Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
187/07.1GCSJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE
PROVA SUPLEMENTAR
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
Nº do Documento: RP20150909187/07.1GCSJM.P1
Data do Acordão: 09/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Apesar de audiência ter decorrido na sua ausência, a presença do arguido aquando da leitura da sentença, tendo o tribunal sido confrontado aquando da elaboração daquela com a falta de elementos necessários à determinação da pena, impunha que se procedesse à produção de prova suplementar sobre aquela matéria desde logo ouvindo o arguido.
II - Não tendo assim procedido, em face da falta daqueles elementos incorreu na nulidade do artº 120º2 d) CPP e a sentença no vício da insuficiência de facto provada para a decisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 187/07.1GCSJM.P1
Santa Maria da Feira

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
(2ª secção criminal)

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 187/07.1GCSJM, da Instância Central de Santa Maria da Feira, 2ª Secção Criminal, Juiz 1, da Comarca de Aveiro, foi submetido a julgamento o arguido B…, com os demais sinais dos autos.
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O acórdão, datado de 19 de fevereiro de 2015 e depositado no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
“Nestes termos julga-se procedente por provada a douta acusação pública, e, os Juízes que constituem o Tribunal Coletivo decidem condenar o arguido B…, como autor material de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, 218.º, n." 2, aI. b), ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão efetiva.
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Condeno ainda o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do art.º 513.º do c.P.P. e do art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à tabela III anexa a este Regulamento.
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Após trânsito remeta os boletins à D.G.S.J./S.I.C (artigo 5.º, n.º 1, al. a) da Lei n. ° 57/98, de 18 de agosto).
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Após trânsito diligencie pela recolha de vestígios biológicos ao arguido, destinados à análise de ADN, por método não invasivo, nos termos dos artgs 8º, nºs 2 e 5, 9º e 10º da Lei nº 5/2008, de 12.02 (lei que aprova a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal).
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Ao abrigo do disposto no art.º 214.º, n.º 1, al. e), do C.P.P., a medida de coação aplicada ao arguido - termo de identidade e residência - extingue-se com a extinção da pena.
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Proceda ao depósito da sentença (artigo 375.º, n.º 2 do Código de Processo Penal). “
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Inconformado, o arguido B… interpôs recurso, que remata com as seguintes conclusões:
"1ª Na determinação da Medida das Penas, face aos factos provados, não se conforma o arguido com a pena concretamente aplicada, por ser exagerada e desajustada.
2.ª O Tribunal "a quo" não respeitou as disposições penais dos artigos 40º e 70º e ss do C.P.
3.ª Na operação de fixação da medida concreta da pena, atende-se ao disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal.
4.ª O limite máximo fixa-se de acordo com a culpa do agente. O limite mínimo situa-se de acordo com as exigências de prevenção geral. Assim, reduz-se a amplitude da moldura abstratamente associada ao tipo penal em causa.
5.ª A pena concreta é achada considerando as exigências de prevenção especial e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
6.ª A pena não pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de se atingir a dignidade da pessoa humana, pelo que tal limite encontra consagração no artigo 40º do Código Penal.
Os antecedentes criminais do arguido tornam intensas as necessidades de prevenção especial.
8.ª Tendo por base a pena que foi concretamente aplicada 3 anos de prisão efectiva, parece extravasar a finalidade das penas, aplicando-se pena exagerada, desajustada e desproporcional à gravidade dos factos provados e à perigosidade do arguido, prejudicando assim a sua rápida ressocialização.
9.ª Os factos relativos ao seu C.R.C., os crimes pelos quais foi condenado estão relacionados com factos que ocorreram num intervalo temporal específico e correspondente a um período da vida do recorrente muito difícil e que no actual momento já foram ultrapassadas.
10.ª Uma possível redução da penal resultará para o recorrente vantagens para a respectiva reinserção social, condição necessária, mas também suficiente, para que ela deva ocorrer, com a consequente diminuição da pena de prisão aplicada.
11.ª O arguido foi julgado na ausência, e os autos não contêm o relatório social sobre as condições pessoais do arguido, nem qualquer outra prova foi obtida ou procurada obter sobre a personalidade do condenado.
12.ª O arguido esteve presente na segunda sessão de julgamento, em que se procedeu de imediato à leitura do acórdão.
13.ª Não foi aproveitado esse momento para a obtenção da prova sobre a personalidade do arguido e das suas condições pessoais.
14.º Os antecedentes criminais são assim os únicos factos pessoais provados que constam da Douta decisão condenatória.
15.ª O tribunal a quo desconhece a pessoa do arguido e não fez qualquer esforço para adversar esse conhecimento, bastando-se com a informação constante no C.R.C.
16.ª O art.º 71 do Código Penal manda atender, na determinação concreta da pena, “às condições pessoais do agente e a sua situação económica” (al. d)), “a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.” (al. e)), e “a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifesta no facto” (al. f)).
17.ª A Doutrina e a Jurisprudência têm-se pronunciado no mesmo sentido, ou seja, valorizando a relevância dos factos pessoais (arguido) para a determinação da pena. (acórdão do T.R.P. de 18/11/2009 (Olga Maurício); acórdão do T.R.P. de 02/12/2010 (Carmo Dias); acórdão do T.R.E. de 01/07/2010 (António Latas)).
18.ª O tribunal a quo quando encerrou a produção de prova e avançou de imediato para a elaboração do acórdão, prescindiu de, pelo menos, tentar obter informação sobre o arguido.
19.ª Podia ter obtido essa informação se tivesse designado nova data para a audição, se tivesse insistido novamente na elaboração do relatório social ou aproveitado a presença do arguido na sessão da leitura do acórdão para recolher as provas dos factos pessoais e assim dotar o acórdão dos restantes elementos necessários à boa decisão.
20.ª As necessidades de celeridade processual não se podem sobrepor nem prejudicar a averiguação da verdade material nem a ponderação da decisão.
21.ª Não se deveria ter encerrado a discussão da causa sem que se tivesse esgotado todas as possibilidades de averiguar factos relevantes para o Douto acórdão.
22.ª Um acórdão não se pode bastar com o conhecimento dos antecedentes criminais do condenado.
23.ª Ao proferir decisão condenatória com omissão de factos relevantes para a determinação da sanção, o tribunal lavrou acórdão ferido do vício de insuficiência da matéria de facto provada do art. 410.º n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.
24.ª O tribunal a quo optou por não suspender a execução da pena de prisão aplicada.
25.ª Fundamenta a opção da seguinte forma: “(…) atendendo à circunstância do arguido apresentar várias condenações, entendemos que no caso em apreço não estão verificados os necessários pressupostos para a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro, em conformidade com o disposto no art. 50.º do C. Penal, no sentido de se optar pela suspensão da execução da pena fixada, mostrando-se, por isso, de igual modo não ser de aplicar, por injustificada, a aplicação de uma pena de prisão suspensa ao abrigo do disposto no art. 50 do C. Penal, já que não se mostra adequada e suficiente à realização das finalidades de punição.”
26.ª As penas curtas de prisão introduzem o condenado no meio criminógeno, altamente estigmatizante, que por obedecer a valores e princípios próprios, é capaz de corromper e perverter os objectivos pretendidos com a sanção aplicada ao agente, afastando-o, ainda mais do comportamento que de si é esperado, ou seja o espaço prisional pode ser mais estigmatizante do que reabilitativo.
27.ª Face à natureza (o facto de se tratar de um crime patrimonial) e circunstâncias do crime cometido, às suas circunstâncias pessoais actuais, às necessidades de protecção do bem jurídico violado mas também de reintegração daquele na sociedade, também não parece ter sido correctamente afastada a convicção de que a suspensão da pena se revela suficiente.
28.ª A suspensão da pena de prisão seria suficientemente enérgica e preventiva, para além de que se evitariam os efeitos perniciosos e estigmatizantes de uma curta detenção, ao mesmo tempo que permitiria a continuidade das relações familiares e profissionais do recorrente.
29.ª Para que o Recorrente pudesse levar a cabo uma verdadeira mudança de vida ao mesmo tempo que interiorizaria o mal que praticou, poderiam sempre ser estabelecidas condições, a determinar pelo Tribunal, uma vez que a suspensão da execução da pena de prisão pode estar subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado.
30.ª Foi com base no seu registo criminal que o tribunal a quo baseou a sua decisão de não suspensão da execução da pena de prisão. Mas se tivesse atendido à personalidade do arguido e à sua conduta habitual poderia a suspensão da execução da pena ter sido concedida na medida em que teria sido possível concluir por um prognóstico de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastariam para satisfazer os fins de prevenção geral e especial.
31.ª Seria possível concluir pela prognose social favorável, ou seja uma esperança fundamentada quanto ao futuro bom comportamento do arguido.
32.ª Na medida em que no Douto acórdão recorrido foi, indevidamente, afastada a possibilidade de suspensão da pena, sendo certo que tal permite realizar de forma adequada as finalidades de punição, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 40.º, 50.º e 70.º do Código Penal.
Termos em que, deverá revogar-se o acórdão recorrido e consequentemente:
1) Ser atenuada a pena a que o recorrente foi condenado
2) Ser verificado o vício de insuficiência da matéria de facto provada do art. 410.º n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal, com as consequências previstas no art. 426.º, n.º1 do Código Processo Penal.
3) Ser ordenada a suspensão da pena fixada na sua execução.”
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O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo, respondeu pugnando pelo não provimento do recurso.
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 18 de março de 2015.
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procuradora-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de serem declaradas, oficiosamente, as irregularidades decorrentes da falta de identificação e tomada de declarações ao arguido, que esteve presente na segunda data marcada para julgamento, embora designada para a leitura do acórdão, ordenando-se a efetivação dos atos omitidos e só depois ser proferido novo acórdão que supra as mencionadas irregularidades. Ou, não sendo assim considerado, então, declarar que o acórdão padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na al. a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ordenando-se o reenvio parcial, ao abrigo do artigo 426º, nº 1 do Código de Processo Penal, para serem apuradas as condições pessoais e a situação económica e financeira do arguido com vista à determinação da sanção.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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1. Questões suscitadas
A. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
B. Medida concreta da pena e sua substituição por pena de prisão com execução suspensa.
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2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes do acórdão recorrido:
“Matéria de facto provada
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1.º Por ter chegado ao conhecimento da ofendida C… que o arguido se dedicava à venda de viaturas automóveis usadas, importadas a partir do estrangeiro a preços convidativos, a mesma decidiu contactar o arguido a fim de eventualmente lhe vir a adquirir uma viatura.
2.º Assim, no início do mês de abril de 2007, a ofendida entrou em contacto com o arguido tendo-se mostrado interessada na compra de uma viatura automóvel da marca Volkswagen, modelo …, que pudesse ser importada a partir do estrangeiro, em bom estado de conservação e por preço ao alcance das suas disponibilidades financeiras
3.º À pretensão da ofendida, o arguido respondeu afirmando dispor de um veículo Volkswagen, modelo …, para venda, em bom estado de conservação, importado a partir da Alemanha, pelo preço de € 24.250,00 (vinte e quatro mil, duzentos e cinquenta euros), tendo a ofendida aceite os termos do negócio proposto.
4.º Confrontado inicialmente com a pretensão da ofendida e depois com a aceitação pela mesma dos termos do negócio por si proposto, acreditando que lhe seria possível obter vantagens económicas, ainda que de modo ilícito, logo o arguido gizou um plano destinado a levar a ofendida a entregar-lhe o preço acordado sem que alguma vez o arguido efetivamente lhe entregasse qualquer viatura.
5.º Na concretização do referido plano, no dia 20 de abril de 2007, o arguido transmitiu à ofendida que, numa questão de poucos dias, estaria em condições de concretizar o negócio, procedendo à entrega da viatura, esclarecendo que naquele preciso momento aguardava já a chegada de um camião vindo da Alemanha, que transportava o veículo pretendido.
6.º No entanto, com a explicação de que pretendia assegurar o interesse por parte da ofendida na concretização do negócio, o arguido exigiu-lhe a entrega, como garantia, de dois cheques no valor global do preço acordado, prometendo que apenas apresentaria os mesmos a pagamento após a concretização da entrega do veículo à ofendida.
7.º Nesse mesmo dia, confrontada com a pretensão do arguido, acreditando-a genuína, e convencida de que o arguido apenas apresentaria tais cheques a pagamento aquando da entrega do veículo adquirido, a ofendida concordou em emitir e entregar ao arguido dois cheques no valor somado de €24.250,00 (vinte e quatro mil, duzentos e cinquenta euros).
8.° Assim, acreditando na honestidade do arguido e que os mesmos não seriam apresentados a pagamento antes da entrega da viatura, no dia 20 de abril de 2007, em Lourosa, área desta comarca, a ofendida emitiu e entregou ao arguido:
_ o cheque n.º ………, datado de 20 de abril de 2007, no valor de € 11.250,00 (onze mil, duzentos e cinquenta euros), e
_ o cheque n.º ………, datado de 25 de abril de 2007, no valor de € 13.000,00 (treze mil euros), ambos associados à conta bancária com o n.º ……….., por si cotitulada junto do banco D….
9.º Não obstante a entrega dos referidos cheques, a ofendida jamais obteve a entrega da viatura que supostamente o arguido deveria importar e entregar-lhe em poucos dias.
10.º Igualmente não obteve qualquer explicação quanto ao não cumprimento do acordado, não a tendo o arguido procurado alegando qualquer atraso ou contratempo que pudesse ter estado na base do sucedido.
11.º Pelo contrário, assim que obteve a entrega dos cheques por parte da ofendida, emitidos à sua ordem, o arguido de imediato os endossou a terceiros como meio de pagamento de dívidas existentes sem dar qualquer conhecimento do facto à ofendida.
12.º Assim, endossou à testemunha E…, o cheque emitido pela denunciante no valor de € 11.250,00 (onze mil, duzentos e cinquenta euros), tendo este sido apresentado a pagamento logo no dia 24 de abril de 2007.
13.º Endossou à testemunha F…, o cheque emitido pela denunciante no valor de € 13.000,00 (treze mil euros), tendo este sido apresentado a pagamento logo no dia 27 de abril de 2007.
14.º Uma vez apresentados a pagamento, ambos os cheques foram devolvidos por falta de provisão.
15.º Na sequência da devolução do cheque que lhe havia sido endossado pelo arguido, a testemunha E… intentou contra a ofendida a ação executiva com o n.º 4596/07.8TAVFR, que corre os seus termos no 3.º Juízo Cível desta comarca de Santa Maria da Feira e cujo título executivo é o mencionado cheque emitido pela ofendida.
16.º Na sequência da devolução do cheque que lhe havia sido endossado pelo arguido, a testemunha F… intentou contra a ofendida a ação executiva com o n.º 3873/07.2TBVFR, que corre os seus termos no 1.º Juízo Cível desta comarca de Santa Maria da Feira e cujo título executivo é o mencionado cheque emitido pela ofendida.
17.º Sabia o arguido que os cheques que lhe haviam sido entregues pela ofendida se destinavam apenas a garantir o interesse da mesma no negócio de aquisição de uma viatura e que apenas poderiam ser apresentados a pagamento aquando da entrega da viatura adquirida.
18.º Sabia que os terceiros a quem endossou os cheques emitidos pela ofendida os recebiam como meio de pagamento de dívidas e que os mesmos desconheciam o que o arguido havia acordado com a ofendida quanto à data de apresentação dos cheques a pagamento.
19.º Sabia igualmente que ao endossar os referidos cheques a tais terceiros, criava condições para que os cheques fossem de imediato apresentados a pagamento.
20.º Por outro lado, sabia igualmente que uma vez apresentados a pagamento, o valor pelo qual haviam sido emitidos seria cobrado à ofendida, ainda que coercivamente, não obstante a mesma não ter obtido a entrega da viatura para pagamento da qual tais cheques se haveriam de destinar.
21.º Sabia igualmente que ao atuar da forma descrita, o fazia contra a vontade e por isso sem o consentimento da ofendida, causando-lhe um prejuízo pelo menos equivalente ao valor inscrito nos cheques que lhe haviam sido entregues.
22.º Não obstante, atuou o arguido com o propósito que concretizou de, fazendo falsamente crer à ofendida que lhe entregaria uma viatura automóvel, que os cheques que esta de imediato lhe entregasse apenas serviriam de garantia da futura concretização do negócio e que apenas aquando de tal concretização apresentaria os referidos cheques a pagamento, a levar a entregar-lhe os referidos títulos de crédito para que os pudesse utilizar como meio de pagamento de dívidas próprias conforme efetivamente utilizou.
23.º Atuou o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
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No que concerne ao passado criminal do arguido, apurou-se que:
24.º O arguido foi condenado:
_ Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial Espinho, no processo comum singular nº 95/02.2TAESP do 2.º Juízo, por sentença datada de 05/03/2003 e transitada em julgado em 25-03-2003, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 2,50, pela prática, em 18-09-2001, do crime de abuso de confiança p. p. pelo art.º 205 nº 1, do CP, a qual por decisão de 18-12-2003 foi fixada em 40 dias de prisão subsidiária, tendo sido declarada extinta a pena por decisão de 19-03-2004;
_ Por sentença proferida pelo 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, no processo comum singular nº 544/02.0TAVFR, por sentença datada de 06/05/2004 e transitada em julgado em 14-06-2004, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 4,00, pela prática, em 05-12-2001, do crime de abuso de confiança p. p. pelo art.º 205º, nº 1, do CP, a qual foi declarada extinta por decisão de 27 -03-2006;
_ Por sentença proferida pelo 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, no processo comum singular nº 226/01.0GCOVR, por sentença datada de 08/07/2004 e transitada em julgado em 22-09-2004, na pena de 18 meses de prisão suspensa por dois anos, pela prática, em 03-05-2001, do crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo art.º 143.º nº 1, do CP, e um crime de violência doméstica contra menores, p.p. pelo art.º 152.º nº 1, al. a) e 2 do CP, a qual foi declarada prescrita por decisão transitada em 22-09-2004;
_ Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Ovar, no processo comum singular nº 444/05.1 TAOVR, do 2° Juízo, por sentença datada de 09/1 0/2006 e transitada em julgado em 02-11-2006, na pena de 10 meses de prisão, suspensa por 3 anos, sujeita a condições, pela prática, em 19-01-2004, do crime de violação de obrigação de alimentos, p. p. pelo art.º 250.º do CP, a qual foi declarada prescrita por decisão transitada em 02-11-2006;
_ Por sentença proferida pelo 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, no processo comum singular nº 340/04.0PASJM, por sentença datada de 15/11/2006 e transitada em julgado em 30-11-2006, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 5,00, pela prática, em 07-04-2004, do crime de falsificação ou contrafação de documentos, p. p. pelo art.º 256.º, do CP, a qual foi declarada extinta por decisão transitada em 30-11-2006, pelo pagamento;
_ Por sentença proferida pelo 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, no processo comum singular nº 335/04.3GCSJM, por sentença datada de 31/01/2008 e transitada em julgado em 03-03-2008, na pena de 20 meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a condições, pela prática em 2004, de um crime de maus tratos a cônjuge ou análogo, p. p. pelo art.º 152.º, nº 2 do CP, a qual foi declarada extinta por decisão transitada em julgado em 03-03-2008;
_ Por sentença proferida pelo 1° Juízo do Tribunal Judicial de Espinho, no processo sumário nº 1259/07.8PAESP, por sentença datada de 12-12-2007 e transitada em julgado em 24-01-2008, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €7,00, e na pena acessória de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses, pela prática em 02-12-2007, do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo art.º 292.º, nº 1 do CP, a qual foi declarada extinta por decisão de 24-01-2008;
_ Por sentença proferida pelo Tribunal da Comarca do Baixo Vouga, Albergaria-a-Velha, Instância Criminal, no processo comum singular nº 502/06.5TAALB, por sentença datada de 24/02/2010 e transitada em julgado em 26-01-2011, na pena de 350 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, pela prática em 05-05-2006, do crime burla qualificada, p. p. pelo art.º 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, ambos do CP.
_ Por sentença proferida pelo Tribunal da Comarca do Baixo Vouga, Juízo, Instância Criminal de Ovar, processo comum singular nº 418/11.3GCOVR, por sentença datada de 29/03/2012 e transitada em julgado em 04-11-2013, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão, pela prática, em 06-04-2011, do crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, p. p. pelo art.º 152.º, nº 1, al. b) e nº 2 do CP.
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2.2. Factos Não Provados Inexistem.
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2.3. Convicção do Tribunal:
Como dispõe o art.º 127º do C.P.P., a prova é apreciado “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
O arguido optou por não comparecer, pelo que precludida quedou a possibilidade de este tribunal auscultar a sua versão dos factos, na eventualidade de pretender prestar declarações. Mais não logrou obter informações sobre as suas condições de vida, não tendo tido sucesso os serviços da DGRS encarregues da elaboração do respetivo relatório social, porquanto se desconhece o seu atual paradeiro.
A convicção do tribunal no que concerne aos factos imputados ao arguido teve por base o depoimento a prova documental que consta de folhas 27 a 35 (missiva bancárias sobre a devolução dos cheques), cópias dos cheques de fls. 41 e 42, certidão do processo executivo de fls. 139 a 146 e 148 a 150 e crc de fls. 418 a 433, em conjunto com a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
Ponderou-se ainda o depoimento da ofendida, C…, emigrada em França, que prestou declarações por carta rogatória, a qual se encontra traduzida a fls. 386. Confirmou que conhecia o arguido e sabia que este vendia carros. Em abril de 2007 acordou com o arguido a aquisição de um veículo de marca Volkswagen …, tendo-lhe este mostrado fotografias do veículo que lhe iria vender, vindo diretamente da Alemanha. O preço acordado entre si e o arguido pela aquisição do veículo foi de € 24.250,00, que era o preço comercial do mesmo. Explicou que nessa altura o arguido pediu-lhe que lhe passasse 2 cheques, um no valor de €11.250,00 e outro no valor de €13.000,00, para pagamento do veículo, bem como o seu bilhete de identidade, alegando que era para pôr o livrete em seu nome, pedido ao qual acedeu. Afirmou que não recebeu nada em troca, nem papel nem contrato. Afiançou que desde essa altura nunca mais viu o arguido, nunca lhe tendo entregue o contrato de compra e venda nem o veículo.
Explicou ainda a ofendida que os cheques que entregou ao arguido foram depositados no banco no dia 20 e 27 de abril de 2007, tendo os mesmos sido devolvidos por falta de provisão, já que foram apresentados antes da data.
Por fim, referiu que teve os seus bens penhorados porque o arguido tinha entregue os cheques, um a E… (€11.250,00) e o outro ao senhor F… (€13.000,00).
A testemunha E…, militar da GNR, de forma rigorosa, serena, isenta e clara, descreveu ao tribunal que tinha adquirido ao arguido um veículo automóvel, que este não lhe chegou a entregar, mas como já lhe tinha pago o respetivo preço para a sua aquisição, o arguido para lhe devolver o dinheiro fê-lo através de um cheque.
Afiançou esta testemunha que o arguido lhe disse que o cheque que lhe entregou era um cheque que lhe foi entregue por um casal, o qual estava assinado e o arguido assinou por trás, endossando-o, cheque esse no valor de €11.250,00. Adiantou, ainda, que depositou o cheque na sua conta e o mesmo foi devolvido. Confirmou que o cheque de fls. 42 foi o que lhe foi entregue pelo arguido.
Por fim, confirmou ter intentado uma ação executiva, tendo para tal incumbido uma Advogada para o fazer.
A testemunha, F…, descreveu de forma isenta, rigorosa e segura a atuação do arguido, mormente que lhe adquiriu um veículo automóvel que vinha da Alemanha, mas que este nunca lhe entregou o carro nem lhe entregou o dinheiro. Afirmou que o arguido lhe entregou um cheque, no valor de €13.000,00, que depositou na sua conta, o qual foi devolvido e por ISSO, intentou uma ação executiva sendo o cheque título executivo da mesma.
Confrontado com o cheque de fls. 46, confirmou que foi este o cheque que lhe foi entregue.
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No que concerne aos elementos sobre o elemento subjetivo o tribunal baseou-se nas regras da experiência comum, as quais permitiram inferir, com base nos factos objetivos dados como provados, a intenção subjetiva do arguido ao proceder da forma descrita, uma vez que se trata de uma presunção natural para qualquer cidadão e que aliás decorrem de toda a prova produzida.”
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3. Apreciação do recurso

A. Insuficiência da matéria fática provada para a decisão.
O arguido/recorrente B… foi condenado, pela prática, como autor material, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º e 218º, nº 2, al. b), ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão efetiva.
Para chegar a tal condenação, consta do acórdão recorrido que depois de feita a subsunção jurídica dos factos, assente a prática do crime e culpabilidade daquele arguido, o Tribunal a quo procedeu à determinação da pena, começando pela sua concretização em três anos de prisão, após o que ponderou sobre a possibilidade de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena, que acabou por afastar.
Operações essas que, como se sabe, têm todas os respetivos critérios legalmente definidos, nos artigos, 40º, 71º e 50º a 54º do Código Penal.
Dispõe o artigo 40º do Código Penal, logo no seu nº1, que “A aplicação de penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e, no seu nº 2, “Em caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
O artigo 71º do mesmo diploma prescreve, para além do mais, que na determinação concreta da pena deverão considerar-se, designadamente, “as condições pessoais do agente e a sua situação económica” (al. d)), “a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime” (al. e)), e “a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto” (al. f)).
Por sua vez, a aplicação das penas substitutivas da prisão, designadamente a suspensão da execução da pena de prisão, está sempre dependente da sua adequação às finalidades da punição.
Ora, não obstante os critérios que emanam dos preceitos legais citados, in casu, o Tribunal a quo procedeu a todas as operações conducentes à determinação concreta da pena do arguido/recorrente e afastamento do instituto da suspensão da execução da pena, com total desconhecimento sobre a sua situação pessoal e personalidade, exceto o que sobre ela revelam os seus antecedentes criminais, já que, para além do certificado de registo criminal, absolutamente nenhuma outra prova foi sobre esse assunto produzida.
Não tendo sequer sido possível à DGRS elaborar o relatório social solicitado pelo Tribunal, pois o arguido não foi encontrado na morada constante do TIR, que foi a única fornecida àqueles serviços. Embora dos autos conste uma informação da GNR, a fls. 253, onde é indicada uma morada diversa da constante do TIR como sendo a residência do arguido, para além do seu número de telefone, elementos que não foram facultados à DGRS.
Rigorosamente nada se sabendo sobre o caráter do arguido e sua situação familiar, profissional, económica, social e condições de vida, nomeadamente em momentos muito relevantes, como o são a data da prática dos factos e a atualidade.
E, não obstante essa ausência de prova, o certo é que embora a primeira sessão da audiência tenha decorrido na ausência do arguido, este compareceu na segunda sessão, que havia sido designada para a leitura do acórdão, tendo o Tribunal a quo ignorado a sua presença, não aproveitando para o identificar e obter elementos no sentido de apurar as suas condições pessoais, quer diretamente, através do próprio, quer mediante a recolha da morada onde ele efetivamente reside, para posterior elaboração de relatório social.
Tendo o procedimento de determinação da sanção sido efetuado sem conhecimento da concreta pessoa do arguido, completamente à revelia do protagonismo dado à determinação da pena pelo legislador processual penal, que numa das marcas ideológicas do Código de Processo Penal, estabeleceu, inclusive, um sistema que se costuma designar por césure mitigado, segundo o qual, na fase decisória, depois de resolvida a questão da culpabilidade (cfr. artigo 368º do Código de Processo Penal) e assente esta, entra-se num segundo estádio, destinado exclusivamente à determinação da pena, quando esta seja devida (cfr. artigo 369º do Código de Processo Penal).
Nas expressivas palavras de Maia Gonçalves (in Código de Processo Penal anotado, 2009, p. 837), neste segundo estádio, e só então, “são tomados em conta os elementos respeitantes aos antecedentes criminais do arguido, as perícias sobre a personalidade e o relatório social. Os elementos já apurados podem ser bastantes e então entra-se logo na escolha da pena (…). Mas se suceder serem tais elementos insuficientes, e ser indispensável prova complementar, reabre-se a audiência procedendo à produção dos meios de prova necessários, ouvindo-se, sempre que possível, (…) quaisquer pessoas que possam depor com relevo sobre a personalidade e as condições de vida do arguido”
De tudo assim decorrendo que o Tribunal a quo, quando teve conhecimento, ainda antes da leitura da sentença, da presença do arguido naquela sessão da audiência e havendo-se já confrontado com a falta de elementos fáticos necessários para proceder à determinação da pena, deveria considerar que então já era possível proceder à produção de prova suplementar sobre aquela matéria, agindo em conformidade.
É que, embora a tramitação normal da audiência de julgamento seja a indicada nos artigos 360º, 361º, 365º a 371º e 372º, todos do Código de Processo Penal, enquanto não der início à leitura da sentença o Tribunal está sempre a tempo de ordenar a produção de novos meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade ou boa decisão da causa, por ainda não se ter esgotado o poder jurisdicional sobre tais matérias.
Para tal bastará ao Tribunal, em despacho fundamentado, comunicar que não está suficientemente esclarecido sobre pontos importantes para a decisão da causa, tendo tido conhecimento posterior da existência de provas esclarecedoras. Reabrindo a audiência através do mecanismo excecional previsto no nº 1 do artigo 365º do Código de Processo Penal, se a prova versar ainda sobre a questão da culpabilidade propriamente dita ou, caso já só esteja em causa a determinação da sanção, através do mecanismo de reabertura da audiência para esse efeito previsto no artigo 371º, também do Código de Processo Penal.
O que não poderá em caso algum fazer o Tribunal, será proceder à leitura de uma sentença que ele próprio sabe estar viciada por insuficiente averiguação, quando essa averiguação se mostra possível em momento em que o poder jurisdicional ainda não se esgotou.
Assim, in casu, bastaria solicitar a realização de relatório social, tendo em consideração a morada que o arguido fornecesse aquando da sua identificação ou, então, e se tal se viesse a revelar viável, considerar as declarações do arguido a tal propósito.
Não tendo assim procedido, e encerrando a produção da prova sem os necessários elementos fáticos relativos às condições de vida e personalidade do arguido, cometeu o Tribunal a quo a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal.
E, depois, proferindo decisão condenatória com omissão de factos relevantes para a determinação da sanção, produziu sentença ferida do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a que alude a al. a), do nº 2, do artigo 410º do Código de Processo Penal. Na medida em que do próprio texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, resulta uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (relativa à determinação da sanção), que permite a “conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher” (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos Penais, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 74).
Vício este que é de conhecimento oficioso e determina o reenvio do processo para novo julgamento, restrito às questões de facto pertinentes para conhecimento das condições de vida e personalidade do arguido.
Devendo o Tribunal, para além do mais que entender pertinente, envidar todos os esforços para obter a presença do arguido em audiência e, caso tal não se venha a revelar possível, considerar a informação da GNR, de fls. 253, onde é indicada uma morada diversa da constante do TIR como sendo a residência do arguido, para além do seu número de telefone, para efeitos de efetuar as necessárias diligências com vista à obtenção de prova sobre a personalidade e condições pessoais do arguido.
E, fixados os factos relativos a essa matéria, o reenvio estende-se também, obviamente, à questão de direito com eles conexa, ou seja, à decisão sobre a determinação da pena.
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Com a decisão de reenvio parcial, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, ordenando-se o reenvio parcial para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal, restrito às questões de facto pertinentes para conhecimento das condições de vida e personalidade do arguido B…, e subsequente decisão de direito conexa, de determinação da respetiva pena.
Sem tributação.
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Porto, 9 de setembro de 2015
Elaborado e revisto pela relatora (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal)
Fátima Furtado
Elsa Paixão