Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5628/09.0TBVFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINIGOS FERNANDES
Descritores: SENTENÇA
PRAZO ESGOTADO
PODER JURISDICIONAL
JUIZ
MATÉRIA DA CAUSA
Nº do Documento: RP201809245628/09.0TBVFR-A.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 680-A, FLS.2-6)
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do artigo 613.º, nº 1 do CPCivil proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ressalvando-se os casos de rectificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença (cfr. nº 2 do mesmo preceito).
II - Por essa razão não pode o Sr. Juiz do processo, no âmbito de uma execução de prestação de facto, dar sem efeito o segmento decisório de decisão, devidamente transitada em julgado, que havia condenado os executados no pagamento de sanção pecuniária compulsória.
III - O referido despacho por falta de poder jurisdicional é juridicamente inexistente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 5628/09.0TBVFR-A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente na Rua …, nº …, … veio instaurar execução de sentença contra C… e D…, residentes Rua …, nº …, …, alegando que por sentença datada de 2 de Setembro de 2011, devidamente notificada e transitada em julgado, foram os ora executados, entre outros pedidos, condenados a repor os tubos e o sistema de repartição das águas colocados na E… e a não perturbar a utilização da água da E… no prédio dos ora exequentes, coisa que ainda não fizeram.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos, datado de 11/09/2013, foi proferido o seguinte despacho:
Uma vez que os executados, notificados nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 940º, nº2 e 933º a 938º do CPC, nada disseram, e tendo em conta o requerido pelos exequentes (prestação do facto por outrem e aplicação de sanção pecuniária compulsória), ao abrigo do disposto nos artigos 870º, 868º, nº1, 874º, nº1 e 875º, nº2 do CPC (anteriores artigos 935º, 933º, nº1, 939º, nº1 e 940º, nº2), determino a nomeação de perito para avaliação do custo da prestação e condeno os executados na quantia de €10,00 diários a título de sanção pecuniária compulsória.
Indique a Secção pessoa idónea a fim de ser nomeado perito”.
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O referido despacho foi notificado às partes no dia 13/09/2013, tendo o mesmo transitado em julgado.
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Conclusos os autos em 22/02/2018 foi exarado, com data de 23/02/2018, o seguinte despacho:
Requerimentos das partes de 14.12.2016, 31.03.2017, 23.11.2017 e 18.01.2018:
Compulsada a sentença exequenda, verifica-se que a mesma absolveu os réus/executados do pedido de condenação no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, com o fundamento de a mesma ser apenas permitida em relação a obrigações de facto infungível, positivo ou negativo, delas se excluindo as prestações as prestações que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, nos termos do n.º 1 do artigo 829º A do Código Civil.
Fundamentou-se, além do mais, na aludida sentença exequenda que:
"Ora, no caso em apreço, não estamos perante uma obrigação de facto infungível, ou seja, o comportamento do devedor não é imprescindível, uma vez que é possível a realização da prestação de facto imposta aos réus pelo tribunal. O processo executivo é, de facto, suficiente para assegurar o cumprimento da injunção judicial.
E sendo uma medida exclusiva das prestações infungíveis, positivas ou negativas (com a excepção prevista no n.º 1 do art. 829º-A do Código Civil), impõe-se concluir que, no caso, não é admissível a condenação dos réus em sanção pecuniária compulsória judicial."
Como tal, a obrigação exequenda que consiste na reposição dos tubos e sistema de repartição das águas colocado na E… é, pois, uma prestação de facto fungível, na medida em que a prestação por terceiro pode igualmente satisfazer o interesse da exequente, conforme se concluiu na sentença exequenda.
Sendo a prestação de facto fungível, não é lícita a fixação de sanção pecuniária compulsória, reservada que está para a prestação de facto infungível, nos termos do art. 829º-A, n.º 1 do C. Civil.
"Na execução para prestação de facto positivo e de natureza fungível, não pode decretar-se o pagamento, por parte do executado, de qualquer quantia a título de sanção pecuniária compulsória."-cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30-04-2009, relator CARLOS PORTELA, in www.dgsi.pt.
Do exposto se conclui que o despacho de 11.09.2013 enferma de manifesto lapso, uma vez que viola o caso julgado da sentença exequenda e o normativo legal citado, pelo que se dá o mesmo sem efeito na parte em que condena os executados no pagamento de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art. 829º-A, n.º 1 do C. Civil.
Notifique”.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os exequentes interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela seguinte forma:
1. Os recorrentes pediram que os executados fossem condenados a pagar uma sanção pecuniária compulsória na fase declarativa do processo.
2. Na douta sentença, pelas razões que da mesma constam, a M. Juiz absolveu os ora executados do pedido de pagamento da sanção pecuniária compulsória pedida na acção.
3. Porque a decisão pareceu acertada, os ora recorrentes, com a mesma conformaram-se.
4. Instaurada a acção executiva, os recorrentes limitaram-se a promover o cumprimento da obrigação em que os RR. foram condenados.
5. Não pediram qualquer prestação pecuniária a título de cláusula penal compulsória.
6. Tal sanção é pedida na fase executiva com base no disposto no nº 1 do artº 868º do Cod.Proc. Civ. que, na sua parte final, prescreve que é lícito aos exequentes pedir a fixação duma sanção pecuniária compulsória.
7. No uso dessa faculdade, os recorrentes pediram ao Tribunal que os executados fossem condenados a pagar-lhes uma sanção pecuniária compulsória à razão de €10,00, diários.
8. Tal pedido foi deferido pela Sra. Juíza do processo no despacho datado de 11 de Setembro de 2013.
9. O mesmo despacho foi notificado aos executados a 13/09/2013 que nada disseram que o pusesse em crise.
10. Por essa razão transitou em julgado, tornando-se susceptível de ser executado.
11. Não pode agora a M. Juiz, de forma que se poderá apelidar de arbitrária, porque não fundamentada, vir derrogar o despacho proferido há mais de três anos, devidamente transitado, uma vez que estava esgotado o poder jurisdicional do Juiz face à decisão proferida (artº 580, nº 1 e 628º, ambos do Cod.Proc. Civ.).
12. Com a prolação do despacho proferido a 23/03/2018 mas notificado a 09/04/2018, mostram-se violadas as disposições legais dos artigos 580º, nº 1, 628º e 868º, nº 1, todos do Cod. Proc. Civil.
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Não foram apresentadas contra - alegações.
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Forma dispensados os vistos.
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II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar:
a)- saber se o tribunal recorrido podia, ou não, ter dado sem efeito, o despacho anterior que havia condenado os executados na quantia de €10,00 diários a título de sanção pecuniária compulsória.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto a ter em conta para a decisão da questão colocada é a que consta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido podia, ou não, ter dado sem efeito, o despacho anterior que havia condenado os executados na quantia de €10,00 diários a título de sanção pecuniária compulsória.
Como se evidencia dos autos o tribunal recorrido, num primeiro momento, determinou a nomeação de perito para avaliação do custo da prestação e condenou os executados na quantia de €10,00 diários a título de sanção pecuniária compulsória, tendo tal decisão transitado em julgado.
Posteriormente deu sem efeito a referida decisão na parte em que condena os executados no pagamento de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829º-A, n.º 1 do C.Civil.
Ora, é contra este segmento recursório que se insurgem os recorrentes estribados, essencialmente, na circunstância de que o primeiro despacho havia transitado em julgado, além de que estava esgotado seu poder jurisdicional.
Qui iuris?
Nos termos do artigo 613.º, nº 1 do CPCivil proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ressalvando-se os casos de rectificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença (cfr. nº 2 do mesmo preceito).
Da rectificação dos erros materiais ocupa-se o preceito imediato (artigo 614.º, o qual autoriza o juiz, por sua iniciativa, a corrigir por simples despacho os “erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”, rectificação que pode ter lugar a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz e a todo o tempo no caso de nenhuma das partes recorrer da decisão.
Este desvio ao princípio da intangibilidade da decisão consagrado no n.º 1 do citado artigo 613.º, válido para o erro de cálculo e quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, justifica-se pela circunstância da vontade declarada na sentença (ou despacho) não corresponder à vontade do juiz, por não fazer sentido “que subsista vontade diversa daquela que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho”,[1] ficando obviamente de fora o erro de julgamento.
Acentua-se, pois, que a possibilidade de modificação oficiosa da sentença está prevista para o erro material ou de cálculo, exigindo a lei que o mesmo seja manifesto, sendo pois necessário que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro ou engano, tendo escrito uma coisa quando, de forma evidente, queria escrever outra.[2]
Ampliando o âmbito de reforma da sentença, o artigo 616.º prevê ainda a sua alteração quando eivada de manifesto e inquestionável erro de julgamento devido a lapso, em dois casos escolhidos: quando tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos (al. a); quando constarem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida-vg. o juiz desconsiderou documento dotado de força probatória plena que, por si só, era bastante para inverter o sentido do decidido- hipótese considerada na al. b).
Todavia, e como decorre clara e inequivocamente do preceito que se analisa, a iniciativa dessa reforma cabe exclusivamente às partes, exigindo ainda a lei que da decisão não caiba recurso.
Das nulidades da sentença trata depois o artigo 615.º do CPCivil de forma taxativa, as quais, excepto a referida na al. a) do nº 1 (falta de assinatura da sentença) cuja omissão é suprida enquanto se poder colher a assinatura do juiz, só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades (cfr. nº 4 do mesmo inciso).
Portanto, fora das situações previstas nos referidos preceitos legais, não tem o Tribunal o poder jurisdicional para alterar a decisão proferida, já que o mesmo se esgotou com a prolação de tal decisão (cfr. citado artigo 613.º, nº 1).
Com efeito, escreve Amâncio Ferreira[3], “editada a sentença (ou o despacho ou o acórdão) fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (artº 666º, nº 1). Não pode consequentemente o Juiz, por sua iniciativa, alterar a sentença depois de proferida, quer na parte da decisão, quer na parte dos fundamentos que a suportam. Mesmo que após a sua prolação, no imediato ou algum tempo depois, adquira a convicção de que errou ou se torne para ele evidente que a decisão desrespeitou o quadro legal vigente, não a pode já emendar. A decisão torna-se intangível para o seu autor”.
A razão pragmática do princípio da extinção do poder jurisdicional, do qual decorre, como se referiu, a impossibilidade do juiz, por sua iniciativa, proceder à modificação da decisão proferida “consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional (…) sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão”. [4]
Isto dito, torna-se evidente que tendo o Sr. juiz do processo exarado decisão, bem ou mal, devidamente transitada em julgado, a condenar os executados na quantia de €10,00 diários a título de sanção pecuniária compulsória não pode, por se ter esgotado o seu poder jurisdicional, nos termos sobreditos, dar ser efeito, em momento posterior, este segmento decisório, pois que, ao contrário do que nessa decisão se afirma, não ocorre qualquer lapso manifesto a ter, portanto, guarida no artigo 614.º, nº 1 do CPCivil.
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Aqui chegados a questão que agora importa dilucidar é qual o concreto vício que afecta o despacho que, em violação de lei, assim tiver sido proferido?
Debruçando-se sobre a questão, o STJ[5], apelando aos ensinamentos dos Srs. Profs. Paulo Cunha e Castro Mendes, entendeu que o vício aqui em causa é o da falta de poder jurisdicional de quem profere, neste caso concreto, despacho modificativo de decisão anteriormente proferida, gerando a sua inexistência jurídica.
Na verdade, como refere o Prof. Castro Mendes[6] embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais (artigo 613.º, nº 3 do CPCivil), a verdade é que outros vícios podem afectar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites.
O referido Mestre denominava de vícios de essência, aqueles que, atingindo a sentença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial e dão lugar à sua inexistência jurídica (ibidem).
Por sua vez Prof. Paulo Cunha[7] dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença (despacho) ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o juiz lavrar segunda sentença.[8]
Portanto, a sentença (despacho) inexistente, no dizer do Prof. Alberto dos Reis[9], é um mero acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença.
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Diante do exposto, torna-se evidente que estava vedado ao Sr. juiz do processo, esgotado que estava o seu poder jurisdicional, de exarar o despacho a dar sem efeito o citado segmento da decisão que havia proferido em 11/09/2013 na parte em que tinha condenado os executados na quantia de € 10,00 diários a título de sanção pecuniária compulsória.
Procedem, desta forma, as conclusões 1ª a 12ª formuladas pelos recorrentes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente por provada e, consequentemente, revogar a decisão recorrida ficando a subsistir no processo aquela que foi proferida em 11/09/2013.
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Sem custas (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 24 de Setembro de 2018.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia (dispensei o visto).
Jorge Seabra (dispensei o visto).
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[1] Cfr. A. dos Reis, CPC anotado, vol. V, pág. 130.
[2] Cfr. autor e ob. cit. na nota anterior , pág. 131/132.
[3] In Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, Almedina, 2009, p. 47.
[4] Professor Alberto dos Reis, obra citada pág. 127.
[5] Cfr. Ac. de 06-05-2010 in www.dgsi.pt.
[6] In Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg. 369.
[7] In Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360.
[8] Tal posição mereceu, aliás, a discordância do Prof. Alberto dos Reis, Idem, pag. 113 e ss.
[9] Idem, pag. 114.