre a matéria de facto logre exteriorizar a convicção da Mmª Juiz “a quo” em matéria de inspecção judicial, ou seja, aquilo que a Mmª Juiz “a quo” declara ter observado “in loco”, valerá tal exteriorização enquanto resultado da própria inspecção judicial em si.>>
Com relevância sobre a omissão do auto de inspecção pronunciou-se também o Acórdão da Relação de Coimbra de 11.09.2018, Proc. 5547/16.4/8CBR.C1, in www.dgsi.pt, citado pelo Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer, Acórdão esse no qual se refere o seguinte:
<<B) – De acordo com o artº 662º, nº 1, do NCPC a Relação “deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
No caso “sub judice” os Apelantes sustentam, em síntese, que os pontos dados como não provados na sentença recorrida deveriam ter sido considerados como provados.
(…)
Adiante-se, desde já, que tal como sucede quanto aos documentos - quer no que concerne aos documentos particulares (376º do CC, “a contrario”) quer relativamente àqueles que assumem a natureza de documentos autênticos - estes na parte desprovida de força probatória plena (artº 371º, nº 1, do CC) -, é o princípio da livre convicção do Tribunal, estatuído no art.º 607º, n.º 5, do NCPC, que também rege a valoração da prova testemunhal.
Por outro lado, o resultado da prova pericial, entendido este como compreendendo o relatório da perícia e eventuais complementos, também consubstancia um elemento de prova sujeito à livre apreciação do Tribunal (artº 389º do CC e 489º do NCPC) e o mesmo se diga do resultado da inspecção judicial (art.º 391º do CC).
Ora, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, ao longo da fundamentação da decisão da matéria de facto, faz apelo, como elemento que concorreu para a formação da sua convicção quanto ao sentido dessa mesma decisão, à inspecção judicial, tendo, aliás, começado por dizer, no início de tal fundamentação, que “A convicção do Tribunal alicerçou-se nos factos admitidos por acordo das partes, no teor dos documentos juntos aos autos a fls. 9 vº a 17, 29 vº a 33 e 105 a 107, na inspecção judicial (cfr. auto a fls. 78 vº), no(s) relatório(s) pericial(ais) de fls. 47 a 57, 89 a 103, nos esclarecimentos do sr. perito, nas declarações de parte do autor e do réu e no depoimento das testemunhas.”, realçando, depois, a inspecção judicial como “...fundamental para apurar as características dos prédios.”.
Ora, a primeira observação que nos cumpre fazer tem a ver, precisamente, com a inspecção judicial, pois que, tendo esta tido lugar, como resulta do acima relatados, nas sessões da audiência final que tiveram lugar em 29-06-2017 e 24-10-2017, nas actas respectivas não se fez constar os elementos úteis que resultaram da inspecção.

Não se observou, pois, o disposto no artº 493º do NCPC (que corresponde ao art.º 615º do pretérito CPC), que determina que, procedendo-se a inspecção judicial, da diligência seja “lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo”.
Este registo serve para as partes ficarem cientes daquilo que, na perspectiva do julgador, se pode constatar, ou não, no local inspeccionado, servindo, ainda, para relembrar o julgador, na ocasião em que procede à elaboração da decisão relativa à matéria de facto, daquilo que constatou na diligência, para o correlacionar com os restantes elementos probatórios, sendo, ainda, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o elemento relativo a essa diligência que possibilita ao Tribunal “ad quem” aferir, em conjugação com os restantes elementos de prova, do acerto da valoração probatória de que resultou essa decisão.
A omissão do auto inspecção a que se reporta o art.º 493º do NCPC, ou dos elementos que esta disposição legal estabelece que nele fiquem registados, não tendo sanção especificamente expressa, integra a falta de observância de uma formalidade que a lei prescreve, consubstanciando, se tiver influência na decisão da causa, nulidade secundária submetida à regra geral do art. 195º do CPC.
Não há dúvida que, realizada, como dão nota as actas das sessões de julgamento de 29-06-2017 e de 24-10-2017, a inspecção judicial, não se consignaram nessas actas os elementos que se tiveram como úteis à decisão da causa. E também é inquestionável que a Mma. Juiz do Tribunal a quo” entendeu existirem tais elementos e que estes assumiram relevo na decisão que proferiu quanto da matéria de facto, pois que neles estribou também essa decisão, como resulta da respectiva fundamentação.
Como se infere do disposto no referido artº 493º, não substitui o “auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa” que a norma manda lavrar, as considerações que, sobre o observado na diligência, se teçam na motivação da decisão relativa à matéria de facto.
Concluindo-se, pois, que no caso em apreço, fundando, o observado através da inspecção, ainda que em conjugação com outras provas, a convicção que esteve na base da decisão proferida quanto à matéria de facto, a absoluta omissão do registo dos elementos a que se reporta o art.º 493º do NCPC, impossibilitando um cabal controlo da decisão de facto, assume clara influência na decisão da causa, consubstanciando, assim, como se disse já, a nulidade prevista no art.º 195º do NCPC.
Sob pena da respectiva sanação, a nulidade prevista no art.º 195º, n.º 1, do CPC, deve ser arguida pelo interessado, na ocasião em que seja cometida, caso este esteja presente (por si, ou pelo seu mandatário), ou no prazo de 10 dias a contar da data em que interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (artºs 195º, nº 1, 197º, nº 1, 199º, nº 1 e 149º, nº 1, do NCPC).
Aceita-se que não sendo habitual elaborar o auto de inspecção logo que terminada a diligência, às partes não fosse exigível arguir, nessa altura, a nulidade decorrente da aludida omissão. Contudo, seria normal que no decêndio subsequente a sessão de 24-10-2017, em que foram produzidas as alegações, os ilustres Mandatários das partes estivessem já em condições de verificar a omissão da acta de inspecção e, por conseguinte, de argui-la no prazo de 10 dias a contar dessa ocasião.
Porém, nem mesmo após ser-lhe notificada a sentença veio a Apelante, no aludido prazo de 10 dias ou, sequer, nas alegações do presente recurso, invocar tal nulidade, pelo que esta se sanou, não podendo deixar de se concluir, assim, que nada obsta à validade do contributo probatório da inspecção em causa, o que não significa que a omissão do registo que o artº 493º manda fazer não deixe de ter repercussões processuais, como seja a da impossibilidade de esta Relação, por não ter acesso a todos os elementos de prova em que se fundou a convicção do Tribunal “a quo”, reapreciar o julgamento da matéria de facto.
Efectivamente, o entendimento acima expresso quanto à sanação da nulidade decorrente da falta de auto da inspecção judicial, que é, afinal, aquilo a que se reconduz a omissão, em auto, ou acta, do registo dos elementos a que se reporta o artº 493º, não significa que a ausência desse auto seja inconsequente, já que a inacção das partes ao deixarem de reclamar a referida nulidade perante o Tribunal onde esta foi cometida - para que aí fosse possível suprir a omissão -, conduz a que, posteriormente, a Relação se veja impedida de proceder à cabal reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Esta Relação, embora no contexto das normas do CPC que vigoravam anteriormente à reforma introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12, proferiu Acórdão assim sumariado: “Procedendo o juiz a inspecção judicial sem que da mesma se tenha lavrado o competente auto, cometeu-se nulidade que influi na decisão da causa, pois fica impossibilitado o tribunal de recurso de proceder a exame crítico das provas para delas extrair as devidas conclusões.” (Cfr. BMJ n.º 296, pág. 342)- Acórdão de 5/2/1980, citado, sem discordância quanto ao respectivo entendimento, por Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a págs. 590, nota 3, do "Manual de Processo Civil” - Coimbra Editora - 1984.
Com a redacção que foi introduzida pelo citado DL nº 329-A/95, a necessidade de elaboração de auto da inspecção judicial deixou de estar limitada aos casos em que a diligência é efectuada pelo Tribunal Singular. Explicitando esta alteração, diz-se no preâmbulo desse DL nº 329-A/95: «… Quanto à prova por inspecção judicial, além de se expressar o ónus de a parte requerente fornecer ao tribunal os meios de viabilizar a realização da diligência, consagrou-se a redução da mesma a auto, independentemente da estrutura colegial ou singular do órgão julgador, até para melhor e mais efectivo exercício dos poderes de controlo, em matéria de facto, em caso de recurso da respectiva matéria.».
Também Lopes do Rego, em anotação ao art.º 615º do pretérito CPC, afirma: “A inspecção é sempre reduzida a auto, independentemente da estrutura colegial ou singular do tribunal, com vista a permitir à Relação o efectivo exercício dos poderes de controlo da decisão sobre a matéria de facto que lhe são conferidos pelo art.º 712.º.” - Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª ed., pág. 511.
Já se sabe que a Relação se encontra, relativamente à 1.ª instância, limitada na apreciação dos depoimentos e declarações, designadamente, pela falta da imediação, o que não a impede, contudo, embora com esse “handicap”, conhecido do legislador e que este não considerou relevante para o efeito, de sindicar tal julgamento. Todavia, abstraindo-nos da falta de imediação, a sindicância da decisão sobre a matéria de facto por parte da Relação não pode dispensar, no que concerne ao exame das provas, da verificação de condições idênticas, no que concerne à disponibilidade dos elementos de prova, àquelas que habilitaram o tribunal “a quo” a proferir tal decisão.
Efectivamente, a apreciação da impugnação da decisão de facto, incluindo a que verse meios probatórios que hajam sido gravados, efectuada nos termos do art.º 640.º, nº 1 b) e n.º 2, a), do NCPC, não pode prescindir dessa identidade de condições, não se vislumbrando possível dá-la como verificada quando, elementos de prova em que a convicção do tribunal “a quo” também se escorou para proferir a decisão impugnada, escapam ao controlo do tribunal de recurso.
Escapam a esta conclusão, tão-só, as situações em que a impugnação da matéria de facto apela apenas à inobservância das regras relativas a factos sujeitos à chamada prova tarifada, ou seja, os casos em que se tenha desprezado um elemento que prova plenamente os factos (v.g., confissão judicial escrita), ou em que se tenham dado como provados factos sem que esteja nos autos a espécie de prova que a lei exige para o efeito (v.g., documento autêntico) – situações essas em que a mera constatação da apontada inobservância impõe, “per se”, o êxito dessa impugnação.
É isso, a nosso ver, que ocorre no caso “sub judice”, ao estar vedada a esta Relação a possibilidade de sindicar, por falta de qualquer registo em auto ou em acta, dos elementos constatados na inspecção judicial, o que impossibilita a reapreciação da prova.
A semelhante conclusão se chegou no Acórdão da Relação do Porto de 3 de Julho de 2014 (Apelação nº 1548/10.4TBVCD.P1), onde, entre o mais, se escreveu:
«[…] o processo enferma de uma adversidade não anotada pelos recorrentes, nem pelos recorridos, e que consiste em se ter realizado inspecção judicial ao local mas não se ter lavrado o necessário auto de inspecção, conforme exigido pelo artigo 615.º do Código de Processo Civil em vigor à data da realização da inspecção e que corresponde sem modificações ao artigo 493.º do novo Código de Processo Civil, vindo apesar disso a dar-se especial relevo a este meio de prova na motivação da decisão da matéria de facto.
O auto de inspecção que a norma citada determina que seja elaborado, para além de ter de ser ditado pelo Mmo. Juiz que procede à inspecção, deve conter o relato daquilo que ele observou nos locais e pontos que as partes lhe sugeriram que observasse ou que entendeu observar. O auto não serve para apenas dizer que se fez a diligência ou como ela foi conduzida, deve servir para documentar o resultado da observação feita, descrever os aspectos objectivos que foram constatados no local e percepcionados directamente pelo julgador. O objectivo da redacção do auto de inspecção é, como é fácil de intuir, o de permitir que em sede de recurso o tribunal “ad quem” possa, através da simples leitura do auto, ter ao menos uma ideia clara do que foi percepcionado pelo julgador em ordem a formular conclusões sobre essas observações que lhe permitam compreender e interpretar os outros meios de prova.

Isso mesmo resulta claro do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, no qual, a propósito da prova por inspecção judicial, se menciona que se consagrou a redução da mesma a auto, independentemente da estrutura colegial ou singular do órgão julgador, até para melhor e mais efectivo exercício dos poderes de controlo, em matéria de facto, em caso de recurso da respectiva matéria.
No caso, da acta da audiência consta apenas a menção de que a inspecção foi realizada, o que, evidentemente, não constitui a título algum um auto de inspecção ao local que pressupõe um mínimo de descrição do resultado da observação feita no local.
A omissão do auto integrava a nulidade secundária prevista então no nº 1 do artigo 201.º (hoje 195.º) do Código de Processo Civil, mas, em virtude do disposto no artigo 205.º (hoje 199.º), nº 1, 1ª parte, do mesmo diploma, tinha de ser arguida pelas partes no próprio acto, o que não foi feito.
Não o tendo sido, nem em devido tempo nem agora em sede de recurso, e não sendo a nulidade de conhecimento oficioso, o tribunal ad quem está impedido de a conhecer e declarar - nesse sentido Acórdãos da Relação do Porto de 12.06.2012, relatado por Ramos Lopes, e da Relação de Coimbra de 04.10.2005, relatado por Monteiro Casimiro, e de 27.03.2012, relatado por Carlos Querido, in www.dgsi.pt.
Em resultado desta vicissitude o tribunal “ad quem” encontra-se privado da totalidade dos elementos probatórios em que a primeira instância fundou a decisão relativamente a tais factos impugnados. E uma vez que a modificação da matéria de facto pela Relação apenas pode ter lugar se constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, resta excluída a possibilidade de a Relação alterar a decisão da matéria de facto em relação a tal matéria - artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil -.
O mais que a Relação pode fazer, não tendo a omissão sido arguida e sanada em devido tempo, é anular, nos termos do artigo 662.º, nº 2, alínea c), 1ª parte, do Código de Processo Civil, a decisão proferida pela 1ª instância com vista à repetição de tal meio de prova, quando reconhecer que, devido à falta de registo dos elementos observados e colhidos na diligência, a decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória.
Na motivação da decisão da matéria de facto a Mma. Juíza a quo afirmou que “estribou a sua convicção, fundamentalmente, com a inspecção realizada ao local, estando aliás juntas aos autos as fotografias - bem elucidativas - do mesmo - vide fls. 325 a 334.”
Quanto ao relevo da inspecção, afirmou que “essa diligência, indiscutivelmente, auxiliou na percepção das questões de facto em discussão, e viabilizou deste modo a compreensão deste tribunal sobre a composição dos prédios em causa, e desde logo que estamos em presença de dois distintos prédios, a casa e a “I…”, separados por um muro alto de pedra de mais de dois metros de altura, e a ligá-las existe apenas uma porta com cerca de dois metros de largura.”
É assim evidente que neste caso concreto a inspecção judicial teve um relevo probatório decisivo e que as observações realizadas contribuíram para formação da convicção sobre a matéria de facto em discussão. Acresce que não se vislumbra nem vem acusada a existência de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição na decisão relativa à matéria de facto. A mesma é perfeitamente perceptível, permitindo descortinar totalmente aquilo que a Mma. Juíza a quo quis decidir e decidiu efectivamente.
Em suma, face ao relevo da inspecção judicial para a decisão proferida, à inexistência do auto de inspecção judicial e à impossibilidade de este vício ser agora conhecido e produzir efeito em relação ao processado, o tribunal não dispõe efectivamente de todos os meios de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados e, como tal, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não pode alterar a decisão da matéria de facto que vem impugnada. […]» - Em sentido idêntico, no domínio do pretérito CPC, o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 08 de Novembro de 2011 (Apelação nº 242/2000.C4) - não publicado, ao que se julga -, relatado pela ora 2ª Adjunta.
Esta conclusão alicerça-se, assim, “mutatis mutandis”, por identidade de razões, no fundamento subjacente à seguinte posição, expressa no Acórdão desta Relação, de 22/09/2015 (Apelação nº 198/10.0TBVLF.C1), consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase, relatado pela aqui 2ª Adjunta:
“...Convocando o Recorrente para as alterações pretendidas à matéria de facto o conteúdo do auto da inspecção judicial levada ao efeito ao local, além de prova testemunhal, documental e inspecção judicial, não se podendo apreciar um deles, não se pode, exceptuando os casos de modificação oficiosa da matéria de facto permitida pelo art.º 662º do Novo C. P. Civil, valorar somente um dos demais meios de prova convocados para a modificação pretendida.”
Estando esta Relação, pelo que ficou exposto, impossibilitada, de proceder à requerida reapreciação da matéria de facto, os factos provados e os factos não provados a atender, são aqueles que assim foram considerados na sentença ora sob recurso.
(…)>> [fim de transcrição]

2.2. No caso em apreço, a Mmª Juiz, no decurso da audiência de julgamento que teve lugar aos 11.11.2021 e à qual estiverem presentes os ilustres mandatários das partes, levou a cabo uma inspecção judicial ao local do acidente, sem que, contudo, tivesse elaborado o respectivo auto de inspecção e/ou feito consignar na acta da audiência de julgamento o que ocorreu e constatou em tal diligência e o que terá tido por relevante, conforme tudo decorre da respectiva acta do julgamento, o qual findou, nesse mesmo dia, com as alegações orais das partes.
Na fundamentação da decisão da matéria de facto, no que poderá relevar, foi referido o seguinte:
<<A convicção em que se alicerçou a decisão sobre a matéria de facto controvertida resultou do conjunto da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como dos documentos juntos aos autos e da inspecção judicial ao local, tudo apreciado livremente e de forma conjugada com as regras de experiência comum, em conformidade com o disposto no artigo 607.º do Código de Processo Civil, não olvidando desde logo a posição de ambas as partes vertidas nos respectivos articulados e da qual resulta incontroversa a factualidade vertida nos pontos 1) a 7) supra.
(…)
No que se refere ao modo como o acidente aconteceu refira-se, desde já, que não adquirimos a convicção de que o mesmo tenha acontecido tal como o tutor da ré, CC, o relatou – sendo que o seu relato, para além de interessado, foi feito através daquilo que ouviu dizer ao marido da ré (pessoa com evidentes problemas auditivos, que necessariamente contendem com a precisão dos factos por si percebidos e relatados) e das ilações que retirou acerca do modo como o mesmo ocorreu, em face da configuração do local -, nem de acordo com a singeleza da descrição efectuada pela autora AA.
Foi, pois essencial, para a formação da convicção do tribunal o que pudemos observar na inspecção judicial ao local.
Com efeito, daquela diligência, conjugada com as fotografias do local, juntas a fls. 140 a 144, resultou evidenciada a factualidade descrita em 22), 23) e 24), ou seja, a configuração do local onde a queda ocorreu, mas também a certeza de que o acesso à placa/chapa do prédio contíguo não é possível somente “através da invasão do terraço de cobertura da garagem da propriedade contígua, mediante a subida, a partir do terraço da ré, dessa cobertura”. Isto é, não é preciso “colocar o pé” em terraço alheio para aceder àquela cobertura, que era o facto implícito naquela alegação da ré.
E só no local, já depois das primeiras declarações prestadas pela autora, pudemos então compreender a fotografia de fls. 144, respeitante ao modo como a chapa ficou após a queda da autora e que desde sempre nos tinha suscitado alguma perplexidade, pois que se a autora tivesse subido ao terraço contíguo e se colocado em cima da chapa, dificilmente, segundo cremos, cairia com a cabeça de lado. É que o formato do buraco por si deixado nessa chapa é compatível com o facto de a mesma se ter aproximado do limite das duas propriedades (pensando-se sempre que a propriedade contígua se encontra a cota superior, sensivelmente a uma altura de 60 cm), se ter debruçado sobre a chapa para apanhar os maracujás e nesse acto se desequilibrado, caindo sobre a chapa e daí ao chão, porquanto o mesmo revela que a queda não ocorreu quando a autora se encontrava totalmente de frente para chapa, mas ligeiramente de lado.
Este elemento objectivo corrobora as declarações da autora que, apesar de num primeiro momento, ter tido que “vinha a descer, vi maracujás para apanhar, desequilibrei-me e caí”, tendo até dito que a queda se deu quando vinha a descer as escadas quando confrontada com a fotografia de fls. 141, o que não seria de todo possível, na medida em que não bastaria um desequilíbrio seu, face à configuração do local, para que a queda tivesse ocorrido sobre a chapa de cobertura da garagem do prédio vizinho, veio a declarar, explicitando melhor o seu relato, na medida em que foi capaz de o fazer, que a queda sucedeu porque se desequilibrou após se ter debruçado sobre a dita chapa. Aliás, outras expressões por si utilizadas apontam nesse sentido, pois que, segundo disse, “mergulhou por cima da placa quando estava junto ao canto”, isto é, quando se encontrava no limite do terraço da ré com a cobertura do prédio vizinho, e caiu “de cabeça”.
Ora, não existem motivos para duvidar da veracidade deste relato da autora, que no local até melhor exemplificou com gestos o que através de palavras quis dizercolocando-se junto ao limite das propriedades e reiteradamente referido que caiu sobre a placa, gesticulando com os braços no sentido em que a queda teve lugar -, tanto mais que, reitera-se, a configuração do buraco deixado por si na chapa se nos afigura deste modo explicada.
Nem se afirme que a autora alterou o relato da dinâmica do acidente, tendo por referência a história do evento que consta no exame médico singular da especialidade realizado na fase conciliatória do processo (cfr. fls. 56), tendo em conta que tal descrição é feita em discurso indirecto, com todas as reservas que isso coloca ao nível da exactidão na transmissão da informação obtida.
Por isso, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, aditou-se a expressão “debruçou-se por cima” da placa constante do ponto 11) dos factos provados, que constitui um menos relativamente ao que a ré havia alegado, no sentido de que a autora se tinha colocado em cima da placa.
Ninguém presenciou o acidente e, nessa medida, as conjecturas que CC fez a respeito do modo como o mesmo ocorreu, para além do que já se deixou dito quanto à sua fonte, não passaram disso mesmo, de meras presunções, pelo que não temos por certo que a autora tenha caminhado por cima da chapa de cobertura, sendo certo ainda que, confrontado com tal versão, o marido da autora negou que a tivesse transmitido ao depoente.
De todo o modo, reportou-se o depoente às características do local e qualidade da chapa que cedeu, o que igualmente se encontra evidenciado nas fotografias 140 a 144 e o Tribunal teve oportunidade de confirmar no local.
A autora, por sua vez, relatou ainda os trabalhos que no dia do sinistro havia feito e o motivo pelo qual se deslocou ao terraço, no sentido da factualidade dada como provada.
(…)” [sublinhados nossos]
E no despacho de admissão do recurso, sobre a referida omissão de elaboração do auto de inspecção, a Mmª Juiz referiu o seguinte:
<< Desde logo, tendo sido suscitada a questão sobre a nulidade da sentença com fundamento no disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, cumpre apreciá-la no presente despacho.
Com efeito, alega a recorrente que o Tribunal, ao omitir a elaboração do auto de inspecção ao local, tornou a decisão imperceptível, deficientemente fundamentada, obscura e contraditória, designadamente quanto ao local do acidente e modo com o mesmo ocorreu.
A recorrida pronunciou-se no sentido de que a apontada nulidade inexiste.
É nula a sentença quando, designadamente, “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (alínea c).
Conforme nos dão nota António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2021, p. 763, “a nulidade a que se reporta a 1.ª parte da alínea c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente”.
Ora, muito embora reconheçamos que, no rigor dos princípios, deveria ter sido elaborado auto de inspecção ao local, o mesmo apenas não teve lugar, na medida em que o Tribunal, no local, se limitou a constatar que as fotografias que constam do processo e foram juntas aos autos pela ré correspondiam ao local onde o acidente havia ocorrido. Vale isto por dizer que, o auto de inspecção ao local, caso tivesse sido elaborado, limitar-se-ia a dar como reproduzidas as fotografias em causa, concretamente as de fls. 140 a 144, já que inútil seria carrear para os autos novas fotografias ou descrever por palavras o que naquelas se mostra retratado. Com efeito, não resultou de tal inspecção qualquer pormenor relativo ao local do acidente que divergisse daquilo que das fotografias decorre e que, como tal, devesse ter sido assinalado no respectivo auto para, posteriormente, permitir a sua sindicância pelo Tribunal Superior.
Acresce que, conforme resulta da decisão da matéria de facto, a deslocação do Tribunal ao local apenas nos permitiu melhor avaliar os depoimentos prestados em audiência e, na ponderação dos mesmos, em conjugação com as fotografias (conforme aí é expressamente assinalado), conferir maior credibilidade a uns em detrimento de outros, por os ter considerado compatíveis com o local onde o acidente ocorreu.
Por conseguinte, julgamos que a sentença não padece do vício que lhe é assinalado.
Além disso, julgamos que a sentença encontra-se devidamente fundamentada e é perceptível o motivo pelo qual se acolheu a versão da sinistrada quanto ao modo como o acidente aconteceu, embora seja legítimo a ré contestar essa posição. Contudo, afigura-se-nos que a sua oposição à sentença se situa no plano da discordância com a decisão da matéria de facto, o que é diverso do fundamento da nulidade invocada.
Por outras palavras, na situação vertente, o que parece ocorrer é uma discordância relativamente à decisão proferida, nomeadamente à matéria de facto que foi dado como provada e à sua qualificação jurídica. Mas tal, só por si, não constitui causa de nulidade da sentença.
Nesta conformidade, indefere-se a invocada nulidade por entendermos inexistir fundamento legal para o efeito.”

2.2.1. As nulidades podem ser processuais, se derivam de actos ou omissões que foram praticados antes da prolação da sentença, constituindo anomalias do processo que devem ser conhecidas no Tribunal onde ocorreram; as nulidades podem também ser da sentença, se derivam de actos ou omissões praticados pelo Juiz na sentença, a estas se reportando o art. 615º do CPC/2013. Por sua vez, o art. 662º reporta-se à modificabilidade da decisão da matéria de facto pela Relação, prevendo-se no seu nº 2, al. c), a anulação da sentença quando, não constando do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão da matéria de facto, esta seja deficiente, obscura ou contraditória e a Relação considere indispensavel a sua ampliação.
A Mmª juiz, aquando do despacho de admissão do recurso, enquadrou o alegado pela Recorrente em nulidade de sentença a que se reporta o art. 615º, nº 1, al. c), preceito este que não é, todavia, o que está em causa no recurso. O que está em causa, de acordo com o alegado pela Recorrente, é, sim, eventual nulidade processual decorrente da omissão de formalidade que devereria ter sido observada (art. 195º do CPC) e a consequente necessidade de anulação da sentença para ampliação da decisão da matéria de facto nos termos do art. 662º, nº 2, al. c) por alegada ambiguidade, obscuridade e contradição na decisão da matéria de facto.

No caso, tendo sido efectuada inspecção ao local e que foi relevante para a decisão da matéria de facto conforme decorre do referido pela Mmª Juiz na fundamentação dessa decisão, mas não tendo sido elaborado o respectivo auto de diligência, foi efectivamente cometida nulidade processual por omissão de formalidade que deveria ter tido lugar e que é susceptível de influir no exame e decisão da causa. E realça-se também que, para além do que possa ter sido e foi constado pela Mmª Juiz da observação do próprio local, da fundamentação da decisão da matéria de facto decorre que, também aí, terá sido explicado e exemplificado pela A. o local onde se encontrava e a forma como sucedeu o acidente [“(...) que no local até melhor exemplificou com gestos o que através de palavras quis dizer – colocando-se junto ao limite das propriedades e reiteradamente referido que caiu sobre a placa, gesticulando com os braços no sentido em que a queda teve lugar, (...)”], o que também não ficou consignado em auto dessa diligência.
Tais omissões consubstanciam, pois, nulidade processual (art. 195º, nº 1, do CPC/2013) que, tendo o ilustre mandatário da Recorrente estado presente nessa diligência e na subsequente continuação, nesse mesmo dia, da audiência de julgamento, que culminou com as alegações orais, deveria, até este momento (alegações orais), ter invocado, sob pena de sanação (art. 199º, nº 1, do CPC/2013). E, ainda que, porventura, se pudesse admitir, como se diz no Acórdão da RC de 11.09.2018 acima transcrito, que, “não sendo habitual elaborar o auto de inspecção logo que terminada a diligência, às partes não fosse exigível arguir, nessa altura, a nulidade decorrente da aludida omissão”, sempre deveria a Recorrente ter arguido tal nulidade no prazo de 10 dias a contar da notificação da sentença, ou seja, até 05.01.2022, já incluindo o acréscimo do prazo que decorre do art. 139º, nº 5, do CPC/2013 [a sentença foi notificada ao ilustre mandatário da Ré, via citius, com data de elaboração de 16.12.2021, considerando-se o mesmo dela notificado aos 21.12.2021 e, tratando-se de processo de natureza urgente, cujo prazo corre em férias judiciais]. Ora, a omissão do auto de inspecção apenas foi suscitada pela Recorrente no recurso, este interposto aos 17.01.2022, já após o termo do mencionado prazo, ou seja, extemporaneamente.
Tal nulidade processual tem-se assim como sanada.

2.2.2. Aliás, e diga-se, a Recorrente, talvez por isso mesmo e em bom rigor, nem qualifica ou alude à omissão como consubstanciando nulidade processual. O que diz é que a decisão da matéria de facto é obscura, ambígua ou contraditória, carecendo de ampliação e que, como não foi elaborado o auto de inspecção judicial, deverá a sentença ser anulada nos termos do art. 662º, nº 2, al. c), por o processo não conter todos os elementos necessários à reapreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.
Ora, no que toca à apreciação da questão nesta perspectiva:
A fundamentar a pretendida anulação ao abrigo do citado art. 662º, nº 2, al. c), alega a Recorrente que:
“É consensual que para compreender a dinâmica de um acidente é fundamental a análise/observação do local do acidente.
Todavia, lendo aqueles pontos 22), 23) e 24) dos factos provados, a descrição do local onde terá ocorrido o alegado acidente mostra-se redutora e , por isso, incompleta.
Incompletude que compromete a análise e juízo crítico relativamente à sua dinâmica.
Com efeito, ao observar as fotografias do local (juntas a fls. 140 a 144), fica a certeza que era possível efectuar uma descrição mais pormenorizada desse local, referenciando detalhes susceptíveis de influírem na avaliação da dinâmica do suposto acidente, com vista a confirmar ou infirmar a sua ocorrência, designadamente, as construções existentes, as características destas, o estado de conservação e o seu posicionamento.
Na verdade - e apesar de se voltar a esta parte, mais adiante nestas alegações -, da mera observação dessas fotografias, resulta inequívoco que era possível enriquecer essa descrição [dos pontos 22), 23) e 24) dos factos provados], acrescentando, por exemplo, o seguinte:
- O terraço/placa de cobertura dos anexos da Ré gemina, lateralmente e exclusivamente, com uns anexos do prédio confrontante, sendo esses anexos em alvenaria/betão armado e cujo terraço/placa de cobertura é em laje aligeirada/betão armado.
- O terraço/placa pertencente aos anexos do prédio confrontante encontra-se a cota superior, cerca de 60 centímetros mais elevado (o que, aliás, está evidenciado no parágrafo 6 da “Motivação”, página 8 da Sentença recorrida), e numa posição anterior ao limite lateral do terraço/placa de cobertura dos anexos da Ré.
- A chapa ondulada em material plástico existente no prédio contíguo ao da Ré sobrepõe-se, parcialmente, ao terraço/placa dos anexos desse prédio, e funciona como coberto do pátio subsequente.
- O coberto em chapa plástica ondulada existente no prédio vizinho, tem como limite lateral o muro de vedação da Ré (e não o terraço/placa de cobertura dos anexos da Ré).
- Sobre o referido muro de vedação da Ré existe uma estrutura metálica vertical, cuja parte superior tem inclinação para dentro da propriedade da Ré, configurando um esteio.
A incompletude da descrição do local assume maior relevância, na medida em que, perspectivando o local da forma que vem de se aduzir, revela que o mesmo (local) não parece compatível com a descrição da dinâmica do acidente feita pela Autora …
… isto mesmo ignorando, ainda que por instantes, as contradições das suas declarações (assunto a que voltaremos mais adiante nestas alegações).
Acontece que;
Da acta da audiência de discussão e julgamento consta apenas a menção de que a inspecção foi realizada, o que, evidentemente, não constitui a título algum um auto de inspecção ao local que pressupõe um mínimo de descrição do resultado da observação feita no local.
Da mesma forma, as considerações que, sobre o observado na diligência (de inspecção judicial), se teçam na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto, não substituem o “ auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa ” que a referida norma manda lavrar.
Ora;
Face ao relevo da inspecção judicial para a decisão proferida e à inexistência do auto de inspecção judicial, este Tribunal de Recurso não dispõe efectivamente de todos os meios de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados e, como tal, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não pode alterar a decisão da matéria de facto que vem impugnada.
Deste modo, deve concluir-se que, no caso em apreço, a absoluta omissão do registo dos elementos a que se reporta o artigo 493.º do Código de Processo Civil, leva a que este Tribunal de Recurso se veja impedido de proceder a um cabal controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, com clara influência na decisão da causa.
Posto isto;
Diante das lacunas e dúvidas acima expostas, quer quanto ao local do acidente, quer quanto ao modo como o acidente aconteceu, é pois manifesto que, devido à falta de registo dos elementos observados e colhidos na diligência de inspecção judicial, a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente, quanto aos pontos infra assinalados, não só não ficou suficientemente esclarecida, como (também) é deficiente, obscura ou contraditória.
Assim, impõe-se, nos termos do artigo 662.º, n.º 2 alínea c), do Código de Processo Civil, a anulação da sentença proferida em primeira instância para apuramento e ampliação da decisão da matéria de facto relativamente ao local do acidente e ao modo como o acidente aconteceu, com repetição de tal meio de prova, a realizar com intervenção de técnico, nos termos do artigo 492.º do Código de Processo Civil, que tenha competência/habilitações para auxiliar e elucidar o Tribunal na (difícil) tarefa de reconstituir o acidente.”.
Na decisão da matéria de facto deu-se como provado o seguinte:
- 9) Após a lavagem da roupa, deslocou-se à parte superior do terraço/placa localizada na parte lateral da habitação da ré, para colocar a roupa a secar.
- 10) Após isso, a autora procedeu à apanha de maracujás ali existentes.
- 11) Durante a apanha dos maracujás, quando se encontrava ainda em cima do dito terraço/placa, a autora debruçou-se por cima de uma chapa existente na habitação contígua e desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa.
- 12) Em virtude dessa chapa ter cedido, a autora caiu, de uma altura de cerca de 2 metros, no chão daquela habitação.
- 22) O terraço/placa que pertence ao prédio da ré situa-se a uma cota inferior em relação à placa a ele contígua, pertencente ao prédio vizinho.
- 23) E situa-se a uma cota inferior à chapa existente nessa placa contígua ao prédio da ré.
- 24) Essa chapa é em material plástico.
E deu-se como não provado o seguinte:
- 31) O acesso à placa/chapa existente no prédio contíguo ao da ré só é possível através da invasão do terraço de cobertura da garagem da propriedade contígua, mediante a subida, a partir do terraço da ré, da cobertura da garagem.
- 32) A autora subiu ao terraço de cobertura da garagem contígua.
- 33) A autora colocou-se em cima da chapa de plástico para apanhar maracujás.

A questão da necessidade, ou não, da anulação da sentença, nos termos do art. 662º, nº 2, al. c), do CPC/2013 prende-se com a impugnação da decisão da matéria de facto, seja quanto à alteração do nº 11 da matéria de facto provada, seja quanto à ampliação dos factos provados requerida na conclusão 28ª, pelo que adiante será apreciada, a propósito da impugnação da decisão da matéria de facto.
Todavia, desde já aqui se deixa referido que a matéria de facto: é contraditória, quando existem pontos de facto que se anulam um ao outro (quando, num, se diz uma coisa e, noutro, se diz o seu contrário); é obscura, quando é ininteligível e é ambígua, quando se apresenta, total ou parcialmente, com um sentido duplo.
Importa também dizer que, não obstante o que esteja em causa seja o disposto no art. 662º, nº 2, al. c), do CPC/203, uma vez que a Mmº Juiz, aquando do despacho de admissão do recurso em que se pronunciou sobre a questão da omissão do auto de inspecção, o fez aludindo à nulidade de sentença prevista no art. 615º, nº 1, al. c), sempre se dirá que a mesma não existe. O vício da contradição ocorrerá quando se verifica uma real contradição entre os fundamentos e a decisão, isto é, quando os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou diferente; ou, por outras palavras, quando existe uma quebra no raciocínio lógico, não retirando o juiz, das premissas de que parte, a conclusão lógica que se imporia no silogismo judiciário; a obscuridade ocorre quando “a sentença, ou parte dela, é ininteligível” e, na ambiguidade, quando a sentença se apresenta “também total ou parcialmente, com um sentido duplo” – cfr. José Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, pág. 672.
De referir que tais nulidades não se confundem com eventual erro de julgamento.
Ora, no que se reporta à contradição entre a fundamentação e a decisão, não descortinamos qualquer oposição entre ambas. A fundamentação, em sede de enquadramento e aplicação do direito aos factos, aduzida pela Mmª Juiz não contém qualquer contradição entre ambas, tendo a Mmª Juiz, com base na decisão da matéria de facto e nas considerações que teceu, retirado a conclusão/decisão que, em seu entender, estava subjacente à fundamentação aduzida, não havendo qualquer quebra no raciocínio lógico, e sendo de referir que realidade diferente é se ocorreu, ou não, erro de julgamento seja na decisão da matéria de facto, seja na aplicação do direito, o que, todavia, não consubstancia a mencionada nulidade de sentença.
E, por outro lado, a sentença é clara no sentido de que a A., aquando do acidente, se encontrava em cima do terraço/placa do anexo da Ré. O que pode ocorrer é eventual erro de julgamento caso, como pretende a Recorrente, a A. estivesse colocada, não em cima desse terraço/placa, mas sim em cima do terraço/placa do anexo da propriedade vizinha e/ou ainda e eventualmente a necessidade de melhor esclarecimento em que concreto local do terraço/placa do anexo da Ré em que se encontraria, designadamente se se encontraria no canto/borda desse terraço/placa, o que todavia, já se prende com o citado art. 662º, nº 2, al. c).

3. Da impugnação da decisão da matéria de facto

A Recorrente impugna a decisão da matéria de facto pretendendo que os nºs 10, 11 e 12 [“10) Após isso, a autora procedeu à apanha de maracujás ali existentes; 11) Durante a apanha dos maracujás, quando se encontrava ainda em cima do dito terraço/placa, a autora debruçou-se por cima de uma chapa existente na habitação contígua e desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa; 12) Em virtude dessa chapa ter cedido, a autora caiu, de uma altura de cerca de 2 metros, no chão daquela habitação.”] sejam dados como não provados ou, subsidiariamente, que tenham a redacção indicada na conclusão 25ª <>
Pretende também, que seja aditada à matéria de facto provada a factualidade descrita na conclusão 29ª, que qualifica como consubstanciando factos instrumentais e que resultariam da instrução da causa:
“a) O terraço/placa de cobertura dos anexos da ré gemina, lateralmente e exclusivamente, com uns anexos do prédio confrontante, sendo esses anexos em alvenaria/betão armado e cujo terraço/placa de cobertura é em laje aligeirada/betão armado.
b) O terraço/placa pertencente aos anexos do prédio confrontante encontra-se a cota superior, cerca de 60 centímetros mais elevado, e numa posição anterior ao limite lateral do terraço/placa de cobertura dos anexos da ré.
c) A chapa ondulada em material plástico existente no prédio contíguo ao da ré sobrepõe-se, parcialmente, ao terraço/placa dos anexos desse prédio, e funciona como coberto do pátio subsequente.
d) O coberto em chapa plástica ondulada existente no prédio vizinho, tem como limite lateral o muro de vedação da ré (e não o terraço/placa de cobertura dos anexos).
e) Sobre o referido muro de vedação existe uma estrutura metálica vertical, cuja parte superior tem inclinação para dentro da propriedade da ré, configurando um esteio.
f) Os maracujás cresceram a partir do logradouro que fica perto da escadaria de acesso ao terraço/placa, apoiados numa estrutura metálica como se fossem esteios com uma ligeira inclinação para o interior da propriedade da ré.
g) Alguns ramos do maracujaleiro existente na propriedade da ré cresceram apoiados numa chapa de plástico existente no prédio contíguo ao da ré.
h) A autora sabia que a chapa existente no prédio vizinho é em material plástico.
i) A chapa existente no prédio vizinho não está fixada paralelamente ao terraço/placa do prédio da ré.
j) Para proceder à apanha desses maracujás, a autora colocou-se no canto/borda do terraço/placa que pertence ao prédio da ré.
k) Quando se deslocou para colocar a roupa a secar, a autora calçava uns chinelos em plástico.
l) A autora reconhece que arriscou e colocou a sua integridade física em risco quando decidiu apanhar os maracujás que estavam em cima da chapa de plástico.”
A Recorrente deu cumprimento aos requisitos previstos no art. 640º, nº s 1 e 2, al. a), do CPC/2013 [indicou a matéria de facto de que discorda, o sentido das respostas que pretende, os meios de prova em que se sustenta – declarações da A., cujos excertos localiza na gravação, para além de os transcrever, e que, em síntese, considera serem contraditórias e não suficientes no sentido de convicção segura quanto ao ocorrido e as fotografias juntas aos autos- mais invocando o disposto no art. 414º do CPC/2013, nos termos do qual, recaindo sobre a A. o ónus da prova, a dúvida sobre a realidade de um facto deve ser resolvida contra a parte a quem o facto aproveita, ou seja, contra a A.]

3.1. Começaremos, por uma questão de precedência lógica, pelos aditamentos à decisão da matéria de facto provada pretendidos pela Recorrente nas als. a), b), c), d), e), f), g), j) e que a mesma designa de factos instrumentais acima referidos.

3.1.1. Importa, no entanto e previamente, dizer o seguinte:
Alega a Recorrente que se tratam de factos instrumentais, que resultam da produção da prova, mormente das fotografias juntas aos autos e das declarações da A.
A contestação é o local próprio para o réu se defender, nela devendo “expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor”, conforme determina o art. 572º, al. b), do CPC/2013. Não obstante, o art. 72º do CPT, permite que o Tribunal possa atender a factualidade que não haja sido alegada, importando previamente esclarecer em que termos.
Ao caso, releva o citado art. 72º, na redacção introduzida pela Lei 107/2019, de 09.09, por ser a aplicável, o qual dispõe que: “1. Sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 5º do Código de Processo Civil, se no decurso da produção da prova surgirem factos essenciais que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve o juiz, na medida do necessário para o apuramento da verdade material, ampliar os temas da prova enunciados no despacho mencionado no artigo 596º do Código de Processo Civil ou, não o havendo, tomá-los em consideração na decisão, desde que sobe eles tenha incidido discussão. “2. Se os temas da prova forem ampliados nos termos do número anterior, podem as partes indicar as respetivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias. (…)”.
E, por sua vez, determina o art. 5º, mormente o seu nº 2, do CPC/2013, que: “1. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocada. 2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. 3. (…)”.
Sumariamente, os factos podem ser essenciais ou instrumentais.
Os factos essenciais são os factos integradores da causa de pedir, constitutivos do direito alegado tendo em atenção as previsões integradores das normas substantivas invocadas ou integradores das excepções peremptórias.
Os factos essenciais tanto abrangem os factos essenciais stricto sensu ou principais, a que se reporta o art. 5º, nº 1, do CPC/2013 e 72º, nº 1, do CPT, como os complementares, porquanto, sendo estes relevantes à procedência da pretensão, integram-se no conceito amplo de causa de pedir, a estes se reportando o art. 5º, nº 2, al. b), do CPC – cfr. Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, anotação ao art. 5º, págs 19 a 25.
Segundo Jorge Augusto Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 13ª edição, Almedina, pág. 305, factos essenciais “São os factos que integram a causa de pedir ou fundamentam as excepções. Por outras palavras, são os factos que concretizam a norma jurídica em que se fundamenta o direito invocado pelo autor ou em que se baseia a defesa do réu. São, em suma, os factos que, se vierem a ser provados, são decisivos para que a acção ou a exceção possa ser julgada procedente.
Podemos dizer, em síntese, que os factos essenciais ou fundamentais são os que integram a previsão da norma em que se funda a pretensão do autor (ou reconvinte) ou a exceção deduzida pelo réu (ou reconvinte). São, portanto, os factos cuja prova é indispensável para que seja julgada procedente a acção ou a exceção.”
Dos factos essenciais (integrando estes os principais e os complementares) se distinguem os factos instrumentais, os quais não integram a causa de pedir, sendo antes “factos indiciários ou presuntivos da causa de pedir. (…) de acordo com o artigo 349º CC “as Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. Assim, os factos instrumentais são factos conhecidos que permitem à parte firmar um facto constitutivo (facto desconhecido). Portanto, são factos meramente probatórios e não integram as normas de procedência, i.e., as previsões normativas dos regimes materiais que suportam o pedido do autor.(…)”, categoria esta que esta a que se reporta o art. 5º, nº 2, al. a), do CPC, estando fora do ónus de alegação– cfr. Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, anotação ao art. 5º, págs 19 a 25.
E, de acordo com Jorge Augusto Pais do Amaral, ob. citada, pág. 305, ««Os factos instrumentais destinam-se a realizar a prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo, uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa.
Os factos instrumentais podem ser carreados par ao processo pelo juiz, suprindo deste modo a falta de alegação pelas partes, com vista à justa composição do litígio.
Para Anselmo de Castro, factos indiciários, instrumentais ou simples “são factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da exceção – factos constitutivos. Por outras palavras: têm apenas a função possível de factos-base de presunção.”[1]
Segundo Castro Mendes, factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes.[2]
Os factos instrumentais servem para prova dos factos essenciais e só estes últimos podem preencher, no caso concreto, a previsão da norma jurídica.
Sobre os factos instrumentais possui o juiz poderes inquisitórios que lhe advêm do disposto no art.º 5º, nº 2.
(…)».
Articulando e conjugando os nºs 1 e 2 do art. 72º do CPT e o art. 5º, nº 2, do CPC, deles decorre que:
-Se se tratarem de factos essenciais complementares (al. b do art. 5º, nº 2), a Relação poderá deles conhecer se as partes tiverem tido a possibilidade de sobre eles se pronunciar (al. b), o que ocorre se eles tiverem sido discutidos em sede de audiência de discussão e julgamento, caso em que o recorrente os pode invocar em recurso, com vista a aditá-los, pois nesse caso existiu a possibilidade de o recorrido se pronunciar sobre eles.
- Se se tratarem de factos instrumentais, bastará que os mesmos tenham resultado da instrução da causa (al. a) do art. 5º, nº 2).
- Se se tratarem de factos essenciais stricto sensu ou principais: será aplicável o regime do art. 72º, nºs 1 e 2, deles resultando que, havendo a indicação dos temas da prova, o juiz deve proceder à sua ampliação, com observância do nº 2, do art. 72º, possibilidade esta que se destina à 1ª instância uma vez que é nesta que se procede à ampliação dos temas da prova e à tramitação prevista nesse nº 2

No caso, os factos constantes das als. a), b), c), d), e), f), g) e i) [a) O terraço/placa de cobertura dos anexos da ré gemina, lateralmente e exclusivamente, com uns anexos do prédio confrontante, sendo esses anexos em alvenaria/betão armado e cujo terraço/placa de cobertura é em laje aligeirada/betão armado; b) O terraço/placa pertencente aos anexos do prédio confrontante encontra-se a cota superior, cerca de 60 centímetros mais elevado, e numa posição anterior ao limite lateral do terraço/placa de cobertura dos anexos da ré; c) A chapa ondulada em material plástico existente no prédio contíguo ao da ré sobrepõe-se, parcialmente, ao terraço/placa dos anexos desse prédio, e funciona como coberto do pátio subsequente; d) O coberto em chapa plástica ondulada existente no prédio vizinho, tem como limite lateral o muro de vedação da ré (e não o terraço/placa de cobertura dos anexos); e) Sobre o referido muro de vedação existe uma estrutura metálica vertical, cuja parte superior tem inclinação para dentro da propriedade da ré, configurando um esteio; f) Os maracujás cresceram a partir do logradouro que fica perto da escadaria de acesso ao terraço/placa, apoiados numa estrutura metálica como se fossem esteios com uma ligeira inclinação para o interior da propriedade da ré; g) Alguns ramos do maracujaleiro existente na propriedade da ré cresceram apoiados numa chapa de plástico existente no prédio contíguo ao da ré; i) A chapa existente no prédio vizinho não está fixada paralelamente ao terraço/placa do prédio da ré;], consubstanciam factos instrumentais, relativos às características do local onde ocorreu o acidente.
Quanto ao facto a que se reporta à al. j) [j) Para proceder à apanha desses maracujás, a autora colocou-se no canto/borda do terraço/placa que pertence ao prédio da ré], embora podendo, eventualmente, relevar em matéria da alegada descaracterização do acidente como acidente de trabalho por negligência grosseira da A. [a avaliar pelo que a Recorrente alega no recurso quanto a essa questão], entendemos que se trata, em primeira linha, de facto essencial complementar da própria possibilidade da caracterização do acidente como acidente de trabalho, uma vez que se prende com a própria ocorrência do acidente e da percepção da sua dinâmica [o facto principal radica na ocorrência do acidente no local de trabalho, no caso na colocação da A. no terraço/placa do anexo pertencente à Ré] por forma à (eventual) conclusão da sua ocorrência no local de trabalho, com a consequente possibilidade da sua caracterização como acidente de trabalho.
Diga-se que, pese embora tal facto não haja sido alegado seja pela A. na petição inicial [nesta foi alegado que: “12.º No âmbito da sua atividade profissional, a A. sofreu um acidente de trabalho no dia 11 de Setembro de 2018. 13.º Que se consubstanciou numa queda no local de trabalho, e em horário laboral, designadamente de um terraço/placa existente na habitação da Ré, de uma altura de cerca de 2 metros. 14.º Sucede ainda que, no decurso do desequilíbrio da A., ainda em cima do terraço/placa da habitação da R., a mesma veio a cair com “estrondo” em cima de uma chapa, a qual “cedeu” e a queda terminou no chão de habitação lateral à da R.. 18.º Sucede que, no decurso de proceder ao apanhar dos maracujás, a A. desequilibrou-se, ainda em cima do terraço/placa existente na parte lateral da habitação da R., tendo vindo a cair em cima de uma chapa existente na habitação contígua, a qual cedeu e a A. terminou a queda no chão”], nem pela Ré na contestação [nesta foi alegado, nos arts. 20 e 21, que “20.º O acesso à referida placa/chapa só é possível através de invasão do terraço (de cobertura da garagem) da propriedade contígua, implicando o acesso ao mesmo a subida, a partir do terraço da Ré, da parede da garagem dessa propriedade contígua. Assim, temos que: 21.º O acidente em discussão nos autos ocorreu quanto a Autora subiu ao terraço de cobertura da garagem da propriedade contígua à habitação da Ré, e se colocou em cima da chapa/placa em material plástico para apanhar maracujás, e de onde caiu”], ele representa uma melhor concretização ou esclarecimento do local onde a A. se encontrava.
Com efeito, o que está em causa é o esclarecimento do concreto local onde a A. se encontrava aquando da queda: se em cima do terraço/placa do anexo da Ré, como descrito no nº 11 dos factos provados e, neste caso, se no canto/borda desse terraço, como referido pela Ré na impugnação a esse ponto 11 na redacção subsidiária que propõe e que consubstancia, neste particular, facto essencial, mas complementar; se se encontrava no canto/borda do terraço/placa do anexo do prédio contíguo ao da Ré como referido pela Recorrente na al. j) do aditamento que requer [salienta-se que estas duas versões da Recorrente - a proposta subsidiária quanto ao ponto 11 dos factos provados e a da al. j) do aditamento – não são compatíveis].
E como melhor resultará do que adiante se dirá, tal facto foi discutido em audiência de julgamento.
Uma vez que tal facto – al. j) do aditamento - se prende com a matéria da impugnação constante do nº 11 dos factos provados, será ela apreciada com juntamente com a impugnação deste.

3.1.2. Ainda previamente importa também dizer o seguinte:
Dispõe o art. 662º, nº 1, do CPC/2013, sob a epígrafe Modificabilidade da decisão da matéria de facto, que “1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
A Relação tem efectivamente poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto decidida pela 1ª instância. Não obstante, salva a matéria de facto que se encontre plenamente provada por acordo das partes nos articulados, por documentos ou por confissão reduzida a escrito (art. 607º, nº 4, do CPC/2013), para essa reapreciação é necessário, no que toca à prova sujeita à livre apreciação do julgador, que aquela disponha de todos os meios de prova de que a 1ª instância dispôs para formar a sua convicção, o que, aliás, é admitido pela própria Recorrente.
No que toca à prova documental, concretamente no que se refere às reproduções fotográficas, dispõe o art. 368º do Cód. Civil que: “ As reproduções fotográficas (…) fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão”.
No caso, a Relação não dispõe de todos os elementos em que a 1ª instância fundamentou a sua convicção e decisão da matéria de facto, pois que, como decorre do já referido, teve lugar uma inspecção ao local que, como resulta da fundamentação da decisão da matéria de facto aduzida pela Mmª Juiz, se mostrou relevante para tal decisão mas que de que não foi elaborado o respectivo auto, para além de que da mencionada fundamentação decorre que, também aí, terá sido explicado e exemplificado pela A. o local onde se encontrava e a forma como sucedeu o acidente [“(...) que no local até melhor exemplificou com gestos o que através de palavras quis dizer – colocando-se junto ao limite das propriedades e reiteradamente referido que caiu sobre a placa, gesticulando com os braços no sentido em que a queda teve lugar, (...)”] o que também não ficou consignado em auto dessa diligência e/ou não tendo as declarações aí prestadas sido gravadas e/ou reduzidas a escrito (o que, como já dito, consubstancia nulidade processual que se encontra sanada).
Não obstante, com a contestação, a Ré juntou aos autos diversas fotografias cuja exactidão não foi impugnada pela A. Assim, se e na medida em que tais fotografias retratem o alegado e permitam uma correcta percepção do retratado, poderá a Relação a elas atender, mas não mais do que isso. A força probatória plena de tais fotografias não é extensiva ao que nelas não se encontre objectivamente reproduzido e/ou ao que delas não se possa retirar por mera visualização das mesmas, designadamente ao que não possa ser totalmente perceptível e às ilações que, em conjugação com outra prova, possam ser extraídas da realidade que representam.
E, nos termos do art. 607º, nº 4, do CPC/2013, aplicável à Relação ex vi do art. 663, nº 2, do mesmo, o juiz deve ainda atender aos factos que se encontrem plenamente provados por documentos.

3.1.3. Assim e passando à reapreciação das als. a), b), c), d), e), f), g) e i) do aditamento:

Quanto à al. a) do aditamento, as mencionadas fotografias permitem comprovar o nela referido, porém com referência ao “anexo” da Ré e ao “anexo” do prédio confrontante (e não no plural, aos “anexos” da ré e do referido prédio).
Assim, adita-se à matéria de facto provada o nº 39, com o seguinte teor:
39. O terraço/placa de cobertura do anexo da ré gemina, lateralmente e exclusivamente, com um anexo do prédio confrontante, sendo esses anexos em alvenaria/betão armado e cujo terraço/placa de cobertura é em laje aligeirada/betão armado.

Quanto à al. b), as referidas fotografias permitem concluir que o terraço/placa pertencente ao anexo do prédio confrontante se encontra a cota superior [o que aliás já consta dos nºs 22 e 23 dos factos provados: “22) O terraço/placa que pertence ao prédio da ré situa-se a uma cota inferior em relação à placa a ele contígua, pertencente ao prédio vizinho. 23) E situa-se a uma cota inferior à chapa existente nessa placa contígua ao prédio da ré”], e bem assim que se encontra numa posição anterior ao limite lateral do terraço/ placa de cobertura do anexo da Ré.
Todavia, e pese embora as fotografias não permitam apurar a medida, em altura, da cota superior, na fundamentação da decisão da matéria de facto faz-se referência a que, na inspecção ao local, se constatou ser ela de cerca de 60 cm, o que a Ré, ora Recorrente, aceita, não sendo posto em causa pela A/Recorrida e não é incompatível com o retratado nas fotografias (pese embora destas não resulte a medida exacta), pelo que se aceita a mesma.
Já quanto à distância/comprimento entre o limite lateral do terraço/placa da cobertura do anexo da Ré e a cobertura em chapa plástica por onde a A. veio a cair não é, na fundamentação da decisão da matéria de facto, feita referência à mesma, nem ela se retira da mera visualização das fotografias, destas apenas se podendo concluir que se encontra a curta distância.
Assim, adita-se à matéria de facto provada o nº 40, com o seguinte teor:
40. O terraço/placa pertencente ao anexo do prédio confrontante encontra-se a cota superior, cerca de 60 centímetros mais elevado, e numa posição anterior ao limite lateral do terraço/placa de cobertura do anexo da ré, mas a curta distância desta.

Quanto à al. c) as fotografias confirmam que a chapa em material plástico existente no prédio contíguo ao da Ré funciona como coberto do pátio subsequente, mas não já, com a necessária segurança, que essa chapa se sobreponha parcialmente, ou apenas encoste, ao terraço/placa do anexo desse prédio.
Assim, adita-se à matéria de facto provada o nº 41 com o seguinte teor:
41. A chapa ondulada em material plástico existente no prédio contíguo ao da ré, pelo menos, encosta ao terraço/placa do anexo desse prédio, funcionando como coberto do pátio subsequente.

Quanto à al. d), as fotografias permitem ver que o coberto em chapa plástica existente no prédio vizinho tem como limite lateral o muro de vedação da Ré (e não o terraço/placa de cobertura do anexo). E embora não permitam apurar a distância a que se encontra, permitem contudo verificar que se encontra a pequena distância.
Assim, adita-se à matéria de facto provada o nº 42, com o seguinte teor:
42. O coberto em chapa plástica ondulada existente no prédio vizinho, tem como limite lateral o muro de vedação da ré e não o terraço/placa de cobertura do anexo da Ré, encontrando-se porém a pequena distância deste.

Quanto às als. e), f), g) e i), algumas das fotografias juntas [pois existem outras que não têm qualquer planta de maracujá] comprovam o ali referido, sendo que não está em causa que a A. se encontrava a apanhar maracujás, pelo que se adita à matéria de facto provada os nºs 43 a 46, com o seguinte teor:
43. Sobre o referido muro de vedação existe uma estrutura metálica vertical, cuja parte superior tem inclinação para dentro da propriedade da ré, configurando um esteio.
44. Os maracujás cresceram a partir do logradouro que fica perto da escadaria de acesso ao terraço/placa, apoiados numa estrutura metálica como se fossem esteios com uma ligeira inclinação para o interior da propriedade da ré.
45. Alguns ramos do maracujaleiro existente na propriedade da ré cresceram apoiados na chapa de plástico existente no prédio contíguo ao da ré.
46. A chapa de plástico existente no prédio vizinho não está fixada paralelamente ao terraço/placa do anexo da ré.

3.2. Quanto aos nºs 10, 11 e 12 dos factos provados e al. j) que a Recorrente pretende aditar:
Recordando, dos nºs 10, 11 e 12 dos factos provados consta que: “10) Após isso, a autora procedeu à apanha de maracujás ali existentes. 11) Durante a apanha dos maracujás, quando se encontrava ainda em cima do dito terraço/placa, a autora debruçou-se por cima de uma chapa existente na habitação contígua e desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa. 12) Em virtude dessa chapa ter cedido, a autora caiu, de uma altura de cerca de 2 metros, no chão daquela habitação.”
A Recorrente pretende que sejam dados como não provados ou, subsidiariamente, que seja dado como provado que: 10) - “Após isso, a autora decidiu apanhar maracujás que cresceram nos ramos apoiados sobre a chapa ondulada em material plástico existente no prédio contíguo ao da Ré.”; 11) - “Para alcançar os maracujás, quando se encontrava no canto/borda do terraço/placa, a autora debruçou-se por cima da chapa existente na habitação contígua e desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa, ocasião em que se deu a quebra da mesma.”. 12) - “Em virtude dessa chapa se ter quebrado, a autora caiu, de uma altura de cerca de 2 metros, no chão daquela habitação.”
Quanto à al. j) do aditamento que a Recorrente pretende que se adite à matéria de facto provada, dela consta que: “j) Para proceder à apanha desses maracujás, a autora colocou-se no canto/borda do terraço/placa que pertence ao prédio da ré.”

No que toca ao nº 12, a redacção dada pela 1ª instância e a pretendida pela Recorrente é praticamente igual, apenas divergindo na medida em que, naquela, se refere ter a chapa “cedido” e, nesta, a Recorrente refere ter-se a mesma “quebrado”. Tal divergência não tem relevância para o caso, tendo as expressões o mesmo significado, não se vendo qualquer utilidade na alteração pretendida.

Quanto aos nºs 10 e 11 e al. j) do aditamento pretendido:
Antes de mais é de salientar que a al. j) do aditamento pretendido está em contradição com a resposta ao nº 11 dos factos provados que a Recorrente, subsidiariamente (caso não proceda a eliminação desse facto), pretende que seja dada a esse nº 11.
Mas avançando.
Pese embora o cumprimento dos requisitos previstos no art. 640º, nºs 1 e 2, al. a), não é contudo possível a pretendida reapreciação da decisão da matéria de facto [sem prejuízo porém do que se dirá quanto à pretensão subsidiária da Recorrente relativamente à resposta contida no nº 11 dos factos provados, relativamente à localização da A. no canto/borda do terraço/placa do anexo da Ré].
Com efeito, e como já anteriormente dito, dispõe o art. 662º, nº 1, do CPC/2013, sob a epígrafe Modificabilidade da decisão da matéria de facto, que “1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
A Relação tem efectivamente poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto decidida pela 1ª instância. Não obstante, salva a matéria de facto que se encontre plenamente provada por acordo das partes nos articulados, por documentos ou por confissão reduzida a escrito (art. 607º, nº 4, do CPC/2013), para essa reapreciação é necessário, no que toca à prova sujeita à livre apreciação do julgador, que disponha de todos os meios de prova de que a 1ª instância dispôs para formar a sua convicção.
No caso, no que toca à matéria constante dos nºs 10 e 11 dos factos provados e aditamento da al. j), não está ela plenamente provada, seja por acordo das partes nos articulados, seja por confissão da A. reduzida a escrito, seja por documentos com força probatória plena.
Com efeito:
Não existe acordo das partes nos articulados, nem confissão da A. reduzida a escrito.
Quanto à prova documental, concretamente no que toca às já mencionadas fotografias, pese embora a prova plena consagrada no art. 368º do Cód. Civil e como também já acima referido, tal força é apenas vinculativa se e na medida em que tais fotografias retratem o alegado, não sendo extensiva ao que nelas não se encontre objectivamente reproduzido e/ou ao que delas não se possa retirar por mera visualização das mesmas, designadamente ao que não possa ser totalmente perceptível e às ilações da realidade que representam, estando, nessa medida, sujeitas à livre apreciação do julgador.
Essa força probatória plena não é, pois, extensiva à forma como ocorreu o acidente, ao posicionamento da A. aquando do mesmo e outras circunstâncias relativas ao acidente que as mesmas não documentem, sendo também de referir que as fotografias não dão, ou podem não dar, uma exacta perspectiva do local que não possa ser explicada, contrariada e/ou complementada com a visualização do próprio local, através da inspecção ao mesmo, e/ou esclarecimentos, por palavras e/ou gestos, que terão sido prestados durante essa mesma inspecção.
Ora, no caso e como também já referido, foi efectuada uma inspecção ao local que foi, segundo a fundamentação da decisão da matéria de facto, relevante para a formação da convicção da Mmª Juiz no sentido das respostas que deu E realça-se também que, para além do que possa ter sido e foi constado pela Mmª Juiz da observação do próprio local, da fundamentação da decisão da matéria de facto decorre que, também aí, terá sido exemplificado pela A. o local onde se encontrava e a forma como sucedeu o acidente [“(...) que no local até melhor exemplificou com gestos o que através de palavras quis dizer – colocando-se junto ao limite das propriedades e reiteradamente referido que caiu sobre a placa, gesticulando com os braços no sentido em que a queda teve lugar, (...)”], o que também não ficou consignado em auto dessa diligência.
Assim, não dispondo a Relação, como não dispõe, de todos os meios probatórios que concorreram para a decisão proferida pela 1ª instância quanto aos mencionados pontos da matéria de facto, não pode esta Relação alterar o nº 11 dos factos provados no sentido de dar como não provado que a A. ainda se encontrava, aquando do acidente, em cima do terraço/placa do anexo da Ré (como, a título principal, pretende a Recorrente), assim como não pode dar como provado o que consta da al. j) do aditamento pretendido (dar como provado que a A. se encontrava no terraço/placa que pertence ao prédio da Ré).
Diga-se que se procedeu à audição integral da gravação do depoimento da A., do qual resulta que efectivamente terá sido relevante, na formação da convicção, a inspeção judicial ao local e os esclarecimentos que aí terão sido prestados [para além de que essa relavância, como já dito, resulta da fundamentação da decisão da matéria de facto]. Com efeito, da gravação resulta que a A. começou por afirmar que a queda, pela chapa de plástico do prédio vizinho, se deu quando ia a descer as escadas existentes de acesso ao terraço/placa do anexo da Ré e, quando confrontada pela Mmª Juiz com as fotografias e com a impossibilidade do assim sucedido, alterou a A. a sua versão referindo que era sua intenção descer as escadas mas, quando viu os maracujás, resolveu apanhá-los o que fez colocando-se no canto/esquina do terraço/placa do anexo da Ré, que se debruçou, se desiquilibrou e caiu, negando [pese embora a insistência da Mmª Juiz, a qual fez também referência ao espaço/distância entre o limite do terraço/placa do anexo da Ré e a chapa plástica] que estivesse no terraço/placa do anexo do prédio vizinho e/ou que estivesse nas escadas. E foi aí que a sessão do julgamento prosseguiu com a inspecção ao local nos termos já referidos, sendo que, na continuação da gravação, já após a inspecção ao local, a A. se limitou a dizer já ter explicado como sucedeu o acidente, que se debruçou, desiquilibrou e caiu, prosseguindo a audição com outras questões.
Ou seja, foi a inspeção ao local e as explicações por gestos e/ou palavras da A. que aí tiveram lugar relevantes à formação da convicção da Mmª Juiz, pelo que, não dispondo a Relação de todos os elementos, não se mostra possível a alteração, para não provado, do nº 11 dos factos provados, nem concomitantemente, dar como provado o que consta da al. j) do aditamento.
É de esclarecer que a isso não obsta o aditamento dos factos instrumentais acima referidos, os quais não determinam, muito menos necessária ou automaticamente, as mencionadas alterações, não estando, esse aditamento, em contradição e não colidindo com o que foi decidido quanto aos nºs 10 e 11 dos factos provados, não determinando, necessariamente, a impossibilidade da ocorrência da queda caso a A. estivesse, como foi dado como provado que estava, no terraço/placa do anexo da Ré. O facto de a chapa de plástico por onde a A. caiu estar a uma cota superior, cerca de 60 cm, não impede que a A. se tivesse debruçado e caído e, quanto à distância/comprimento entre o local onde a A. se encontrava e o local da chapa pástica por onde caiu é a mesma pequena (nº 42 dos factos provados, acima aditado), não permtindo esse aditamento “dispensar” a convicção firmada pela Mmª Juiz com base na inspeção ao local e exemplificação aí feita pela A.
E é também de referir que a isso não obsta o relato do acidente feito pela A. que ficou consignado no exame médico singular, concordando-se com o que, a este propósito, é referido na fundamentação da decisão da matéria de facto: “Nem se afirme que a autora alterou o relato da dinâmica do acidente, tendo por referência a história do evento que consta no exame médico singular da especialidade realizado na fase conciliatória do processo (cfr. fls. 56), tendo em conta que tal descrição é feita em discurso indirecto, com todas as reservas que isso coloca ao nível da exactidão na transmissão da informação obtida”.
Assim, e no que se refere à pretensão de dar como não provado os nºs 10, 11 e 12 dos factos provados, é a mesma improcedente. Diga-se ainda, quanto a este nº 12, que nunca esteve em causa que a A. caiu pela chapa por onde caiu por a mesma ter cedido, expressão esta no sentido de se ter quebrado, de uma altura de 2 metros no chão da propriedade contígua. O que está e sempre esteve em causa é e era o local onde a A. se encontrava aquando do sucedido. E, daí, que nem se compreenda a pretensão da Recorrente de dar como não provado o mencionado nº 12.

Porém e não obstante o que disse, tal não impede que, no nº 11 dos factos provados, se dê como provado que a A. se encontrava no canto/borda do terraço/placa do anexo da Ré.
Com efeito: tal conubstancia facto complementar, esclarecedor do concreto e mais exacto local onde a A. se encontrava; esse facto foi referido pela A. nas suas declarações que se encontram gravadas (antes da inspecção ao local); da fundamentação da decisão da matéria de facto provada consta que a A. “(...) no local até melhor exemplificou com gestos o que através de palavras quis dizer – colocando-se junto ao limite das propriedades e reiteradamente referido que caiu sobre a placa, gesticulando com os braços no sentido em que a queda teve lugar, (...)” [sublinhado nosso]; da visualização das fotografias dificilmente (senão mesmo impossível) se poderia concluir que o acidente teria ocorrido da forma descrita no nº 11 dos factos provados se a A., estando como estava no terraço/placa do anexo da Ré, não estivesse no canto/borda do mesmo.
Assim, altera-se o nº 11 dos factos provados, que passará a ter a seguinte redacção:
11) Durante a apanha dos maracujás, quando se encontrava ainda em cima do dito terraço/placa, no canto/borda do mesmo, a autora debruçou-se por cima de uma chapa existente na habitação contígua e desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa.

3.3. Quanto ao aditamento pretendido das als. h) e l) [“h) A autora sabia que a chapa existente no prédio vizinho é em material plástico; l) A autora reconhece que arriscou e colocou a sua integridade física em risco quando decidiu apanhar os maracujás que estavam em cima da chapa de plástico”] não foram eles alegados na contestação, tratando-se, não de factos instrumentais ou complementares, enquadráveis nas als. a) e b) do nº 2 do art. 5º da p.i., mas sim de factos essenciais stricto sensu ou principais, na medida em que integrantes e essenciais à defesa por excepção aduzida pela Ré – alegada descaracterização do acidente como acidente de trabalho por negligência grosseira da A. Tendo embora sido indicados, aquando do despacho saneador, os temas da prova, tal matéria dela não consta, pelo que, nos termos do art. 72º, nºs 1 e 2, afigura-se-nos que deveria ter sido objecto de ampliação dos temas da prova, a ter lugar em sede de 1ª instância e não já na Relação, não podendo ser agora conhecidos.
De todo o modo, e para o caso de assim se não entender, sempre se dirá que não seria de os aditar.
Com efeito, e no que toca à al. h), das passagens da gravação indicadas pela Recorrente e, bem assim, das transcritas não consta ter tal facto sido abordado e, muito menos ter sido referido pela A. que sabia qual a composição da dita chapa. De todo o modo, sempre se dirá que se procedeu à audição integral da gravação da A., não tendo o mesmo sido referido.
No que toca à al. l), apenas decorre que à pergunta do mandatário se a A. “arriscou”, a mesma respondeu que “arrisquei”. Tal pergunta e resposta, para além de conclusivas, são insuficientes no sentido de permitir concluir-se que a A., aquando do acidente, tivesse tido a noção ou consciência de que se poderia verificar a queda nos moldes em que se verificou.
Por fim, quanto ao aditamento a que se reporta a al. k) [“k) Quando se deslocou para colocar a roupa a secar, a autora calçava uns chinelos em plástico”], trata-se de um facto instrumental, que resulta das declarações prestadas na audiência de julgamento pela A., pelo que se entende ser de aditar à matéria de facto o nº 47, com o seguinte teor:
47. Quando se deslocou para colocar a roupa a secar, a autora calçava uns chinelos em plástico.

3.4. A terminar, resta esclarecer, embora isso já decorre ou esteja implícito no que se deixou dito quanto à questão da impugnação da decisão da matéria de facto, que não se nos afigura que exista obscuridade, ambiguidade ou contradição na decisão da matéria de facto que careça, nos termos do art. 662º, nº 2, al. c), de ampliação.
A decisão da matéria de facto é perceptível, não comporta mais do que um sentido e não existem pontos contraditórios que determinem a necessidade de outra ampliação que não a que levámos a cabo quanto ao nº 11 dos factos provados.
O que ocorre é que a Recorrente, designadamente face ao que considera serem dúvidas, discorda da decisão da matéria de facto que foi proferida pela 1ª instância por entender ter ocorrido erro de julgamento e por pretender, ou assim parecer, que se proceda a nova inspecção judicial ao local.
Ora, quanto ao erro de julgamento que a Recorrente considera ter existido, não é isso causa de anulação para ampliação da decisão da matéria de facto ao abrigo do art. 662º, nº 2, al. c), do CPC [e, muito menos, ao abrigo do art. 615º, nº 1, al. c) do mesmo].
E, quanto à inspecção judicial, trata-se a omissão de elaboração do respectivo auto, como já referido, de nulidade processual que se encontra sanada e que não permite a anulação da sentença para repetição de tal diligência.

3.5. Assim, e em conclusão, é a seguinte a decisão da matéria de facto provada[4], já com as alterações ora introduzidas:
1) A autora AA nasceu em .../.../1963.
2) A autora é beneficiária da Segurança Social com o n.º ....
3) Por sentença proferida em 1 de Setembro de 2016, no âmbito do proc. n.º 136/16.6T8VFR, da então Instância Local Cível de Santa Maria da Feira, J3, foi decretada a interdição da ré BB, tendo sido fixado o começo da incapacidade no início do ano de 2005.
4) Desde Janeiro de 2010, e até pelo menos 11 de Setembro de 2018, a autora desempenhou funções de serviço doméstico, sob a autoridade e direcção de BB, mediante o pagamento de uma retribuição mensal de €580,00 x 14 meses.
5) A autora detinha a categoria profissional de empregada doméstica e cuidadora de pessoa idosa.
6) O pagamento do vencimento era efectuado da seguinte forma:
a. Durante o período de vida do marido da ré, o vencimento era liquidado parcialmente em numerário e o remanescente era pago através de cheque;
b. Após o falecimento do marido da ré, o vencimento era liquidado pelos filhos da ré em numerário, com excepção do mês de Setembro de 2018, em que foi liquidado parcialmente o vencimento através da entrega de cheque, tendo sido este o último mês em que a autora auferiu salário.
7) A ré não tinha a sua responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho transferida para qualquer Companhia de Seguros.
8) No dia 11/09/2018, a autora efectuou a limpeza habitual da ré, tendo procedido à muda de roupa da mesma e da respectiva cama.
9) Após a lavagem da roupa, deslocou-se à parte superior do terraço/placa localizada na parte lateral da habitação da ré, para colocar a roupa a secar.
10) Após isso, a autora procedeu à apanha de maracujás ali existentes.
11) Durante a apanha dos maracujás, quando se encontrava ainda em cima do dito terraço/placa, no canto/borda do mesmo, a autora debruçou-se por cima de uma chapa existente na habitação contígua e desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa. [Alterado]
12) Em virtude dessa chapa ter cedido, a autora caiu, de uma altura de cerca de 2 metros, no chão daquela habitação.
13) No exercício da actividade contratada, era pedido à autora que prestasse vigilância e assistência à ré, lavasse e tratasse das roupas, limpasse e arrumasse a casa e confeccionasse refeições.
14) Além disso, a autora, por ordem e fiscalização da ré, através de instruções emanadas pelos seus filhos, incluindo o seu tutor, prestava ainda, de forma constante e reiterada, os seguintes serviços:
a. Deslocava-se à frutaria;
b. Deslocava-se ao cemitério, após a morte do marido da ré, para limpeza da campa;
c. Plantava no quintal da casa, alface, coentros, salsa;
d. Efectuava recados.
15) A autora habitualmente procedia à apanha de maracujás, os quais se destinavam, entre outros, à ré e aos filhos desta, incluindo o seu tutor.
16) Em virtude da queda descrita, a autora sofreu traumatismo na região dorsal e do ombro esquerdo, do qual resultou fractura complexa da omoplata esquerda, tendo sido imobilizada com suspensão braquial e fractura de D11, sem necessidade de imobilização.
17) Em 23/09/2020, aquando da realização do exame no GML, a autora apresentava à observação médica as seguintes lesões e/ou sequelas relacionáveis com o sinistro:
a) ráquis: lombalgia, sem irradiação, que refere agravar-se com a realização de esforços; reflexos osteotendinosos presentes e simétricos; laségue negativo; marcha em bicos de pés e calcanhares sem alterações;
b) membro superior esquerdo: limitação funcional do ombro esquerdo, não conseguindo levar a mão à nuca e levando com dificuldade ao ombro oposto e região lombar; antepulsão até 120º, retropulsão até 20º e abdução até 80º.
18) Em virtude do sinistro, esteve a autora afectada de incapacidade temporária absoluta para o trabalho desde 12/09/2018 até 01/06/2019 (263 dias), data da alta médica.
19) Por via das sequelas descritas, a autora está afectada de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 10,35% (Cap. I 1.1.1.b) da TNI – raquialgia residual; Cap. I 3.2.7.3. b) da TNI – rigidez do ombro esquerdo), incluindo o factor de bonificação 1,5 em virtude da idade.
20) Tais sequelas justificam um prejuízo para o desempenho da actividade profissional da autora, na dimensão da IPP atribuída, mas não importam uma IPATH.
21) Em 24/02/2021, a autora interpelou a ré para pagamento da quantia de €30,00, relativa a despesas que suportou com deslocações ao Tribunal e ao GMLF de Entre Douro e Vouga.
22) O terraço/placa que pertence ao prédio da ré situa-se a uma cota inferior em relação à placa a ele contígua, pertencente ao prédio vizinho.
23) E situa-se a uma cota inferior à chapa existente nessa placa contígua ao prédio da ré.
24) Essa chapa é em material plástico.
25) A árvore de maracujás cresceu de forma espontânea.
26) Não era cuidada, muito menos com qualquer finalidade económica.
[27) a 38) – Factos dados como não provados pela sentença recorrida].
39. O terraço/placa de cobertura do anexo da ré gemina, lateralmente e exclusivamente, com um anexo do prédio confrontante, sendo esses anexos em alvenaria/betão armado e cujo terraço/placa de cobertura é em laje aligeirada/betão armado. [Aditado]
40. O terraço/placa pertencente ao anexo do prédio confrontante encontra-se a cota superior, cerca de 60 centímetros mais elevado, e numa posição anterior ao limite lateral do terraço/placa de cobertura do anexo da ré, mas a curta distância desta. [Aditado]
41. A chapa ondulada em material plástico existente no prédio contíguo ao da ré, pelo menos, encosta ao terraço/placa do anexo desse prédio, funcionando como coberto do pátio subsequente. [Aditado]
42. O coberto em chapa plástica ondulada existente no prédio vizinho, tem como limite lateral o muro de vedação da ré e não o terraço/placa de cobertura do anexo da Ré, encontrando-se porém a pequena distância deste. [Aditado]
43. Sobre o referido muro de vedação existe uma estrutura metálica vertical, cuja parte superior tem inclinação para dentro da propriedade da ré, configurando um esteio. [Aditado]
44. Os maracujás cresceram a partir do logradouro que fica perto da escadaria de acesso ao terraço/placa, apoiados numa estrutura metálica como se fossem esteios com uma ligeira inclinação para o interior da propriedade da ré. [Aditado]
45. Alguns ramos do maracujaleiro existente na propriedade da ré cresceram apoiados na chapa de plástico existente no prédio contíguo ao da ré. [Aditado]
46. A chapa de plástico existente no prédio vizinho não está fixada paralelamente ao terraço/placa do anexo da ré. [Aditado]
47. Quando se deslocou para colocar a roupa a secar, a autora calçava uns chinelos em plástico. [Aditado]

4. Da inexistência de acidente de trabalho

Alega a Recorrente que “na medida em que os pontos 10), 11) e 12) da matéria de facto provada devem passar a ser considerados como factos não provados, a matéria provada deixa de conter factos que permitam afirmar a existência de um acidente” e, bem assim que, sendo controversa a ocorrência do acidente, a decisão deve passar pela aplicação das regras do ónus da prova, sendo que é sobre a A. que impende tal ónus, devendo o julgador “decidir como se estivesse provado o facto contrário, isto é, como se o acidente não tivesse ocorrido”.
A procedência do recurso, nesta parte, assenta e passaria pela alteração da decisão da matéria de facto, concretamente pela alteração, no sentido de ser dado como não provado, do nº 11 dos factos provados.
Tendo-se mantido, como se manteve, o nº 11 dos factos provados, ou seja que, aquando da queda, a A. ainda se encontrava em cima do terraço/placa do anexo da Ré, tanto basta para a improcedência do recurso nesta parte, tendo em conta, em síntese e pese embora a A. haja caído em cima de uma placa existente no prédio vizinho e, por quebra desta, no chão desse prédio, tal ocorreu quando, como referido, a A. ainda se encontrava em cima do terraço/placa do anexo da Ré, no qual se debruçou sobre a chapa pela qual veio a cair.
O acidente ocorreu, pois, no local de trabalho, como tal previsto no art. 8º, nºs 1 e 2, al. a), da Lei 98/2009, de 04.09, não havendo, por consequência, que recorrer à repartição das regras do ónus da prova e ao disposto no art. 414º do CPC. À A. cabia o ónus da prova da ocorrência do acidente no local de trabalho (art. 342º, nº 1, do Cód. Civil), prova essa que foi feita como decorre do nº 11 dos factos provados.
Assim e sem necessidade de considerações adicionais, improcedem nesta parte as conclusões do recurso.

5. Da descaracterização de acidente de trabalho

Invoca a Recorrente, nos termos do art. 14.º, n.º 1 alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, a descaracterização do acidente como acidente de trabalho com fundamento na negligência grosseira da A., argumentando para tanto, para além das considerações jurídicas que tece, que:
“- Não era possível a autora apanhar os maracujás que se encontravam em cima da chapa existente na habitação contígua, a partir do terraço/placa da casa da ré, sem se colocar no canto/borda do terraço e sem se debruçar sobre aquela chapa.
- A queda da autora sucedeu após se ter debruçado sobre a dita chapa.
- O eventual desequilíbrio que levou à queda da autora sobre a chapa, e desta para o chão, não foi fruto do acaso, mas sim consequência do comportamento da autora quando, encontrando-se no canto/borda do terraço/placa, se debruçou para apanhar os maracujás.
- A opção de se colocar no canto/borda do terraço/placa da casa da ré e, aí, se debruçar sobre a chapa de plástico existente no prédio contíguo foi uma decisão exclusiva da autora.
- A autora tinha consciência que, ao colocar-se no canto/borda do terraço/placa, encontrava-se numa situação de perigo de desequilíbrio ou queda.
- A autora actuou representando que estava a colocar a sua integridade física em risco, o que fez, e agiu conformando-se com essa possibilidade.
Acresce que, face ao reduzido número de ramos existentes em cima da chapa plástica, os maracujás que aí eventualmente existissem, nunca seriam em grande número.
Por outro lado, para apanhar os maracujás que pudessem estar localizados a uma altura superior ao alcance do braço, como seria o caso dos que eventualmente existissem em cima da chapa plástica, a autora sempre poderia utilizar um escadote, usualmente utilizado pela autora noutras funções, por exemplo, nas limpezas de superfícies elevadas.”.

5.1. Dispõem os nºs 1, al. b) e 3 do art. 14º da Lei 98/2009, de 04.09 [cujo regime é no essencial similar ao que provinha dos arts. 7º da anterior Lei 100/97, de 13.09 e 8º do DL 143/99, de 30.04] que: “1- O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: (…); b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; (…); 2. (…); 3. Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Para que o acidente caia sob a alçada da al. b) do nº 1 do art. 14º é pois necessário: a existência de negligência grosseira por parte do sinistrado; que o acidente provenha dessa negligência grosseira; e que esta, negligência grosseira, seja a causa exclusiva do acidente.
Como é pacífico na doutrina e jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por elementar sentido de prudência.
A negligência consubstancia-se na omissão de um dever objectivo de cuidado ou de diligência adequados, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar a produção de um determinado evento.
Porém, a negligência pode assumir gravidade diferente, sendo usual a distinção entre a negligência consciente e inconsciente e, em função da intensidade da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais), entre a negligência lata ou grave, leve e levíssima.
Na negligência consciente, o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação; na inconsciente, o agente, por inconsideração, descuido, imperícia ou inaptidão, não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo embora prevê-lo e evitar a sua verificação.
Exigindo a lei, como pressuposto da descaracterização, a negligência grosseira, «o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias.» - cfr. Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, a págs. 63.
A própria lei, no nº 3 do art. 14º [tal como já o entendia o antecedente art. 8º, nº 2, do DL 143/99], aponta para uma negligência particularmente grave, considerando como negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau.
Citando o Acórdão do STJ de 05.03.2016, Processo 568/10.3TTSTR.L1.S1, nele refere-se que:
“Trata-se da consagração da doutrina que se foi firmando no domínio da Lei nº 2127, de cuja base VI, nº 1, alínea b) resultava que não dava direito a reparação o acidente de trabalho que proviesse, exclusivamente, de falta grave e indesculpável da vítima, pois segundo a doutrina que se foi firmando, com foros de unanimidade, no domínio desta LAT, só assumia esta natureza um comportamento temerário do sinistrado, inútil para o trabalho, indesculpável e reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, vendo-se neste sentido os acórdãos do STJ de 20/9/88, BMJ 379/527 e de 12/5/99, BMJ 487/208.
Também para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b), do nº 1, do artigo 14º da actual LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só uma falta grave, indesculpável e exclusiva da vítima é que é apta a produzir tal efeito, não tendo esta virtualidade os comportamentos do sinistrado que constituam meras imprudências, inconsiderações, irreflexões ou leviandades.
Efectivamente, a culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto – cfr. Vaz Serra, RLJ, 11º – 151, podendo nela distinguirem-se três graus:
culpa levíssima, que é aquela que só as pessoas extremamente diligentes podem evitar;
o de culpa leve, que é aquela em que não cairia uma pessoa de vigilância ou diligência média;
o de culpa grave, que é aquela em que o agente usa de uma diligência abaixo do mínimo habitual, procedendo como pessoa extremamente desleixada
Por outro lado, e para Galvão Teles, Direito das Obrigações 274, 4ª edição, quer a culpa grave quer a leve correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater - se absteria, consistindo a diferença entre elas em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida, apresentando-se por isso como uma culpa grosseira, correspondente à “magna negligentia” dos romanos.
Já dissemos que para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b) do artigo 14º da LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só a negligência grosseira e exclusiva do sinistrado é que é apta a produzir tal efeito.
Por isso e desde logo temos que afastar da descaracterização do acidente aqueles comportamentos da vítima que constituam meras imprudências, inconsiderações irreflexões ou leviandades, pois é preciso que o comportamento do sinistrado assuma o alto grau de censura e reprovação correspondente ao exigido para a negligência grosseira.”.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.12.2020, Proc. 1059/13.6TTCBR.C1, in www.dgsi.pt, refere-se que “A lei não se basta, pois, para a descaracterização do acidente, com uma simples imprudência, uma mera negligência ou com uma distracção. É necessário um comportamento temerário em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência [que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão], e que constitua a única causa do acidente.”
Assim também na jurisprudência citada na sentença recorrida:
“Conforme se concretiza no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2014, proc. n.º 177/10.7TTBJA.E1.S1, acessível in www.dgsi.pt, o comportamento temerário é aquele que se consubstancia num “actuação perigosa, audaciosa e inútil, reprovada por um elementar sentido de prudência”.
Assim, um comportamento imprudente do sinistrado não é suficiente para descaracterizar o acidente: “embora se considere que a actuação do sinistrado não foi sensata, sendo mesmo imprudente, isso não é suficiente para se considerar estar-se perante um comportamento temerário, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26/10/2017, proc. n.º 586/12.7TTGDM.P1, acessível in www.dgsi.pt)”, neste aresto[5] se afirmando ainda que “Em suma, para que se considere que há “negligência grosseira”, para os efeitos do art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º3, é necessário estar-se perante uma conduta do sinistrado que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.”
Mais se exige, para que se se verifique a causa de exclusão prevista na al. b), do nº 1, do art. 14º, que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.
Por fim, cumpre referir que constitui jurisprudência pacífica que o ónus de alegação e prova dos factos integradores da descaracterização do acidente de trabalho (porque impeditivas do direito à reparação – art. 342º, nº 2, do Cód. Civil) recaem sobre a entidade responsável pela reparação do mesmo – cfr. designadamente Acórdão desta Relação de 26.10.2017, acima citado: “compete à entidade que invoca a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, alegar e provar os factos que a integram, bem assim a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, nos termos gerais da repartição do ónus de prova, por serem factos impeditivos do direito à reparação (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil)”.

5.2. Revertendo ao caso em apreço nos autos, decorre da matéria de facto provada que:
- 4) e 5) Desde Janeiro de 2010, e até pelo menos 11 de Setembro de 2018, a autora desempenhou funções de serviço doméstico, detendo a categoria profissional de empregada doméstica e cuidadora de pessoa idosa.
- 9) Após a lavagem da roupa, a A. deslocou-se à parte superior do terraço/placa localizada na parte lateral da habitação da ré, para colocar a roupa a secar.
- 10) Após isso, a autora procedeu à apanha de maracujás ali existentes.
- 11) Durante a apanha dos maracujás, quando se encontrava ainda em cima do dito terraço/placa, no canto/borda do mesmo, a autora debruçou-se por cima de uma chapa existente na habitação contígua e desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa.
- 12) Em virtude dessa chapa ter cedido, a autora caiu, de uma altura de cerca de 2 metros, no chão daquela habitação.
- 22) O terraço/placa que pertence ao prédio da ré situa-se a uma cota inferior em relação à placa a ele contígua, pertencente ao prédio vizinho.
- 23) E situa-se a uma cota inferior à chapa existente nessa placa contígua ao prédio da ré.
- 24) Essa chapa é em material plástico.
- 39) O terraço/placa de cobertura do anexo da ré gemina, lateralmente e exclusivamente, com um anexo do prédio confrontante, sendo esses anexos em alvenaria/betão armado e cujo terraço/placa de cobertura é em laje aligeirada/betão armado.
- 40) O terraço/placa pertencente ao anexo do prédio confrontante encontra-se a cota superior, cerca de 60 centímetros mais elevado, e numa posição anterior ao limite lateral do terraço/placa de cobertura do anexo da ré, mas a curta distância desta.
- 41) A chapa ondulada em material plástico existente no prédio contíguo ao da ré, pelo menos, encosta ao terraço/placa do anexo desse prédio, funcionando como coberto do pátio subsequente.
- 42) O coberto em chapa plástica ondulada existente no prédio vizinho, tem como limite lateral o muro de vedação da ré e não o terraço/placa de cobertura do anexo da Ré, encontrando-se porém a pequena distância deste.
- 43) Sobre o referido muro de vedação existe uma estrutura metálica vertical, cuja parte superior tem inclinação para dentro da propriedade da ré, configurando um esteio.
- 25) A árvore de maracujás cresceu de forma espontânea.
- 26) Não era cuidada, muito menos com qualquer finalidade económica.
- 44) Os maracujás cresceram a partir do logradouro que fica perto da escadaria de acesso ao terraço/placa, apoiados numa estrutura metálica como se fossem esteios com uma ligeira inclinação para o interior da propriedade da ré.
- 45) Alguns ramos do maracujaleiro existente na propriedade da ré cresceram apoiados na chapa de plástico existente no prédio contíguo ao da ré.
- 13) No exercício da actividade contratada, era pedido à autora que prestasse vigilância e assistência à ré, lavasse e tratasse das roupas, limpasse e arrumasse a casa e confeccionasse refeições.
- 14) Além disso, a autora, por ordem e fiscalização da ré, através de instruções emanadas pelos seus filhos, incluindo o seu tutor, prestava ainda, de forma constante e reiterada, os seguintes serviços:
a. Deslocava-se à frutaria;
b. Deslocava-se ao cemitério, após a morte do marido da ré, para limpeza da campa;
c. Plantava no quintal da casa, alface, coentros, salsa;
d. Efectuava recados.
15) A autora habitualmente procedia à apanha de maracujás, os quais se destinavam, entre outros, à ré e aos filhos desta, incluindo o seu tutor.
Desde já avançando, entendemos que a referida factualidade não permite concluir no sentido da existência de negligência grosseira da A..
Desde logo, a Ré não fez prova de que o acidente haja ocorrido nos moldes em que alegara na contestação, ou seja, de que a A. se teria, voluntariamente, colocado em cima da chapa de plástico do prédio contíguo ao da Ré.
O que que está provado é que a A., com o intuito de apanhar maracujás e quando se encontrava ainda em cima do terraço/placa do anexo do prédio pertencente à Ré, concretamente no canto/borda do mesmo, se debruçou por cima de uma chapa existente na habitação contígua, que era de plástico, desequilibrou-se, caindo sobre essa chapa e que esta cedeu, vindo a A. a cair, de uma altura de cerca de 2 metros, no chão da habitação (contígua ao prédio da Ré).
É certo que o comportamento da A., ao colocar-se no canto/borda do terraço/placa do anexo da Ré é imprudente. E é imprudente, essencialmente porque tal poderia consubstanciar um risco de queda, porém para trás, isto é para o interior da propriedade da Ré, mas não já um risco previsível da queda tal como ela se verificou, sendo certo que o local onde a A. se debruçou e por onde veio a cair se situava a uma cota superior em cerca de 60 cm. Conquanto um comportamento mais avisado e prudente aconselhasse a que a A. não fosse apanhar maracujás no local em questão, tal comportamento não consubstancia, de forma alguma, um acto de tal forma temerário, grave e indesculpável que integre o conceito de negligência grosseira, sendo certo que não basta a mera negligência, nem, sequer, a negligência grave. E, repete-se, não foi a colocação da A. na borda/limite do anexo da Ré que provocou a queda, foi sim a A. ter-se debruçado sobre a chapa de plástico e ter-se desequilibrado, chapa essa que se encontrava a uma cota superior, não sendo, muito menos manifestamente, previsível que sobre esta pudesse vir a cair.
É de referir, também, que não releva o facto da A. se encontrar calçada com chinelos de plástico, não resultando da factualidade provada que este facto haja sido causa do acidente.
Acresce que não se provou que A. tivesse conhecimento de que a chapa por onde caiu era de plástico e, bem assim, o que não foi alegado pela Ré, que tivesse esta dado instruções à A. quanto à forma como deveria apanhar os maracujás ou, dito de outro modo, quanto à forma como os não deveria apanhar, designadamente advertindo-a no sentido de que não o deveria fazer na beira da placa do anexo, salientando-se que é o empregador quem tem o poder directivo e conformativo da prestação laboral e o dever de acautelar que o trabalho seja prestado em segurança, tanto mais que a função principal da A. não era a de apanhar maracujás, ainda que o fizesse habitualmente, maracujás esses que se destinavam à Ré e ao filhos desta.
Ainda que da matéria de facto provada possa resultar ter tido a A. um comportamento pouco prudente, dela mais não resulta que se tenha tratado de um comportamento irreflectido, não tendo considerando os prós e os contras, mas não mais do que isso.
Ou seja, e em conclusão, entendemos que não ocorre negligência grosseira da A. na produção do acidente, não sendo, por consequência, de o descaracterizar, ou seja, não sendo de excluir o direito à reparação pelos danos emergentes do acidente de trabalho.
Assim, improcede, nesta parte, o recurso.

6. Das prestações em espécie

Na sentença recorrida decidiu-se o seguinte: “B) Reconhece-se à autora o direito às prestações em espécie previstas no artigo 25.º, da Lei n.º 98/2009, designadamente, tratamentos assistenciais, hospitalares, médicos e medicamentosos de que tenha necessidade no futuro, condenando-se a ré a prestar-lhas”, para tanto tendo-se referido que: “Peticiona ainda a autora a condenação da ré a prestar-lhe os tratamentos de que venha a ter necessidade no futuro, o que se lhe reconhece, atento o preceituado no artigo 25.º, do mesmo diploma legal, neles se incluindo, designadamente tratamentos assistenciais, hospitalares, médicos e medicamentosos.”.
Do assim decidido discorda a Recorrente, alegando que: a condenação na prestação das prestações em espécie, nos termos em consta da sentença recorrida, implica uma condenação incerta, eventual e de conteúdo indeterminado, o que não é admissível por violação dos ideais da certeza, confiança e da segurança que o nosso sistema jurídico confirma e que, também, estão constitucionalmente garantidos (art.2.º da CRP); o pagamento de prestações em espécie não é automático, antes dependendo da comprovação de que as mesmas são “ necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa; a autora teve alta em 01/06/2019 e não se encontra afectada por Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual.
Não assiste razão à Recorrente.
Desde logo, cabe salientar que a sentença recorrida não condenou a Ré nas prestações a que se reporta o art. 25º da Lei 98/2009, antes lhe reconheceu o direito às mesmas. E, como é sabido, uma coisa é o reconhecimento do direito, que se traduz na simples apreciação, visando apenas a declaração da existência do direito (art. 10º, nº 1, 2 e 3, al. a), do CPC/2013) e, coisa diferente, é a condenação em determinada prestação pressupondo ou prevendo a violação do direito [citado art. 10, nºs 1, 2 e 3, al. b)]. Ambas as acções têm natureza declarativa, mas, a primeira, é de simples apreciação e, a segunda, é de condenação.
Mas avançando.
Dispõem os arts. 23º, al. a), e o 25º da Lei 98/2009 sobre as prestações em espécie a que o sinistrado tem direito por virtude da ocorrência de acidente de trabalho e pelo qual é responsável o empregador caso não haja transferido a sua responsabilidade pela reparação de acidente de trabalho de que seja vítima o trabalhador para entidade seguradora (art. 79º da citada Lei).
E o que a Mmª Juiz fez foi precisamente reconhecer à A. tal direito, que lhe assiste, por virtude do acidente de trabalho de que foi vítima e pelo qual é responsável a Ré, já que, ao contrário do que deveria, diga-se, não transferiu a sua responsabilidade pelo risco emergente de acidente de trabalho de que a A. fosse vítima para entidade seguradora.
E tal não determina qualquer violação do princípios constitucionais da certeza, confiança e segurança (art. 2º da CRP), sendo que se e quando a A. carecer, por virtude das lesões/sequelas contraídas no acidente de trabalho de que foi vítima, da assistência que lhe é conferida pelo citado art. 25º, exercitará, se necessário pelas vias e nos termos legais, tal direito, caso em que sempre se imporá a observância do contraditório por parte da Ré. Inconstitucional seria, sim, o não poder ser reconhecido, designadamente na sentença, tal direito à A. por violação do disposto no art. 59º, nº 1, al. f), da CRP, o qual consagra o direito a assistência (e justa reparação) aos trabalhadores quando vítimas de acidente de trabalho.
Diga-se também que o CPC/2013, no seu art. 556º, nº 1, al. b), devidamente adaptado à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho e ao processo laboral (art. 1º, nº 2, al. a), do CPT) prevê a possibilidade de formulação de pedidos genéricos quando não seja possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto determinante do direito à reparação.
Acresce que a essa assistência não obsta a cura clínica da A., nem o facto desta não se encontrar afectada de IPATH.
Não são só os sinistrados afectados de IPATH que têm direito a tal assistência, mas sim todos os sinistrados, independentemente da incapacidade, desde que dela careçam por virtude do acidente de trabalho.
E, quanto à cura ou alta clínica, tal ocorre quando a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insusceptível de modificação com terapêutica adequada (art. 35º, nº 3, da Lei 98/2009). Tal não significa contudo que, também nas situações de cura clínica, não possa o sinistrado continuar a carecer ou vir a carecer de assistência médica, medicamentosa, hospitalar, tratamentos e/ou outra prevista no art. 25º da LAT, designadamente para manutenção e/ou não agravamento da sua situação clínica; assim como a cura clinica não obsta a que a situação clínica do sinistrado não se possa agravar, determinando a necessidade da mencionada assistência, quer desse agravamento resulte, ou não, alteração/revisão da sua pensão (cfr. art. 70º da Lei 98/2009).
Ou seja, em conclusão e sem necessidade de considerações adicionais, improcede, também nesta parte, o recurso.
***
IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Porto, 13.07.2022
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas
______________
[1] Direito Processual Civil Declaratório, 3º, pág. 275.
[2] Direito Processual Civil, 1968, 2º, pág. 208.
[3] Na sentença, a matéria de facto provada foi numerada de 1 a 26 e, a não provada, de 27 a 38, pelo que e para não fazer confusão com a matéria de facto não provada, seguiremos a sequenciação da numeração feita pela 1ª instância assim se numerando o facto aditado como 39.
[4] Como já referido, os nºs 27 a 38 correspondem, segundo a numeração da sentença recorrida e cuja sequenciação se manteve, aos factos não provados, razão pela qual não são agora elencados.
[5] Relatado pelo ora 2º Adjunto.