Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1722/13.1T2AVR-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP201810081722/13.1T2AVR-D.P1
Data do Acordão: 10/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º681, FLS.63-70)
Área Temática: .
Sumário: Provando-se que as dividas aos credores por parte dos requerentes da insolvência e da exoneração do passivo restantes perfazem a quantia de €161.397,63, e que não há qualquer valor do activo, o repúdio de uma herança por parte dos insolventes três meses antes de requererem a declaração de insolvência, constitui um elemento que indicia a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º do CIRE, o que legitima o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1722/13.1T2AVR-D.P1
Sumário da decisão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
Em 22.08.2013, no Juízo de Comércio de Aveiro (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, B… e C…, casados entre si, apresentaram-se à insolvência requerendo a exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida em 19.09.2013, foi decretada a insolvência dos requerentes.
Realizou-se a assembleia de credores no dia 7.11.2013, na qual e nos termos que constam da respetiva ata, pelo credor D…, CRL foi declarado que o insolvente B… repudiou a herança por óbito de seu pai, tendo o referido credor requerido que Administrador de Insolvência proceda à averiguação de tal facto, com vista a «eventual apreensão e venda do quinhão hereditário a favor da massa insolvente».
Pela Mª Juíza foi proferido o seguinte despacho, consignado na referida ata:
« Aguardem os autos informação a prestar pelo Sr. Administrador, com subsequente notificação da mesma ao insolvente e aos credores aqui presentes, após o que se aquilatará dos termos do prosseguimento dos autos.
Consigna-se que, por suscetível de constituir matéria relevante para apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, defere-se a prolação do despacho a que alude o art° 239° n° 1 do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas para momento posterior à junção aos autos da informação a esse respeito protestada prestar pelo Sr. Administrador da Insolvência».
Pelos requerentes foi apresentado um requerimento no qual alegam, em síntese: o pai do insolvente faleceu em 15.05.2013; em vida efetuou a doação ao insolvente de um terreno onde este construiu a sua habitação, ficando obrigado a pagar aos irmãos 2/3 do valor; o valor do terreno era de €77.314,00, pelo que devia aos irmãos €25.771,00 – dívida superior aos bens da herança que somavam €44.483,25, sendo €44.380,00 o valor da casa dos pais, e 4 terrenos rústicos com os valores respetivos de €60,18, €32,53, €4,48 e €6,60; o repúdio não teve a intenção de dissipar património.
A credora E… apresentou um requerimento no qual refere:
«Estamos perante um evidente e escandaloso ato de sonegação de bens, de alegada disposição/repúdio de bens em evidente prejuízo da massa insolvente.
O senhor administrador deveria já há muito ter accionado o mecanismo previsto no artigo 120.º do CIRE.
É evidente que estamos perante um ato nulo: o alegado repúdio da herança que foi feito tão só com o evidente propósito de colocar a salvo o quinhão hereditário dos insolventes.
A explicação que os insolventes vêm trazer ao processo é ridícula. Alegadamente ter-lhes-á sido doado um terreno onde construíram uma casa sendo que agora na partilha teriam de compensar os irmãos por tal. […]
a) O que foi doado pelos pais do insolvente foi um terreno e não uma casa.
b) O alegado valor de 77.314,00€ como é evidente seria o valor do terreno e da casa que após a doação os insolventes aí construíram.
c) O valor do terreno era, em 2014. de 16.247,53€ como se comprova pela certidão matricial que se junta do mesmo como doc. n.º 1.
d) Mesmo que se considerasse como correto o valor indicado para os demais bens da herança: 44.483,25€ ainda assim os insolventes sempre teriam algo a herdar: 16.247,53€ +44.483,25€ = 60.730,78€, seria o valor total dos bens da herança pelo quinhão de cada um dos três herdeiros seria: 20.243,59€. Logo os insolventes ainda teriam a receber: 20.243,59-16.247,53 = 3.996,06€.
e) Sendo que é evidente que o valor indicado para o prédios rústicos (32,53€, 4,48€ e 6,06€), não corresponde ao seu valor real. Os insolventes apenas tiram partido do que é do conhecimento público: apenas os prédios urbanos foram sujeitos a avaliação pelo serviço de finanças, pelo que os valores constantes das matrizes rústicas estão completamente desactualizados».
Em 4.06.2018 foi proferido despacho no qual foi liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.
Não se conformaram os insolventes, e interpuseram recurso de apelação, apresentando alegações, no termo das quais formulam as seguintes conclusões:
As questões que neste recurso se submetem à discussão e à ulterior e douta apreciação de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, são as seguintes:
1. Saber se deve ser modificada a decisão proferida;
2. Os recorrentes não foram notificados para responderem e exercerem o direito do contraditório pela imputação da violação das normas contidas nas alíneas e) do nº 1 e g) do artº 238 e alíneas a) e d) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE ou seja:
a) O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; e
b) Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
3- Conforme mencionado o Sr. Administrador de Insolvência não apresentou qualquer articulado, pelo que volvidos, cerca de três anos foi destituído.
4- Não foram os recorrentes citados para exercer o direito do contraditório apesar de terem enviado requerimento.
5- Contudo na douta sentença recorrida invoca-se como fundamento para a não concessão da exoneração do passivo restante a violação da norma contida nas alíneas e) do nº 1 e g) do artº 238 e nas alíneas a) e d) do número 2 do artº 186 nº 2 do CIRE ou seja que existem elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
6- Todavia esta imputação não foi feita aos recorrentes no articulado a que respondeu pelo que a sua invocação pelo Tribunal não só constitui excesso de pronúncia como viola, igualmente, o principio do contraditório pois, aos ora recorrentes, não lhe foi imputada, nesse articulado, a prática desses factos.
7- Mais: os próprios Recorrentes explicam e juntam documentos que demonstram, analisando factos ocorridos que não efetuaram qualquer disposição do seu património com intuito de agravar ou criar uma situação de insolvência, pois resulta dos documentos tais como repúdio da herança (a favor dos filhos); valor do terreno rústico doado pelos seus pais e avaliado por instituição financeira que é credora neste processo nessa data por 77314,00€ (sendo que teria que dar os seus irmãos o valor de 25771,33€ a cada), os bens da herança repudiada que se cifram em 44483,25€ (tendo cada um dos herdeiros direito a 14827,75€) que o valor a pagar aos credores que seriam os seus irmãos era de 10943,58€, o que agravaria o valor da divida e aumentaria o numero de credores, sendo estes com preferência quanto aos bens da Herança.
8- Salienta-se ainda que o valor indicado a titulo herança abrange a herança do seu Pai falecido após a insolvência mas também os bens da sua Mãe que não foram partilhados antes da insolvência.
9- Assim, não se percebe a invocação na douta sentença recorrida de que os ora Recorrentes, repudiou à herança por óbito do pai, em beneficio dos seus irmãos e assim teria praticado factos subsumíveis ao normativo previsto na alínea a) e d) do número 2 do artº 186 do CIRE ou seja que o recorrente fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património ou que dispôs destes bens em interesse pessoal ou de terceiros
10- Quer pelo supra alegado, quer ainda porque conforme consta do ponto 6 da missiva enviada tinha a esperança dos irmãos não virem exigir os sobrinhos dependentes os montantes que certamente exigiriam e tinham direito a reclamar na Insolvência.
11- Não houve qualquer acto de dissipação do património dos Recorrentes. 12- Salienta-se assim que é falso que tenha existido “de disposição a favor de terceiros, nomeadamente dos seus irmãos”, pois o repúdio determinou que fossem os seus filhos a serem os herdeiros e não os seus irmãos.
13- Os recorrentes não criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo contrário conforme alegado e não efetuaram ao invés do alegado qualquer acto de disposição do seu património com intuito de compensar os irmãos por uma doação feita pelo seu pai, em vida, pois para existir uma compensação teria que existir um crédito dos Recorrentes pra com os irmãos superior à divida, o que não correu até porque o acto de disposição não foi efetuado para os irmãos, não existiu qualquer compensação!
14- Os bens da herança repudiada eram de valor diminuto face à dívida da doação.
15- Note-se, de resto, que os ora recorrentes porque não dominam, nem tem obrigação de dominar, conceitos jurídicos (onde se incluem práticas forenses e afins) apenas pretenderam que não surgissem mais dividas e sabendo que os seus filhos eram tidos como sobrinhos de coração pelos tios, acreditaram que assim não viriam os seus irmãos pedir essas quantias.
16- Deste modo a douta sentença recorrida, no que concerne a esta imputação, fez errada aplicação dos factos ao Direito e violou o princípio do contraditório para além de, igualmente, constituir excesso de pronúncia.
17- Salienta-se ainda que a sentença recorrida afirma que “o acto de repudio constituiu, um acto de dissipação do seu património que, (...) constitui a garantia geral dos credores, beneficiando os seus irmãos, ainda que estes pudessem ser seus credores, em prejuízo dos demais credores da Insolvência, com que a agravaram”, o que é inaceitável!
18- O acto de repudio não foi para os irmãos, como pode ser afirmado que foram beneficiados???
19- Como se pode invocar tal facto.
20- E reconhece a sentença recorrida expressamente que estes são credores, sabendo ainda que teriam direitos de preferência, que aumentaria o passivo dos recorrentes e não determinaria o aumento do seu património, pois os bens da herança eram de valor manifestamente inferior ao valor da quota correspondente ao valor dos bens repudiados!
21- Aliás não pode deixar de se salientar que qualquer norma jurídica tem de ser interpretada e aplicada num contexto de normalidade, com bom senso e adequação à realidade.
22- Na verdade em Portugal como, de resto, noutras partes do mundo vivia-se pelo menos, cinco-seis anos numa situação de “anormalidade económica” motivada pela gravíssima crise que atravessámos e que é do conhecimento geral.
23-Ora, neste contexto o valor que um dos credores indicou para financiar os Recorrentes na compra do terreno traduz o valor que o bem rustico tinha e não descurando esse facto, menciona-se ainda que na data da entrega do bem no âmbito de uma execução fiscal, esse credor terá como credor hipotecário adquirido o bem que vendeu por valor superior a 80.000,00€, pelo que é conhecimento informal dos recorrentes.
24- Assim sendo, o texto legal vertido no CIRE nomeadamente as normas que permitem a não concessão da exoneração do passivo restante pelos motivos invocados e efetuada uma analise do CIRE concebido para uma conjuntura económica normal bem como a aplicação desses preceitos fora de um contexto e conjuntura económica de “ normalidade “ constitui profundo erro pois acarreta uma errada aplicação dos factos ao Direito.
25- Com efeito a ser feita, nesta data, uma aplicação automática ou quase automática da norma contida na alínea d) do nº 2 do artº 186 do CIRE seguramente muitas empresas e particulares seriam declarados insolventes e qualificadas como insolvência culposas ou sem exoneração de passivo restante. –
26- Assim não se pode considerar como suficiente, por si só, como se invoca na douta sentença recorrida, para não concessão da exoneração do passivo apenas e tão só a existência de um repúdio.
27- Por outras palavras: nunca pode ser negada a concessão da exoneração do passivo restante quando as premissas em que esta é efetuada não analisam os factos documentados e fazem tabua rasa a um acto que não determinou qualquer perda real de património mas antes procurou ultrapassar a existência do aumento de passivo e do numero de credores.
28- Assim e mais uma vez existe errada aplicação dos factos ao Direito.
29- Estes factos constituem, pois, fundamento de recurso ex vi artº 639 nº 2 e 640 do CPC atenta o excesso de pronúncia e a errada aplicação dos factos ao Direito para além de constituir violação do principio constitucional do acesso aos Tribunais e de defesa previsto no artº 20 nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
I) Normas violadas: art. 235.º c.i.r.e.; art. 238.º c.i.r.e..
Termos em que: deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão e consequentemente reconhecida a exoneração do passivo restante. quanto ao demais deixamos para vossa apreciação.
E, assim Vossas Excelências, porém, farão a esperada JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II. Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: i) apreciação da nulidade invocada; ii) averiguação sobre se se verifica o pressuposto de indeferimento liminar previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março[1].
2. A nulidade invocada
Alegam os recorrentes que ocorre uma nulidade da sentença recorrida, na medida em que
«4- Não foram os recorrentes citados para exercer o direito do contraditório apesar de terem enviado requerimento.
5- Contudo na douta sentença recorrida invoca-se como fundamento para a não concessão da exoneração do passivo restante a violação da norma contida nas alíneas e) do nº 1 e g) do artº 238 e nas alíneas a) e d) do número 2 do artº 186 nº 2 do CIRE ou seja que existem elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
6- Todavia esta imputação não foi feita aos recorrentes no articulado a que respondeu pelo que a sua invocação pelo Tribunal não só constitui excesso de pronúncia como viola, igualmente, o principio do contraditório pois, aos ora recorrentes, não lhe foi imputada, nesse articulado, a prática desses factos».
Salvo todo o respeito devido, temos alguma dificuldade em compreender a argumentação dos recorrentes neste segmento do recurso, considerando: i) que o indeferimento liminar não pressupõe qualquer notificação prévia ao autor, devendo ser proferido “quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente» (art.º 590.º, n.º 1, do CPC); ii) que os recorrentes tiveram oportunidade de se pronunciar, tendo-o feito, como eles próprios admitem, já que a questão foi suscitada pelo credor D…, na assembleia de credores realizada no dia 7.11.2013, tendo-se os ora recorrentes pronunciado em requerimento de 28.12.2016, no qual defendem a sua posição, alegando que com a sua conduta não contribuíram para a criação ou agravamento da situação de insolvência, prevista no artigo 186.º do CIRE.
Em suma, não houve qualquer violação do princípio do contraditório.
No que respeita ao alegado (e não fundamentado) excesso de pronúncia, também não assiste razão aos recorrentes, considerando que a Mª Juíza tinha o dever legal de proferir o despacho liminar, que poderia ser de deferimento ou de indeferimento (art.º 238.º do CIRE).
Improcede assim a arguição de nulidades por parte dos recorrentes.
3. Fundamentos de facto
Para além da que consta do relatório que antecede, foi considerada provada a seguinte factualidade relevante:
1. Os insolventes apresentaram-se à insolvência em 22/08/2013, que foi declarada em 19/09/2013 (cfr. sentença proferida nos autos)
2. À data da elaboração do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, o insolvente marido exercia funções de gerente da sociedade comercial por quotas F… - Unipessoal, Lda., NIPC: ………., inactiva desde 2012, tendo emigrado para França em finais de 2012, obtendo um contrato de trabalho por tempo determinado como motorista com o vencimento mensal ilíquido de €1.500,00 (cfr. relatório).
3. A insolvente mulher emigrou também para França onde passou a trabalhar como empregada de limpeza, auferindo mensalmente o rendimento ilíquido de €408,00 (cfr. relatório).
4. À data da elaboração do relatório, os insolventes tinham como despesas mais significativas a renda da habitação em França, no valor de €750,00 mensais; despesas de alimentação no valor de €600,00 mensais; despesas de telecomunicações e transportes (combustível) no valor mensal de €400,00 e despesas com filho, residente em Portugal, no valor mensal de €150,00.
5. A situação de insolvência decorre da impossibilidade de cumprimento das obrigações pessoais ou do casal, assumidas em contratos de empréstimos pessoais ou avais concedidos à empresa de construção gerida pelo insolvente marido, junto de diversas entidades bancárias.
6. Tendo o pai do insolvente falecido em 15 de maio de 2013, e após falecimento da mãe, o insolvente repudiou à herança aberta por óbito do pai.
7. O insolvente justifica tal repúdio como forma de compensar os dois irmãos pela doação de um terreno que o pai lhe fez em vida, no valor de €77.314,00, tendo a herança deixada pelos pais o valor patrimonial de €44.380,00 (cfr. requerimento dos insolventes datado de 28/12/2016).
8. Os insolventes têm um passivo global de €149.679,79, de acordo com a lista de créditos reconhecidos pelo AI.
9. Do certificado de registo criminal dos insolventes não resulta a prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal.
Mais se provou que:
10. Os requerentes alegam que as dívidas aos credores perfazem a quantia de €161.307,63 (art.º 43.º da petição).
11. Foi atribuído ao terreno, pelas Finanças, no ano de 2014, o valor patrimonial de €16.247,53.
12. Consta do relatório do AI, como único ativo dos insolventes a titularidade de uma quota numa sociedade comercial inativa (F… Unipessoal, Lda.), sem qualquer valor.
13. O falecimento do pai do insolvente ocorreu em 15.05.2013 (escritura de repúdio da herança junta aos autos), a escritura de repúdio da herança foi outorgada em 20.05.2013 e o pedido de declaração de insolvência foi apresentado em 22.08.2013.
4. Fundamentos de direito
Preceitua a alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE:
«1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: […] e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º».
Sob a epígrafe “Insolvência culposa”, dispõe o artigo 186.º do CIRE:
«1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - […]
4 - […]
5 - […]».
A questão recursória resume-se a saber se constam no processo, ou foram fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa dos insolventes na criação ou agravamento da situação de insolvência, legitimadores da prolação do despacho de indeferimento liminar previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.
Pensamos, salvo o devido respeito, que a resposta à questão enunciada não poderá deixar de ser positiva.
Vejamos porquê.
De acordo com a informação prestada pelos próprios insolventes, as dívidas aos credores perfazem a quantia de € 161.307,63 (art.º 43.º da petição).
De acordo com o relatório do AI, os insolventes têm como único ativo uma quota numa sociedade comercial inativa (F… Unipessoal, Lda.), sem qualquer valor.
Neste contexto, de perda total por parte dos credores, revela-se, no mínimo, incompreensível, o facto de os insolventes terem repudiado a herança 5 dias após o falecimento do pai do insolvente, requerendo a declaração de insolvência 3 meses depois da declaração de repúdio, alegando que o terreno doado tinha o valor de €77.314,00 (quando o seu valor patrimonial atualizado em 2014 – já depois da doação – foi fixado em €16.247,53) e que os 4 prédios rústicos que integram a herança têm, respetivamente, os valores de €60,18, €32,53, €4,48 e €6,60.
Como bem refere a Mª Juíza na sentença recorrida, nos temos do disposto no art.º 601.º do Código Civil o património dos requerentes da insolvência constituía a garantia geral dos seus credores, não sendo lícito aos requerentes disporem do mesmo, com os pretextos que invocam, três meses antes de requerem a insolvência.
Com efeito, se os requerentes da insolvência tivessem agido com a lisura devida, restava aos credores (para quem não sobra um cêntimo, apesar de os montantes dos créditos ascenderem, pelo menos, a €161.307,63), o direito dos insolventes à herança, na respetiva proporção, podendo exercê-lo, impugnando, nomeadamente, os valores irrisórios atribuídos aos prédios rústicos (€60,18, €32,53, €4,48 e €6,60), e a medida do eventual direito dos irmãos do insolvente (podendo suscitar o problema da integração, pelo menos parcial, do bem na quota disponível).
O que os requerentes não podiam fazer, face às regras da boa fé, era repudiar a herança, apresentando aos credores o facto consumado, com a infundada alegação dos valores que apresentam, sem lhes darem a possibilidade de discutir tal bem que, como já se referiu e ora se reitera, constituía garantia geral dos credores.
O fresh start em que se traduz a exoneração do passivo restante tem, muitas vezes, um preço elevado que é pago por terceiros: pelos credores.
Com efeito, também os credores são titulares de um direito com consagração constitucional (artigo 62.º da CRP), abrangendo o direito de propriedade o direito de não privação dos bens, revestindo, nas suas várias componentes, uma natureza negativa ou de defesa, considerada análoga aos «direitos, liberdades e garantias»[2].
Como refere Assunção Cristas[3], o fresh start em que se traduz a exoneração do passivo restante constitui um recomeço, iniciado 5 anos após o encerramento do processo de insolvência, pressupondo o acatamento de uma série de imposições previstas na lei (art. 239.º do CIRE), em que o devedor pessoa singular não fica amarrado às obrigações que assumiu no passado, “liberta-se daquele peso e pode recomeçar de novo a sua vida. Os cincos anos assemelhar-se-ão, pois, a um purgatório: durante esse período, o devedor vai pagando as suas dívidas, adoptando um comportamento adequado, mas esse período é considerado por lei o suficiente para que venha o perdão e com ele lhe seja dada uma nova oportunidade.”
No entanto, para que o juiz profira despacho inicial positivo, como enfatiza a autora citada[4], “é necessário que o devedor preencha determinados requisitos de ordem substantiva. A saber: - tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência (als. b), d), f) e g) do n.º 1 do art. 238.º)”.
Nesse sentido, se consignou no acórdão desta Relação, de 9.01.2006[5], que para que o insolvente possa beneficiar daquela medida se exige, além de outros requisitos legalmente previstos – arts. 235º a 238º do citado diploma – que tenha tido um comportamento, anterior ou actual, pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé, no que respeita à sua situação económica, e aos deveres associados ao processo de insolvência, tornando-se assim merecedor de ‘nova oportunidade’, e que se o Juiz se convencer que, pelo comportamento do insolvente, se não justifica a concessão da ‘exoneração do passivo restante’, deve indeferir liminarmente tal pretensão.”
Esta exigência ética, para além do suporte normativo já referido (als. b), d), f) e g) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE), encontra suporte axiológico no facto de a libertação do passado de dívidas do insolvente se realizar à custa do património dos credores, justificando uma avaliação do mérito da conduta do beneficiário, legitimador dessa oportunidade.
Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra - Apelação 1779/11.0T2AVR-C.C1[6], torna-se «necessário um especial cuidado e rigor na apreciação da conduta dos insolventes “apertando-a, com ponderação de dados objectivos”. A mesma deve apresentar-se transparente e sem qualquer indício de má fé sob pena de se estar a proceder a um verdadeiro branqueamento de dívidas, impondo o Estado danos aos credores, sem qualquer contrapartida.»
Em suma: a nova oportunidade que o preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004 define como fresh start, tem um elevado preço, a pagar pelos credores do insolvente que se veem privados dos seus créditos, só se justificando, como se refere no mesmo preâmbulo, em situações em que o insolvente esteja de boa fé[7].
A Ma Juíza indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, integrando a factualidade provada na alínea e) do n.º 1 art.º 238.º do CIRE.
À luz dos conceitos enunciados haverá agora que recolocar a questão fulcral: há ou não no processo elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º, legitimadores do indeferimento liminar nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE?
Pensamos que tais indícios são patentes.
Com a sua conduta, os requerentes protegeram os familiares (como eles próprios assumem), agravando manifestamente a situação de insolvência.
A lei fala de indícios, e eles estão presentes no processo, óbvios, concludentes, incontornáveis.
Pelas razões expostos, salvo o decido respeito, não podemos estar de acordo com a argumentação aduzida pelos recorrentes, afigurando-se-nos correta a interpretação que suporta a sentença recorrida.
Deverá, em consequência, naufragar o recurso interposto.
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III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, ao qual negam provimento, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes, devendo ter-se em consideração o apoio judiciário e o disposto no artigo 248.º do CIRE.
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A presente decisão compõe-se de dezasseis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
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Porto, 8 de outubro de 2018
Carlos Querido
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
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[1] Doravante designado pelo acrónimo CIRE.
[2] Nesse sentido, vejam-se Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da república Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 2014, pág. 802.
[3] Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição especial, Almedina, pág. 167
[4] Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição especial, Almedina, pág. 170
[5] Acórdão de 9.01.2006, proferido no Processo n.º 0556158, acessível em http://www.dgsi.pt
[6] Em que foi adjunto o ora relator.
[7] No sentido apontado, veja-se o acórdão desta Relação, de 19.06.2012, proferido no Proc. 1842/11.7TBVCD-D.P1, acessível em http://www.dgsi.pt